As Cidades e As Coisas, Desigualdades,

Calamidade aguda

Em análise no STF, ação segue tendência global e reivindica o reconhecimento da inconstitucionalidade da situação de rua

01maio2024 - 04h06 • 13maio2024 - 15h28
Morador de rua no centro de São Paulo — a cidade abriga um quarto das pessoas do país nessa situação (Reprodução)

Por muito tempo, a população em situação de rua foi associada a países tidos como pobres ou subdesenvolvidos. As últimas duas décadas mostram que isso não é mais verdade. Economias consideradas ricas ou desenvolvidas estão diante de uma situação tão ou mais grave do que aquela vista em nações historicamente marcadas pela pobreza e desigualdade. Estimativas indicam que, ao redor do mundo, aproximadamente 1,8 bilhão de pessoas não têm acesso à moradia adequada, sendo que 150 milhões vivem em situação de rua. Nos últimos anos, cerca de um terço dos países–membros da Organização Para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) testemunhou aumento considerável do número de indivíduos nessas condições em seu território.

Esse movimento é acompanhado pelo aumento da pressão por respostas imediatas de governos para enfrentar esse quadro de calamidade social aguda. Políticas como o housing first (moradia primeiro) e mesmo projetos de renda mínima passam a pautar o debate público. Entre diferentes países, no entanto, há uma resposta institucional estatal muito mais frequente, mas consideravelmente menos discutida: tribunais constitucionais são agentes que contribuem para a formulação de políticas públicas para pessoas em situação de rua.

Recentemente, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal se tornou palco de uma dessas demandas. A Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) apresentaram uma ação para proteção dos direitos da população em situação de rua e reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional”, exigindo também a estruturação de medidas ativas direcionadas a esse grupo. Estamos falando da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 976 ou, simplesmente, ADPF 976.

O maior ativismo do Judiciário brasileiro, especialmente em pautas de cunho social, é tido como uma jabuticaba. Isso está longe de ser verdade — ao menos para o caso da população em situação de rua. Cortes constitucionais foram decisivas ao redor do mundo no direcionamento dessa questão. Entre 27 países, incluindo Estados Unidos, África do Sul, Alemanha, Colômbia, Irlanda e Índia, há ao menos sessenta decisões em que tribunais mobilizaram os direitos constitucionais da população em situação de rua — em muitos casos para criar políticas de habitação, renda e saúde.

A tendência global dialoga diretamente com o crescimento desse grupo tanto em nações do sul como do norte global. É comum que tribunais se convertam em último recurso diante da inação das demais instâncias de governo. Cortes atuam em esferas distintas, analisando leis que criminalizam essa população, discussões relacionadas à ocupação do espaço público e até mesmo exigências de criação de programas sociais específicos.

A diversidade de disputas também leva sentenças emitidas por juízes a assumir funções diversas. Algumas desempenham ação protetiva, resguardando direitos constitucionais das pessoas em situação de rua contra violações cometidas pelo próprio Estado ou por agentes privados. Tribunais também podem adotar uma abordagem propositiva, como catalisadores para formulação ou adequação de políticas públicas. E há situações em que cortes adotam uma função comunicativa, ao explicitar, ao Estado e à sociedade, a natureza constitucional da proteção dos direitos desse grupo.

Apesar da tendência global, a atuação dos tribunais constitucionais de países do sul e do norte global é distinta. Em termos quantitativos, cortes em continentes como América Latina e África tendem a empregar uma gama mais ampla de estratégias e reconhecer uma diversidade maior de direitos constitucionais das pessoas em situação de rua, especialmente de cunho social e econômico. Isso também resulta em decisões usualmente mais favoráveis às ações apresentadas em defesa do grupo — 93,9% dos casos analisados, ante 55,6% de decisões favoráveis em continentes como América do Norte e Europa.

No sul global há maior envolvimento direto das cortes na formulação de políticas públicas, em comparação a uma abordagem predominantemente protetiva no norte. Um exemplo disso é uma sentença da corte colombiana. Além de obrigar o poder público a fornecer absorventes às mulheres em situação de rua diretamente envolvidas na ação, o tribunal determinou que os órgãos públicos locais desenvolvessem uma política abrangente para garantir o acesso a todos os indivíduos que vivem nas ruas.

Realidades materiais distintas entre norte e sul são uma das possíveis explicações para essa clivagem. Enquanto países do norte global geralmente dispõem de programas sociais destinados à população em situação de rua, no sul é mais frequente que, na ausência dessas medidas, tribunais tenham que intervir no processo de formulação de políticas públicas.

A atuação do Supremo na ADPF 976 é mais um capítulo na história da tendência global. Mas também é única, marcada pelo escopo amplo da intervenção sob debate. Diferentemente de outras demandas constitucionais, movidas por disputas concretas específicas — como discussões sobre leis que vedam a mendicância ou a ocupação de espaços públicos —, a ação reivindica, de maneira transversal, o reconhecimento da inconstitucionalidade da situação de rua e da inação de outras instâncias do governo. Isso confere ao STF uma abertura singular para adoção de estratégias para resguardar os direitos constitucionais desse grupo vulnerável. Algumas dessas estratégias já foram mobilizadas na decisão liminar de julho de 2023, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

Primeiro, ao proibir políticas públicas discriminatórias — como o recolhimento de bens e a arquitetura hostil —, o tribunal pode assumir papel relevante para reprimir violações cotidianas diretas e indiretas. Segundo, com a determinação da aplicação imediata da Política Nacional Para a População em Situação de Rua, de 2009, é capaz de instar mais proatividade do Executivo e Legislativo. Por fim, o próprio reconhecimento do estado de coisas inconstitucional veicula uma mensagem à sociedade civil e ao Estado de que não há como cumprir a Constituição de 1988 deixando essa fatia da população à margem. A experiência internacional de outras cortes dá ao STF ancoragem para levar adiante a oportunidade única de reparar violações, reconhecer e efetivar direitos.

Este texto foi elaborado a partir dos achados do estudo “A Litigância Constitucional dos Direitos da População em Situação de Rua: Uma Contribuição para a ADPF 976”, produzido pelo Grupo de Estudos em Direito, Terceiro Setor e Empreendedorismo Social (G3S) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, coordenado pelos autores.

Quem escreveu esse texto

Carlos Portugal Gouvêa

É professor de direito da USP e sócio fundador do PGLaw.

Arthur Sadami

É pesquisador na FGV Direito e coordenador do G3S da USP.

Lucas Víspico

É pesquisador da FGV Direito e coordenador do G3S da USP.