• Anna Carolina Lementy
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em
As cidades não foram feitas pras mulheres, mas novos olhares ajudam a repensá-las (Foto: Getty Images)

As cidades não foram feitas pras mulheres, mas novos olhares ajudam a repensá-las (Foto: Getty Images)

Deslocar-se pela cidade sem ser importunada significa não receber olhares insistentes, não ser alvo de perguntas indiscretas ou “elogios” não solicitados, ter o corpo preservado, poder usar qualquer roupa, não precisar mudar de trajeto.

Em um país machista como o Brasil, é praticamente impossível ser mulher e completar alguns itens dessa lista numa rápida saída. Atividades corriqueiras como ir ao supermercado ou à escola despertam medo, especialmente entre as que andam a pé, são usuárias de transporte coletivo ou acessam carros de aplicativos.

Não é apenas questão de insegurança. Os números refletem o receio associado ao recorte de gênero: 7 em cada 10 mulheres já receberam olhares insistentes e cantadas inconvenientes em seus deslocamentos.

Entre as mulheres que andam a pé os olhares, a agressão física, a importunação e o estupro assustam mais (47%); no ônibus, as passageiras têm medo de agressões físicas, importunação sexual e estupro (42%). Quando se trata de experiências traumáticas, 69% declaram que já receberam olhares insistentes e cantadas inconvenientes; 36% já sofreram importunação ou assédio; e 9% foram estupradas.

Os dados são do Instituto Patrícia Galvão e da Locomotiva Pesquisa e Estratégia, com o apoio da ONU Mulheres. Foram extraídos após 2.017 entrevistas realizadas com mulheres e homens em território nacional, entre julho e agosto de 2021.

Ainda segundo o documento, como saída para esses problemas as mulheres comprometem sua autonomia, deixando de realizar atividades, mudando de caminho ou de horário, pedindo que alguém as espere no ponto de ônibus ou na porta de casa.

Cidadãs de segunda classe na própria cidade

Colocando-se no lugar das mulheres, 65% dos homens declaram que teriam mais medo ao andar pela cidade. Já 60% das mulheres se sentiriam mais seguras se fossem homens. Ou seja, será que se trata apenas de melhorar a iluminação, de ampliar a segurança nos meios de transporte, de fazer campanhas educativas ou de treinar a polícia para reagir a abordagens apoiadas no sexismo? Para especialistas em urbanismo, o problema não se resolve apenas com medidas óbvias e pontuais. Há algo na estrutura e no modelo que também precisa mudar.

Um livro lançado em 2021 aponta por onde a transformação precisa começar. “Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens” (Oficina Raquel), da geógrafa canadense Leslie Kern, coloca em questão a exclusão sofrida pelas mulheres em um reduto masculino, a cidade – pensada pelos homens e para os homens, ainda que as mulheres trabalhem, consumam, levem os filhos à escola e busquem lazer diariamente, por exemplo.

A autora afirma que, mesmo assim, as mulheres ganham o status de segunda classe. Um dos exemplos é justamente a subjugação do corpo feminino no espaço público.

A solução não passa por iniciativas cosméticas – “suavizar as arestas dessa experiência por meio do design urbano não desafia o patriarcado em si”, diz Kern –, mas sim pela reivindicação. Nesse sentido, haveria mães e cuidadoras pensando em acolhimento e em planejamento, amigas abordando liberdade e lazer, mulheres sozinhas refletindo sobre as condições de se estar sozinha na cidade, a cidade do protesto (que toca no direito ao ativismo) e a cidade do medo (que trata de vigilância, de assédio, de cultura do estupro e de outras ameaças, as reais e as inventadas para assombrar).

Cidades mais acolhedoras

Em 2014, percebendo que as mulheres sofriam uma espécie de opressão particular, a ONG Think Olga lançou o Mapa Chega de Fiu Fiu, uma ferramenta colaborativa com o intuito de localizar geograficamente os casos de assédio no Brasil. A ideia é que a vítima aponte em quais cidades e regiões os ataques são mais comuns, tipificando o assédio.

Em 2017, surgiu a startup Nina, fundada por Simony Cesar, que centraliza denúncias de violência no transporte público para que elas não passem batido, como já passaram, numa percepção corriqueira de que faz parte do dia a dia de uma mulher pegar um ônibus e ser encoxada, por exemplo.

Em 2019, a prefeitura de Fortaleza adotou a tecnologia do NINA como base para a construção de políticas públicas – um exemplo é a flexibilização da parada noturna – e a ferramenta está integrada às câmeras que equipam todos os 2 mil veículos da capital. Ao todo, são 2.334 denúncias registradas pela tecnologia e 1 em cada 10 ocorrências virou inquérito policial.

Em São Paulo, o coletivo Formiga-me prepara-se para lançar, em 2022, o guia Mulheres na Cidade, que, desde 2019, mapeia iniciativas acolhedoras na capital. São três mulheres fazendo um trabalho de formiguinha, como o próprio nome indica. Uma professora, uma jornalista e uma arquiteta que entendem que o poder de transformação está nas mãos das pessoas. Acompanhadas por algumas voluntárias. “A cidade para as mulheres é, na verdade, uma cidade para todo mundo. É inclusiva, não tem restrições ou barreiras ao ir e vir, não existe assédio, insegurança ou dificuldades para a mobilidade”, afirma a arquiteta e urbanista Cora Rocha.

Com recursos de vaquinhas virtuais, as três descobriram 70 empreendimentos, soluções, polos culturais e cuidados de saúde pela metrópole, às vezes bem longe do centro, e passaram a reuni-los. Encontraram até mulheres que trabalham com dados digitais e ajudam vítimas de violência doméstica. Elas não estarão no guia devido à sensibilidade do serviço que prestam. Temem ameaças à integridade física. “No caso delas, quanto menos holofotes, melhor”, diz Cora.

Entre os locais presentes estão um quilombo urbano, o Aparelha Luzia, no centro, um polo de saber onde se compartilham cursos e trabalhos de mulheres e pessoas trans (Brava), um local de atendimentos e cursos para mulheres grávidas e mães (ComMadre), no Tatuapé, e uma biblioteca feminista (Biblioteca Cora Coralina), em Guaianases.

Vale a pena conhecer

Iniciativas como o Mulheres na Cidade são inspiradoras e ainda difíceis de encontrar. Com a ajuda do Formiga-me, encontramos algumas ações pelo Brasil nas quais vale prestar atenção. O Cidadelas investiga o corpo feminino na cidade do Rio de Janeiro. A Turba, de Porto Alegre, tem inúmeros projetos que pensam e promovem a circulação de mulheres na cidade. O observatório Amar.é.linha une estudos feministas e arquitetura e urbanismo em Brasília. O projeto Cidades para as Mulheres, do Laboratório da Cidade, em Belém. Entre os projetos, o Como Anda foca em mobilidade a pé e os impasses que essa simples escolha coloca em questão.

Esta matéria faz parte do especial de Marie Claire sobre as variadas formas de assédio, que pode ser acessado em revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/Assedio. O canal tem todas as reportagens abertas, sem paywall, com o apoio de L’Oréal Paris.