Frei Luis de Sousa
Frei Luis de Sousa
Frei Luis de Sousa
SOUSA
CENA I do ATO I
■ Estrutura do monólogo:
■ 1.ª parte (do início da fala até “… pode-se morrer.”): D. Madalena abandona a leitura d’Os
Lusíadas e mostra-se enleada na ideia de felicidade que bebeu no texto.
■ 2.ª parte (de “Mas eu…” até ao final do monólogo): D. Madalena reflete sobre a sua
situação e revela o seu estado de espírito, marcado pela angústia, pelo medo e “contínuos
terrores”. O que marca a divisão entre os dois momentos da cena é a conjunção
coordenativa adversativa «mas», que possui o valor de oposição, contraste.
■ Estado de carência de D. Madalena:
melancólica (“um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele”; “repetindo maquinalmente e devagar”),
solitária (“só”), infeliz;
sonhadora: anseia experimentar a felicidade, nem que seja por pouco tempo;
sofredora e infeliz ao constatar a ausência de felicidade na sua vida, devido ao medo e aos constantes terrores que
a atormentam;
insegura, preocupada e angustiada, sente-se destinada à morte;
frágil, sensível e sentimental, bem ao gosto romântico;
emocionalmente instável
o seu nome evoca a figura bíblica da “pecadora” (prostituta) que depois foi Santa Maria Madalena. As duas figuras
– a imaginada e a real – ficam ligadas, sobrepostas, e o caminho ascensional da personagem bíblica, do pecado à
redenção, através da penitência, traça a linha a percorrer por D. Madalena: pecado → remorso → penitência →
ascese → redenção
Além destes traços psicológicos, trata-se de uma mulher culta e letrada (está a ler, neste caso Os Lusíadas),
pertencente à aristocracia.
■ Recursos expressivos:
Pontuação: revela o estado emocional de D. Madalena, refletindo as suas hesitações e angústias.
Enumeração, gradação crescente, realçada pela anteposição dos adjetivos “contínuos” e “imensa”, interrupções,
pausas e repetições: contribuem para o adensar do estado de espírito da personagem, marcado pela melancolia,
angústia, medo, etc.
A construção anafórica: traduzem igualmente o estado de espírito da personagem.
A antítese: marca o contraste entre o estado de felicidade que seria de esperar que vivesse e os contínuos terrores que a
assolam.
Nomes abstratos: traduzem os sentimentos que marcam a personagem.
Caráter circular: dada a semelhança que existe entre o seu início, onde encontramos Madalena em meditação, o que remete
para uma total prostração da personagem, e o seu final, em que volta a descair em profunda meditação. Estes dois momentos
foram interrompidos pela reflexão, pela lamentação sobre a sua própria existência.
■ Funcionalidade da cena:
apresenta informações sobre:
os antecedentes da ação
as personagens, seus problemas e estado de espírito
a situação em que se encontram
a época em que decorre a ação
■ Tempo:
Ação: 28 de julho de 1599, fim da tarde de uma sexta-feira
Narração cronológica dos acontecimentos ocorridos antes do início da peça:
- casamento de D. Madalena com D. João de Portugal antes de 1578;
- desaparecimento deste em África, na batalha de Alcácer Quibir, a 4 de agosto de 1578 – sexta-feira – D. Madalena
tinha 17 anos;
- D. Madalena procurou D. João durante 7 anos (de 1578 a 1585), não se poupando a esforços;
- casou com Manuel de Sousa há 14 anos – 1586;
Histórico:
- a existência de peste em Lisboa e
- a discórdia entre portugueses e castelhanos, de acordo com as palavras de D. Madalena (última fala da cena), o que
nos remete para o domínio filipino;
- as várias referências à batalha de Alcácer Quibir;
- a alusão de Telmo à Reforma protestante, quando menciona a tradução da Bíblia para as línguas dos países onde se
implantou.
■ Características das tragédia clássica da cena:
▪ A presença do Destino, por quem D. Madalena se sente perseguida/vítima.
▪ Hybris de D. Madalena: nunca amou D. João.
▪ Pathos: os terrores de D. Madalena.
▪ Os agouros e presságios de Telmo.
▪ A presença do coro nos agouros, comentários e prenúncios de desgraças próximas de Telmo.
AGON:
- de D. Madalena:
. interior, de consciência;
. contínuo;
. crescente;
. com Telmo: apesar de, durante os 7 anos de «viuvez», lhe ter obedecido como a um pai, D. Madalena não segue o
conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado na carta profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer
Quibir;
. com D. João, presente nas conversas com Telmo, testemunha da «desobediência» de D. Madalena, conversas essas
cheias de reticências, de subentendidos, de duplos sentidos, de alusões, de agouros, de «futuros», de pressentimentos de
desgraças iminentes;
- de Telmo:
. de consciência: começa a ser evidente o conflito de consciência entre o desejo do regresso de D. João de Portugal e o
amor a Maria;
. com D. Madalena:
- desaprova o seu casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética de D. João, escrita na
madrugada da batalha;
- e na superstição (maravilhoso popular) de que, se ele voltasse e aparecesse a D. Madalena, não se iria embora sem lhe
aparecer também (o que não se tinha verificado);
- daí os “ciúmes”, as alusões, os agouros, os “futuros”;
- o conflito de Telmo com D. Madalena fica sempre sem solução;
. com Maria:
- a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo (“Digna de nascer em melhor estado”);
- o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar e ele lhe quer como um pai;
. com Manuel de Sousa:
- apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João de Portugal;
- por conta deste tem “ciúmes”
- e uma certa aversão, por o considerar um intruso.
▪ O caráter ominoso, carregado de mistério e de fatalismo, conferido ao tempo pela repetição de
determinados números (3, 7, 14, 21, 13) e pela sexta-feira:
. D. Madalena procurou D. João durante 7 anos;
. D. Madalena e D. Manuel de Sousa estão casados há 14 anos (2X7);
. a batalha (e o consequente desaparecimento de D. Sebastião e D. João) ocorreu há 21 anos (3X7);
- 3:
. perfeição;
. 3 fases da existência;
- 7:
. tragédia;
. conclusão de um ciclo:
- 21:
. completa a tríade do 7, indicando o fechar de um ciclo e o iniciar de outro ainda desconhecido, mais concretamente de
três (7: o ciclo da busca de novas sobre D. João; 14: o tempo de vida em comum de Madalena e Manuel; 21: o encerrar
de todos os ciclos e o início de um novo).
CENA III do ATO I
■ Características da tragédia:
▪ Agón de D. Madalena:
- com Maria: para esta, há um enigma que nem a mãe, nem o pai, nem mesmo Telmo se prontificam a decifrar; são
segredos e mistérios intuitivamente pressentidos que não consegue desvendar:
. a razão por que nem a mãe nem o pai, apesar do seu patriotismo (“… que ele não é por D. Filipe, não é, não?”)
acreditavam no regresso de D. Sebastião;
. a razão por que, quando em tal se falava, o pai mudava de semblante, e a mãe se afligia e até chorava;
- com D. João de Portugal, nas reações de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à crença
popular da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião – cena III.
▪ Agón de Maria:
- com D. Madalena:
. a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (cena III) – D. Madalena não acredita, nem lhe convém
acreditar nem uma coisa nem outra. Maria acredita firmemente;
. desconfia que a mãe oculta alguma coisa muito importante; por isso, está sempre atenta, a observar os sobressaltos,
a ansiedade da mãe a seu respeito; por isso, lê nas palavras, nas ações e nos gestos da mãe (e do pai), à procura de
indícios, de respostas para a sua curiosidade (cena IV);
. não pode cumprir as esperanças nela depositadas (cena IV);
. por isso, desejaria ter um irmão (cena IV);
- com Manuel de Sousa:
. duvida do patriotismo do pai (cena III), por causa das atitudes que ele toma, ao ouvir falar de D. Sebastião: “Ó minha
mãe, pois ele não é por D. Filipe, não é, não?”;
. a hipótese não tem fundamento.
■ NOTA:
Este conflito de Maria com os pais, pois ambos não aceitam ouvir falar do regresso de D. Sebastião, tem razões óbvias:
se o monarca não morreu, também não terá morrido D. João de Portugal; o segundo casamento de D. Madalena seria
nulo.
- com D. João de Portugal (antes da mudança de palácio – cena IV):
. pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa ser feliz;
. por isso, procura uma resposta, com os meios ao seu dispor: “… leio… nas estrelas do céu também, e sei cousas…”; “…
não quero sonhar, que me faz ver coisas… lindas às vezes, mas tão extraordinárias e confusas”.
■ NOTA:
É da essência do drama provocar situações e sentimentos incompatíveis no interior das personagens:
. Maria não consegue explicar a perturbação dos pais;
. D. Madalena não pode revelar a causa das suas preocupações, o que se passa no foro da sua consciência.
▪ D. Madalena parece caída nas garras de um destino inexorável: a última fala de Maria da cena IV lança nela a dúvida
se teria valido a pena ter casado uma segunda vez.
▪ A constatação de algo misterioso que paira sobre a ação e as personagens.
Presságios:
. as flores murchas e os sonhos deixam antever a tragédia com que encerra a obra: a morte progressiva de Maria (ela
colheu papoilas para pôr debaixo do travesseiro, por estas estarem associadas ao sono e ao sonho, acreditando que,
assim, terá uma noite descansada; no entanto, as flores, que representam, entre outras coisas, a beleza efémera,
murcharam rapidamente, indiciando a proximidade da morte;
. a contemplação do retrato do pai remete para a intuição do malogro do casamento dos pais.
■ Características românticas:
▪ O sebastianismo de Telmo e Maria.
▪ O nacionalismo e patriotismo de Maria, visível na resistência aos governadores castelhanos.
▪ Linguagem: exclamações, interrogações, reticências, frases curtas, adequação ao íntimo e ao estado de espírito das
personagens, etc.
▪ Caracterização de Maria:
. o modelo da mulher-anjo;
. os ideais de liberdade;
. exaltação de valores de feição popular;
. atração pelo mistério;
. intuição;
. tuberculose, a doença dos românticos.
▪ Crenças: agouros, superstições, sonhos, visões de Madalena, Telmo e Maria (cenas II e IV).
CENA V do ATO I
b) D. Madalena
D. Madalena reage à notícia de forma mais comedida, mas não deixa de se mostrar indignada com a situação, que
considera uma desconsideração pelas senhoras da sua casa.
Por outro lado, perante o sebastianismo da filha, que defende o regresso de D. Sebastião, no qual acredita convictamente,
fundamentando a sua posição com a crença do povo, mostra a sua descrença, apoiando-se em elementos mais concretos,
isto é, nos relatos dos tios Frei Jorge e Lopo de Sousa, e defende que as crenças do povo são ilusões.
CENA VI do ATO I
■ Nesta cena, de extensão muito reduzida, Miranda anuncia a chegada de Manuel de Sousa.
■ Por outro lado, nela é revelada a doença de Maria, que manifesta mais um sintoma de
tuberculose, a acuidade auditiva e visual: “É extraordinária esta criança; vê e ouve em tais
distâncias…”. Os tuberculosos possuem uma acuidade especial ao nível da visão e da
audição.
■ Papel de Frei Jorge - Nesta cena, Frei Jorge é o mensageiro portador de notícias: é por ele
que D. Madalena sabe que os governadores que representam o rei espanhol se pretendem
alojar no palácio de Manuel de Sousa. Ocasionalmente, Frei Jorge cumpre a função/o papel
semelhante à do Coro da tragédia clássica, enquanto conselheiro (revelando moderação e
sensatez), portador de notícias, veículo de expressão de temores e sinais (indícios) do que o
futuro poderá trazer.
■ Elementos trágicos da cena:
▪ Agón de Maria:
- com o pai: a hipótese de falta de patriotismo do pai aventada na cena 3 não tem fundamento;
- com os governantes de Lisboa (I, cena 5):
1. a razão de Maria é simples e sábia: os governantes ilegítimos, no momento das desgraças provocadas pela peste,
fogem do meio do povo; o rei natural, «pai comum de todos», fica junto do seu povo, «onde a miséria fosse mais e
o perigo maior, para atender com remédio e amparo aos necessitados». E acrescenta: «Eu entendia, se governasse,
que o serviço de Deus e do rei me mandava ficar…»;
2. por isso, no momento em que o pai resolve lutar, à sua maneira, contra os tiranos, também ela resiste à tirania e
lança a ideia de lutar e organizar a defesa, para que os governadores não entrem no seu palácio: «Fechamos-lhes
as portas. Metemos a nossa gente dentro; o terço de meu pai tem mais de seiscentos homens, e defendemo-nos.
Pois não é uma tirania?... E há de ser bonito! Tomara eu ver seja o que for que se pareça com uma batalha».
• Presságio/indício: na sua última fala, Frei Jorge expressa a sua preocupação com a saúde de Maria, podendo
presumir-se que ela não irá resistir à tuberculose.
CENA VII do ATO I
■ Assunto: chegada de Manuel de Sousa com a decisão de partir, com a família, para o palácio
de D. João, em virtude de os governadores castelhanos quererem hospedar-se no seu
palácio.
■ Estrutura interna da cena:
1ª parte - Chegada de Manuel de Sousa decidido a abandonar o seu palácio.
A chegada de Manuel de Sousa não seria, só por si, um acontecimento imprevisto, se não
fossem certas circunstâncias presentes (as desta cena até ao final do ato) e passadas, como, por
exemplo, a sua demora em Lisboa para além do que prometera a D. Madalena: «prometeu de
vir antes de véspera e não veio; que é quási noite, e que já não estou contente com a tardança”
(I, 3). A hora de véspera correspondia às seis horas da tarde; “quási noite”, em agosto, seria
pelas nove. D. Madalena presume a ocorrência de impedimentos graves, para Manuel de Sousa
faltar à palavra dada. Manda, por isso, chamar Frei Jorge, o qual a põe ao corrente do que lhe
“mandaram dizer em muito segredo de Lisboa”: os governadores, para fugirem à peste,
resolveram vir para Almada e escolheram o palácio de Manuel de Sousa para “aposentadoria”.
• Caracterização de Manuel de Sousa:
. nobre;
. agitado e nervoso: mover-se em várias direções e dá ordens a diferentes personagens;
. autoritário: “Façam o que lhes disse”;
. decidido e determinado: “nós forçosamente havemos de sair antes de eles entrarem”;
. caráter inflexível;
. precipitado;
. audaz e corajoso;
. culto, de acordo com o seu estatuto social: o uso do latim «mea culpa» e «pecavi»;
. belo e nobre, qualidades que, aliadas à inteligência e à cultura universitária, o tornam invejado pelos poderosos.
Manuel de Sousa informa as outras personagens da sua decisão de saírem daquela casa, naquela mesma noite, antes da
chegada dos governadores. Tenso e inquieto, mostra-se revoltado e indignado porque os governadores ao serviço de
Espanha querem hospedar-se no seu palácio e ele, como patriota, opõe-se a esse propósito. A resolução imperativa e
irremediável está presente nesta fala: «É preciso sair desta casa, Madalena”. Ora, a expressão «é preciso» marca a
fatalidade, combinada com a irreversível imediatez do advérbio: «sair já».
Por outro lado, a casa é o edifício, mas também o símbolo da família, a própria família. Parece que o Destino fala pela
boca de Manuel de Sousa, que lhe vai pegar na palavra, a ele que pensa agir apenas pelo patriotismo e na qualidade de
senhor da sua própria casa, para o empurrar, numa autêntica reviravolta da Fortuna, para uma situação equívoca, em
casa alheia.
▪ Tempo
Partindo das informações contidas na cena, podemos concluir que a ação decorre pelas oito horas do dia 28 de julho de
1599, de noite: “É noite fechada.”; “são oito horas”. A mudança do «fim da tarde» para «noite fechada» está de acordo
com o que vai acontecer, quer na família, quer no palácio; neste, permite um final espetacular e simbólico.
2ª parte - Reações das personagens à decisão de Manuel de Sousa.
. Madalena:
- inquieta;
- receosa;
- preocupada;
- pressente desgraças;
- procura chamar o marido à razão e demovê-lo, temendo a vingança dos governadores.
. Maria:
- orgulhosa;
- contente;
- vibrante;
- apoia totalmente o pai.
. Frei Jorge:
- mediador de conflito (concordando com D. Madalena, aconselha prudência; concordando com Manuel, aceita a
mudança de morada;
- assume a função de coro, aconselhando as personagens.
■ Assunto: diálogo entre Madalena e Manuel de Sousa, durante o qual aquela o tenta
demover da decisão de se mudarem para o palácio de D. João e este se mostra inabalável.
■ Caracterização das personagens:
■ ▪ Manuel de Sousa:
- sempre respeitou D. João de Portugal;
- não teme o passado;
- sereno e decidido (observe-se a sua linguagem);
- forte;
- patriota: “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.” (pleonasmo);
- amor à pátria e à liberdade;
- desrespeito pelos argumentos da esposa, que considera “caprichos”, “agouros”, “vãs
quimeras de crianças”, preferindo magoá-la a esquecer os seus princípios;
- inabalável e firme nas suas decisões;
- crente em Deus: “Não há senão o temor a Deus”;
- ironia das repetições dos pronomes num discurso duplo para o espectador: “E o presente, esse é meu,
meu só, todo meu…”;
- é o modelo do herói clássico:
. age segundo a razão;
. orienta-se por valores aceites como universais:
- a honra cavalheiresca;
- o culto do dever;
- a lealdade;
- o patriotismo;
- a liberdade.
▪ D. Madalena:
- obediente ao marido: “eu nunca me opus ao teu querer, nunca soube que coisa era ter outra vontade diferente da
tua; estou pronta a obedecer-te sempre, cegamente, em tudo”;
- amargurada e angustiada;
- aterrorizada por constantes agouros e pelo passado: “… que vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me
está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que
nos vai separar para sempre…”;
- gradação crescente e hipérbole dos seus temores – menciona todas as preocupações e profetiza mesmo a morte:
“(…) a violência, o constrangimento de alma, o terror (…) viu ser infeliz, que vou morrer (…) sem que todas as
calamidades do mundo venham sobre nós.”;
- convicta, até ao final, de que consegue demover o marido;
- é o modelo da heroína romântica:
. vive obcecada pelos fantasmas do passado;
. age pelo coração, pelo sentimento.
Concretiza-se nestas cenas a ideia de que, em Madalena, a contradição entre a felicidade aparente e a desgraça íntima revela
uma consciência moral atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente de D. João, mordida pelo remorso
proveniente da consciência de pecado. Motivações de ordem psicológica e moral profundamente enraizadas na psicologia desta
personagem, movimentada dentro do quadro de uma sociedade cristã, onde o matrimónio é um vínculo indissociável que só a
morte poderá quebrar, conduzem a reações e ao comportamento desta figura, cheia de ambiguidades, tão rica, tão modelada,
“mulher e muito mulher”, forte no amor, na paixão por Manuel de Sousa, fraca perante os agouros, os presságios, os indícios de
“uma grande desgraça” iminente, terna, lutando até ao fim pela felicidade, procurada mas nunca alcançada plenamente, rendida
contra vontade perante o irremediável Destino que a destrói, liquidando todos os sonhos de felicidade neste Mundo, junto do
homem que amou. As reticências são uma abertura pela qual os espectadores observam o seu íntimo conflito de consciência.
■ NOTAS:
1- Existe um contraste nesta cena entre a linguagem serena, decidida, de Manuel de Sousa e a de D. Madalena, hesitante,
titubeante, emotiva e excitada. Estão frente a frente dois mundos: o universal e o individual; estão frente a frente dois tempos: o
presente e o passado; um terá de vencer. Ela tem um discurso sentimental, marcado por emoções violentas. De acordo com a
época em que vive, é submissa ao marido, apelando ao seu coração para o dissuadir, mas ele tem um discurso racional,
mostrando-se forte e seguro, impondo a sua decisão, baseado em argumentos sólidos.
2- As duas personagens vivem, pois, um conflito dominado pelo tempo. Neste campo, a palavra caprichos tem um significado
diferente para ambos. Para Manuel de Sousa, trata-se de uma teimosia incompreensível; para D. Madalena, trata-se de uma
questão de vida ou de morte, um dilema fatal. Um minimiza a situação, o outro empola-a.
3- Manuel de Sousa desvaloriza os argumentos da esposa. De facto, D. Madalena argumenta com base na emoção, condicionada
pelo medo e pelo terror de que a figura de D. João interfira na felicidade da família. Os seus argumentos são óbvios: pressente
que não vai ser feliz e pressente que irá encontrar, na outra casa, a sombra despeitosa de D. João. O marido considera que esta
argumentação não é razoável, tratando-se de um mero capricho, causado pela “fraqueza de acreditar em agouros”. Pelo
contrário, ele mostra ser racional e pragmático. No final, chama D. Madalena à razão e lembra-lhe a sua condição e as
responsabilidades que tem, o que implica que tenha um comportamento digno e firme, visto que a situação assim o exige.
4- Os argumentos de Manuel de Sousa para contraditar a esposa e afastar os seus receios são os seguintes:
- não há outro lugar para onde ir, de repente;
- não lhe custa viver onde viveu D. João com D. Madalena;
- ela não deve acreditar em agouros; a única crença que deve ter é em Deus;
- nada tem a temer porque nunca pecou;
- não deve recear a perseguição por parte da alma de D. João.
5- A afirmação de Manuel de Sousa de que “não há espectros que nos possam aparecer senão os das más
ações que fazemos” significa que apenas se devem temer os erros que se cometem conscientemente e
mostra que desconhece a motivação profunda de D. Madalena para recusar mudar para o palácio de D. João.
6- A alternância de tratamento de D. Madalena (senhora / tu) explica-se assim: no primeiro caso, realça-se a
sua condição social – Manuel de Sousa pretende mostrar severidade para chamar a sua mulher à razão e aos
seus deveres de membro da aristocracia; no segundo, a sua situação de esposa – ele manifesta ternura e
compaixão pelo sofrimento da mulher (“Minha querida”).
7- Na sua fala final, Manuel de Sousa reitera a sua intenção de dar uma lição aos tiranos e um exemplo ao
povo, afirmando que se tratará de algo que os há de «alumiar». Este verbo pode ser interpretado de duas
formas: por um lado, com o sentido de “dar luz”, revelando a decisão de incendiar o próprio palácio (cena XI);
por outro, com o sentido conotativo de “esclarecer”, como um incentivo à oposição e à recusa da submissão
e tirania.
8- A frase “Há de saber-se no
mundo que ainda há um
português em Portugal” significa
que nem todos os portugueses
aceitaram o domínio filipino e
explica a insurreição de Manuel de
Sousa, bem como o seu gesto de
rebeldia e desobediência.
9- As figuras dos esposos
Manuel Madalena apresentam traços psicológicos
que se opõem claramente:
- Razão - Coração
- Honra - Temores e
- Fidelidade ás agouros
suas ideias permanentes
- Firmeza -
Pressentiment
- Patriotismo os fatais
- Luta pela - Fragilidade
liberdade e - Descontrolo
pela emocional
independência
■ Elementos trágicos (cenas 7 e 8):
▪ Agón de D. Madalena:
- com Manuel de Sousa:
Manuel de Sousa, no regresso de Lisboa, resolve incendiar o seu palácio, para não hospedar os governadores Luís
de Moura, o conde do Sabugal, o conde de Santa Cruz, “que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os
seus naturais em nome dum rei estrangeiro”. O arcebispo já estava alojado no convento dos domínicos de
Almada.
Tomando esta atitude dos governadores como opressão, prepara-se para dar “uma lição aos nossos tiranos que
lhes há de lembrar,… um exemplo a este povo que os há de alumiar”, numa frase ambígua e profética. Para não
“sofrer esta afronta”, diz, “é preciso sair desta casa”.
D. Madalena interroga-se, aterrada, diante do inevitável (voltar de novo para o palácio onde vivera com D. João),
acerca do novo local de habitação. É a partir desta premente necessidade de mudar de residência que se
manifesta o conflito de D. Madalena com Manuel de Sousa. As razões de D. Madalena são óbvias:
1- “a violência, o constrangimento de alma, o terror com que eu penso em ter de entrar naquela casa”;
2- “parece-me que é voltar ao poder dele, que é tirar-me dos teus braços, que o vou encontrar ali”;
3- “vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que
a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre”;
4- “sei decerto que vou morrer naquela casa funesta, que não estou ali três dias, três horas, sem que todas as
calamidades do mundo venham sobre nós”.Por fim, um pedido ansioso:
5- “Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor to peço, pela nossa filha… vamos seja para
onde for, para a cabana de algum pobre pescador desses contornos, mas para ali não, oh, não!...”.
Ouvem-se as lágrimas, sente-se o sofrimento íntimo e atroz nestas palavras proféticas, dolorosas e ambíguas,
carregadas de duplo sentido, cheias de motivações profundas, claras apenas para D. Madalena, só obscuras para
Manuel de Sousa, desconhecedor do mistério e do segredo nelas contido.
Por isso, Manuel de Sousa, a princípio, interpreta esta repugnância como «capricho» bem feminino, e leva-
a à conta de «fraqueza de acreditar em agouros». Se o coração e as mãos de D. Madalena «estão puras»,
colo ele crê, em sua boa fé, então «não há espectros que nos possam aparecer». Espectros só os das «más
ações». Tudo isso são «quimeras de criança». Por fim, chama-a à razão e lembra-lhe as responsabilidades
que ela tem, por si e pelos antepassados: «Vamos, D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de
quem vindes, senhora…».
Vencida, mas não convencida, nada mais adiantará para D. Madalena perante o irremediável: incendiado o
palácio de Manuel de Sousa, vê-se forçada, muito a contragosto, a mudar de residência, a regressar a casa
de D. João de Portugal.
- com D. João de Portugal: manifesta-se na relutância de voltar a viver sob o mesmo teto em que fora
(não o era ainda?) esposa de D. João, e nas razões que apresenta (I, 7 e 8).
▪ A presença do Destino, que estabelece um clima de fatalidade que paira sobre as personagens.
▪ Os agouros e pressentimentos de destruição e morte, como o da espada, que sufocam D. Madalena.
▪ O pathos de D. Madalena
■ Características românticas:
. crença em Deus;
. nacionalismo e patriotismo;
. interioridade / sensibilidade;
. adequação da linguagem às personagens: coloquialidade e emotividade – reticências, pausas, exclamações,
interjeições, repetições;
. Manuel de Sousa representa o herói romântico que luta pela liberdade e pela pátria, contra a tirania;
. D. Madalena é a figura romântica da mulher dominada pelo sentimento (medo, culpa, agouros, terror…).
CENA IX do ATO I
■ Assunto: Telmo traz a noticia da súbita chegada dos governadores de Lisboa (à exceção do
arcebispo, que fico hospedado no convento de Almada); Manuel de Sousa sente-se
enganado por eles, mas não o apanharam desprevenido
CENA XI do ATO I
■ NOTAS:
Estas derradeiras cenas do primeiro ato são bastante rápidas. Aliás, desde a chegada de Manuel de Sousa, o ritmo, até
então algo lento, torna-se rápido e, depois, muito rápido, o que está em sintonia com o final espetacular do ato e com a
peripécia: a intriga adensa-se e afunila. Esta aceleração do ritmo da ação é traduzida pela pontuação usada: frases muito
pontuadas, pausadas por vírgulas, pontos e vírgulas e reticências, mostrando o precipitar das ações; os pontos de
exclamação marcam o sentimentalismo das cenas.
Manuel de Sousa afirma conceitos e características do Barroco: nada perdura, tudo muda, a vida é perpétua mudança,
tudo é aparência e sonho.
■ Discurso das personagens: Nesta cena, há um contraste evidente entre o discurso de D. Madalena e do de Manuel de
Sousa. Assim, ela mostra-se emocionalmente descontrolada, aterrorizada, e esse estado de espírito é visível no recurso a
frases curtas, interrogativas e exclamativas, nas invocações a Deus e no uso da interjeição «ai». Por sua vez, o marido
mostra-se tranquilo, pois está convicto da decisão que tomou. Quando se refere aos governadores, é irónico e sarcástico.
■ Elementos trágicos das cenas:
1.ª) Anteriormente ao início da ação: o amor-paixão por D. Madalena é, para ele, legítimo, porque a julga «viúva». Todos os
indícios, todos os testemunhos apontavam para a certeza da morte de D. João, ao fim dos 7 anos já passados desde o
desastre de Alcácer Quibir. Na sua boa fé, julga não haver qualquer impedimento para o matrimónio. No entanto,
inconscientemente:
a) colabora na mentira;
b) profana o sacramento do matrimónio;
c) comete adultério;
d) passa a viver em bigamia;
e) usurpa o lugar que a outro pertence, de direito.
2.ª) Dentro da ação: rebeldia para com as autoridades de Lisboa:
. Miguel de Moura, «um vilão ruim»;
. o conde de Sabugal e o conde de Santa Cruz «que deviam olhar por quem são, e que tomaram este incargo odioso… e vil,
de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro!»;
. o arcebispo é «o que os outros querem que ele seja», isto é, uma personagem sem vontade e sem caráter, muito
acomodatícia, facilmente manobrável.
É, portanto, pelos mais nobres ideais que Manuel de Sousa recusa a hospitalidade aos governadores:
■ patriotismo que não tolera essa «afronta»;
■ resistência ao rei estrangeiro nas pessoas dos seus representantes;
■ lição aos fidalgos degenerados, e a «este escravo povo que os sofre, como não tiveram tiranos há muito
tempo nesta terra» (I, 7).
Revela, assim, um sentido heroico da honra, na ética feudal, paralelo à virtude romana (virtus) e à excelência
grega (aretê). Por isso:
. recusa receber, no seu palácio de Almada, os governantes de Lisboa;
. incendeia o palácio;
. desafia as autoridades e o próprio Destino (I, 11);
. entra em conflito aberto e voluntário com as autoridades (I, 8);
. aceita o risco calculado, até às últimas consequências: renúncia e perda de bens, generosa entrega da
própria vida (I, 11);
. recusa o perdão dos governadores, «se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso» (II, 1);
. sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele «homizio», como diz Maria, naquela
«quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com
que perigo» (II, 1).
Manuel de Sousa faz ainda sucessivos desafios ao Destino. De facto, quando afirma «Meu pai morreu
desastrosamente caindo sobre a própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas
mãos? Seja.» (I, 11):
. evoca uma fatalidade que parece existir sobre a sua estirpe;
. se o pai morreu desastrosamente (à letra, desastre é a maléfica influência de poderes ocultos e cruéis,
manifestados através dos astros, sobre os destinos humanos), também lhe poderá acontecer algo de
terrível, ao incendiar o próprio palácio por suas mãos. As figuras paralelas do pai e do filho como que se
sobrepõem, unidas em comum desgraça. Com efeito, Lopo de Sousa Coutinho é atravessado pela própria
espada: quem com ferros mata… Manuel de Sousa, o filho, tem a intuição profética de que as «chamas
ateadas por suas mãos» o poderão destruir, e com ele todos aqueles que o amam e a quem ama, D.
Madalena e Maria: quem brinca com o fogo…
De resto, não serão essas «chamas ateadas por suas mãos», simbolicamente, as chamas do amor adúltero
(descontada embora a sua boa fé) a uma mulher casada com outro, que o irão queimar e destruir? Cupido,
além de fatal, também é, por vezes, cruel.
■ Presságio/ indícios:
1.º) O incêndio, que destrói o palácio onde as personagens viviam numa certa acalmia e precipita o desenlace fatal:
* pode ser o prenúncio de morte para o mundo de Manuel;
* pode significar que o homem é vítima do seu fogo, da sua paixão, que o conduz inevitavelmente à destruição;
* pode ainda significar que é a ação do Homem que cria o destino, determina o seu futuro;
* pode, igualmente, apontar para um possível renascer das cinzas de Manuel de Sousa (com a tomada do hábito).
2.º) A destruição do retrato de Manuel de Sousa, queimado também pelo fogo, e a tentativa infrutífera de D. Madalena
o salvar simbolizam a destruição que também cairá sobre a família brevemente e a impotência das personagens para
travarem o Destino, bem como a morte psicológica da personagem retratada.
Peripécia:
-» o incêndio do palácio;
-» a mudança para o palácio de D. João de Portugal.
▪ O páthos de D. Madalena vai-se intensificando progressivamente (clímax), até ao incêndio do palácio (acmê, o ponto
culminante) e perda do retrato.
▪ O caráter trágico desta cena e de todo o final do ato é ainda evidenciado:
a) pelo apelo insistente à fuga;
b) pelas informações das didascálias:
- o deflagrar das chamas;
- os gritos;
- o rebate dos sinos;
- o cair do pano (pode simbolizar a queda que conduzirá à desagregação da família).