Eu, Leitora
Por , redação Marie Claire — São Paulo

“Meu nome é Daniele Boggione e quando tinha 20 anos, lá pelo começo dos anos 2000, sentia que não conhecia nada do mundo e queria viajar. Quando me formei em Letras na federal de Minas Gerais, estava prestes a abrir um cursinho de inglês.

Sempre fui muito independente e a ideia de se casar nunca sequer passou pela minha cabeça. Então viajei, o primeiro destino foi a Grécia. Foi tudo ótimo, e um dia vi um anúncio para visitar a Turquia e decidi ir. Na recepção do hotel, eu tive um problema com a chave e um homem veio me ajudar. Ele era lindo e a gente se apaixonou. Foi assim que conheci meu primeiro marido turco.

Meus pais acharam uma loucura quando contei que iria me mudar para a Turquia. Eu nunca falei sobre casamento, e era uma cultura totalmente diferente. Mas, estava apaixonada e prometi que não pararia de trabalhar. Casei com meu ex pouco tempo depois e não tenho do que reclamar dos primeiros anos. Ele nunca me impediu de trabalhar e o que eu ganhava dando aula na universidade de lá era tudo meu.

Mas, as diferenças culturais me pegavam demais, principalmente quando envolvia minha sogra. Ela entrava na minha casa e mexia em tudo, dizia que eu não sabia fazer as coisas, sempre em um tom muito passivo-agressivo.

Isso foi me adoecendo. Perguntava para as minhas amigas turcas se era normal esse comportamento e elas diziam que não. Tudo piorou quando fiquei grávida do meu filho, ela não saia da minha casa e dizia que quando o bebê nascesse, ela ia cuidar, eu apenas seria a ama de leite e que aquilo era cultural.

Meu marido pediu para ficar tranquila, que era para ignorar. Mas, quatro meses depois do nascimento do meu filho, minha sogra e meu sogro vieram até minha casa com um contrato. As linhas eram fininhas e tinha umas 14 páginas escritas em turco. Mas, basicamente dizia que eu estava me ‘divorciando’ da família toda e teria que doar meu filho para minha sogra cuidar, só servindo para amamentá-lo.

Falei que eles estavam malucos e meu marido me apoiou na hora e ordenou para os pais saírem da nossa casa e afirmou que isso jamais iria acontecer.

Danny Boggione é dona do canal do Youtube Sobrevivendo a Turquia — Foto: Arquivo pessoal
Danny Boggione é dona do canal do Youtube Sobrevivendo a Turquia — Foto: Arquivo pessoal

“Na hora, achei incrível como o meu, até então, marido, tinha me defendido e lutado pela gente. Mas, o preço foi caro depois. Eu tinha que fazer o que ele mandava.

Tudo que eu fazia minimamente fora do padrão que ele queria, ele brigava e dizia: ‘Eu larguei minha família para você fazer isso?’. Eram comentários diários e o relacionamento foi se tornando abusivo, não tinha muito o que fazer, foi se desgastando, infelizmente.

Fiquei quieta e fui planejando como eu poderia pedir o divórcio. Muitas vezes, as mulheres daqui querem pedir o divórcio, mas elas não conseguem porque não têm nenhum tipo de renda, já que o marido é quem prove tudo. Então comecei a ver como eu poderia me divorciar, tive ajuda de pessoas da faculdade. Em um dia aparentemente normal, pedi uma pizza e quando olhei nos olhos dele, tive certeza da minha decisão.

Mas ele fez algumas exigências para que eu pudesse manter a guarda do meu filho: não pagaria pensão. Disse, inclusive, que se eu fosse na justiça por isso, ele iria tirar a guarda da criança. Disse que não precisava, que eu tinha como me sustentar. Mas é muito comum isso acontecer, tanto que quando teve a audiência com a juíza e ela disse que eu tinha direito uma pensão.”

Danny Boggione é dona do canal do Youtube Sobrevivendo a Turquia — Foto: Arquivo pessoal
Danny Boggione é dona do canal do Youtube Sobrevivendo a Turquia — Foto: Arquivo pessoal

“Continuei dando aulas, fiz meu mestrado em Cambrigde, mas minha história ficou conhecida por toda Turquia, pois era uma mulher independente, que conseguiu ficar com a guarda do filho e sair de um relacionamento abusivo. Em 2011 me chamaram para uma entrevista na época dos blogs ainda. Mas a história bombou e várias mulheres vieram falar comigo nas mensagens do Facebook.

No começo, partiu de uma jornada pessoal. Contar minha própria história foi terapêutico. Então soube que não era a única esposa estrangeira que havia escolhido viver no país do marido em estava vivendo problemas isolados. Ao conversar com outras mulheres na mesma posição, comecei a perceber que tínhamos lutas semelhantes, e comecei a fazer de tudo para ajudá-las.

Arrumava advogados que faziam o trabalho probono, tirava mulheres daquela situação e pedia para contar as histórias delas, através de pseudônimos em meu canal do Youtube, o Sobrevivendo a Turquia.

Depois que abri um canal no YouTube em 2012, compartilhando sobre adversidades de ser uma imigrante brasileira, comecei a receber pedidos de ajuda de outras brasileiras que afirmavam estarem presas em cárcere privado matrimonial, inclusive na Europa.

Fiquei surpresa com a quantidade de e-mails recebidos de brasileiras na mesma situação e, claro, chocada com o que elas relatavam. Fui, dessa maneira, apresentada à uma realidade que até então desconhecia: o tráfico de pessoas – mulheres vítimas de casamentos fraudulentos, que tinham por único objetivo explorar a brasileira para trabalho doméstico forçado no exterior, outras vezes usá-las como barriga de aluguel e, na maioria das vezes, forçá-las ao trabalho escravo sexual.

A partir daí me empenhei para me educar sobre o assunto, comecei a emitir alertas e meu trabalho ganhou notoriedade de autoridades brasileiras, que passaram a entrar em contato comigo, principalmente juízes e delegados que trabalham no enfrentamento contra o Tráfico Humano e se dispuseram a colaborar cedendo entrevistas para o meu canal a fim de informar a população sobre esse crime, infelizmente pouco conhecido até hoje.

Com o passar do tempo, depois de muitos casos resolvidos e com o enorme trabalho de prevenção na Internet, fui convidada para dar palestras sobre o assunto, em eventos de entidades governamentais e não-governamentais do Brasil e exterior. A TV aberta também começou a abrir espaço para o tema e sou convidada como expert em tráfico humano em diversos programas.

Comecei a entender que muitas mulheres estavam tomando decisões que poderiam afetar drasticamente seus futuros com base em sua necessidade de serem amadas a qualquer custo, em um relacionamento virtual com homens que não conheciam e que viviam em uma cultura que elas desconheciam completamente. Eu sabia que elas estavam caminhando para uma vida de infelicidade e, se engravidassem, não havia escapatória. E saliento que isso não acontece só na Turquia, como em outros países da Europa também.

“Com o sucesso do canal, acabei me tornando embaixadora da UNICEF no Simuka African Youth Association, onde atuo em um trabalho de utilidade pública e voluntária. Se há algum tempo minha maior preocupação antes de trabalhar com vítimas de tráfico humano era preparar aulas e corrigir provas dentro do prazo, agora me tornei uma malabarista.

Dedico a maior parte do meu tempo para o preparo de conteúdo de alertas contra o tráfico humano e, se estou trabalhando com alguma vítima no momento, esse tempo é dela, até que ela esteja segura e bem encaminhada. Aliado às minhas atividades acadêmicas diárias, também encontro tempo para a minha vida pessoal, que para mim é indispensável. Sou casada, tenho um filho de 16 anos e ambos entendem o grau de estresse do meu trabalho e são um time de suporte excelente. Tudo dá certo no final. É um trabalho exaustivo e muitas vezes as autoridades responsáveis não dão a devida atenção, então eu e minha equipe temos que lidar sozinhos com isso.

Eu nunca pensei em desistir. Sinto que é um propósito, mas às vezes fico abalada após um resgate mais complicado. O último foi em setembro de 2023, de uma jovem de origem africana vitima de tráfico humano retida em carcere privado na Turquia.

Eu acessei o perigo de tentar operar sozinha com a vítima, então pedi apoio da amiga e parceira de operações, Alline Pedra, agente da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), fizemos a operação juntas e terminou em grande sucesso com ambas as vítimas, a de 22 anos e seu bebê de 9 meses, resgatados e hoje em segurança. É importante salientar que a Alline age em caráter individual nos resgates e não através das Nações Unidas.

Essa foi a operação que mais me deixou abalada, mas vejo isso como uma reação natural, afinal sou humana e o trabalho é estressante.

Lidar com vítimas de tráfico de pessoas é um trabalho árduo, emocionalmente desgastante e perigoso para todos envolvidos. Dizem que sou muito corajosa, mas só acredito na minha causa e odeio injustiça, então não dou espaço para o medo.

Consigo compartimentalizar os relatos sem os deixar me afetar psicologicamente, mesmo porque esse é o terceiro crime mais rentável do mundo, não posso deixar a ‘peteca cair’ - sempre vai existir a próxima vítima. Para conseguir ajudar as vítimas, muitas vezes tenho que tomar decisões certeiras e rápidas, saber o que falar em público e o que nunca revelar. É um jogo de teste emocional constante, portanto, autocontrole e uma certa dose de inteligência emocional são importantes.

Os caminhos que trilhei na minha carreira até agora e os que prefiro focar, são o amor e o apoio constantes de minha família e seguidores. Também tenho alguns amigos de confiança onde me apoio e a quem sou muito grata.”

Mais recente Próxima 'Fui violentada pelo meu padrasto na infância, virei ativista indígena e hoje ajudo a combater o abuso infantil'
Mais do Marie Claire

O blush líquido deixa as bochechas com uma cor leve e permite a construção de camadas sem manchar, ideal para diversos estilos de maquiagem; lista reúne opções com preços que variam de R$ 15 a R$ 48

Blush líquido: 5 opções nacionais para dar um glow sem gastar muito

No TikTok, influenciadoras negras viralizaram ao mostrar um blush lavanda de uma famosa marca de beleza deixando a pele acinzentada. O produto com fundo de cor esbranquiçado e frio se tornou um dos grandes assuntos nos últimos dias, e o caso reforça a problemática em torno de tons vendidos como ‘universais’

Blush lavanda: entenda a polêmica sobre o produto que está viralizando, mas não por um bom motivo

Seleção de itens traz peças básicas e atemporais como camisa listrada, alfaiataria e até bermuda jeans para montar produções descomplicadas; preços começam em R$ 35

Easy chic: 6 peças básicas para criar looks elegantes sem complicação

A internacionalista Ana Cecília abriu mão de uma vida confortável no Brasil para realizar o sonho de estudar na Suécia e, eventualmente, tornar-se funcionária da ONU. Em entrevista à Marie Claire, a estudante detalhou sua trajetória

‘Vendi tudo o que tinha para viver um sonho’: intercambista brasileira relata jornada de bolsista à funcionária da ONU

A atriz vive a empregada doméstica Zezé, que trabalha na casa da família Paiva, no longa dirigido por Walter Salles — premiado no Festival de Veneza e escolhido para representar o país na disputa pela vaga no Oscar. Em entrevista a Marie Claire, Pri Helena reflete sobre o recorte histórico do filme e fala das trocas com Fernanda Torres durante as gravações

No elenco de ‘Ainda Estou Aqui’, Pri Helena fala do filme que se passa na ditadura militar: ‘Vivemos num país de memória curta’

20 Looks com papete para se inspirar na hora de criar um look elegante com o calçado.

Look com papete pode ser elegante? Saiba como criar um visual marcante

Liz celebrou os 3 anos nesta quinta-feira (26)

Lore Improta abre álbum de fotos da festa de aniversário de filha com Leo Santana: 'Sonho'

A influenciadora filmou um momento entre os irmãos e compartilhou nas redes sociais

Virginia se diverte com interação entre filhos, Maria Flor e José Leonardo: ‘Tá tudo bem?’

Prestes a estrear seu novo programa no GNT, 'Admiráveis Conselheiras', a apresentadora celebra oportunidade, reflete sobre etarismo e pede por mais representatividade de mulheres 60+ no audiovisual e no mercado de trabalho como um todo

Astrid Fontenelle: 'Às vezes parece que sou a única referência pra mulheres da minha idade'

Fundador e diretor criativo da São Paulo Fashion Week, Paulo Borges é um ariano que "se veste para si" e garante que sua entrada na moda nacional teve muito a ver com a figura de Regina Guerreiro; no especial Moda Brasileira, ele fala de estilo e trabalho no segmento fashion

Paulo Borges, fundador do São Paulo Fashion Week: 'Desfiles são como óperas'