Já faz mais de 20 anos que o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, pesquisador sênior na Columbia University, em Nova York, investiga a desigualdade social brasileira. Tradicionalmente, a histórica concentração brasileira de dinheiro e oportunidades nas mãos de poucas pessoas - R$ 1 em cada R$ 5 da renda do país é apropriado pelo 0,5% mais rico da população, estima - foi um problema pouco abordado nos planos econômicos nacionais. Junto com a pobreza, em geral esse era um assunto mais reservado aos ministérios responsáveis por programas sociais, como saúde, educação e transferência de renda.
Estratégia bastante equivocada economicamente, na visão do autor do o livro “Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade”, lançado no ano passado pela Companhia das Letras. “Toda política tem impacto sobre a desigualdade. Não existe política neutra. Toda política afeta pessoas diferentes de maneiras diferentes”, diz Medeiros.
Mesmo o modo como são tomadas decisões macroeconômicas, como política monetária, incentivos industriais, de investimento e planos de ferrovias, explica o sociólogo, pode ser pró-pobres ou pró-ricos e aumentar a concentração de renda a depender do grupo de pessoas beneficiadas, diz Medeiros.
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“Essa tradição de tratar [a desigualdade] de maneira separada [do debate econômico] é insuficiente inclusive para quem não está preocupado com a desigualdade”, explica. “Porque a depender do crescimento pró-pobres ou pró-ricos, você vai gerar um tipo de arrecadação tributária, um tipo de desenvolvimento regional, um tipo de padrão de consumo”, afirma.
O debate do longo prazo terá que ser diferente, segundo ele. A crise ambiental limitará o crescimento da economia mundial, que nas últimas décadas foi fortemente baseada no uso de água, energia e capital natural - recursos cada vez mais escassos para atender níveis altíssimos de consumo impossíveis de serem repetidos.
“É insustentável no longo prazo manter o padrão de crescimento que nós temos”, prevê o professor, que levou tais previsões a uma reunião técnica do G20 sobre desigualdade em março e ministrará em abril a terceira edição do minicurso online “Políticas Públicas e Desigualdade em Países em Desenvolvimento: Biodiversidade, Clima e Sustentabilidade”, iniciativa do Columbia Global Center no Rio de Janeiro e do Columbia Climate Hub.
“Muito da crise ambiental tem a ver com nosso nível e padrões de crescimento. Não podemos repeti-lo ao longo da vida, nem das próximas gerações. Não temos tempo”, disse Medeiros na reunião técnica do grupo de maiores economias do mundo.
No futuro da crise ambiental, distribuir melhor será o caminho para o bem-estar dos mais pobres, diz. “Quando você não pode crescer mais, não tem como produzir mais coisas; vou ter que distribuir melhor as coisas que eu tenho. Como vamos ter que limitar crescimento, a igualdade vai ganhar peso maior”.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Não existe política neutra
Não existe diferença entre a evolução da desigualdade e a distribuição do crescimento. Inclusive do ponto de vista matemático: se os mais pobres crescem, a desigualdade cai. Se os mais ricos crescem mais que o resto, a desigualdade sobe. Ou seja, é um equívoco separar crescimento e desigualdade.
Toda política tem impacto sobre a desigualdade. Não existe política neutra. Toda política afeta pessoas diferentes de maneiras diferentes. A nossa política monetária não é igual para todo mundo: ela afeta pessoas diferentes de maneiras diferentes. A pergunta fundamental que a gente tem que fazer é: qual é a distribuição dessas políticas?
Concentração de renda
É preciso discutir isso [a distribuição do crescimento econômico nas políticas públicas] por uma razão muito simples: em uma economia de propriedade privada, quem cresce não é o país; quem cresce são as pessoas. Alguém tem que se apropriar do crescimento.
Temos que saber, portanto, quem é que está crescendo ou não está crescendo dada uma determinada política pública, para podermos decidir em relação a quem nós queremos que cresça mais, quem nós queremos que cresça menos.
Quase metade de todo o crescimento econômico global em um ano é apropriado por menos de um décimo da população do planeta. Isso varia de país para país, mas a mensagem é clara: a maneira como políticas de crescimento são desenhadas resulta em imensa concentração de renda.
Um crescimento de 2% pró-pobres é completamente diferente de um crescimento de 2% pró-ricos, tanto nas suas causas quanto nas suas consequências. As políticas que geram crescimento de 2% pró-pobres são diferentes das políticas que fizeram o crescimento de 2% pró ricos.
O problema de capital natural
Por que temos que estar tão preocupados com a distribuição do crescimento? Porque vai haver limites para o crescimento. É insustentável no longo prazo manter o padrão de crescimento que nós temos, tanto [em] taxa quanto [em] tipo de crescimento.
As pessoas estão preocupadas com a produtividade do trabalho, com a produtividade do capital físico, mas há um problema imenso de capital natural. Se nós não tomarmos decisões para frear isso, o crescimento será limitado exogenamente. Ele seria limitado de qualquer maneira.
Nós consumimos uma quantidade imensa de capital natural de modo ineficiente: a gente consome água demais para produzir soja, por exemplo. Estamos preocupados com produtividade, trocar um padrão de crescimento é pior ainda, muito mais difícil que aumentar produtividade.
Perdas na produção agrícola
O que vai acontecer se nós mantivermos o padrão de crescimento global atual, o nível e o tipo de crescimento?
Primeiro: perdas relevantes na produção agrícola. Não é que vai desertificar: é que vai haver uma perda de 5%, 10% na produtividade agrícola, o que é uma perda gigantesca. No Brasil, se perder 10% de produtividade agrícola [o país] perde o mercado e a vantagem competitiva no dia seguinte para a Argentina.
A soja brasileira, nesse cenário, não será devastada por uma seca: ela será devastada pela economia antes de ser devastada por desertos.
Será preciso redistribuir
A pergunta é: qual foi o principal motor de bem-estar da população nas últimas três décadas? A desigualdade é estável, portanto o principal motor de melhoria do bem-estar da população foi o crescimento.
Haverá uma imposição das crises ambientais na direção da gente depender cada vez mais da igualdade para melhorar o bem-estar das pessoas mais pobres.
Importância ambiental
Vamos ter que crescer menos, e para crescer vamos ter que crescer melhor do ponto de vista ambiental. Por exemplo: parte do nosso crescimento deriva pesadamente do uso de energia, do dano a biomas, do uso de água.
Se a Amazônia entrar em colapso [que deve acontecer se a perda agregada de vegetação alcançar entre 20% e 25% de sua extensão original, segundo estudos], será um evento que não acontece da noite para o dia, mas depois que começa não tem volta.
Quando isso acontecer, a gente vai ter perda de produtividade agrícola sistemática, danos à geração e transmissão de energia, provavelmente ter migração em grande escala, conflitos. Tudo isso vai acontecer, é esperável.