Jules de Faria

Por Jules de Faria

Jornalista, escritora e pós-graduada em neurociências e comportamento. À frente do Estúdio Jules como consultora criativa e mãe.

colunista Marie Claire — São Paulo

No Brasil, a cada quatro horas, uma mulher se torna vítima de violência de gênero. Não dá para ignorar essa realidade tenebrosa que, infelizmente, parece não ter fim à vista. Só em 2022, os casos de feminicídio e violência doméstica aumentaram quase 40% nos tribunais estaduais, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Mas esses números, por si só, além de não representarem a integralidade dos casos em razão da subnotificação que envolve esses crimes, sequer refletem as histórias por trás deles. Precisamos olhar para além das estatísticas e encarar as vidas reais de quem vive tais violências

Não me entendam errado: dados são essenciais para a compreensão de um contexto e alimentam possíveis políticas públicas. Mas se quisermos também avançar em mudanças culturais, precisamos resgatar a humanidade por trás de cada número. Pessoas não podem se tornar apenas estatísticas.

Os casos da apresentadora Ana Hickmann e da atriz Patrícia Ramos são exemplos eloquentes disso. Elas tornaram públicas as agressões sofridas pelo marido, Alexandre Correa, e ex-marido, Diogo Vitório, respectivamente. Ao fazer isso, ambas as celebridades não apenas expõem sua própria vivência dolorida, mas também contribuem para desmascarar mitos que envolvem essa forma de abuso: o machismo permeia todas as classes sociais, inclusive aquelas que parecem protegidas pela fama. Contar corajosamente essa história é dar cara, nome e contorno a algo que, por muito tempo, ficou atrelado às sombras do "nunca acontecerá comigo ou com alguém que conheço". Essa é a força sublime e sagaz da solidez que as palavras dão às vivências.

"Mas devemos tomar cuidado para não obrigar vítimas a efetuarem o trabalho de mártir e se tornarem, contra suas vontades, protagonistas de um movimento contra a violência", diz Anna Figueiredo, advogada e fundadora da Fenda Consultoria. Não à toa, Hickmann foi à público durante seu programa para agradecer o apoio e compartilhar que não estava pronta para dar detalhes do ocorrido. "Assim que estiver mais forte, prometo trazer tudo que está em meu coração," disse ela. E está tudo bem. Porque o que precisamos não são os pormenores, que poderiam ser uma exposição desnecessária e cruel. O que precisamos é impulsionar, disseminar, fortalecer e relembrar os fios condutores que amarram esses abusos. Só assim podemos entendê-los. E só compreendendo podemos evitar, denunciar ou nos desvencilhar de tal situação.

Precisamos falar sobre como nenhuma violência doméstica começa do nada, e por isso, às vezes, a vítima e sua rede demoram para identificá-la. Sobre como sentimos vergonha e medo, e como isso retarda o impulso de pedir ajuda. Sobre como a violência doméstica pode manifestar-se de diferentes formas, da psicológica à patrimonial. Sobre como agir como um príncipe encantado imediatamente depois da violência é método e não uma mudança comportamental do abusador. E sobre como pode acontecer conosco, a qualquer momento de nossas vidas, nunca, absolutamente nunca, sendo nós as culpadas.

É nossa responsabilidade proteger as narrativas desses acontecimentos e mantê-las vivas, não como fator determinante do presente e futuro dessas mulheres, e nem como algo individualizado. Mas como um pacto entre mídia, sociedade, setor privado e setor público de não invisibilidade e descrédito. "Essa mudança de paradigma de enfrentamento à violência, como compromisso de todos e não somente um fardo das mulheres vítimas, é fundamental para a transformação da realidade que vivenciamos. Com isso, chegaríamos mais perto de identificar, nomear e notificar as violências, além de responsabilizar os agressores adequadamente", completa a advogada Anna.

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