• Larissa Saram
  • Colaboração para Marie Claire
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As práticas machistas no ambiente escolar que naturalizam o assédio (Foto: Getty Images)

As práticas machistas no ambiente escolar que naturalizam o assédio (Foto: Getty Images)

Professora em escolas públicas há 16 anos, Rosangela Monteiro se impôs um novo estilo para ir ao trabalho nos últimos meses. Escolher peças que não deixam, por exemplo, braços e pernas à mostra foi a forma que ela encontrou para se defender do assédio recorrente cometido por um colega. "Ele sempre elogiava e fazia questão de cumprimentar com beijo no rosto e abraços. Certa vez, eu estava com uma blusa sem sutiã por baixo. Essa pessoa percebeu e me deu um abraço mais apertado. Senti meu peito esmagando no dele. Fiquei constrangida, não soube lidar com a situação. Em outra ocasião, ele fez comentários sobre as minhas pernas. Comecei a evitar certos tipos de roupas, já que era impossível não encontrá-lo e passar por essas situações", conta Rosangela.

As conversas sobre o abuso, sofrido por outras colegas também, ficaram restritas à sala dos professores, já que denunciar para a chefia não era uma opção: "A diretora não tinha uma postura ética, era machista. Não dava para contar com ela. A solução que encontrei foi pedir remoção para outra escola", relata a professora.

Para Rosângela, o que aconteceu com ela é só uma parte do machismo que toma conta do ambiente escolar e que atinge os alunos numa gradação de cima para baixo: "Trabalho em cinco escolas diferentes, em três delas há regras de uniforme para as meninas com a justificativa de impedir um comportamento obsceno nos meninos. A criança não pode ir com short curto, saia nem calça rasgada", exemplifica Rosângela, apontando como esse tipo de conduta ensina ou reforça a ideia de que a violência sexual é culpa delas.

Segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2016, um em cada três brasileiros acredita que, nos casos de estupro, a culpa é da mulher. Entre os homens, 42% deles dizem que mulheres que se dão ao respeito não são estupradas e 30% deles acredita que a mulher que usa roupas provocantes não pode reclamar se for estuprada.

"Para mudar essa realidade, temos que pensar em mudança nas legislações e na cultura. E é pela mudança cultural que a escola se torna uma ferramenta fundamental. Só com informação, discussão e reflexão das consequências da atitude machista nas escolas será possível mudar essa realidade." Quem afirma é Cassia Jane de Souza, champion do Malala Fund pelo Direito à Educação de Meninas. Ela é cientista social no Centro das Mulheres do Cabo, organização feminista que atua nos direitos humanos das mulheres. Entre os projetos, há o "Raízes Vivas" que contribui para  o enfrentamento das desigualdades de gênero e raça por meio de oficinas oferecidas a crianças e adolescentes.

"O trabalho que fazemos nas escolas é um processo educativo que respeita a faixa etária e desenvolvimento de cada um. As crianças e adolescentes recebem muito bem os debates, principalmente se trabalhados de forma lúdica. Envolvemos toda escola e a família, pois é preciso fortalecer essa rede de modo a garantir um aprendizado eficaz", explica Cassia. ​​

Conversas sinceras com pais e alunos é também a ferramenta usada por Rosangela Monteiro para desmontar argumentos que reforçam o assédio e a importunação sexual. "Sempre consegui abordar temas de violência sexual em sala de aula. Comecei a falar sobre respeito com uma turma do quinto ano e, depois disso, uma aluna veio me procurar para pedir ajuda porque tinham vazado um nude dela no whatsapp. Resolvi a situação sem comunicar a diretoria, pois geralmente eles expõem a vítima. É preciso estabelecer um diálogo com os pais e com as crianças. Sempre fui muito aberta com todos", conta.

O QUE VEM ANTES DA ESCOLA: PORNOGRAFIA E CULTURA POP

A postura de Rosangela e projetos como os liderados por Cassia vão na contramão do que, no geral, incorporam as crianças e adolescentes nos processos de socialização em ambiente escolar.

Pesquisa do Ministério da Educação (MEC) e pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe-USP) em 2010 revelou que cerca de 20% dos alunos passaram por situações ou presenciaram cenas em que alguma menina foi humilhada pelo simples fato de ser menina.

No Ensino Médio, quase metade dos 15 mil alunos ouvidos afirmam que certos trabalhos só podem ser realizados por homens. Para 52,6% dos entrevistados (que incluiu também pais, professores e funcionários), lavar a louça e cuidar das crianças são tarefas que cabem somente à mulher. O estudo é antigo, mas as notícias frequentes de violência contra a mulher mostram que caminhamos pouco rumo à mudanças.

"Precisamos lembrar que a escola é um reflexo do que é a sociedade como um todo." A provocação é de Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que desenvolve projetos de combate à violência e à exploração sexual infantil. Um deles é o "Tá na Hora", direcionado para turmas do nono ano até o fim do Ensino Médio e trabalha o tema da violência sexual a partir do que esses jovens reconhecem como tal. "Quando a gente fragmenta muito os personagens como o professor, o policial ou o juiz, esquecemos que eles nada mais são do que integrantes desse caldo cultural que nossa sociedade vive. A escola é também fruto dessa cultura e precisamos ir na raiz para promover mudanças."

E, para Luciana, essa raiz está na indústria da pornografia. "Como falar com uma geração que aprendeu o que é sexo com base num teatro onde a mulher é submissa? E com o jovem que cresce aprendendo que a relação sexual que ele assistiu e está reproduzindo não é empática,  prazerosa para a menina? Temos que olhar para isso. Não estamos só lidando com uma cultura antiga, que pode ser transformada ao longo dos anos, como já estamos fazendo. Estamos lidando com uma indústria poderosíssima, que concorre com álcool e tabaco, que trabalha na sombra para reforçar esse machismo perverso e que é retroalimentado o tempo inteiro."

Luciana conta que no "Tá na Hora" a conversa não vai pela linha do "não pode mais ver", do moralismo, mas sim de mostrar todo o contexto. "Conheci meninas no interior de São Paulo de 15, 16 anos, que se inscreveram em sites de relacionamento de sugar daddy. Elas não entendiam isso como prostituição, porque ao mesmo tempo que temos um movimento feminista que ensina 'meu corpo, minhas regras', temos também uma cultura pop, uma mídia que manipula essa mesma menina a querer ter, por exemplo, uma bolsa cara. E para ter a bolsa, ela usa a liberdade de fazer o que quiser com o seu corpo. Olha como é delicado!", explica Luciana.

Mesmo com as estruturas contaminadas por padrões machistas, a escola ainda é parte fundamental na desconstrução de ideias e comportamentos que levam à violência de gênero. Ir além de como funciona o aparelho reprodutor e abrir espaços para conversas sobre relações saudáveis e sexualidade com todas as suas dimensões sociais e políticas é uma das maneiras de combater ideias sexistas e que, mais pra frente, evoluem para comportamentos como importunação e assédio.

Iniciativas independentes como o "Raízes Vivas", Centro das Mulheres do Cabo e o "Escola sem Machismo", da ONU Mulheres também contribuem para uma mudança. O próprio "Tá na Hora, do Instituto Liberta, acaba de lançar um programa de capacitação para 60 meninas da rede pública de ensino, com mais 18 anos. O objetivo é que elas conscientizem suas comunidades sobre as raízes da violência de gênero.

Para fazer o cadastro, é só entrar no site. "Todo mundo que vai ser adulto um dia passa pela escola, por isso ela é um espaço privilegiado de transformação cultural. Ela é um importante ponto de partida", finaliza Luciana.

Esta matéria faz parte do especial de Marie Claire sobre as variadas formas de assédio, que pode ser acessado em revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/Assedio. O canal tem todas as reportagens abertas, sem paywall, com o apoio de L’Oréal Paris.