Trechos,

Memórias do cinema

Em ‘Cada um por si e Deus contra todos: memórias’, Werner Herzog conta as histórias de sua carreira, uma das mais inventivas e audaciosas de nosso tempo; leia trecho

11jun2024 - 18h01
(Lena Herzog/Divulgação)

“Faz um tempo encontrei junto com alguns documentos um cartão-postal de minha mãe, datado de 6 de setembro de 1942, escrito a lápis. O selo com o retrato de Adolf Hitler já vinha impresso no papel”, escreve o cineasta alemão Werner Herzog em uma passagem da sua autobiografia Cada um por si e Deus contra todos: memórias, que chega ao Brasil pela Todavia, com tradução de Sonali Bertuol. 

O cartão citado no livro estava endereçado ao prof. dr. R. Herzog, o avô do cineasta. A mãe comunicava o nascimento de um filho que, contra a vontade do pai que estava na França como soldado, se chamaria Werner — nome que o pai do futuro cineasta detestava.

“Ele havia gerado a mim durante a sua última licença da guerra, logo após o ano-novo. Mais tarde, minha mãe descobriu que ele havia passado a primeira metade da sua licença de dez dias com uma amante e só depois apareceu em casa”, escreveu em outro trecho.

Nascido em 1942 em Munique, na Alemanha, Werner Herzog consagrou-se como cineasta reconhecido mundialmente. Vencedor de diversos prêmios e indicado ao Oscar pelo documentário Encontros no Fim do Mundo (2008), dirigiu mais de setenta filmes, como Aguirre, a cólera dos deuses  (1972), Fitzcarraldo (1982) e O homem urso (2005).

Também é autor de vários livros, entre eles Caminhar no geloA conquista do inútil e O crepúsculo do mundo, publicados pela editora portuguesa Tinta-da-China; no Brasil, O crepúsculo do mundo foi publicado pela Todavia em 2022.

Em Cada um por si e Deus contra todos: memórias, Herzog revisita personagens e expedições, temas, filmes e livros para explorar as questões fundamentais da existência por meio de fenômenos da natureza e do ser humano — características presentes em suas obras cinematográficas — até chegar na história jamais contada em suas películas: sua própria vida. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de Cada um por si e Deus contra todos: memórias

Eu nasci logo antes da virada decisiva da Segunda Guerra Mundial. No leste, a Wehrmacht [as Forças Armadas alemãs durante o nazismo] tentava tomar Stalingrado, o que em poucos meses levaria à desastrosa derrota alemã no leste, e no Norte da África o general alemão Rommel tentava avançar até El Alamein, o que resultaria num desastre semelhante para o chamado Reino de Mil Anos [o Estado nazista alemão, também chamado de Terceiro Reich]. Mais tarde na minha vida, quando eu tinha 23 anos e saí dos Estados Unidos às pressas porque tinha burlado o meu status de visto e seria deportado para a Alemanha, fugi para o México, onde tive que ganhar dinheiro de alguma forma para sobreviver. Encontrei trabalho nas charriadas, a versão mexicana do rodeio, como uma espécie de palhaço que atuava na arena montando em touros jovens, embora eu jamais tivesse sequer subido num cavalo. Eu me apresentava sob o nome artístico de El Alamein, porque ninguém conseguia pronunciar corretamente o meu nome e, para simplificar, me chamavam El Alemán, o alemão.

Eu, porém, insistia em El Alamein, pois, para deleite do público, eu era severamente castigado a cada apresentação, numa tácita alusão à derrota alemã nos desertos do Norte da África. Todos os sábados, as pessoas podiam assistir mais uma vez a essa derrota, ou, melhor dizendo, aos ferimentos a que inevitavelmente me sujeitava.

Apenas duas semanas após o meu nascimento, a capital do movimento, Munique, foi atingida por um dos primeiros ataques aéreos. Minha mãe morava na cidade, numa pequena mansarda na Elisabethstraße, 3. Treze anos depois, nos mudaríamos para uma pensão no mesmo edifício, apenas um andar abaixo, onde então conheci o colérico Klaus Kinski e seus acessos de fúria. Mas em 1942, de quando não tenho lembranças, muitos edifícios ao redor foram completamente destruídos, e aquele onde eu estava começando a minha vida também sofreu severos danos. Minha mãe me encontrou no berço coberto por uma camada espessa de cacos de vidro, telhas e entulho. Eu saíra totalmente ileso, mas minha mãe, em seu medo, pegou a mim e a meu irmão mais velho, Tilbert, e deixou a cidade fugindo para as montanhas até Sachrang, a mais remota de todas as aldeias na Baviera, localizada num vale estreito bem perto da fronteira com a Áustria. Foi onde eu cresci. Minha mãe conhecia algumas pessoas ali e através delas encontrou um lugar para ficar fora da aldeia, no Bergerhof, uma propriedade montanhesa — não na própria sede, mas na chamada Austragshäuschen, a casinha da aposentadoria, uma diminuta construção ao lado da principal, onde, de acordo com o costume bávaro, o velho casal de agricultores recebia o necessário para viver, depois de transferir a propriedade para o filho mais velho. Morávamos no térreo, em cima de nós estava alojada uma família refugiada de Hamelin, no norte da Alemanha.

Sobre meu pai e sua família falarei mais adiante. Antes, porém, vou me remeter à família de minha mãe, os Stipetić, que eram provenientes da Croácia, da cidade de Split, que originalmente pertencia à Dalmácia, e depois se mudaram para Zagreb, numa época em que a atual capital ainda se chamava Agram.

Ali, no século XIX, meus antepassados foram altos funcionários

da administração pública e das Forças Armadas, e meu avô, um

major do estado-maior dos Habsburgo, que no entanto nunca conheci, pois ele morreu quando minha mãe tinha apenas dezoito anos. Segundo os relatos dela, esse meu avô tinha uma queda pelo humor surreal, pelo absurdo. Ele passou dois anos estacionado em Uscupe, atual Escópia, e durante todo esse tempo usava sempre uma luva só. Mais tarde, num café em Viena, ele tirou suas luvas de oficial diante do garçom e, para espanto geral, tinha uma das mãos profundamente bronzeada, enquanto a outra era branca como a neve. Como se em rebelde sublevação, ele jogava bolas de gude com meninos de rua em uniforme de gala e se destacava com feitos bizarros e nem um pouco militares. Essa parte croata da minha família era nacionalista e queria a independência da Croácia perante a monarquia dual austro-húngara. Tais pretensões mais tarde desembocaram no fascismo. Com o apoio de Hitler, um poglavnik, um führer [“líder”, título usado com variações em todas as estruturas hierárquicas nazistas] assumiu o poder na Croácia por três anos, e o pesadelo só acabou com o fim da guerra.

Minha avó era uma burguesa de Viena, com quem minha mãe nunca teve um relacionamento próximo, porque durante toda a sua vida nunca conseguiu se interessar pela burguesia. Eu só conheci essa minha avó de poucas visitas, e a única memória vívida que tenho dela é de quando a visitei com minha mãe num lar de idosos, já perto da sua morte.

Minha avó estava confusa e me pediu um copo d’água, que enchi para ela na pia. “Uma delícia”, ela repetia a toda hora, tomava pequenos goles, e não parava de agradecer por tão extraordinária iguaria. Lotte, a irmã mais nova da minha mãe, puxou a essa avó austríaca e, desse modo, as duas irmãs não tinham muita intimidade. Lotte era uma mulher absolutamente afetuosa, com dois filhos, um menino e uma menina. O menino, meu primo, alguns anos mais velho do que eu, com quem eu me dava bem, teve um papel importante num momento dramático da minha vida, quando, aos 23 anos, voltei dos Estados Unidos para a Alemanha pela primeira vez. O meu primeiro grande amor ficara em Munique, mas já então nosso relacionamento era problemático, porque naqueles anos eu estava tendo um desenvolvimento muito rápido, estranho para ela.

Eu a conhecera quando trabalhava como soldador no turno da noite na fábrica de seus pais, uma pequena metalúrgica. Eu já começara com esse trabalho durante o Gymnasium [modalidade de ensino secundário na Alemanha, voltada para o ingresso numa universidade]  porque precisava de dinheiro para a produção dos meus primeiros filmes. Talvez por insegurança, porque eu não lhe propusera um noivado quando parti, ela se casou com o meu primo durante a minha estadia nos Estados Unidos, sem me contar a respeito. Quando voltei, ela tinha acabado de retornar da lua de mel e mesmo assim fugiu comigo por alguns dias, porém nem ela nem eu estávamos determinados a reverter os acontecimentos. Como ela não queria voltar direto para o marido, meu primo, levei-a para a casa dos pais dela, que estavam à minha espera com os seus quatro filhos. Talvez fossem apenas três, minha memória os eleva a uma superioridade absoluta. Eu não queria simplesmente despejar minha amada na porta da casa de seus pais e estava disposto a me apresentar.

Seus irmãos, brutamontes bávaros musculosos, todos jogadores de hóquei, haviam proferido a ameaça de me matar na primeira vez que eu aparecesse. Os pais, com razão, fizeram ameaças semelhantes. Mas não tive medo e entrei na casa.

Com o meu primo, eu tivera um estranho encontro no dia anterior, a minha amada entre nós dois sendo puxada para lá e para cá. Ainda hoje tenho certeza de que não partimos para as vias de fato, não encostamos um dedo um no outro, mas apesar disso fiquei depois com a maçã do rosto inchada, como se tivesse levado uma forte pancada. Só quatro décadas mais tarde tive um breve encontro com ele num aniversário de família, porém nunca voltamos a nos aproximar, embora ambos quiséssemos isso.

Minha namorada até essa minha primeira viagem aos Estados Unidos depois esteve como que sob uma maldição, sempre atraindo a má sorte. Ela teve dois filhos com o meu primo, mas o casamento se desmantelou. Relacionamentos posteriores com outros homens também terminaram de forma infeliz. Por fim, ela se jogou da ponte de Großhesselohe para a morte. Em fotos antigas de nós dois, parecemos completamente despreocupados, imbuídos de uma leveza atrás da qual não se podia supor a fatalidade que sobreviria. Ainda hoje me aflige que, na minha temporada nos Estados Unidos, eu a tenha abandonado de alguma forma, sem ter tido a coragem de ser franco com ela. Na minha vida, muitas vezes as mulheres estiveram associadas a dramas, o que provavelmente vem do fato de que sentimentos profundos sempre estiveram em jogo. Mas nunca entendi por completo o grandioso mistério e a agonia do amor. Eu simplesmente quase não tive relacionamentos superficiais. O demônio do amor sempre me impeliu, e sem mulheres minha vida teria sido um nada. Às vezes imagino um mundo onde não haja mulheres, apenas homens.

Tal mundo seria insuportável, miserável, cambaleante entre

um vazio e outro. Mas também tive muita sorte, talvez mais

do que mereci. Minha família pelo lado paterno era formada por acadêmicos.

Suas raízes estão na Suábia, mas um ramo da família era de huguenotes com o nome de Neufville, provavelmente protestantes franceses que se refugiaram da perseguição em Frankfurt no fim do século xvii. Minha extensa árvore genealógica nunca me interessou em particular, mas me lembro de meu pai ter feito pesquisas, segundo as quais seríamos parentes do matemático Gauß, bem como de várias outras celebridades históricas e, por fim, até mesmo de Carlos Magno, mas de um ponto de vista estatístico é provável que isso seja válido para a maioria dos alemães e dos franceses. Na verdade, para o meu pai tratava-se mais de nos conferir uma importância que todavia não tínhamos. Um dos meus meios-irmãos, Ortwin, que quase não conheço e que viajou pelo mundo e trabalhou para uma lista telefônica classificada meio fraudulenta, foi inserido por meu pai na árvore genealógica como um viajante pesquisador, como se fosse o caso de um novo Alexander von Humboldt.

O mais velho desses dois meios-irmãos, Markwart, que conheço um pouco melhor — embora ambos tenham ficado distantes e marcados para toda a vida, pois, ao contrário de mim, tiveram a infelicidade de crescer junto ao meu pai —, é o único de todos os irmãos que concluiu um curso universitário. Ele estudou teologia católica e escreveu a sua tese de doutorado sobre interpretações religiosas e filosóficas a respeito da suposta descida de Cristo ao inferno.

Ella, minha avó pelo lado paterno, uma mulher alta e imponente que, tão só por sua força de caráter, assumiu cada vez mais o papel de chefe de todo o clã familiar, me proporcionou uma visão profunda da história de minha família, ou melhor, uma espécie de visão em túnel, um buraco perfurado em profundidade na vida de duas pessoas apenas, minha própria avó e a avó dela, minha tataravó. Somente essa verdadeira sondagem das profundezas da minha árvore genealógica é que sempre me interessou. Ela própria, minha tataravó, escreveu suas memórias:

“Meus filhos e netos”, e mais abaixo: “Pois é, parece que vocês estão curiosos e querem saber como o vovô conquistou a vovó”. Embaixo: “Natal de 1891”.