Maio e junho são meses em que o mercado de vinhos volta suas atenções para Bordeaux. É o período em que começa a comercialização dos vinhos “En Primeur”, modalidade semelhante às de commodities no mercado futuro. Nesse gênero de transação, tipicamente bordalês, o consumidor compra e paga antecipado por um produto vinificado a partir de uvas colhidas por volta de setembro anterior e que está apenas no início de seu amadurecimento em barris de carvalho. Ali permanece por cerca de 18 meses, sendo depois engarrafado e entregue em dois anos.
Esse quadro não se estende aos bordeaux em geral. A lista de rótulos privilegiados contempla basicamente os 132 châteaux reunidos em torno da UGCB, a Union des Grands Crus Classés de Bordeaux, organização fundada em 1973 para conciliar interesses e zelar pela imagem dos mais importantes produtores daquela celebrada região do sudoeste da França.
As garrafas não são vendidas diretamente pelos châteaux. Os preços são definidos pelos produtores individualmente, e suas vendas, efetuadas por agentes (“négociants”) que atuam nesse mercado. São ao redor de 300 credenciados, dos quais não mais que 30 — os mais importantes — respondem por algo em torno de 80% das garrafas comercializadas.
A importância desses negociantes aumentou com a globalização, já que são eles que se encarregam de cobrir mais de 100 países potenciais compradores, tendo se especializado com as peculiaridades de cada mercado. Trabalhando com uma margem em torno de 15% sobre o preço estabelecido pelos châteaux, eles se encarregam de encontrar importadores e distribuidores mundo afora (os importadores/ distribuidores colocam ainda suas margens, fazendo com haja diferenças de preços nas listas dos “en primeur” propostas).
Além da abrangência, o sistema é bastante cômodo aos châteaux, que não precisam manter um intrincado departamento comercial, diminuindo também os riscos de inadimplência.
A campanha de “primeurs” começa em geral na primeira semana do mês de abril seguinte à colheita, quando a região de Bordeaux recebe profissionais do mundo inteiro para provar amostras dos vinhos recém-fermentados. No começo dos anos 1980 o evento reunia uma centena de jornalistas, foi crescendo e tomou tal proporção que nos últimos anos a UGCB chega a credenciar 5 mil pessoas, entre importadores, comerciantes e sommeliers, além da imprensa especializada, que tem a prerrogativa de degustar em separado.
É com base na opinião desse conjunto de profissionais e, em particular, pelo que é publicado pelos críticos especializados que os châteaux estabelecem os preços. Embora cada propriedade o faça de forma independente, levando em consideração sua posição e história no mercado, a qualidade da safra como um todo tem peso, na medida em que isso ajuda a criar um clima favorável e atraia consumidores.
Foi o que ocorreu no ano passado, quando foram lançados os bordeaux “en primeur” da safra 2022, considerada excepcional, que resultou num aumento generalizado de preços da ordem de 30% em relação aos 2021, mesmo considerando uma conjuntura econômica mundial instável ainda em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia.
O fato de 2023 não ser uma safra do mesmo patamar que a precedente — os produtores a classificam como “clássica” — fez com que os châteaux baixassem os preços, voltando ao nível anterior — Château Léoville Las Cases reduziu 51%, Pontet Canet -27%, Lafite Rothschild -32%, Mouton Rothschild -37%, L’Évangile -31%.
Esta safra, porém, chega num momento em que o mercado está adormecido devido ao prolongamento da guerra na Ucrânia e ao conflito no Oriente Médio, o que recomenda cautela. Além disso, o mercado americano, que tem se mostrado dinâmico nos últimos anos, está com estoques elevados e as próximas eleições presidenciais pedem uma atitude de esperar para ver. A China, em que muitos atores do setor depositavam grandes esperanças, acusa uma baixa no consumo de vinho de 16% em relação a 2021, segundo o último relatório da OIV, Organização Internacional da Vinha e do Vinho.
Independentemente da avaliação da safra e mesmo do humor do mercado, a compra “en primeur” se justifica quando garante aos consumidores o acesso a vinhos de alta demanda e prestígio que podem se esgotar rapidamente quando lançados no mercado, assim como são oferecidos a preços mais baixos em comparação com o que terão após serem engarrafados e distribuídos. Não parece ser o caso com os 2023, apesar de as avaliações indicarem vinhos de bom padrão e que poderão ser consumidos no curto e médio prazo, fatores que normalmente atraem os consumidores. Ainda a considerar se não seria mais recomendável comprar bordeaux das consagradas safras 2019 e 2020, que já estão disponíveis e com preços em baixa.
A opinião geral entre negociantes de Bordeaux é que a campanha de “primeurs” deste ano será mais lenta e que châteaux interessantes estão tendo dificuldade de encontrar clientes, o que, de certa forma, não ocorre com os 1er Grand Classés, grupo formado por oito tintos — Lafite, Latour, Mouton Rothschild, Margaux, Haut-Brion, Cheval Blanc, Ausone e Petrus —, os “Blue Chips” da bolsa de Bordeaux. Na verdade, a movimentação desse mercado em 2024 se baseou na baixa de preços, que é artificial.
Jean-Guillaume Prats, que tem vasta experiência no mercado bordalês e é vice-presidente do Domaines Delon, que congrega o estrelado Château Léoville-Las-Cases, além dos châteaux Potensac, Nénin e Clos du Marquis, me disse no ano passado que considerava perigosa aquilo que chamou de “financeirização de Bordeaux”.
Vale dizer que quando conversamos o Léoville-Las-Cases havia sido considerado o “vinho da safra”, tendo obtido 100 pontos dos críticos mais influentes. Prats dizia que falta magia em Bordeaux na atualidade. E acrescentou: “Quando o consumidor compra um novo produto, o preço é importante, mas ele quer saber mais. Ele quer ouvir sobre a propriedade, as pessoas, a história por trás dela. Precisamos ‘retrazer’ o sonho em torno dos ‘primeurs’. Precisamos ‘retrazer’ a desejabilidade, o entusiasmo. Precisamos que os novos consumidores saibam que algo acontece em Bordeaux nessa altura do ano, como a Fashion Week em Londres, Nova York ou Paris, ou o lançamento de novos carros ou relógios em Genebra ou Frankfurt. Os bordaleses não sabem fazer isso”.
A ver como será a campanha dos “en primeur” do ano que vem.