Crítica Literária,

Trapezista no ar

Historiador explora o equilíbrio instável da montagem e remontagem do tempo na narração ficcional

01maio2024 - 04h00 • 23maio2024 - 13h24
O historiador Júlio Pimentel Pinto (Arthur Silva/Divulgação)

Em “Teoria”, primeira seção de Sobre literatura e história, Júlio Pimentel Pinto investiga certas fronteiras porosas que ora aproximam, ora afastam ficcionistas e historiadores. Há de saída um instrumento em comum, posto à prova nos dois campos: a narração. Com ela, suas formas de (re)inventar a vida. É por aqui que vai o autor, seguindo o rastro do subtítulo que dá mais especificidade ao projeto do livro: como a ficção constrói a experiência.

Não são poucos os autores interpelados nessa primeira parte: visitamos, por exemplo, Didi-Huberman, cuja defesa do anacronismo enfraquece consideravelmente as presunções do projeto historiográfico. A citação do filósofo coloca a questão em termos radicais: “o objeto das disciplinas históricas não é exatamente o passado”. Não sendo exatamente o passado, o território do historiador fica sendo incerto. 

O título do livro de David Lowenthal, mencionado por Pimentel Pinto, vem à mente: O passado é uma terra estrangeira. Dessa terra o historiador não pode dizer que saiba o idioma, os costumes, os tiques dos habitantes. No trecho escolhido, Lowenthal fala de um passado fugidio e uma busca algo exasperada por conjurá-lo: 

Como o passado parece se afastar de nós, procuramos reevocá-lo [] multiplicando a parafernália sobre ele — lembranças, mementos, romances históricos, velhas fotos. 

O passado como um álbum, pode-se dizer, numa piscadela para “O diário como um álbum”, quarta e última seção de Sobre literatura e história, em que o autor se deterá sobre os diários de Ricardo Piglia/Emilio Renzi.

Diante de um objeto que não é exatamente o passado, o historiador, segundo a sugestão de Pimentel Pinto, confina com o ficcionista — não em seus compromissos, e sim talvez em alguns métodos ou recursos necessários. Costurando alusões a Edmund Burke, Lionel Trilling e Carlo Ginzburg, o autor evoca a imaginação moral, que “encoraja a especulação e acentua o senso imaginativo acerca dos sujeitos históricos”. Aqui os historiadores têm o que aprender com a ficção. Mas não só aí, pois historiador e ficcionista também compartilham certo “sentido de desmontagem e remontagem do tempo” — o passado, então, como montagem. Jogando um pouco com as acepções do termo, pode-se lembrar Nuno Ramos em Fooquedeu (Todavia, 2022):

Segundo o autor, diante de algo que não é exatamente o passado, o historiador confina com o ficcionista

Sinto a montagem (a primeira montagem de um trabalho) como o momento vertiginoso e apavorante desse sentimento do possível — ele está lá inteiro, cruel na sua potência, mas sem oferecer garantias, podendo ainda se voltar contra mim.

O risco no gesto da montagem — da narração — dialoga com o trecho de Piglia de que Pimentel Pinto lança mão ao fim do ensaio de abertura: “Isso que é narrar, disse em seguida, arremessar-se ao vazio e acreditar que algum leitor vai segurá-lo no ar”.

Maneiras de construir

Na segunda e terceira seção de Sobre literatura e história — “Diálogos” e “Leituras” — vamos à ficção, explorando modos de construir (de montar) a experiência. O excelente “Cortázar, leitor de Poe” se debruça sobre o método do conto — ou pelo menos sobre o método de Poe e Cortázar para o gênero: “A eficácia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento puro”, escreve Cortázar, pensando na economia de Poe, portanto “todo comentário ao acontecimento em si deve ser radicalmente suprimido” e já “a entrada no assunto deve ser fulminante, brutal”. 

Pimentel Pinto testa a teoria apresentada aí por meio de uma leitura fecunda do magistral “Texto en una libreta”, do autor argentino. Ao mesmo tempo, explora como o gênero nas mãos de Cortázar se presta àquelas interseções entre literatura e história: “Texto en una libreta”, com suas especulações sobre uma sociedade subterrânea vivendo debaixo de uma das linhas do metrô de Buenos Aires, demonstra “como fantasia porosa à realidade, o empenho cortazariano de construir um mundo à parte e, ao mesmo tempo, reiterar sua relação contínua e profunda com a experiência histórica vivida”.

Os textos das duas seções no entrecho do livro são sempre instigantes, mas vale destacar aqui o ensaio que põe em diálogo as visões da América do cubano José Martí (1853-1895) e do maranhense Sousândrade (1832-1902), pensadores de outra América possível, uma América que não fosse um beco de Wall Street, mas uma “felicidade nova, fundada no registro mítico do Grande Semi, espírito ancestral” que Martí celebra — continente que é também cenário das peregrinações do Guesa, o “cronista interno da América”, que, no verso do Sousândrade, vive “nas terras do porvir”. Ainda no entrecho, outro ponto alto é a leitura minuciosa das figurações do artista em Cinzas do Norte, romance de Milton Hatoum que põe em conflito justamente as experiências do passado construídas pela arte — o passado ora como tradição, ora como propaganda, ora como território em crise. 

Diários

A seção final, “Recolha de circunstâncias: o diário como álbum”, é um ensaio de fôlego sobre Os diários de Emilio Renzi, de Ricardo Piglia. É aqui que as sugestões do subtítulo — como a ficção constrói a experiência — ganham os desdobramentos mais ricos, com Pimentel Pinto encontrando muito o que explorar no gesto de Piglia de atribuir seus diários ao alter ego Emilio Renzi; nesse gesto se deflagram as ambiguidades entre história e ficção, diário e romance, registro e montagem.

É com minúcia que o autor elabora essas ambiguidades e explicita as idas e vindas de Piglia na decupagem diarística, como na tentativa do autor argentino de superar a ordem da datação se valendo do recurso de séries temáticas, uma “forma de explicitar o esforço de edição”, segundo Pimentel Pinto, que dão ao volume “sua condição mais de álbum do que de livro”. Em debate com Roland Barthes, especialmente o de A preparação do romance, a última seção é uma esclarecedora leitura do projeto particular de Piglia/Renzi e uma bela contribuição para o debate sobre o diário em geral. 

Recolhendo textos dos últimos anos que estavam dispersos em publicações acadêmicas, Sobre literatura e história reproduz em sua montagem o tema que o perpassa — é um álbum de ensaios que, postos em conjunto, expandem seus sentidos, para proveito do leitor.

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.