A Feira do Livro, Literatura brasileira,

Quando um fim principia

Brigadista da Chapada Diamantina estreia na ficção com história de tragédias ambientais anunciadas em romance ousado na sintaxe

01jun2024 - 04h51 • 29maio2024 - 12h11 | Edição #82
O escritor e analista ambiental Pablo L. C. Casella (Divulgação)

Estreia literária do analista ambiental Pablo L. C. Casella, Contra fogo conta a história de Deja, um brigadista da Chapada Diamantina. Narrado por seu protagonista, o romance entrelaça a trajetória dele à de seus companheiros de brigada — moradores da região que, diante do perigo da devastação, abandonam emprego e arriscam a vida para preservar do fogo fauna e flora locais.

O romance tem estrutura facilmente reconhecível: começa com um incêndio, retrocede para a trajetória acidentada do herói (como se torna guia de turismo e líder brigadista, os amores, os filhos, os amigos) e termina com o enfrentamento do grande fogo (luta mais desafiadora que as anteriores). Acresça-se a isso que Deja é atormentado por um misterioso fato passado que, sugere-se ao longo do livro, explicaria sua devoção ao combate ao fogo.

Por trás dessa estrutura, que se poderia chamar de tradicional, enxerga–se, contudo, um romance ousado cuja chegada merece ser celebrada. Casella lança mão da forma–romance como a reconhecemos, mas a constrói com sintaxe e vocabulário que remetem à oralidade regional, no que não distaria de uma de suas influências claras, Guimarães Rosa. Ainda que sensível e sábio, Deja é bruto com as palavras, incapaz de falar de sentimentos e tem sempre ao lado uma mulher mais instruída (como não pensar em São Bernardo, de Graciliano Ramos?). Em sua luta final contra o fogo, os dias são narrados um a um e acompanhamos uma longa batalha contra o grande inimigo que coloca em risco as formas de vida por ele defendidas (a campanha contra o fogo, que é concreto e é metáfora, lembra “A luta” de Os sertões). 

‘Contra fogo’ dialoga com a tradição literária brasileira, mas ganha especificidade no estilo, no ritmo e no cenário

Contra fogo estabelece diálogo com a tradição literária brasileira, mas ganha especificidade no estilo, no ritmo e, elegendo como cenário a Chapada Diamantina, ao trazer ao proscênio a questão ambiental. A “estiagem esquisita” notada pelos brigadistas favorece a proliferação de incêndios e atrapalha a lavoura e demais atividades econômicas, inclusive o turismo. Há uma preocupação que concerne à vida nas matas e fontes de água e também à vida humana — a qualidade do ar, o emprego e a manutenção da terra para cultivo. O discurso ambiental ganha espessura porque deixa de ser apenas discurso e se entrelaça à ação narrativa, que articula passado e futuro a partir de um presente para contar a história de um mundo em emergência climática.

A quem nunca tenha pisado em Palmeiras, Mucugê, Ibicoara ou Lençóis, as primeiras páginas podem causar certo estranhamento. Avançando um pouco mais, o leitor vai se habituando à sintaxe, ao léxico e ao que se encena. Contribui para isso uma característica fundamental do livro: o uso de diálogos que marcam o ritmo da narrativa, ao mesmo tempo que nos apresentam certa prosódia e a dimensão coletiva da matéria narrada. 

Este trecho, por exemplo, Zia, amigo e companheiro de brigada, narra um episódio em que Deja teria deliberadamente se colocado em risco, mas sabemos do acontecido também pelo que relata Deja-narrador:

— O garrote mais velho, que vinha na frente, passou açoitado e, por sorte, não triscou nele.

A quenturinha do ar que lambeu meu braço apareceu de novo, só de escutar Zia.
Depois desse, lembro que fechei os zóio e tentei soltar os braço.

— O segundo garrote também passou com tudo, mas do outro lado de Deja, no lado que tinha umas pedrona maior. […] Eu digo que esse chega triscou ni tu, não foi, não, frente?

Esse fez um vento mais frio que veio seguido do calor do corpo. […]

— Veio o terceiro […] ele foi mais pro meio da passagem, certinho no rumo de Deja.

O trote desse pareceu chegar devagar no meu ouvido, parecia um aviso do alívio.

No diálogo imaginário entre Zia e Deja, o narrador dá um complemento que pontua o ritmo e acentua as características do protagonista, duro com as palavras, avesso a fanfarronices e dono de temperamento afeito ao risco. Essas características ganham força com o modo como ele reage a momentos dolorosos. Diante de pergunta ou afirmação incômoda, para ilustrar como se sentiu, ele recorre a uma situação outra ou a uma anedota relacionada ao mundo natural:

— Vou me separar de você.

Às vez, quando trabalhava mais véio Vital, pensava como era pro porco depois da facada no sangrador, se ele sentia que o corpo tava esvaziando de sangue, se sabia que ligeiro perdia a vida. Pensei se devia ser parecido comigo escutando Léa falar aquilo.

Deja é o líder, o “frente” da brigada. É o mais aguerrido guerreiro, o que só volta para casa quando a batalha está de fato encerrada, para queixa da companheira, que, cansada da solidão e de ter de criar filho sozinha, o abandona. As personagens femininas constituem oposição ao protagonista porque se movimentam e rompem o ciclo patriarcal que elas, instruídas e desejantes, farejam. Deja, não. Sentindo culpa pelo terrível fato passado (cujo teor é revelado no fim do livro), está fadado à repetição e à solidão.

Duelo

É em torno dele que o romance se constrói — dele e do fogo, e dos duelos entre os dois. Os demais brigadistas são quase tipos, que servem de escada para o herói/anti-herói encenar seu duelo contra as chamas: do Cunga gaiato que foge com o circo ao compadre alcoólatra Jotão, passando por Trote, o brigadista gay e viril. São contrapontos ao protagonista e, por isso mesmo, necessários para a narrativa não assumir ares soturnos — também de sol e cachoeira, e até de reggae, se faz esse livro. Se é em torno de Deja que o romance se ergue, não é apenas dele que trata a história.

Também em alguns momentos a descrição de costumes se sobressai e se desconecta da narrativa. Com isso, o romance perde força. São, porém, trechos pontuais que não comprometem seu fôlego e ambição, que aparecem bem neste trecho:

Não sei se dá pra marcar a data certa duma tragédia. Às vez parece que a vida toda tem um trançado, feito esteira de palha de licuri. Umas talisca são de alegria, outras dos tempo ruim e até as dos momento de tragédia. Uma trança por riba da outra, mergulha um trecho, depois torna a aparecer. O peão pode achar que uma tragédia é novidade, mó de não ter percebido que ela já vinha de antes, sabe lá de quando. Quem sabe quando a ruína começa de verdade? Quando um fim principiou? Um incêndio começa no riscar do fósforo, ou quando alguém vê a fumaça? Ou mais atrás ainda, quando a ideia de tacar o fogo incute no juízo do incendiário, dias ou talvez meses antes? E a data duma morte, sucede no parar do coração ou nos anos tentando se acabar e carregando junto a culpa?

Contra fogo é a história de Deja, o herói/anti-herói atormentado pelo peso da culpa, e a de brigadistas da Chapada Diamantina, seus hábitos, suas paisagens e gentes. E é uma história de tragédias ambientais anunciadas.

Quem escreveu esse texto

Rita Palmeira

É crítica literária e curadora da livraria Megafauna, em São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.