O ataque à casa de shows Crocus City Hall, nos subúrbios de Moscou, que deixou 137 mortos, levantou novamente questões sobre a eficácia da inteligência na identificação e prevenção de grandes atos terroristas.
A inteligência sobre tais eventos raramente é precisa. Muitas vezes é constituída por fragmentos de informação ou boatos, espalhados pelas agências policiais e de inteligência e através das fronteiras internacionais. A análise de inteligência é a forma como as agências reúnem todos esses tópicos em uma imagem que faz sentido e que permite que as autoridades respondam.
A análise de inteligência depende de informações boas e oportunas, de mentes abertas e de funcionários que as utilizem da maneira correta. Como tal, deveria ser surpreendente que não ocorram mais ataques.
No início de março, os EUA emitiram um alerta sobre a ameaça iminente de um ataque terrorista com vítimas em massa contra grandes aglomerações, incluindo concertos, e alertaram os seus cidadãos para evitarem tais locais durante as 48 horas seguintes. A porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Adrienne Watson, disse que informações sobre tal ataque planejado também foram compartilhadas com as autoridades russas.
Um alerta da Agência Central de Inteligência (CIA), com o seu amplo acesso às comunicações e à inteligência humana, é altamente credível. Embora não tenha sido exatamente para a mesma data, o aviso emitido pelos EUA está suficientemente próximo da data do ataque a Crocus City para ser considerado relevante. Também mencionou Moscou e um local de entretenimento como alvos.
A CNN também disse ter relatos de duas fontes de que desde novembro havia um fluxo constante de informações de que o Isis-K (sigla em inglês para Estado Islâmico da Província de Khorasan) estava determinado a atacar a Rússia.
Mas o governo russo sente atualmente que está em estado de guerra com o Ocidente. Eles também sabem que a CIA está fortemente envolvida no fornecimento de inteligência militar aos ucranianos.
Neste contexto, é difícil para o Kremlin levar a sério os avisos dos EUA e até admitir tê-los recebido. Dimitri Peskov, porta-voz do Kremlin, argumentou que a Rússia não precisa da inteligência americana. Ele disse em entrevista coletiva: “Nossos serviços de segurança estão trabalhando por conta própria, nenhuma assistência está atualmente disponível.”
Cinco olhos melhor que um
Dado que a inteligência consiste em recolher e guardar segredos, pode parecer estranho saber que as agências de inteligência partilham segredos rotineiramente. Dentro de um país, as agências policiais e de inteligência partilham informações sobre indivíduos, ameaças e riscos.
As principais fricções ao fazê-lo são sistemas e processos incompatíveis, leis de sigilo, a proteção do comércio (como a informação foi obtida), a proteção das fontes e os riscos de informação secreta ser revelada em tribunal (conhecido como divulgação).
Os países amigos também partilham informações, através de processos e procedimentos estabelecidos. A mais conhecida delas é a aliança Five Eyes, composta pelos EUA, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido. Estes são os membros principais, mas agora existem membros associados, que gozam de acesso restrito à inteligência partilhada.
Este tipo de aliança funciona devido a protocolos estabelecidos e sólidos, alguma formação partilhada, experiência operacional e, em última análise, confiança. Mas a recente condenação do chefe da espionagem canadense, Cameron Ortis, por vender segredos a suspeitos de crimes, realça a vulnerabilidade dos sistemas dependentes da confiança.
Os países que não desfrutam de relações totalmente amistosas também partilham segredos, numa base seletiva. Existe – por exemplo – uma longa história de ligação de inteligência ocidental (o termo usado para a partilha de inteligência) entre o Reino Unido e os EUA com o Paquistão e a Arábia Saudita, por exemplo.
A Rússia e o Ocidente também partilharam informações sobre grupos terroristas – pelo menos o fizeram antes da invasão da Ucrânia em 2022.
A inteligência internacional formou frequentemente uma espécie de sistema diplomático paralelo em que as nações são capazes de falar mais abertamente, livres do olhar público e da diplomacia pública. A partilha de informações importantes também ajudou a melhorar as relações entre nações hostis ou ajudou a abrir um canal secundário para começar a falar de forma mais aberta e cordial sobre as tensões.
A CIA poderia muito bem ter partilhado um aviso sobre a conspiração teatral como um meio para mostrar o desejo de começar a normalizar novamente a sua relação com a Rússia. Provavelmente teriam querido evitar que a Ucrânia fosse responsabilizada pelo ataque, o que aconteceu posteriormente.
Então, que possíveis motivos tem o Kremlin para rejeitar as provas, pelo menos num primeiro momento, de que um grupo regional do Estado Islâmico (EI), conhecido como Isis-K, cometeu esta atrocidade? O contexto chave é a guerra em curso na Ucrânia.
Será politicamente conveniente para Moscou afirmar que a Ucrânia ajudou neste ataque. O vice-chefe do Conselho de Segurança Russo, Dmitry Medvedev, disse que todos os implicados na conspiração “devem ser rastreados e mortos sem piedade, incluindo funcionários do Estado que cometeram tal ultraje”.
A ideia de que o ataque foi patrocinado ou assistido pela Ucrânia ajuda a alimentar as narrativas dominantes anti-Kiev produzidas pelo Kremlin.
Vladimir Putin aceitou o papel do EI no ataque, mas também acusou a Ucrânia de estar envolvida ou mesmo de ser responsável.
Uma lição de ouro da inteligência é focar no que existe, e não no que você gostaria que estivesse. A explicação mais simples e plausível é que os terroristas do EI, que parecem fixados pela Rússia, montaram um ataque de alto risco e baixa probabilidade de sucesso contra Moscou, e escaparam ao estado de vigilância de Moscou ao chegarem e atacarem rapidamente.
O fato de o aparelho de segurança de Moscou ter ignorado quaisquer avisos da CIA é explicável e não surpreende no contexto da guerra. Contudo, continua a ser verdade que as hipóteses de uma cidade evitar ataques terroristas em grande escala dependem, em parte, da coordenação eficaz e da partilha de informações oportunas e precisas. O triste caso de Crocus City é o caso mais recente.
*Robert M. Dover é professor de Inteligência e Segurança Nacional na Universidade de Hull, na Inglaterra.*Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.