Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica, pesquisadora e professora de cinema da Universidade Federal Fluminense


Numa crítica recente sobre Makanai, série de Kore-eda para a Netflix, usei os termos “delicadeza” e “delicada”. Minha amiga Erika Kobayashi logo escreveu: “No geral amei seu texto”, dizia ela. “Mas a palavra ‘delicada’ reforça tantos estereótipos... É um supergatilho, porque o mundo insiste em me qualificar com essas palavras.”

Stephanie Hsu, Michelle Yeoh e Ke Huy Quan em cena de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo — Foto: Divulgação
Stephanie Hsu, Michelle Yeoh e Ke Huy Quan em cena de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo — Foto: Divulgação

Mulher multitalentos (jornalista, socióloga, artista do corpo, especialista em Cerimônia do Chá, sommelière de chás), Erika se dedica atualmente ao projeto amar.ela, que questiona preconceitos sobre os corpos de mulheres amarelas.

Retomo o tema ao observar os papéis de duas atrizes em filmes indicados para o Oscar: a filipina Dolly de Leon, a camareira Abigail de "Triângulo da Tristeza", e Michelle Yeoh, nascida na Malásia, primeira asiática a levar a estatueta de melhor atriz, com "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo".

Com roteiros que exageram problemas de nosso tempo (a alienação estúpida dos bilionários, no primeiro caso, e a sobrecarga de preocupações da mulher, no segundo), os dois filmes acabam compartilhando um pessimismo cínico. Prefiro a proposta da escritora Ursula K. Le Guin, que diz ser dever da ficção imaginar futuros desejáveis. Afinal, para que o mundo melhore, primeiro precisamos de histórias futuristas em que coisas boas acontecem para o planeta e a humanidade.

Nesse sentido, considero Abigail o que há de mais precioso em "Triângulo da Tristeza". Única sobrevivente de um naufrágio com conhecimentos úteis para o grupo (pescar, acender fogo, cozinhar), é uma personagem revolucionária, nada subserviente. Michelle Yeoh, por sua vez, interpreta uma filha-mãe esgotada, atormentada por mil problemas. Identifico-me dolorosamente com sua Evelyn, que fala: “Fingimos saber o que fazemos, mas na realidade andamos em círculos, lavando roupa e pagando impostos”.

A montagem alucinante a faz trabalhar sem respiro, sempre falando, lutando, trocando de figurino e de sotaque. Sei que é uma crítica, mas será que tanta ação e barulho são bons antídotos contra a exaustão do capitalismo tardio? Felizmente a protagonista tem, ao final, uma pausa para fumar e papear.

O melhor é que as duas personagens jamais se dobram ao imperativo de “serem gentis”, na contramão do que se espera de tantas mulheres, em especial asiáticas. Quando nos sentimos confusas como Evelyn, é melhor lutar até o fim – ou se transformar em pedra.

(Erika poderia ter escrito este artigo, mas anda ocupada com a criação de imagens que seu corpo amarelo lança ao mundo.)

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