Trechos,

Memórias do cárcere

Da prisão no Irã, Nobel da Paz Narges Mohammadi denuncia violações de direitos em ‘Tortura branca: entrevistas com prisioneiras iranianas’; leia trecho

03maio2024 - 13h33 • 13maio2024 - 15h45
(Divulgação)

“Nada vai me impedir de continuar minha luta contra o confinamento solitário”, diz a ativista iraniana Narges Mohammadi na apresentação de Tortura branca: entrevistas com prisioneiras iranianas, publicado pela Instante com tradução de Gisele Eberspächer. Presa em 2022 pela décima segunda vez desde 1998 — e por esse livro, que acabava de ser publicado em persa por uma editora na Suécia —, Mohammadi escreveu o texto de apresentação numa saída temporária depois de sofrer um infarto.

Vencedora do Nobel da Paz em 2023, a ativista se tornou uma das principais vozes a denunciar os abusos que sofreu e presenciou nas prisões iranianas. Além do seu depoimento sobre as experiências em encarceramento isolado — a “tortura branca” do título —, o livro também reúne testemunhos de outras treze presas políticas do país, encarceradas sem bases legais e muitas delas sem sequer saberem do que estavam sendo acusadas. 

A edição conta com introdução da historiadora Shannon Woodcock e prefácio de Shirin Ebadi, também Nobel da Paz, em 2003, e idealizadora do Centro de Defensores dos Direitos Humanos, organização da qual a autora se tornou vice-presidente. 

Trecho de Tortura branca

Escrevo esta apresentação nas últimas horas da minha saída temporária. Em breve, serei obrigada a voltar à prisão.

Em 16 de novembro de 2021, fui presa pela décima segunda vez e, pela quarta, sentenciada ao confinamento em solitária. Passei sessenta e quatro dias presa na ala 209 da prisão de Evin, gerida pelo Ministério da Inteligência e da Segurança Nacional da República Islâmica do Irã. Desta vez, fui considerada culpada por conta do livro que você tem em mãos — Tortura branca. Me acusaram de manchar o nome do Irã ao redor do mundo. Agora estão determinados a provar que minha campanha para acabar com o confinamento solitário falhou. Vão me submeter mais uma vez a essa tortura e mostrar para ativistas de todo o mundo que o governo reina supremo.

Fui condenada ilegalmente em primeira instância a oito anos e dois meses na prisão, além de setenta e quatro chicotadas, pena que foi subsequentemente reduzida para seis anos na prisão, com o mesmo número de chibatadas. Em consequência disso, estou cumprindo duas sentenças separadas: uma anterior, de trinta meses na prisão e oitenta chibatadas, além desta mais recente. Quando somadas a outra sentença mais antiga, agora encaro mais de trinta anos de prisão.

Mas nada vai me impedir de continuar minha luta contra o confinamento solitário. Tendo recebido uma permissão para saída temporária por conta de problemas de saúde depois de um infarto na prisão de Qarchak e uma cirurgia cardíaca, reafirmo que essa é uma punição cruel e desumana. Não vou descansar até que seja abolida.

Eles vão me prender novamente. Mas não vou parar minha campanha até que os direitos humanos e a justiça vençam em meu país.

Narges Mohammadi

[março de 2022]

***

Entrevista: Narges Mohammadi

Meu marido, Taghi Rahmani, foi preso com membros do Conselho de Ativistas Nacionalistas-Religiosos e do Movimento pela Liberdade. Após as prisões, em 19 de março de 2001, nós, as famílias dos prisioneiros, protestamos contra as ações ilegais do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (CGRI)¹ e do Judiciário. Parte de nosso ativismo incluiu manifestações em frente ao Judiciário, ao Parlamento e ao escritório da ONU. Também conduzimos entrevistas internas e externas referentes às instituições responsáveis. Foi por isso que a seção 26 do Tribunal Revolucionário, chefiada por Hassan Zare — Haddad —, me convocou². Em uma das salas do Tribunal Revolucionário, um interrogador do CGRI me fez algumas perguntas sobre minha entrevista, publicada no jornal que carregava consigo.

Então me levou para a seção 26, onde fui presa por ordem do interrogador encarregado do gabinete, embora o juiz nem tivesse aparecido por lá. O gabinete chamou o juiz para ir ao escritório assinar meu mandado de prisão. Esperei cerca de uma hora, e, quando ele apareceu, assinou o formulário sem sequer falar comigo nem me perguntar qualquer coisa. Em seguida, o interrogador me conduziu para fora da seção.

Saímos pela porta dos fundos do Tribunal Revolucionário e entramos em um Peugeot. Disseram-me para baixar a cabeça e vendaram meus olhos. Em seguida, o automóvel nos conduziu por várias ruas antes de entrar por uma porta grande em outro prédio. Partimos novamente e percorremos uma longa distância. As ruas estavam silenciosas. Saí do carro, ainda com os olhos vendados, e entrei no edifício. Senti como se estivéssemos dentro de um castelo em um lugar ermo. Fui levada para uma ala da prisão e depois para uma pequena solitária.

Era a primeira vez que eu ficava trancada em uma cela. Que ambiente estranho; uma pequena caixa sem janela ou qualquer outra conexão com o lado de fora. Havia uma claraboia minúscula acima da minha cabeça, mas quase não entrava luz natural. No alto, em um buraco na parede, uma pequena lâmpada de 100 watts que nunca se apagava.

Eu tinha ouvido que um projetor com uma luz potente ficava ligado dia e noite na cela de Hoda Saber³. Tinha ouvido que o tamanho aproximado de uma cela equivalia a um ser humano com os braços estendidos. Tinha ouvido que o silêncio absoluto reinava na prisão e que a porta abria e fechava de três a quatro vezes por dia para se ir ao banheiro e fazer as abluções para a oração. Repassei o que sabia sobre a função do confinamento solitário: tortura branca e lavagem cerebral. Agora eu estava experimentando algo sobre o qual tinha ouvido e lido e estava ciente das terríveis consequências que isso poderia causar. De repente, senti medo.

Não sabia onde estava nem o que fariam comigo. As punições desconhecidas na prisão e a incerteza do futuro eram como um veneno mortal. Eu me perguntava como era possível tratar um ser humano dessa maneira. O que acontece com o direito de respirar, de andar, de ir ao banheiro livremente, de ouvir outras pessoas e conversar com elas? Ser privada dos direitos mais básicos me assustava mais do que pensar nas acusações, no julgamento e na condenação.

Fiquei sentada na cela por horas até que um homem abriu a porta e disse: “Saia”. Antes de sair, coloquei o casaco, o lenço e a venda nos olhos. No corredor, percebi que estava em uma ala masculina. A pedido do carcereiro, eu havia desajeitadamente vendado meus olhos com tanta força que não conseguia enxergar e era difícil andar. Um homem caminhou na minha frente e me guiou.

Um pouco mais adiante, achei que tivesse passado por uma porta, e ele me guiou de volta para a direita. Recuei e bati na parede. Ouvi dois homens rindo atrás de mim e me irritei. Eles me levaram para uma pequena sala, retiraram minha venda, fizeram algumas fotos e em seguida ordenaram que a recolocasse. Fui encaminhada de volta para a cela. O som perturbador do trancar e destrancar das fechaduras das portas causava em mim uma dor física. Quando precisasse ir ao banheiro, eu deveria passar um papel colorido por debaixo da porta, então fiz isso. O carcereiro apareceu e me disse para pôr a venda nos olhos.

“Não”, respondi, “porque o que aconteceu no corredor foi ultrajante, e você riu de mim”. Ele fechou a porta e se foi. Fiquei passando o papel por debaixo da porta seguidamente; ele vinha, mas, como eu não estava vendada, fechava a porta e se afastava. Então, quando comecei a gritar, um deles, um sujeito violento, ordenou que eu me posicionasse atrás da porta quando estivesse na cela para que não os visse. Ao que parecia, ele era um dos oficiais da ala. Levantei e comecei a explicar o que havia acontecido e por que não vendaria os olhos.

Trouxeram um rádio e aumentaram o volume para que as pessoas nas outras celas não pudessem nos escutar. Foram extremamente cuidadosos para não sermos ouvidos pelos vizinhos de ala. Por fim, ordenou que eu puxasse meu lenço até o queixo, mantivesse a cabeça baixa e fosse ao banheiro. Um carcereiro me seguiu pelo corredor. Na última cela, vi que os prisioneiros eram todos homens — eu estava mesmo na ala masculina.

¹ O Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (CGRI) é um setor das Forças Armadas do Irã.

² Hassan Zare Dehnavi, conhecido como juiz Haddad, foi o vice-diretor de segurança da Procuradoria Pública e Revolucionária de Teerã. Acusado de inúmeras violações de di- reitos humanos, era conhecido por tratar cruelmente os prisioneiros. Morreu em outubro de 2020.

³  Hoda Saber foi um intelectual e ativista iraniano que, em 2011, fez greve de fome na prisão de Evin e morreu em decorrência de um ataque cardíaco logo em seguida.