Futuro incerto molda cenário de paralisia

A receita bruta dos 200 maiores grupos cresce 5,4% e lucro líquido encolhe 26% em 2020, num cenário de crise e isolamento social

Por Felipe Datt


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As crises econômica e sanitária decorrentes da pandemia do novo coronavírus deixaram marcas nos resultados consolidados dos 200 maiores grupos empresariais com atuação no Brasil. As medidas de isolamento social, o fechamento dos escritórios, a recessão severa, o início da escalada inflacionária e o aumento de desemprego se materializaram em alguns dos resultados mais tímidos da série histórica do anuário.

A receita bruta desse time registrou uma variação nominal de 5,4% em 2020, sobre o ano anterior, para R$ 4,94 trilhões, a quarta pior taxa de crescimento anual das 19 edições do ranking – superior apenas à performance de 2009 e do biênio 2016/2017. A variação real, deflacionada por um Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) que encerrou o último exercício com alta de “comportados” 4,52%, foi de 0,8%, o que aponta para um cenário de relativa estagnação.

Os maiores grupos andaram de lado na pandemia, ainda que os resultados apontem para um certo grau de resiliência quando inseridos no terceiro maior tombo da economia brasileira em 40 anos, conforme cálculos da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu 3,9%, um resultado superado apenas pelas recessões de 1981 e 1990 (ambas com perdas de 4,3%).

O estrago poderia ter sido maior. Entre abril e junho, meses de maior impacto da pandemia na economia, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projetava um tombo superior a 10%. Isso não ocorreu por conta da melhora da atividade no último semestre e da injeção inédita de recursos na economia pelo governo central. Foram liberados R$ 294,7 bilhões em auxílio emergencial, que beneficiaram cerca de 68 milhões de brasileiros, e criadas medidas de preservação de emprego e linhas de crédito emergenciais para socorrer pequenos empresários.

Os números do anuário mostram que houve ganhadores e perdedores na pandemia. Alguns setores e empresas conseguiram navegar com destreza em meio às medidas de isolamento social, home office e consumo remoto, enquanto outros sofreram duramente. Houve também uma espécie de “cabo de guerra” entre os quatro macrosetores que compõem o ranking, o que ajuda a explicar os números finais de rubricas como receita bruta e lucro consolidado. Mas, mesmo dentro de setores com bons resultados no agregado, os desempenhos de subsegmentos foram heterogêneos.

De um lado da corda estão os grupos industriais e comerciais. “A produção e o consumo de bens foram beneficiados por conta do auxílio emergencial e pelo fenômeno de as pessoas terem trocado o consumo de serviços por produtos durante a pandemia”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. A receita bruta da indústria apresentou variação nominal positiva de 11,9% – ou 7%, em termos reais –, o melhor desempenho entre os quatro setores. Dos 20 maiores crescimentos de receita no setor, destacam-se empresas que se beneficiaram do contexto internacional de valorização das commodities metálicas (Vale e Anglo American) e produtoras alimentícias (Marfrig, Camil Alimentos e Bunge).

O comércio viu a receita bruta crescer 7% (nominal) e 2,4% (real) em 2020, no segundo melhor desempenho setorial. Entre os destaques em ganhos de receita estão grandes redes supermercadistas do atacado e varejo (Carrefour, Grupo Mateus), traders e empresas que já possuíam uma estratégia de digitalização eficiente e navegaram com destreza no boom do e-commerce durante a pandemia (Magazine Luiza e Via). O setor também foi o único a entregar crescimento de lucro: 12,9%.

Do outro lado da corda – o que ajudou a puxar para baixo os números gerais do anuário – aparece o setor de finanças, cuja receita bruta encolheu 1,6% em termos nominais e 5,8% em termos reais em 2020, na comparação com o ano anterior, em um cenário de queda de geração de receitas de intermediação financeira e de prestação de serviços. O lucro do setor financeiro encolheu 18,9%, em um cenário de aumento do provisionamento de recursos para lidar com um potencial aumento da inadimplência – que não se materializou como imaginado.

Bastante castigado durante a pandemia, o setor de serviços viu a receita bruta encolher 1,4% (variação nominal) e 5,6% (real), na comparação com o ano anterior. “Grandes empresas como Oi, Azul, Latam e Gol tiveram prejuízos astronômicos. O setor de educação também teve resultados deprimidos. Quem se destacou positivamente foi a área de saúde, com quatro empresas entre as dez com maior crescimento de receita em serviços”, diz William Volpato, coordenador de Valor Data, em referência à Dasa, grupo Hapvida, grupo NotreDame Intermédica e Prevent Senior.

Com indústria, serviços e finanças entregando resultados piores na linha final, o lucro líquido dos 200 maiores grupos teve queda de 26% no exercício, para R$ 206,5 bilhões, o segundo ano consecutivo de retração. O pior desempenho foi de serviços, com queda de 58,9%, seguido da indústria (23,3%). Aperto de custos, pressão cambial e maiores gastos com importação rebateram nos custos, sobretudo na indústria. “Teve efeito de câmbio nas despesas financeiras, com impacto no lucro”, completa. O patrimônio líquido, por sua vez, avançou pelo quinto ano consecutivo, em ritmo superior ao do ano anterior: 9,4%. Todos os quatro macrosetores tiveram variação positiva.

Os resultados de 2021 tendem a ser melhores, na média. Um levantamento do Valor Data com dados agregados de 298 companhias não financeiras com ações listadas – excluindo Petrobras e Vale – mostra que a receita líquida aumentou 33,3% no terceiro trimestre, em relação a igual período do ano passado. O lucro líquido cresceu 106,7%. Quando comparado ao segundo trimestre de 2021, entretanto, há perda de fôlego, com alta de 10,2% na receita e queda de 36,9% na linha final, em um cenário de maiores pressões de custos e margens menores.

A perda de vigor não espanta. Dois mil e vinte e um tinha tudo para ser um ano de recuperação mais firme da economia, tomando como referência a mediana das projeções dos economistas do boletim Focus do Banco Central, que estimavam um crescimento em torno de 5,5% para a atividade. Hoje fica claro que 2021 pode ser dividido em duas partes desiguais: o primeiro trimestre e o restante do ano.

No embalo do último trimestre de 2020, que trazia os primeiros sinais de recuperação da economia, e com a expectativa do início da vacinação e de uma moderada normalização das atividades, os primeiros três meses de 2021 entregaram um crescimento de 1,2% sobre o período imediatamente anterior, na série com ajuste sazonal, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A recuperação em “V” profetizada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, começava a se materializar e de forma homogênea. Na ótica da oferta, todos os setores contribuíram para a alta: agropecuária (5,7%), indústria (0,7%) e serviços (0,4%).

“A partir daquele momento, entretanto, tudo travou”, diz Sergio Vale, da MB Associados. “A economia chegava em franca recuperação até o segundo trimestre, na saída da crise, e uma recuperação que era composta por bens e serviços. A partir de então, é como se a economia tivesse parado”, completa. Foi um voo de galinha e de curta duração. O PIB recuou 0,4% no segundo trimestre, na comparação com o trimestre anterior com ajuste sazonal. No terceiro trimestre, novo recuo de 0,1%, levando a economia brasileira a entrar em “recessão técnica”, quando ocorrem dois trimestres seguidos de retração.

Com a paralisação da recuperação, as projeções para o PIB no ano foram seguidamente reduzidas e hoje as apostas estão em 4,7%, com viés de baixa, o suficiente para repor as perdas de 2020 com algum ganho. Para o economista-chefe do Citi, Leonardo Porto, o quadro compromete as perspectivas para 2022 e já há “pelo menos” um quadro de estagnação contratada para o próximo exercício.

Segundo o especialista, a pandemia e as medidas de restrição de mobilidade têm cada vez menos peso como principal explicação de curto prazo para essa perda de vigor da atividade. “No primeiro trimestre, a mobilidade caiu com a segunda onda e o PIB cresceu. No segundo, a mobilidade cresceu e o PIB caiu. As pessoas aprenderam a trabalhar sem necessidade de mobilidade. Isso confirma nossa tese de que é preciso olhar menos para a pandemia e mais para os drivers usuais que condicionam o crescimento econômico”, diz.

A principal interpretação pela perda de fôlego é o efeito da escassez de insumos e o encarecimento de energia elétrica, que afetam duramente o setor industrial. “O desarranjo das cadeias produtivas é global,

começou com a falta de chips e se espalhou em uma extensão muito mais ampla do que a imaginada. O setor industrial brasileiro não cresce há dois trimestres e os dados da produção industrial de outubro indicam que o último trimestre caminha na mesma direção”, diz Porto, em relação aos dados do IBGE, que mostram retração de 0,2% na indústria no segundo trimestre e um zero a zero no terceiro.

O consumo das famílias não apresenta desempenho mais animador, em um cenário de mercado de trabalho deteriorado e de carestia. A taxa de desemprego atingiu 12,6% no trimestre encerrado em setembro, com 13,5 milhões de brasileiros à procura de trabalho. Ainda que os números tenham apresentado melhora em meses recentes, o rendimento médio real do trabalhador somava R$ 2.459 ao fim de setembro – queda de 11,1% em relação ao mesmo período do ano passado e a menor marca para o trimestre desde o início da série histórica (2012).

A corrosão da renda do trabalho é potencializada por outra das principais causas da letargia econômica: uma inflação persistentemente em alta e que corrói o poder de consumo. O IPCA, a inflação oficial do país, acumulou alta de 10,74% nos 12 meses encerrados em novembro, o maior índice para um intervalo de um ano desde novembro de 2003. Com isso, o centro da meta para 2021 (3,75%) se tornou uma miragem.

Os baixos níveis dos reservatórios levaram ao acionamento das termelétricas e à entrada em vigor da bandeira tarifária vermelha patamar 2, encarecendo as contas de energia. As pressões inflacionárias obrigaram o Banco Central (BC) a iniciar um ciclo de aperto monetário que levou a Selic, a taxa básica de juros, para 9,25% ao ano em dezembro, com claro efeito contracionista sobre a atividade. Novas altas são esperadas na tentativa de ancorar as expectativa de inflação de 2022 e, ao que tudo indica, 2023.

O desafio do Banco Central não é trivial. “A estagnação atual da economia ainda não está relacionada à política monetária. Mas estará. O pior momento da atividade advindo do aperto monetário ocorrerá entre o segundo e o terceiro trimestres do ano que vem, condicionado ao nosso cenário de que o BC subirá juros até março de 2022”, diz Leonardo Porto, do Citi.

Ao cenário já deteriorado com inflação, aperto monetário e economia estagnada, somam-se as jabuticabas. Em outubro, o anúncio do governo Jair Bolsonaro de que financiaria o Auxílio Brasil, programa de transferência de renda que substituirá o Bolsa Família, driblando a regra do teto de gastos, azedou de vez o humor de um mercado já ressabiado com a sustentabilidade da trajetória das contas públicas.

A medida, encarada como populismo eleitoral, deteriorou as condições financeiras, com derretimento do Ibovespa para o patamar dos 100 mil pontos, inclinação da curva futura de juros para dois dígitos e depreciação cambial – o dólar é atalho para contaminação dos índices de inflação. As projeções dos agentes econômicos para 2022 pioram também pelas turbulências típicas de uma corrida eleitoral, antecipada em pelo menos um ano.

Para Solange Srour, economista-chefe do Credit Suisse, o Brasil entra em 2022 com uma âncora fiscal muito enfraquecida. “O teto de gastos ainda existirá, mas modificado. Passamos por cima do teto, passamos por cima da Lei de Responsabilidade Fiscal, criando uma excepcionalidade para 2022. O mercado já não pega a meta de (déficit) primário como crível porque ela é sempre modificada”, diz. “Ainda temos a discussão do orçamento, com uma série de iniciativas que podem ampliar gastos, como vale-gás, desoneração da folha e aumento de salário de servidores. Serão momentos de tensão para o mercado também”, completa.

Para a economista, a dinâmica fiscal negativa afeta o PIB via aumento das expectativas e incertezas nos agentes econômicos. “E incerteza sempre paralisa decisões de investimento e algum grau de consumo também. Com as eleições, há uma grande dúvida sobre o que será do Brasil em 2023”, completa.

Hoje, o caráter da economia é de “estagflação”, com crescimento próximo de zero na margem e com inflação acelerada, que fechará o ano em dois dígitos, provavelmente, avalia Sergio Vale, da MB Associados. “Isso é um cenário de grande preocupação porque 2022 será um ano por si só difícil pela eleição presidencial. Não tem como dar certo juntar juros elevados, inflação muito alta e tensão política por conta da eleição. O cenário de estagnação presente permanecerá no ano que vem”, completa.

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