Tratado global das pandemias beneficia países ricos, alerta sociedade civil

Última rodada para debater texto será hoje, mas Brasil vai propor extensão do prazo

Por — Do Rio


Hospital de São Paulo lotado no auge da crise da covid-19, em 2020: plano para enfrentar futuras pandemias não contempla reparação de desigualdades — Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo

O texto do acordo que prevê uma ação global unificada em futuras pandemias não repara as desigualdades enfrentadas na crise da covid-19. É o que apontam entidades da sociedade civil, que afirmam que os termos atuais do tratado, ainda em negociação na Organização Mundial de Saúde (OMS), reforçam o status quo que beneficia países ricos em desfavor de nações em desenvolvimento.

O tratado deve ser apresentado em maio, durante a Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão máximo de deliberação da OMS. A última rodada de negociações a respeito do acordo começa nesta segunda-feira (29), em Genebra, na Suíça. Para tentar reparar as lacunas presentes no texto atual, o Brasil vai propor que o prazo para discutir o pacto seja estendido.

O Tratado das Pandemias, como tem sido chamado, foi pensado em novembro de 2020, quando o mundo enfrentava os efeitos do novo coronavírus. O objetivo inicial era que, no futuro, fosse possível garantir acesso universal e igualitário a vacinas, remédios e diagnósticos a fim de evitar novas crises sanitárias.

Na época que se começou a debater o pacto, ele teve apoio do presidente francês, Emmanuel Macron, e dos então chefes de Estado do Reino Unido (Boris Johnson) e da Alemanha (Angela Merkel), entre outros líderes.

Para elaborar o tratado, foi criado o Órgão Negociador Intergovernamental. O Brasil é um dos seis representantes do colegiado, ao lado de África do Sul, Egito, Japão, Holanda e Tailândia. Apesar de 194 países fazerem parte da OMS, os termos do acordo têm sido elaborados por essas seis nações, enquanto as demais são apenas ouvidas de forma consultiva.

Para avançar é preciso vontade política e comprometimento”
— Jaume Vidal

“Basicamente, os Estados-membros são bem-vindos a sugerir alterações, mas só podem discuti-las informalmente, fora do grupo responsável pela redação do texto. Se houver consenso, então as questões podem ser levadas a esse grupo”, afirma K.M. Gopakumar, consultor jurídico e pesquisador sênior da Third World Network. Ele continua: “É uma abordagem problemática, especialmente em um texto muito desequilibrado em relação aos interesses dos países em desenvolvimento. A redação que temos hoje reforça o status quo”.

Nas negociações para o acordo, há um embate entre países do Norte e do Sul Global. O primeiro grupo, mais desenvolvido e rico, reluta no compartilhamento de tecnologia e quebra de patentes - essas duas questões foram, durante a pandemia da covid-19, o que dificultou o acesso igualitário às vacinas para todos os países. Apesar de mais de 7 milhões de pessoas terem morrido pela doença, segundo dados da OMS, farmacêuticas mantiveram exclusividade na produção dos imunizantes e os vendiam de forma prioritária para as nações que pagassem mais.

“O objetivo do tratado não é mudar a forma como monopolizamos as inovações no mundo. A ideia é que, durante emergências de saúde, as tecnologias que tratam e previnem tais doenças pandêmicas não devem estar sob monopólio [de um país]”, diz Pedro Villardi, coordenador de Equidade em Saúde da Internacional de Serviços Públicos (ISP). Ele completa: “Os países desenvolvidos querem obrigar que os em desenvolvimento compartilhem a sua biodiversidade e seus dados de sequenciação genética, mas não oferecem nenhuma contrapartida”.

O texto atual do tratado também foi alvo de críticas da revista científica “The Lancet”, afirmando que a redação está “cheia de banalidades, advertências e de termos como ‘quando for apropriado’.” A publicação cita como exemplo um artigo do acordo que prevê que a OMS teria acesso a apenas 20% “dos produtos relacionados com a pandemia para distribuição com base nos riscos e necessidades de saúde pública”. Os 80% restantes - que envolveriam vacinas e materiais para tratamentos e diagnósticos - continuariam a ser comercializados como já são hoje.

“Isso não é apenas vergonhoso, injusto e desigual, é também ignorante. Criar e aderir a um conjunto de termos fortes e verdadeiramente equitativos sobre acesso e partilha de benefícios não é ato de bondade ou caridade. É ato de ciência, um ato de segurança e um ato de interesse próprio”, diz a revista.

Entre os argumentos do Norte Global para o não compartilhamento total dos recursos está a fragilização dos direitos de propriedade intelectual. A fundação Heritage, think tank conservador americano, divulgou uma nota afirmando que os termos atuais “instam as partes [do acordo] a ‘encorajar’ os detentores das patentes a renunciar ou reduzir os royalties de seus produtos e conhecimentos técnicos durante uma pandemia”.

Segundo Jaume Vidal, consultor da Health Action International, apesar dos problemas atuais do termo, ainda é possível chegar a um tratado que seja benéfico a todos. “Mas, para isso, precisamos de vontade política e comprometimento de todos os países”, diz.

Para evitar que o tratado avance com a redação atual, dez organizações brasileiras assinaram carta enviada ao Ministério da Saúde, ao Itamaraty e à missão do Brasil em Genebra pedindo para que rejeitem o acordo nos termos atuais.

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