História

Por Vanessa Centamori

Construído em 1811, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, representa um capítulo importante da escravidão no Brasil. O porto, afinal, foi o local de desembarque de mais de 1 milhão de africanos escravizados, que, depois, eram transferidos para diferentes regiões do país. A ideia, à época, era afastar os recém-chegados da África dos olhos dos nobres da cidade. Hoje, o local recuperou parte de sua história perdida, graças à investigação de vestígios arqueológicos, e se tornou símbolo de resistência.

O cais afastado do centro urbano carioca ajudava a separar o tráfico negreiro da área elitizada, a atual Praça XV e suas imediações, onde estava o Paço Imperial. É o que contou por e-mail à GALILEU a arqueóloga Tânia Andrade Lima, que escavou o antigo cais de pedra. “Aquele desfile de negros esquálidos, seminus, doentes, era uma vergonha para as elites, que se incomodavam, receosas de contágios”, descreve.

Foi devido a esse desprezo que a memória dos escravizados quase foi apagada em dois momentos posteriores. Como destaca a Riotur, órgão turístico encarregado de promover a cidade do Rio, o primeiro deles foi em 1843, quando o cais foi ampliado e reparado para a chegada da futura imperatriz Tereza Cristina, que vinha se casar com D. Pedro II. Já na segunda tentativa de apagamento, em 1911, o cais foi aterrado para dar lugar a Praça Jornal do Comércio.

Tânia Andrade Lima durante as escavações do Cais do Valongo — Foto: Divulgação
Tânia Andrade Lima durante as escavações do Cais do Valongo — Foto: Divulgação

Porém, graças ao trabalho de arqueólogos, nem tudo foi varrido para debaixo do tapete. "Eu costumo dizer que a arqueologia é um antídoto contra amnésias sociais”, diz Tânia. Segundo a pesquisadora, muitos aspectos do passado “sobrevivem até hoje na nossa sociedade, bem instalados, inabalados, dando sinais de que não vão sair dela tão cedo”.

“Eu me refiro especialmente ao racismo, impregnado nos corações e mentes de tantas e tantas pessoas, e profundamente arraigado na própria estrutura social”, diz.

Resgate histórico

Os vestígios do Cais do Valongo foram recuperados pela equipe de Tânia Andrade Lima a partir de 2011. As escavações aconteceram durante as obras do Porto Maravilha, projeto de revitalização da prefeitura do Rio de Janeiro que abrange uma área de 5 milhões de metros quadrados. Segundo a arqueóloga explica, não foi propriamente uma descoberta, pois já se sabia que o porto funcionava naquele local.

“Lá existe uma placa antiga, colocada pela Prefeitura, assinalando a existência do cais. O que não se sabia é se tinha restado alguma coisa dele, ou se ele havia sido totalmente destruído pelas sucessivas reformas urbanas ao longo dos séculos. Foi uma surpresa ver que boa parte dele tinha resistido”, afirma.

Escavação no Cais do Valongo — Foto: Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG)
Escavação no Cais do Valongo — Foto: Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG)

O sítio investigado na ocasião é o único local de chegada de africanos preservado fisicamente nas Américas. De acordo com a arqueóloga, lá havia um complexo destinado à comercialização de pessoas, junto de um lazareto para enfermos e um cemitério “para os que sucumbiam, logo ao chegar, aos maus tratos e doenças”.

“O Cais do Valongo, ao ser trazido de volta, denuncia a que ponto as pessoas podem chegar no ódio e no desprezo por aqueles que são diferentes, na cor da pele, nas crenças, na visão de mundo, ultrapassando todos os limites da intolerância e da perversidade humana”, reflete.

No solo, os pesquisadores acharam uma coleção de vestígios rara para o continente americano. Na lista de objetos havia itens como pedras, conchas, fibras e ossos, muitos deles utilizados para fins religiosos.

Frescor cultural

As pessoas trazidas como escravizadas vinham principalmente da África Centro-Ocidental, mas também das costas Ocidental e Oriental. Como observa Tânia, a bagagem cultural dos escravizados era muito viva, já que eles eram recém-chegados ao Brasil. Isso permitiu aos arqueólogos observar práticas culturais e religiosas de maneira próxima à que aconteciam originalmente, na África. Além disso, o Cais do Valongo se destacou diante de outros sítios arqueológicos, que passaram por intensos encontros com outras culturas.

"Esses sistemas de pensamento e de crenças constituem a antítese da ideia de primarismo, barbárie e selvageria atribuída por muitos às religiões de matriz africana”, diz a arqueóloga.

Sítio arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro — Foto: Iphan
Sítio arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro — Foto: Iphan

Notando a importância sagrada dos itens, a pesquisadora convidou quatro religiosos, membros de vertentes de religiões africanas, para participar da interpretação dos achados. Enquanto isso, organizações dos movimentos negros reivindicaram que o cais virasse um monumento preservado e aberto à visitação pública.

Em 2011, quando os arqueólogos ainda estavam no início da escavação, o local foi visitado pelo prefeito carioca Eduardo Paes. Tânia explicou ao político que seu grupo acreditava ter encontrado remanescentes do Cais do Valongo, e que se preocupava que a revitalização da região por grandes incorporadoras resultasse em uma nova tentativa de apagamento.

Ela recorda ter dito a Paes: “Prefeito, com o respeito que lhe devo, o Sr. tem um projeto intitulado Porto Maravilha, branco, ensolarado, luminoso, futurista. Mas, aqui dentro, tem um passado negro, pesado, doloroso, sombrio. É o nosso passado e ele precisa ser preservado. É o passado das comunidades negras que não pode ser apagado e nem enterrado novamente”.

O prefeito entendeu o recado. Exigiu que suas equipes preservassem a área. “Nós pudemos prosseguir com a exposição da totalidade do sítio. Ou a pesquisa teria sido abortada ali, o trabalho não teria prosseguido e jamais teria sido feito”, recorda.

Cais do Valongo na lista da Unesco

A arqueóloga explica que, em 1978, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) reconheceu a Ilha de Gorée, no Senegal — um antigo portal de saída de navios negreiros -- como Patrimônio Mundial da Humanidade. Por isso, havia a expectativa de que sua contraparte na costa brasileira, o Cais do Valongo, também fosse reconhecido da mesma forma.

Em 2017, isso de fato aconteceu: o sítio arqueológico que ela ajudou a escavar entrou para a lista de patrimônios mundiais da organização. “Fui invadida por uma sensação de um dever cumprido. O Valongo foi comparado pela Unesco a lugares de intenso sofrimento, todos eles Patrimônios Mundiais, como Auschwitz, Hiroshima, Robben Island, entre outros”, cita.

No ano passado, a pesquisa realizada no Valongo rendeu à pesquisadora o prêmio internacional Hypatia Award 2023, da Confederação dos Centros Internacionais para a Conservação do Patrimônio Arquitetônico (CICOP Net). A honra é concedida a profissionais que contribuem para o conhecimento científico, e já foi entregue em 2020 à icônica arqueóloga brasileira Niède Guidon, conhecida por sua luta pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí.

“A grande premiada foi com certeza a arqueologia, nem sempre valorizada, pela capacidade que ela tem de trazer à tona verdades indesejáveis, incômodas, dolorosas, que muitos desejam esquecer ou ignorar”, comenta Lima, sobre a sua conquista internacional.

Tânia se graduou em 1979 em Arqueologia e, em 1980, se especializou pelo Museu Nacional. Virou doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP), e concluiu o pós-doutorado em História Social na mesma universidade. Ela está aposentada atualmente, porém, segue como colaboradora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da UFRJ, do qual foi fundadora e coordenadora entre 2006 e 2012.

Além do Cais

Além do trabalho na escavação do Cais do Valongo, Tânia conduziu também estudos na área de Arqueologia do Capitalismo. Outro tema foi a Arqueologia da Diáspora Africana, tema central para recriar a história da escravidão urbana no Rio de Janeiro.

Tânia argumenta que a arqueologia, de modo geral, foi posta no passado a serviço das classes dominantes. Contudo, a arqueóloga explica que, a partir da década de 1980, esse panorama mudou. O foco dos estudiosos passou a ser a investigação da vida cotidiana das pessoas comuns e de minorias étnicas e segmentos marginalizados, especialmente os escravizados.

“A sociedade construiu uma imagem aventureira, frívola e elitista da arqueologia, e nós sofremos muito com esse estigma”, diz a especialista. “Mostrar para a sociedade a relevância social da nossa disciplina, que parece estar perdendo para a face glamourosa do 'Indiana Jones', tão distante da nossa realidade e de tudo o que nós produzimos, é um dos nossos desafios”.

Cais do Valongo, no Rio de Janeiro — Foto: Wagner Tamanaha/Flickr
Cais do Valongo, no Rio de Janeiro — Foto: Wagner Tamanaha/Flickr
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