Direitos Reprodutivos
Por , redação Marie Claire — São Paulo (SP)


Senado teve debate sobre assistolia fetal, em que só ouviu posicionamento antiaborto; na foto, o deputado Dr. Zacharias Calil (União-GO) — Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Senado teve debate sobre assistolia fetal, em que só ouviu posicionamento antiaborto; na foto, o deputado Dr. Zacharias Calil (União-GO) — Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Mesmo que o projeto de lei nº 1904/24 ainda não tenha sido aprovado nas Casas legislativas ou sancionado pelo presidente Lula, sua repercussão e a aprovação do requerimento de urgência na Câmara dos Deputados em votação relâmpago na semana passada já podem causar impactos para dificultar o acesso ao aborto legal. É como analisa a pesquisadora Emanuelle Góes, que integra o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz da Bahia (CIDACS/IGM/FIOCRUZ-BA).

“A partir do momento em que um parlamentar manifesta algo, as pessoas se sentem à vontade para também colocar essa ideia em prática, o que vai legitimar a atuação de não permitir que mulheres realizem um aborto legal”, afirma em entrevista a Marie Claire.

Epidemiologista, doutora em Saúde Pública e pesquisadora sênior da Associação de Pesquisa Iyaleta. Góes é uma das cientistas mais engajadas no país a pesquisar sobre os direitos reprodutivos de mulheres, meninas e pessoas que gestam. Mais do que isso, é uma das poucas a colocar no centro de sua linha de pesquisa as desigualdades raciais no acesso à saúde.

Passou a explorar o tema em 2018, ao apresentar a pesquisa Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional como tese de doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). No ano passado, divulgou o estudo Aborto e Raça no Brasil (2016 e 2021), no qual foi uma das coautoras. O mapeamento detectou que mulheres negras têm 46% mais chances de fazer um aborto do que mulheres brancas.

Ainda no ano passado, foi uma das coordenadoras de outro estudo, Aborto no Brasil: inseguro, ilegal e criminalizado, cujos dados preliminares apontavam que em 10 anos, 2 mil mulheres recorreram a substâncias tóxicas para fazer aborto inseguro no Brasil. As mais vulneráveis são mulheres negras de baixa renda, que recorreram mais às substâncias consideradas de alto risco, como raticida, plantas tóxicas e cosméticos.

Emanuelle Góes é epidemiologista, doutora em Saúde Pública e pesquisadora da Fiocruz Bahia — Foto: Acervo pessoal
Emanuelle Góes é epidemiologista, doutora em Saúde Pública e pesquisadora da Fiocruz Bahia — Foto: Acervo pessoal

A entrevista para Marie Claire aconteceu horas antes de o presidente da Câmara, Arthur Lira, informar uma coletiva de imprensa que a votação do projeto ficaria para o segundo semestre.

Lira abaixou o tom após a proposta do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) – que equiparar aborto pós a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples e aumentar a pena para até 20 anos de prisão – ganhar grande repercussão contrária nas redes sociais, no parlamento e nas ruas – inclusive, com gritos de “Fora Lira”. Também foi encurralado após o desastroso debate que ocorreu na última segunda-feira (17) no Senado Federal, que só ouviu personalidades antiaborto e chegou a receber uma contadora de histórias para encenar um feto abortado por assistolia fetal.

"Essa defesa do feto é vazia e é o único argumento que pessoas contra o aborto têm, seja na sociedade, na política e na igreja”, diz Góes.

Para ela, a organização dos movimentos feministas, ao qual está alinhada, conseguiu um feito que ela vê como inédito: o recuo rápido por parte de parlamentares da direita que apoiaram o PL. Por outro lado, chama atenção a demora de posicionamento do presidente Lula e as manifestações tímidas de duas personalidades que seriam chaves neste debate: as ministras Nísia Trindade, do Ministério da Saúde, e Cida Gonçalves, das Mulheres.

MARIE CLAIRE Como tem acompanhado as movimentações relacionadas ao PL nº 1904/24?
EMANUELLE GÓES
É uma proposta absurda, violenta e que nem constitucional é. É impressionante ver essa preocupação de querer criminalizar o aborto mesmo em uma situação de extrema violência (que é o contexto da violência sexual) e a não preocupação em ampliar serviços para que mulheres consigam chegar antes deste tempo. Claro, as meninas realmente não conseguem identificar uma gravidez e só chegam quando a gestação está avançada. Mas também tem situações em que mulheres chegam antes da 22ª semana e enfrentam barreiras morais e subterfúgios para que não realizem o aborto legal. Buscam de serviço em serviço até que algum diga “sim” ou até que a objeção de consciência não seja mais importante. Obviamente, essas barreiras não são uma preocupação para quem está pensando numa proposta como essa. Só se pensa em julgar as mulheres e não deixá-las exercer esse direito.

MC Nesta semana, houve uma sessão de debates do Senado, que só ouviu fontes antiaborto e chegou a ter uma encenação de feto abortado por assistolia fetal. O que esse tom demonstra sobre a forma como a política e a sociedade civil enxergam o tema?
EG
Essa é uma abordagem muito antiga. Tem performances como essa que pensávamos que nem voltariam mais a acontecer. Ainda é uma narrativa muito forte, mesmo em meio a argumentos e evidências que encontramos e defendem o aborto legal e seguro. Essa defesa do feto é vazia e é o único argumento que pessoas contra o aborto têm, seja na sociedade, na política e na igreja. Por outro lado, vejo que a repercussão desfavorável ajudou a fazer os políticos baixarem o tom mais rápido. Isso é algo novo. Não imaginaram o quanto o movimento feminista está organizado e o quanto temos encontrado pessoas aliadas à essa agenda. Acho que gerou uma certa surpresa a forma como ganhamos as ruas e as redes sociais para reivindicá-la. Isso forçou os políticos a redirecionarem seus olhares.

MC Diversos órgãos nacionais emitiram parecer em que colocam o PL nº 1094/24 como inconstitucional. No entanto, a força que ele ganhou e mesmo a aprovação do requerimento de urgência já causam algum impacto?
EG
Sim, porque todo esse movimento se torna uma legalização social; ou seja, define o que a sociedade absorve como permitido e ilegal. É a mesma lógica que Bolsonaro empregou em seu governo: a partir do momento em que um parlamentar manifesta algo, as pessoas se sentem à vontade para também colocar essa ideia em prática, o que vai legitimar a atuação de não permitir que mulheres realizem um aborto legal. Por mais que o direito esteja garantido em uma Constituição Cidadã, há as convicções de um profissional de saúde, por exemplo, que também são pessoas que decidem sobre essa questão. É uma forma de impor retrocessos para impedir novos avanços.

Ato na Avenida Paulista interdita vias e mobiliza milhares de pessoas contra PL º 1904/24. Avenida Paulista, em São Paulo, em 15 de junho de 2024 — Foto: Camila Svenson
Ato na Avenida Paulista interdita vias e mobiliza milhares de pessoas contra PL º 1904/24. Avenida Paulista, em São Paulo, em 15 de junho de 2024 — Foto: Camila Svenson

MC De acordo com a Folha de S.Paulo, deputados estariam considerando retirar a punição às pessoas que fizerem aborto legal depois da 22ª semana, mas manter a pena de homicídio simples aos profissionais de saúde. Isso mudaria alguma coisa?
EG
Nada! É encontrar outros meios para alcançar o mesmo fim. Obviamente um profissional de saúde não faria o procedimento para não se colocar em risco de perder a carteira profissional. O tempo inteiro precisamos ler nas entrelinhas em relação a esse projeto de lei, seja a extrema direita, seja a parte da esquerda que fica em cima do muro.

MC Em fevereiro, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica que reforçava que o Código Penal de 1940 não impõe limite de tempo para o aborto legal, mas saiu do ar em 24 horas. Faria alguma diferença a construção e tramitação deste PL se a nota estivesse em vigor?
EG
Não. Acho que a única coisa que poderia acontecer é que a oposição teria um argumento mais material para ficar dizendo que o governo Lula é a favor do aborto, que é o que pensam. Não há uma preocupação sobre o que se registra enquanto direito ou não.

MC Como enxerga os posicionamentos tímidos das ministras da Saúde e das Mulheres, Nísia Trindade e Cida Gonçalves?
EG
Deveriam ter sido mais assertivos. Sobretudo porque o Ministério da Saúde é a porta de entrada das mulheres para a realização do serviço, e é a pasta que faz a defesa, elabora políticas e pensa esse direito. Não sei como não conseguiu realizar uma fala mais enfática. E a pasta das Mulheres deveria ter se mostrado mais disposta a se opor a qualquer forma de retrocesso. Uma pena que não conseguiram fazer essa posição, seja qual for o motivo. Por outro lado, a fala do ministro Silvio Almeida, da pasta dos Direitos Humanos, foi um afago. É muito importante ter uma voz potente do Executivo na pessoa dele.

MC E quanto a postura do presidente Lula, que demorou para fazer um posicionamento?
EG
É um presidente que se salvaguarda na Constituição, mas faz questão de ter um posicionamento separado do Estado brasileiro. Por estar na Constituição, Lula vai aceitar um pouco esse diálogo. Ao mesmo tempo, temos uma Constituição que, sozinha, não é suficiente para responder às mulheres. O aborto é um debate em que, independentemente do posicionamento políticos, seja direita ou esquerda, a moral acaba sendo o manejo. Claro que tem toda ideia de que Lula não pode afastar seus aliados evangélicos, mas se olharmos para trás na política, há essa mesma expectativa de deixar o assunto de lado. Os políticos, sobretudo do Executivo, têm dificuldade de assumir uma posição – diferente do Judiciário, em que uma juíza ou um ministro vão argumentar e pronto.

MC Na política, o aborto é visto como uma pauta “de costumes”. É uma definição justa?
EG
Não gosto de “pauta de costume” porque parece que é um assunto que já está dado e não precisa tratar. Na verdade, esse assunto é da ordem do dia porque está presente, mexe com as vidas das pessoas – não só de quem o faz –, e não está assegurado do ponto de vista da cidadania. Já que o aborto inseguro causa danos de diversas ordens, inclusive a morte, um um estado democrático precisa responder a isso. Ao mesmo tempo, como pode ser pauta de costume se toda vez que o aborto é acionado politicamente, os cenários se modificam? Um candidato pode perder ou ganhar uma eleição por conta desse assunto. É uma leitura baseada no sexismo e no patriarcado. E que a própria esquerda precisa rever, porque também o pratica ao afirmar que aborto é “pauta de costume”.

MC As meninas vítimas de violência seriam as mais impactadas com o PL nº 1904/24, sobretudo pobres e negras. Acredita que o movimento e a discussão pró-legalização têm enfatizado o recorte racial de forma satisfatória?
EG
Ainda é difícil pensar a relação entre violência sexual, estupro e aborto de forma interseccional. Nesse momento específico, não tenho sentido essa ausência porque há uma estratégia de falar de forma mais geral para alcançar mais rapidamente. Enquanto movimento feminista, há dificuldade de deixar isso mais transparente. Considero que conseguimos avançar ao enfatizar que as meninas negras e pobres serão desproporcionalmente afetadas devido ao racismo, mas vai chegar o momento em que precisaremos ser mais enfáticas sobre isso. Afinal, mesmo que tenhamos um serviço de abrto legal que funcione muito bem, ele ainda assim não vai adiantar para as meninas negras. Elas são as mais violentadas e representam a maioria do percentual de gestantes que chegam ao serviço de saúde. Mas quando olhamos os dados das encaminhadas ao aborto legal, a maioria é branca. Há a presença do racismo nessa trajetória, e é uma questão fundamental para ser discutida.

MC Após o voto favorável de Rosa Weber na ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, deixou o julgamento em pausa e definiu aguardar o melhor momento para pautar a ação novamente. Esse momento chegou?
EG
Não. Ainda é preciso amadurecer mais enquanto sociedade. Vejo as experiências dos países que legalizaram [Argentina, Colômbia e México, mais recentemente] e, primeiro, houve uma mudança de mentalidade social. A sociedade brasileira também precisa entender e participar, mesmo que a questão seja definida por votos no Supremo, e ver a importância do que significa o direito reprodutivo, o aborto legal e as escolhas. Isso tudo significa proteger meninas e mulheres contra violência sexual. Queremos isso com urgência, mas a realidade em que estamos agora precisa ser respeitada e a população tem que estar com a gente também. Sem ela, não tem como executar essa mudança.

MC Em agosto do ano passado, você afirmou a Marie Claire que era necessário "mobilizar a sociedade para o debate sobre aborto, o que ainda não conseguimos fazer”. Com uma fatia da sociedade sensibilizada com as manifestações atuais e com o mote “Criança Não é Mãe”, há uma brecha?
EG
Por mais que a narrativa do PL seja de criminalizar as mulheres, por outro lado, conseguimos trazer o debate para a sociedade. O “Criança Não é Mãe” pegou as pessoas em um lugar muito sensível, extrapolou os movimentos feministas. Na pandemia, tivemos o caso da menina de 10 anos que quase foi impedida de abortar no Espírito Santo que sim, ganhou a sociedade, mas agora as histórias vão se acumulando e estourando a bolha. As manifestações contra o PL são uma oportunidade de disparar essa discussão e colocar as pessoas para pensar. É isso que a gente quer.

MC Como aproveitar este momento para construir um debate público contínuo e mais qualificado sobre aborto?
EG
Além da presença das ativistas nas ruas e nas redes sociais, a cobertura posicionada da mídia tradicional também é importante. Muitas jornalistas mulheres de grandes emissoras estão entrando nas casas das pessoas, trazendo posicionamentos fortes e alcançando quem não têm esse assunto obrigatoriamente na ordem do dia. Um jornal ou telejornal tem a obrigação de fazê-las pensar sobre o assunto sob a ótica de um direito humano, não criminalizando quem o faz, e é o que vem sendo realizado. Quero que esse debate permaneça em rede nacional por muito mais tempo.

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