História

Por Marília Marasciulo

O ano era 1989. Poucos meses antes, o Brasil havia conquistado sua tão sonhada Constituição democrática. Duas décadas de ditadura militar vinham sendo varridas da política. Era a oportunidade de deixar de lado a velha ordem autoritária em nome de avanços em diversos setores. E foi nesse contexto que, em 11 de julho, o então presidente da República, José Sarney, sancionou a lei nº 7.802, conhecida como Lei dos Agrotóxicos.

Em vigor até hoje, o texto criou uma estrutura legal para um setor que era regulamentado via portarias do Executivo. Entre as modernizações, trouxe de forma oficial, pela primeira vez, a definição do termo “agrotóxicos”, em substituição à denominação mais branda “defensivos agrícolas”. Propôs uma divisão tripartite de poder entre os órgãos de saúde, agricultura e meio ambiente para aprovar ou não registros de novos produtos. E estabeleceu punições para assegurar o correto manejo das substâncias.

Até então, a única legislação que regulamentava o setor datava de 1934, durante a Era Vargas. Daquele ano até 1989, todas as alterações nos marcos regulatórios que dissessem respeito aos agrotóxicos eram feitas a partir de portarias editadas por órgãos do Poder Executivo. Isso abriu margem para, nos anos 1970, o governo militar do Brasil investir e incentivar a criação de uma indústria química nacional para a produção de pesticidas, herbicidas e inseticidas. Com isso, promoveu também um modelo agroindustrial centralizado em commodities. A iniciativa foi chamada de Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), posto em prática em 1975.

A regulamentação final da lei nº 7.802 só veio em janeiro de 2002, em um decreto presidencial que delimitou os órgãos competentes de cada área envolvidos no registro de agrotóxicos: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), vinculada ao Ministério da Saúde; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ligado ao Ministério do Meio Ambiente; e o próprio Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Mas, já em março daquele mesmo ano, foi apresentado no Congresso um projeto de lei que buscava fazer as regras voltarem a ser o que eram antes. A proposta do PL nº 6.299, elaborado pelo então senador Blairo Maggi (empresário do agronegócio, membro da bancada ruralista e ex-ministro da Agricultura do governo de Michel Temer) era desregulamentar a produção, comercialização e aplicação de produtos outrora conhecidos como “defensivos agrícolas” e extinguir a divisão de poder tripartite. Vinte anos depois, o PL aguarda apreciação no Senado, após ser aprovado na Câmara dos Deputados no dia 9 de fevereiro deste ano. A decisão gerou debates, e o projeto foi apelidado de “PL do Veneno

"O PL que está no Senado tem uma retórica de modernização, mas na verdade é um retrocesso. Há vários pontos que estão sendo mudados agora para o que era a legislação da ditadura", diz Leonardo Lignani sobre o PL 6.299

Na visão do biólogo Leonardo de Bem Lignani e da historiadora Júlia Lima Gorges Brandão, o projeto de Blairo Maggi guarda semelhanças com o PNDA do governo militar. A dupla de doutorandos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, é autora do artigo A ditadura dos agrotóxicos: o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas e as mudanças na produção e no consumo de pesticidas no Brasil, 1975-1985. Publicado na segunda edição trimestral de 2022 da revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos, o trabalho faz uma análise do avanço do uso de agrotóxicos durante a ditadura no país.

Para os pesquisadores, o PL 6.299 é resultado direto da falta de entendimento histórico sobre os motivos e as consequências da regulamentação dos agrotóxicos. “O PL que está no Senado tem uma retórica de modernização, mas na verdade é um retrocesso. Há vários pontos que estão sendo mudados agora para o que era a legislação da ditadura”, adverte Lignani.

Os estudiosos consideram que, entre os principais problemas da proposta estão: a substituição do termo “agrotóxico” por “defensivo fitossanitário”, o relaxamento nos critérios para definir produtos cancerígenos, o fim do modelo de avaliação tripartite entre os ministérios da Saúde, Agricultura e Ambiente (concentrando as medidas no MAPA) e a possibilidade aprovar novos agrotóxicos por meio de registros temporários. “É um retrocesso de 40 anos na história”, resume Brandão.

Na contramão da primavera silenciosa

Em 1972, a capital da Suécia, Estocolmo, sediou a primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente. No encontro, os países ensaiavam os primeiros debates e tentavam dividir responsabilidade nos temas ambientais. Mas um dos discursos que ficaram mais famosos na ocasião foi o da delegação brasileira, que afirmou que não caberia aos países mais pobres, como o Brasil, preocupar-se com questões ambientais — para esses, a luta seria contra a “poluição da pobreza”.

Três anos depois, entrou em vigor o PNDA. Segundo os pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz — unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) dedicada à história, patrimônio cultural e divulgação científica —, o programa vinha na esteira do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, que buscava conter os efeitos da crise do petróleo de 1973. A ideia era incentivar e financiar a instalação de indústrias no Brasil, inclusive a de pesticidas, cujos preços dos insumos vinham sendo afetados.

Basicamente, o PNDA buscava estimular a produção interna de agrotóxicos, parte importante do projeto de “modernização” agrícola e substituição de importações proposto pelo governo militar. Como consequência, não só consolidou um novo perfil de produção e uso dos pesticidas como concretizou o modelo agroindustrial voltado para monoculturas de alta produtividade.

O PL 6.299 é resultado direto da falta de entendimento histórico sobre os motivos e as consequências da regulamentação dos agrotóxicos — Foto: Flávia Hashimoto
O PL 6.299 é resultado direto da falta de entendimento histórico sobre os motivos e as consequências da regulamentação dos agrotóxicos — Foto: Flávia Hashimoto

Acontece que a política do PNDA nasceu na contramão do que pregava o resto do mundo naquele momento. Desde o final dos anos 1950, já eram conhecidos os efeitos danosos dos defensivos organoclorados, utilizados para combater insetos em lavouras. Uma publicação importante para esse entendimento foi o livro Primavera Silenciosa, da bióloga marinha e ecologista Rachel Carson. Na obra lançada em 1962, a estadunidense analisa a degradação ambiental a partir do uso de pesticidas. O livro é considerado um dos precursores do movimento ambientalista e ajudou a inspirar políticas públicas mais rigorosas, sobretudo na Europa Ocidental e nos Estados Unidos.

De acordo com os estudiosos da Fiocruz, seria possível analisar o PNDA sob a perspectiva do “círculo do veneno”. Esse conceito prega que, a partir do momento em que países mais centrais da economia, como os EUA e os europeus, vão proibindo pesticidas, as fábricas passam a exportar sua produção para economias periféricas. “Tem autores que questionam como isso acontece e se, de fato, é só essa chave de leitura que a gente pode usar. Então, decidimos olhar a documentação com isso em mente. E a partir daí, surgiram outros debates”, relata Leonardo Lignani. Um dos principais questionamentos foi: como o PNDA se insere na política econômica e agrícola que a ditadura estava implementando?

Guerra histórica

Desde que começou a plantar, o ser humano busca formas de lidar com insetos, fungos e outros seres indesejados que se alimentam dos cultivos. Os primeiros registros do uso de pesticidas para proteger plantações datam de 2 mil a.C., quando os mesopotâmicos usavam enxofre. Já no século 15 d.C., começaram a surgir defensivos baseados em elementos como arsênio, mercúrio e chumbo. No século 17, o sulfato de nicotina, extraído das plantas de tabaco, começou a ser aplicado como inseticida.

Até a década de 1950, os principais pesticidas agrícolas eram baseados em arsênio — usado também em venenos para matar pessoas. Em 1939, o químico suíço Paul Muller descobriu a ação inseticida do diclorodifeniltricloroetano, o DDT, composto organoclorado sintetizado pela primeira vez em 1874. O DDT prometia ser uma revolução na erradicação de doenças causadas por insetos, como a malária e o tifo, e teve amplo uso durante a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, começou a ser comercializado também nos EUA para uso doméstico e na agricultura, e ganhou espaço principalmente por ser menos tóxico que os produtos mais comuns da época.

Só a partir da repercussão de Primavera Silenciosa é que se começou a entender os malefícios do DDT e outros organoclorados. Embora menos tóxicos, eles são altamente persistentes no ambiente, acumulando-se na água, no solo, e nos vegetais. Não à toa, da década de 1970 em diante, começaram a ser proibidos nos países desenvolvidos e produzidos em lugares como o Brasil.

"Em vez de caminhar para políticas que incentivem práticas agroecológicas, estamos trilhando caminhos pelos quais já passamos”, diz Leonardo Lignani

Só que, se por um lado a indústria nacional era visada pelos fabricantes, a comercialização para o exterior começou a ser afetada. “As restrições aos organoclorados em outros países passaram a impactar as exportações brasileiras, resultando, por exemplo, no retorno de carne enlatada enviada aos EUA em 1970 e de óleo de soja exportado para o Japão em 1971”, escrevem Leonardo Lignani e Júlia Brandão no artigo. Em resposta, o governo proibiu a aplicação de organoclorados em pastagens no país. Entre os argumentos apresentados, não havia menção às consequências ambientais ou para a saúde, apenas que “o uso de inseticidas clorados para controle de pragas em pastagens tem ocasionado diversos inconvenientes”.

Missão cumprida?

As metas de produção propostas pelo PNDA foram consideradas atingidas. O aumento constatado na produção interna de defensivos agrícolas reduziu a dependência de importações de 77%, em 1974, para 50%, em 1979. Essa maior produtividade foi puxada pelos fungicidas e herbicidas. No caso dos inseticidas, o pequeno aumento na produção não teve reflexos nas importações. O PNDA também alavancou a transição para a utilização de inseticidas organofosforados e carbamatos no lugar dos organoclorados, embora a produção nacional ainda se concentrasse nesse último grupo.

A disseminação dos pesticidas organofosforados acompanhou a consolidação de um modelo agrícola baseado no cultivo de commodities como trigo, laranja e, principalmente, soja. Esses três produtos apresentaram os maiores aumentos percentuais de produção no período entre 1967 e 1979 — aproximadamente 10%, 15% e 27%, respectivamente.

Mas o sucesso não foi equivalente em relação aos objetivos do PNDA voltados para fiscalização. O programa previa a instalação de cinco estações fitossanitárias, cinco laboratórios de análises de defensivos e resíduos, 25 postos de defesa sanitária vegetal e a contratação de 385 técnicos para atividades de laboratório e campo. Ao final de 1979, apenas quatro “laboratórios de referência vegetal” haviam sido instalados, sendo que metade sofria com falta de pessoal.

 Na obra lançada em 1962, Rachel Carson lança Primavera Silenciosa, onde analisa a degradação ambiental a partir do uso de pesticidas — Foto: Flavia Hashimoto
Na obra lançada em 1962, Rachel Carson lança Primavera Silenciosa, onde analisa a degradação ambiental a partir do uso de pesticidas — Foto: Flavia Hashimoto

Na década de 1980, as preocupações ambientais do resto do mundo enfim começaram a chegar por aqui. A começar pela adoção do termo “agrotóxico”, sugerido pelo agrônomo Adilson Dias Paschoal em 1978 com o objetivo de destacar as características biocidas dos produtos. Surgiram também os primeiros marcos regulatórios para endurecer as proibições aos organoclorados. “Apenas como exemplificação, apesar de a capacidade de produção instalada de BHC [hexaclorobenzeno, inseticida popularmente conhecido como “pó de broca”] no Brasil atingir 10.800t/ ano em 1980, a produção efetiva em 1979 havia sido de apenas 3.230t, o que indica a diminuição na demanda pelo produto”, ilustram os pesquisadores da Fiocruz em seu artigo.

Em 1972, dos 659 produtos comerciais registrados para uso como inseticidas e acaricidas, 71% continham algum organoclorado em sua composição. Em 1983, essa quantidade caiu para 48%.

Futuro é um grande passado

Para além das metas estabelecidas na época da ditadura, o legado do PNDA pode ser resumido em três efeitos principais. O primeiro deles começou com registros de intoxicações por organoclorados antes mesmo da implantação do programa, passou pela criação do termo “agrotóxicos” até chegar à Lei dos Agrotóxicos. O segundo foi a formalização do modelo agrícola vigente no Brasil, baseado na monocultura e dependente desses produtos.

E a terceira consequência foi a falha em conter o aumento de pragas. Espécies que causavam prejuízos na época, como a cigarrinha-da-cana-de-açúcar e a ferrugem-do-café (Hemileia vastatrix), continuam a ocasionar problemas econômicos até hoje. “Darwin não falha, sempre ocorre seleção natural”, destaca o doutorando da Casa de Oswaldo Cruz, citando a teoria que o biólogo britânico publicou em 1859.

Mesmo analisando o contexto histórico e seus resultados, o Brasil hoje se encontra na contramão do resto do mundo quando o assunto é agrotóxico. Não só pelas escolhas políticas atuais e do passado, mas por uma filosofia de que existe um “uso seguro” ou de que o problema é apenas o mau uso. Segundo Brandão, a ideia de tentar diminuir os impactos dessas substâncias responsabiliza e coloca um peso maior nos agricultores.

Mas, talvez, o pior resultado seja a dependência de um modelo agrícola insustentável, que se apoia no desenvolvimento de novos venenos — que, por sua vez, dão origem a novos problemas. “Em vez de caminhar para políticas que incentivem práticas agroecológicas, estamos trilhando caminhos pelos quais já passamos”, lembra Lignani. E o que vem pela frente não pode ser bom.

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