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Investimentos de geração e transmissão estão estimados em R$ 230 bilhões até 2026, mas setor vive fase de definições, com aumento do mercado livre e alta dos custos dos projetos

Por Roberto Rockmann — Para o Valor, de São Paulo


Com mais de R$ 230 bilhões em investimentos em geração e transmissão até 2026 - e R$ 530 bilhões até 2031, segundo estimativas do Plano Decenal de Energia - diante do avanço de fontes variáveis como eólicas e solares e reforços nas linhas de conexão para atender a essa expansão, o setor elétrico terá desafios e oportunidades pela frente em um cenário internacional de curto prazo que combina alta de crédito e custos com a guerra entre Ucrânia e Rússia, inflação global em alta pela crise energética e os desdobramentos da pandemia sobre as cadeias de fornecimento.

Em geração, estão previstos investimentos superiores a R$ 180 bilhões entre 2022 e 2026 para a instalação de 45 GW de capacidade, sendo que 76% desses projetos estão voltados ao mercado livre. Isso cria um desafio: o modelo atual, sancionado em 2004 sob o fantasma do racionamento de 2001, fez a divisão entre o mercado livre e o regulado - atendido pelas distribuidoras e formado por residências e pequenas empresas. Nele as distribuidoras são obrigadas a contratar energia em leilões de longo prazo. Recessão e pandemia derrubaram a demanda do mercado regulado, enquanto a alta das tarifas levou muitas empresas ao mercado livre. A geração distribuída solar, figura regulatória criada em 2012, também permitiu que pessoas físicas ganhassem liberdade.

Os leilões de contratação de energia para o mercado regulado continuarão? Até quando? A forma como os certames são feitos será modificada? São três perguntas importantes para o futuro e serão fundamentais para a atração, por exemplo, de novas fontes, como as eólicas em alto mar.

Uma discussão é sobre novos modelos de contratação de energia, dando preferência a soluções sistêmicas

Uma discussão é sobre novos modelos de contratação de energia, dando preferência a soluções sistêmicas e não à compra de energia de determinada fonte como feito desde 2004. “Eu consigo prever uma dinâmica maior nesse mercado de armazenamento quando o Brasil passar a efetivamente precificar requisitos sistêmicos e deixar de comprar apenas MWh de fonte X ou Y”, afirma a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum. A opinião é compartilhada por empresas que têm interesse em vender novas tecnologias. “Na Itália, armazenamento é uma realidade. Comercializamos recentemente na Itália 1.600 MW de forma mais competitiva que fontes de geração. No Brasil, também há espaço para isso, nos leilões de contratação de potência, poderia haver neutralidade tecnológica e haver disputa entre geração e armazenamento”, diz Roberta Bonomi, presidente da Enel Green Power.

Uma outra variável importante no cenário é a capitalização da Eletrobras, que detém cerca de um terço da geração e transmissão do país. Com a maioria do capital em agentes privados, a empresa poderá destravar investimentos, sendo que alguns empreendimentos, com mais de 30 anos, poderão ser modernizados sob nova tecnologia. Isso poderá criar oportunidades para a indústria de bens de capital, afirma um fornecedor.

O avanço das fontes variáveis como eólicas e solares também reforça o papel das usinas hidrelétricas, que são e serão o coração do sistema elétrico nacional. Em 2001, esses empreendimentos respondiam por cerca de 85% da geração de eletricidade no país. Hoje, sua participação caiu para dois terços e até 2031 será ainda mais diminuída: 46%. A perda relativa de presença coincide com um outro ingrediente: desde os anos 2000, todos os grandes projetos hídricos foram construídos sem reservatórios, o que reduz a flexibilidade no planejamento e torna a operação mais complexa.

Eólicas e solares não podem ser despachadas a qualquer momento em razão de dependerem de vento e sol. Isso implica a necessidade de ter fontes que possam armazenar energia e garantir potência nos horários de pico, como as hidrelétricas, que funcionam como grandes baterias de água. “É preciso ter um preço-horário que reflita os custos atrelados de distribuição e transmissão e oscilação de frequência e voltagem, um preço real horário para valorizar o papel das hidrelétricas, que podem ser despachadas no horário de ponta com um preço muito mais baixo que térmicas”, afirma Evandro Vasconcelos, vice-presidente da CTG.

O avanço das renováveis a partir desse ano será feito sob um cenário de pressão de custos. A CTG, que está trabalhando para implementar projetos eólicos e solares, começa agora a avaliar os custos de máquinas para os empreendimentos. Em eólicas, o preço das turbinas está 30% mais elevado em comparação com 2021. De 2019 a 2021, o custo de investimento dos projetos renováveis tinha se elevado em razão de lockdowns na China e o choque das commodities. Relatório da Agência Internacional de Energia, divulgado semana passada, mostrou que na década de 2010 os preços de eólicas e solares vinham em queda ano após ano, mas em 2021 essa curva se inverteu. A guerra elevou ainda mais. “A cadeia de fornecimento está sob estresse e isso impactará custo do investimento e do financiamento”, afirma Ewerton Henriques, diretor do banco Fator.

O avanço das fontes renováveis variáveis como eólicas e solares, que deverão chegar a 40 GW em 2031 (sem considerar a energia solar distribuída), segundo estimativas do Plano Decenal da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), exigirá reforço do sistema de transmissão e trará como desafio que andem lado a lado o planejamento das linhas e a execução das obras de usinas renováveis (cerca de três a cinco anos) com os projetos de transmissão (cinco a sete anos). Um levantamento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) aponta que 241 grandes usinas solares e parques eólicos devem entrar em operação comercial no Brasil até janeiro de 2026, injetando quase 6 mil megawatts de potência no sistema elétrico, o equivalente a quase metade da capacidade da Usina Hidrelétrica de Itaipu.

Mais de R$ 50 bilhões em investimentos em transmissão deverão sair até 2031 (R$ 100 bilhões considerando subestações). Uma parte considerável dos projetos deverá ir a leilão em 2023 e poderá marcar os maiores certames em 20 anos. A EPE estuda a possibilidade de o país instalar dois sistemas de bipolos de transmissão até o fim da década, o que poderá dobrar a capacidade de exportação do Nordeste para outras regiões. “Isso pode permitir o avanço da eólica offshore no Nordeste, já que essa tecnologia deve avançar mais para o fim da década”, diz Erik Rego, diretor de Estudos de Energia Elétrica da EPE.

Desde 2017, com a mudança de postura do BNDES, que passou a perseguir taxas de mercado na concessão de crédito, os projetos começaram a ter uma participação mais relevante do mercado de capitais. “Em geração distribuída solar, temos visto a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs)”, diz Barbara Rubim, vice-presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira da Indústria Solar (Absolar). A opção se deu porque o novo marco do setor veta emissão de debêntures incentivadas.

Anunciada no último dia útil de 2021, a reforma cambial abriu a possibilidade de que contratos de compra e venda de energia (PPAs, na sigla em inglês) no Brasil sejam fechados em moedas estrangeiras, como o dólar e o euro. Bancos, mineradores, fabricantes de papel e celulose e siderúrgicas já negociam sob essa modalidade e a expectativa é de que, como a nova legislação passa a valer em 30 de dezembro desse ano, os primeiros contratos já vigorem no início de 2023. “Nesse momento, estamos com algumas propostas em eólicas e solares e em até três meses devem ser definidos os bancos e como as operações devem ser estruturadas”, diz Daniel O’Czerny, líder da área de project finance Latam do Citi.

A volatilidade do mercado, com pandemia, choque de commodities e eventuais recessões nos Estados Unidos e na Europa, alteraram as condições de crédito e têm feito as empresa adotarem postura mais cautelosa, seja com proteção no câmbio, seja buscando menor variação em matérias-primas. “Nos leilões de transmissão, há cinco anos se buscava travar alumínio, hoje se buscam outras commodities e o câmbio também, a ideia é ter menos exposição”, diz O’Czerny.

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