Em 2014, na véspera de os países signatários da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) estabelecerem como primeiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a erradicação da pobreza, o Brasil colhia os bons resultados de uma trajetória quase ininterrupta de vinte anos de melhoria das condições de vida da parcela mais vulnerável da população. O percentual de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza caiu de 42% no início dos anos 90 para 14,1% em 2014.
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O fim da hiperinflação com o Plano Real e direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988 deram a primeira contribuição. A queda, contudo, foi potencializada na sequência com a combinação de crescimento econômico e políticas públicas de aumento do salário mínimo e de assistência social a partir dos anos 2000. O problema é que há seis anos a queda foi interrompida, o movimento se inverteu e o país chegou ao ano passado com 20% dos brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza. São cerca de 42 milhões de pessoas pobres, com renda insuficiente para suas necessidades básicas, dos quais 14 milhões são indigentes, que vivem na pobreza extrema.
Após um aumento moderado entre os anos 2015 e 2019, a pobreza caiu em 2020 como efeito do auxílio emergencial (de R$ 600 a R$ 1,2 mil) pago durante o auge da pandemia, diz o professor Naercio Aquino Menezes, titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper. Na sua avaliação, o aumento em 2021 está diretamente relacionado à redução dessa transferência de renda e à queda da renda do trabalho, ambas situações potencializadas pela inflação.
Além dessa face monetária, contudo, as condições de vida dos mais vulneráveis também foram negativamente afetadas pela redução dos gastos em políticas públicas. Naercio usa linhas de pobreza e extrema pobreza regionalizadas, divididas entre população urbana e rural, a partir dos critérios propostos em 2006 em estudo de Sonia Maria Rodrigues da Rocha. Os dados são atualizados regularmente por Naercio e Bruno Komatsu, também do Insper.
A renda do trabalho da parcela mais vulnerável (10% de menor renda) caiu 40% entre 2019 e 2021, observa o professor do Insper. “É quase metade da renda do trabalho, então foi isso que provocou esse grande aumento da pobreza no ano passado”, pontua Naercio. Ele diz que “tem a impressão” (porque os dados ainda não são conhecidos) que a pobreza vai cair em 2022 em relação a 2021 por uma recomposição parcial da renda do trabalho e queda do desemprego, enquanto o Auxílio Brasil ajudará na redução da extrema pobreza, afinal serão mais de R$ 110 bilhões distribuidos este ano, o triplo do Bolsa Família em 2021. Apesar dos problemas de focalização, o valor médio por família foi de R$ 409 em maio, o dobro dos R$ 197 médios do ano passado. “O problema é a inflação. Ela está deteriorando o poder de compra, alguns ainda não arrumaram emprego e também não recebem o auxílio. O governo prometeu acabar com a fila, mas isso não aconteceu”, pondera o economista, apontando que efeitos da pandemia sobre a ocupação de parcela da população ainda se mantêm e quem recebe menos que o mínimo pode não ter a garantia de recomposição da inflação que o salário base assegura.
O aumento do valor do Auxílio Brasil (cuja parcela mínima mensal foi elevada recentemente de R$ 400 para R$ 600 até o fim do ano) vai ajudar um número importante de famílias a comprar comida ao longo dos próximos meses e assim conviver com a indigência e até sair dela. Os dados um pouco melhores que podem ser registrados em 2022, contudo, representam uma saída que pode ser temporária e olha para uma face da pobreza, a de renda.
A pobreza, contudo, é uma situação de vida multidimensional. “A população extremamente pobre depende de políticas públicas de educação e saúde. Ela é totalmente dependente, não consegue viver sem isso”, diz Marcelo Medeiros, professor visitante da Universidade Columbia. “Quando você reduz a capacidade tributária de Estados e municípios, você compromete o fornecimento desses serviços”, acrescenta, lembrando que esse é o impacto negativo esperado de outras medidas recentemente aprovadas, como a redução dos impostos incidentes sobre combustíveis e energia elétrica. Ao diminuir a capacidade de arrecadação dos Estados, elas afetam o montante de recursos destinados às políticas públicas que compõem a rede de proteção e suavização da pobreza.
Naercio lembra que além do efeito na arrecadação dos outros entes, no governo federal “muitas políticas sociais foram desmanteladas nos últimos quatro anos na educação, saúde, assistência social, e o exemplo mais gritante é a troca de ministros na Educação e o que foi feito na área”. Para ele, “a única coisa que realmente salvou os mais pobres foi a transferência de renda via auxílio emergencial”, que ele considera uma política bem feita e que colocou muito dinheiro na mão das pessoas. “Mas toda a rede de assistência, saúde e educação terá que ser reconstruída no ano que vem”, diz. “O problema é que depois que você destrói uma rede de proteção e serviços, para reconstruir demora”, diz Medeiros. “Se as pessoas param de tomar remédio porque o sistema público não garante, você compromete a saúde das pessoas e aumenta o custo do sistema lá na frente.”
Para os dois economistas, restabelecer uma trajetória consistente de queda da pobreza a partir do próximo governo passa pela recomposição da rede de proteção e revisão dos critérios de transferência de renda. Para ambos, não é o momento de pensar em aumento real do salário mínimo.
Medeiros lembra que combater a pobreza é uma política de longo prazo, que passa pela educação. “No curto prazo, a ação direta é ampliar a rede de assistência. No passado, salário mínimo foi importante, mas agora não é isso que é necessário. Não tem outra coisa a fazer imediatamente a não ser ampliar a rede de proteção social; depois você vai cuidar do resto”, afirma.
Naercio defende a volta dos critérios do Bolsa Família (que levavam em conta o número de pessoas e especialmente de crianças na família) nos programas de transferência de renda e concorda que agora não é o momento de conceder aumentos reais para o salário mínimo, pelo impacto na Previdência e outros gastos públicos. “Você precisa aumentar o valor do auxílio para as famílias com crianças”, afirma, defendendo a proteção das famílias com crianças de zero a seis anos, que é a próxima geração e foi muito afetada pela pandemia. Em resumo, diz, “é preciso botar algum ministro da Educação que funcione, ajustar o programa principal de transferência de renda e reativar todos esses pequenos programas que foram sendo desmobilizados.”