Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica, pesquisadora e professora de cinema da Universidade Federal Fluminense


Levante, de Lillah Halla: na mostra paralela ao festival  de Cannes — Foto: Divulgação
Levante, de Lillah Halla: na mostra paralela ao festival de Cannes — Foto: Divulgação

Me ponho a escrever sobre o recorde de filmes de mulheres indicados à Palma de Ouro e me pego relendo o artigo The Walls Spoke When no One Else Would (As Paredes Falaram Quando Ninguém mais Falaria), publicado no início de abril por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.

Nele, as três autoras descrevem constrangimentos e violências na relação com um “Star professor” português. Neste ano, o Festival de Cannes tem pela primeira vez uma presidente mulher: a alemã Iris Knobloch. Não parece coincidência que, na lista dos 19 títulos que concorrem ao prêmio principal, seis têm direção de mulheres.

Levante, longa de estreia da brasileira Lillah Halla, disputa um prêmio na Semana da Crítica, mostra paralela ao festival. Ainda somos minoria, mas estamos mais presentes do que nunca.

Não gostaria de resumir aqui relatos dos assédios no meio acadêmico descritos no artigo, que motivou a suspensão de Boaventura de Sousa Santos de seu posto de professor na Universidade de Coimbra, aos 82 anos. Prefiro falar de Banel & Adama, primeiro longa da franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy, rodado no norte do Senegal, em língua pulaar, uma história de amor que desafia convenções.

Mas o fato é que o machismo institucionalizado sobre o qual escrevem Viaene, Laranjeiro e Tom monopolizou meus pensamentos desde que soube da história. Em meu percurso acadêmico, não sofri violências como as que as autoras relatam, mas imagino o sofrimento que pessoas próximas viveram em silêncio.

Quero logo encontrar tempo e espaço para ver e comentar os filmes de Cannes, como Club Zero, da austríaca Jessica Hausner, A Quimera, da italiana Alice Rohrwacher, Anatomia de uma Queda, da francesa Justine Triet, O Verão Passado, da também francesa Catherine Breillat, ou As Filhas de Olfa, da tunisiana Kaouther Ben Hania. Longas que tratam de temas tão diversos quanto crise planetária, mercado negro de artefatos arqueológicos e amor.

Banel & Adama, primeiro longa da franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy — Foto: Divulgação
Banel & Adama, primeiro longa da franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy — Foto: Divulgação

Festejo nossos tempos de mudança enquanto tento cuidar das relações que começo a construir com orientandas e orientandos, de mestrado e doutorado. O fato de eu ser mulher não é garantia de sanidade e ética. Muito da perversidade descrita no contexto português faz parte da estrutura patriarcal presente também nas universidades brasileiras. Conhecemos bem as hierarquias, a raridade das bolsas, os jogos de sedução, as inseguranças de parte a parte.

Antes de estrear um longa, mulheres cineastas inventam, nos sets, novas relações de trabalho. Que seus filmes cheguem a Cannes com estrondo e prêmios. Que o fim do silêncio venha com uma onda de solidariedade e alívio. E que a cultura do privilégio esteja com os dias contados, na universidade, no cinema, no mundo.

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