Ano após ano, chuvas torrenciais no verão brasileiro deixam um rastro de morte e destruição. Até agora, números oficiais apontam 49 vítimas e dezenas de desaparecidos no litoral norte de São Paulo, após a maior chuva já registrada em 24 horas na história do país. São ainda 3.545 desalojados ou desabrigados, segundo a Defesa Civil divulgou na quinta-feira (23).
Mas quem mais sofre com eventos climáticos extremos como esse? Para a pesquisadora Ana Sanches, assessora do Instituto Polis e doutoranda no programa de Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo (USP), essa é uma questão central a ser respondida para compreendermos o que ocorre sistematicamente no país.
“Se pensarmos no contexto de formação sócio espacial das cidades do litoral e olharmos para quem são as populações mais afetadas, negras e indígenas, estamos diante de um caso de injustiça e racismo ambiental”, afirma Ana, também ativista na rede antirracista Quilombação.
“Temos uma região de pessoas ricas que foram afetadas pelas chuvas. São Sebastião tem Maresias, Riviera de São Lourenço, Barra do Sahy, com grandes condomínios fechados de casas de veraneio de gente com alto poder aquisitivo. Porém, alguns grupos têm maior resiliência para se recuperar de uma situação dessas, porque tem carro, contratam helicóptero, podem repor os bens materiais que perdem. Esse é o recorte que precisamos fazer”, explica a pesquisadora.
As casas soterradas, segundo Ana, são construções de pau a pique ou madeira, em um cenário de pobreza. “São ocupações territoriais nos morros, de forma inadequada, porque é onde essas pessoas tinham condição de morar”, continua.
Criada em Caraguá, cidade do litoral norte de São Paulo, Ana desenvolveu o interesse pelo tema socioambiental desde cedo. Sua tese de doutorado na USP pesquisa a temática Racismo Ambiental e Ecologismo Decolonial.
“Em Caraguá, por exemplo, tem casas que ficam na beira do rio. Todo ano entra água nas casas, mas dessa vez subiu até o teto. Tenho uma amiga que mora lá e, neste ano, pela primeira vez, ela perdeu tudo. E está em risco de não poder voltar para casa nunca. Foi a casa da avó, depois da mãe e agora ela morava sozinha com o filho”, conta a pesquisadora.
“Nesse cenário, quem tem capacidade de pagar cem reais por um galão de água? Aí a gente decide quem vai passar sede e quem não vai. Todos foram vítimas do mesmo evento climático, mas alguns vão poder comer e outras não”, ilustra.
O caso da amiga de Ana não é exceção. São as mulheres negras e em especial as mães solo as principais atingidas pelo racismo ambiental, defende a pesquisadora. Foi também o que constatou ao estudar o que chama de "injustiça energética” no Brasil, ou seja, quem mais sofre com a falta de energia – seja por falta de infraestrutura ou por não conseguir pagar a conta de luz.
“E depois: quais populações são mais afetadas na produção de energia, com a construção de hidrelétricas, combustíveis fósseis, má remuneração? A questão energética também entra no racismo ambiental”, destaca ela.
Para Ana, o momento é de repensar o Plano Diretor das cidades e articular o poder público para realizar a distribuição de terra. “Agora saiu uma liminar e a Justiça vai poder forçar a saída das pessoas de área de risco. Mas em que condições elas serão retiradas? Muitas não têm para onde ir e nem a quem pedir socorro. Vão para abrigos, casas devendo IPTU, vão receber aluguel social? Planejamento urbano não pode mais acontecer pelo viés da especulação imobiliária, a preocupação tem que ser moradia”, argumenta.
A nível global, Ana defende a necessidade de financiamento para projetos de adaptação climática: “Os países mais ricos, que tanto exploraram nossos recursos naturais, agora têm responsabilidade de financiar adaptações climáticas”.
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Ainda que pouco utilizado na política institucional, o conceito “racismo ambiental” não vem de agora. Foi criado pelo químico e ativista estadunidense Benjamin Chavis, na década de 80, após um caso de contaminação na Carolina do Norte. “Empresas escolhiam territórios onde vivem populações negras, empobrecidas, para despejar dejetos químicos. Não era só degradação ambiental, estavam também matando vidas negras”, explica Ana.
Segundo a pesquisadora, o conceito pode e deve ser usado no cenário urbano. “Em São Paulo, 37% de população é negra, distribuída nas periferias. Moram mais longe, ficam mais tempo no transporte público para chegar no trabalho e ainda serem mal remuneradas. Morrem mais cedo, por causa da violência policial, mas também por doenças evitáveis. E qual a diferença entre quem vive no centro e na periferia? O acesso à saúde. Fomos ensinados que a questão ambiental está lá na Amazônia. A população urbana também se relaciona com o meio ambiente e faz parte do ecossistema. Enquanto houver racismo, não terá justiça ambiental”, defende.