O texto do acordo que prevê uma ação global unificada em futuras pandemias não repara as desigualdades enfrentadas na crise da covid-19. É o que apontam entidades da sociedade civil, que afirmam que os termos atuais do tratado, ainda em negociação na Organização Mundial de Saúde (OMS), reforçam o status quo que beneficia países ricos em desfavor de nações em desenvolvimento.
O tratado deve ser apresentado em maio, durante a Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão máximo de deliberação da OMS. A última rodada de negociações a respeito do acordo começa nesta segunda-feira (29), em Genebra, na Suíça. Para tentar reparar as lacunas presentes no texto atual, o Brasil vai propor que o prazo para discutir o pacto seja estendido.
O Tratado das Pandemias, como tem sido chamado, foi pensado em novembro de 2020, quando o mundo enfrentava os efeitos do novo coronavírus. O objetivo inicial era que, no futuro, fosse possível garantir acesso universal e igualitário a vacinas, remédios e diagnósticos a fim de evitar novas crises sanitárias.
Na época que se começou a debater o pacto, ele teve apoio do presidente francês, Emmanuel Macron, e dos então chefes de Estado do Reino Unido (Boris Johnson) e da Alemanha (Angela Merkel), entre outros líderes.
Para elaborar o tratado, foi criado o Órgão Negociador Intergovernamental. O Brasil é um dos seis representantes do colegiado, ao lado de África do Sul, Egito, Japão, Holanda e Tailândia. Apesar de 194 países fazerem parte da OMS, os termos do acordo têm sido elaborados por essas seis nações, enquanto as demais são apenas ouvidas de forma consultiva.
“Basicamente, os Estados-membros são bem-vindos a sugerir alterações, mas só podem discuti-las informalmente, fora do grupo responsável pela redação do texto. Se houver consenso, então as questões podem ser levadas a esse grupo”, afirma K.M. Gopakumar, consultor jurídico e pesquisador sênior da Third World Network. Ele continua: “É uma abordagem problemática, especialmente em um texto muito desequilibrado em relação aos interesses dos países em desenvolvimento. A redação que temos hoje reforça o status quo”.
Nas negociações para o acordo, há um embate entre países do Norte e do Sul Global. O primeiro grupo, mais desenvolvido e rico, reluta no compartilhamento de tecnologia e quebra de patentes - essas duas questões foram, durante a pandemia da covid-19, o que dificultou o acesso igualitário às vacinas para todos os países. Apesar de mais de 7 milhões de pessoas terem morrido pela doença, segundo dados da OMS, farmacêuticas mantiveram exclusividade na produção dos imunizantes e os vendiam de forma prioritária para as nações que pagassem mais.
“O objetivo do tratado não é mudar a forma como monopolizamos as inovações no mundo. A ideia é que, durante emergências de saúde, as tecnologias que tratam e previnem tais doenças pandêmicas não devem estar sob monopólio [de um país]”, diz Pedro Villardi, coordenador de Equidade em Saúde da Internacional de Serviços Públicos (ISP). Ele completa: “Os países desenvolvidos querem obrigar que os em desenvolvimento compartilhem a sua biodiversidade e seus dados de sequenciação genética, mas não oferecem nenhuma contrapartida”.
O texto atual do tratado também foi alvo de críticas da revista científica “The Lancet”, afirmando que a redação está “cheia de banalidades, advertências e de termos como ‘quando for apropriado’.” A publicação cita como exemplo um artigo do acordo que prevê que a OMS teria acesso a apenas 20% “dos produtos relacionados com a pandemia para distribuição com base nos riscos e necessidades de saúde pública”. Os 80% restantes - que envolveriam vacinas e materiais para tratamentos e diagnósticos - continuariam a ser comercializados como já são hoje.
“Isso não é apenas vergonhoso, injusto e desigual, é também ignorante. Criar e aderir a um conjunto de termos fortes e verdadeiramente equitativos sobre acesso e partilha de benefícios não é ato de bondade ou caridade. É ato de ciência, um ato de segurança e um ato de interesse próprio”, diz a revista.
Entre os argumentos do Norte Global para o não compartilhamento total dos recursos está a fragilização dos direitos de propriedade intelectual. A fundação Heritage, think tank conservador americano, divulgou uma nota afirmando que os termos atuais “instam as partes [do acordo] a ‘encorajar’ os detentores das patentes a renunciar ou reduzir os royalties de seus produtos e conhecimentos técnicos durante uma pandemia”.
Segundo Jaume Vidal, consultor da Health Action International, apesar dos problemas atuais do termo, ainda é possível chegar a um tratado que seja benéfico a todos. “Mas, para isso, precisamos de vontade política e comprometimento de todos os países”, diz.
Para evitar que o tratado avance com a redação atual, dez organizações brasileiras assinaram carta enviada ao Ministério da Saúde, ao Itamaraty e à missão do Brasil em Genebra pedindo para que rejeitem o acordo nos termos atuais.