Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica e pesquisadora de cinema


Letícia Bassit, cuja história real embasou o documentário Eu Também Não Gozei — Foto: Reprodução
Letícia Bassit, cuja história real embasou o documentário Eu Também Não Gozei — Foto: Reprodução

No início, eu não sabia como nomear o incômodo que senti diante de alguns dos melhores filmes do ano passado. Pouco a pouco, fui entendendo que a sensação era localizada: ela surgia quando eu via protagonistas femininas sendo manipuladas, como em Pobres Criaturas, Assassinos da Lua das Flores, Barbie.

Vejam bem: não tenho nada contra a performance das atrizes que interpretam as personagens desses filmes. Inclusive lamentei que Margot Robbie não tenha sido indicada à categoria melhor atriz por seu desempenho em Barbie, fantástico. Fiquei desapontada também com o fato de Lily Gladstone não ter levado a estatueta por Assassinos da Lua das Flores, já que poderia ter sido a primeira atriz estadunidense de origem indígena a conquistar o prêmio.

E, se tenho ressalvas com relação a Pobres Criaturas, é sobretudo porque discordo de quem vê o filme como manifesto feminista; o Oscar de Emma Stone é mais do que merecido. Então qual é o problema?

Vejamos o que essas personagens têm em comum. Primeiro, o jeito de andar. Boneca de calcanhares elevados e joelhos pouco flexíveis, Barbie caminha de modo artificial, tal qual uma marionete guiada por comandos externos.

Por ter corpo de mulher adulta e cérebro de recém-nascido, Bella Baxter, de Pobres Criaturas, tampouco se desloca com naturalidade. Adoentada, a Mollie de Assassinos da Lua das Flores vai perdendo a mobilidade e precisa sempre apoiar-se em alguém. As cenas em que Barbie, Bella ou Mollie estão deitadas são as que mais me desagradam. Nelas, as personagens aparecem submetidas (à indústria, a um cientista maluco, a um marido que a envenena), enquanto os personagens masculinos agem.

Essa dinâmica me pareceu mais evidente depois de ver Eu Também Não Gozei, documentário de Ana Carolina Marinho exibido recentemente no Festival de Tiradentes. O longa conta a história da atriz Letícia Bassit, que, aos 28 anos, descobre-se grávida, sem saber quem é o pai. Há quatro possilidades, mas todos relutam em assumir qualquer responsabilidade.

O argumento? “Eu nem gozei!” Da gravidez ao primeiro ano do filho, o filme acompanha a coragem de Letícia. Jovem cineasta de Natal, Ana Carolina Marinho teve a inteligência de posicionar a câmera bem próxima à protagonista, de modo que, mesmo na hora das contrações ou quando brinca com o bebê na cama, a protagonista nunca aparece deitada, sem força, submetida.

No colo, na cadeirinha ou no carrinho, Pedro não impede a mãe de trabalhar, falar, andar, entre consultas com advogadas e testes de DNA. Ela escreve sua própria história e recusa bravamente o lugar de vítima. Pura inspiração.

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