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MARTINS, José de Souza - Por Uma Pedagogia Dos Inocentes

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MARTINS, Social; Rev.Por uma pedagogia dos inocentes. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.

Paulo, D O S novembro 13(2): 21-30, S I Tempo Jos de Souza. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 21-30, novembro de 2001. de 2001. trabalho e

modernidade

Por uma pedagogia dos inocentes


JOS DE SOUZA MARTINS

RESUMO: A idia de uma escola para filhos de trabalhadores mveis, tema que vem inquietando os pases da Amrica do Norte e da Europa, prope os dilemas da socializao e da educao dos desenraizados em face de uma instituio enraizada, que a escola. Para conciliar escola com a situao social de quase transumncia dos filhos desses trabalhadores, seria necessrio reconhecer as funes educativas e socializadoras do prprio aluno, o aluno como professor da diversidade cultural. No fim das contas, admitir uma pedagogia dos inocentes.

PALAVRAS-CHAVE: trabalhador mvel, escola, interculturalidade, socializao, educao, identidade social.

m princpio, a pergunta qual escola para os filhos do trabalhador mvel? refere-se a um tema que preocupa mais os pases ricos do que os pases pobres, o que no quer dizer que seja menos relevante em relao a estes ltimos. Mais os pases que recebem imigrantes estrangeiros do que aqueles em que as migraes so predominantemente internas. Este texto reflete, necessariamente, minha insero numa sociedade perifrica em que as prioridades temticas muitas vezes aparecem invertidas em relao s dos pases metropolitanos. Mas, creio que a diversidade regional do Brasil e a acentuada importncia que em meu pas tem hoje as migraes internas de trabalhadores so fundamentais para uma compreenso do tema. Os desencontros de culturas e de vises de mundo situados em momentos polares da histria social so de grande relevncia para o exame do tema aqui proposto e para sugestes comparativas. Porque, mais do que caracterizar peculiaridades tnicas e culturais, importa compreender os proces-

Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP 21

MARTINS, Jos de Souza. Por uma pedagogia dos inocentes. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 21-30, novembro de 2001.

Trabalho apresentado no Seminrio sobre Migraes e futuro, organizado pela revista Migrations et Socit e pelo Centre dInformation et dtudes sur Les Migrations Internationales, Paris, 15 a 17 de novembro de 2001. 22

sos sociais que pem o filho do (i)migrante em face de dilemas culturais na constituio de sua identidade. E compreender, tambm, a continuidade dos valores de referncia da sociedade de origem e de seu modo de vida no destino de seus membros ausentes, os filhos prdigos da dispora moderna. Talvez por pensar e interpretar a partir do horizonte de uma sociedade que se moderniza tardiamente, em relativo atraso quanto aos pases desenvolvidos, encontrei dificuldades para lidar com o conceito de trabalhador mvel, que em meu pas no se usa. Trabalhador mvel ainda um conceito em elaborao, um conceito em busca de sentido e de difcil uso em contextos mais amplos. Na prpria diversidade de situaes de trabalho abrangidas por essa concepo, est sugerida a relevncia das necessidades de inovao social resultantes da inconstncia espacial que lhes prpria. Portanto, creio que o interesse sociolgico maior est menos nas formas de expresso cultural do que nas diferenas at significativas de modos de vida entre quem chega a uma sociedade e quem j est nela integrado. A problemtica de interesse sociolgico maior, nesse caso, a precariedade da insero social dos (i)migrantes nas sociedades de adoo. Estamos, portanto, falando de trabalhador precrio de emprego instvel, que trabalha e vive temporariamente, ainda que por longo tempo, em pas ou regio diferente do seu, numa situao social e cultural diversa da sua situao de origem. O trabalhador mvel, nesta proposta, o trabalhador migrante, estrangeiro ou forasteiro, sujeito a deslocamentos espaciais ocasionais ou mesmo sazonais. De certo modo vai se definindo um mercado de trabalho que no suporta o peso econmico da estabilidade empregatcia do trabalhador e descarta as instituies prprias da realidade social em que essa estabilidade se apia, do direito ao sindicato, da famlia escola. A coisificao da pessoa, prpria de uma sociedade em que as relaes sociais so mediatizadas pela mercadoria e pelo dinheiro, ganha novas estratgias e novas dimenses e cria, obviamente, novos problemas sociais, tanto para os sujeitos (eventualmente vtimas de situaes adversas) quanto para a sociedade (mesmo que deles seus membros no tenham a menor conscincia ou no tenham uma conscincia individual que coincida com a conscincia social e poltica). Tendo em conta que muitos desses trabalhadores, tanto os deslocados pelas migraes internacionais quanto pelas migraes internas, fazem da precariedade de seu trabalho uma fonte de ganho adicional em relao aos ganhos possveis na sociedade e nas regies de origem, melhor pens-los como expresso de uma mudana na prpria concepo de trabalho. Nossas referncias sociolgicas ainda so as de uma poca e de uma sociedade em que o trabalho era meio de integrao social e de participao. Era o trabalho permanente ou duradouro, na agricultura e mesmo na indstria, base de uma vida de razoveis certezas, uma vida estvel com estabilidade no emprego. Conseqentemente, uma vida de relaes sociais igualmente estveis, no s no trabalho.

MARTINS, Jos de Souza. Por uma pedagogia dos inocentes. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 21-30, novembro de 2001.

Quando ainda no se falava em capital social, o trabalhador j era tratado como capital social, coisa que hoje restrita. O operrio ainda era um arteso em muitos setores industriais. No s conhecedor de um fazer, mas tambm conhecedor de um saber fazer. O desenvolvimento econmico das ltimas dcadas fragmentou o trabalho ainda mais, exacerbou a diviso social do trabalho, acentuou a separao entre o que se sabe e o que se faz. Esse tipo de trabalhador foi se tornando obsoleto e seu emprego comeou a se tornar uma irracionalidade no sistema capitalista. O trabalhador se tornou plenamente uma pea da mquina de produo. Esse o trabalho puro, que parece ser uma busca do capitalismo, o trabalho plenamente libertado da pessoa do trabalhador. Essas mudanas indicam, tambm, mudana na concepo do que trabalho e do que trabalhador. O trabalho no foi apenas fragmentado pela diviso social do trabalho e pelas especializaes. Ele foi agrupado em setores relativamente autnomos, uma autonomia relativa de fragmentos de um processo de trabalho que h algumas dcadas era um processo unitrio, no interior de uma mesma empresa e, no raro, de um mesmo espao. Hoje, em conseqncia, necessrio pressupor uma ecologia do trabalho e o conhecimento das condies dessa multiespacialidade do trabalho que acaba impondo ao trabalhador a condio de trabalhador mvel, uma espcie de nmade do trabalho. No cume desse processo est o trabalho nmade, o trabalho que muda de lugar e leva consigo seus operrios. o caso da construo civil: a empresa existe onde existe o trabalho; no o trabalho que existe onde existe a empresa. So, portanto, duas situaes diversas de trabalho mvel. Para o trabalhador cuja residncia tambm se torna temporria, a mobilidade e a instabilidade se estende sua famlia, nos casos em que ele se faz acompanhar por ela. Uma instabilidade que se estende, tambm, s relaes sociais dessa famlia. A preocupao com filhos de trabalhadores mveis parece sugerir interesse pela escola como instituio, como lugar e programa de ensino, como referncia institucional estvel num mundo de situaes sociais instveis. No seria, por isso, a escola para trabalhadores mveis uma escola de confinamento cultural e pedaggico? A literatura parece trabalhar com o pressuposto, difundido entre os prprios (i)migrantes, da escola imvel para os filhos dos (i)migrantes, uma escola assimilacionista (cf. Dubreuil, 2001). Porm, num mundo marcado por crescente mobilidade espacial, o que fazer com uma escola da imobilidade espacial que ao mesmo tempo a escola da ascenso social (e, portanto, da mobilidade social)? O migrante (e o imigrante, sobretudo) defronta-se, pois, nas sociedades de destino com instituies territorializadas, no s as estatais, como a escola, mas no geral tambm outras como o sindicato e a igreja. As grandes mediaes dos valores sociais e dos direitos sociais so mediaes desse tipo. As relaes sociais do (i)migrante so construdas atravs de instituies e organizaes orientadas por valores da estabilidade espacial, da permanncia e no do deslocamento.
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Vivemos num mundo em que o trabalhador est sendo desterritorializado e, num certo sentido, o prprio trabalho o est. A mobilidade das empresas que se deslocam em conformidade com interesses e estmulos financeiros, de um pas para outro e de uma regio para outra, indica que o trabalho tambm est sendo desterritorializado. Convm considerar que nem todos os (i)migrantes dessa nova realidade do trabalho so pobres. Ao contrrio, no raro so relativamente jovens, so profissionalmente qualificados e at ganham bem. Dado que migram na expectativa de retorno sociedade de origem ou regio de origem, evitam enraizamentos, mesmo em relao ao que seriam os direitos fundamentais do prprio trabalhador. Aceitam condies adversas de trabalho e de vida em sociedades que se aproveitam de seu desenraizamento e, at, de sua clandestinidade. Com base no trabalho desterritorializado vai se constituindo a categoria do no-cidado, pois cidado uma categoria territorial. O cidado de um pas, quando emigra, no leva consigo a sua cidadania, quando muito leva resqucios dela. As instituies da sociedade moderna, que a sociedade da mobilidade, mediada pela dinmica do mercado, so, contraditoriamente, instituies que pressupem o enraizamento territorial e a falta de mobilidade. Todo ser humano que se move ainda parece uma anomalia. As instituies no esto preparadas para receb-lo nem para apoi-lo, apesar de muitos esforos nesse sentido. Isso vale tanto para a escola quanto para o sindicato quanto para a Igreja, quanto, certamente, para outras instituies fundamentais. Refletir sobre a educao e a escola tomando como referncia algum que est fora do lugar um desses desafios prprios de uma situao social que pede uma ao transformadora. Mas, pede-a no a partir do marco da ordem, e sim a partir do que at aqui a sociedade tem considerado desordem: a instabilidade espacial do trabalhador. A prpria educao foi sempre pensada como educao para a ordem, ou educao para a mudana no marco da ordem: o progresso no marco da ordem e o progresso como decorrncia da ordem. Alm disso, tem sido regra que a escola reflita o modo de ser e de pensar das sociedades dominantes e, nelas, das classes dominantes, daqueles que j tm um lugar definido na (naquela) sociedade. Esta discusso, porm, pede que se pense a escola do ponto de vista dos sem-lugar, dos desenraizados, dos que transitam, dos que buscam uma sociedade e no dos que so de uma sociedade. Talvez por isso seja fundamental pensar o desafio a partir, tambm, das experincias sociais de educao em sociedades que ficam na margem da sociedade que se habituou a pensar a educao do ponto de vista de sua centralidade e no de sua marginalidade. As carncias prprias das sociedades perifricas gerou estratgias de sobrevivncia cultural. Como gerou, tambm, uma pedagogia popular que a assegura, que define o que se poderia chamar de escola da margem. Refiro-me s aes educacionais populares e espontneas que permitem transmitir de uma gerao a outra o conhecimento
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indispensvel a que um modo de ser e uma certa viso de mundo se mantenham e possam ser legados gerao seguinte1. Mas, a sociedade de adoo, a sociedade nova para o (i)migrante, tambm a sociedade das incgnitas, dos desafios de conhecimento, da inutilidade de certos conhecimentos prvios: de que serve na cidade todo o conhecimento do cultivo do caf que foi aprendido no campo? De nada serve. Mas, certamente serve, e muito, o modo de preparar o caf, sobretudo porque se trata, em muitos lugares, de uma bebida prpria dos ritos de sociabilidade e de aproximao social. Um tema correlato o tema da memria. As sociedades ocidentais incluem, em suas tcnicas de socializao do estrangeiro e do forasteiro, meios para promover o esquecimento cultural e social. A socializao formalizada na educao das sociedades de adoo tem sido, tambm, uma tcnica de ocultamento do passado e dos antepassados. Mesmo na periferia, como no caso do Brasil, no mundo da margem em relao aos pases dominantes, os antigos pases metropolitanos, isso sempre esteve presente nas tcnicas usadas pelos missionrios para converter os ndios. Mas, essas tcnicas criaram o duplo e a cultura do duplo o candombl se acoplou ao catolicismo da Contra-reforma; mais do que sincretismo, produziu ocultamento e dissimulao. A memria acaba sobrevivendo como referncia clandestina, como clandestina continuidade de um passado que a nova realidade procura apagar. a partir desses resduos ocultos que o imigrante pode rememorar, recriar e inventar cultural e socialmente, novas concepes e novas relaes. As associaes de mtuo socorro, no Brasil, disseminadas pelos imigrantes europeus aps o fim da escravido, no sculo XIX, recriaram a comunidade que se deixou para trs. Era comunidade, mas era uma outra comunidade. Era modo comunitrio de resolver problemas, de reconstruir a sociabilidade. Mas, no era a mesma comunidade, a comunidade da memria. Era diverso o modo da comunidade ser revivida no presente da sociedade de adoo. Pensar a escola dos transumantes, dos sem destino, pensar em combater essa clandestinidade da memria. Porque a escola enraizada, a escola da estabilidade situacional, pela qual a sociedade de adoo se prope ao (i)migrante, ao no conhecer a legitimidade e a relevncia da cultura de origem do estrangeiro e do forasteiro, fecha-se sobre si mesma. Ao mesmo tempo, deixa um resduo de ao educativa que aquilo que ela no pode assimilar, nem conhecer, nem reconhecer. Esse resduo a cultura da sociedade de origem, a sociabilidade internalizada sobretudo na primeira socializao do (i)migrante. Cria-se, assim, o duplo e a duplicidade das orientaes culturais do (i)migrante e de seus descendentes. Essa a base da criatividade do seu ajustamento na sociedade de adoo, um ajustamento auto-afirmativo e de afirmao da (sua) diferena. H uma implicao na proposta de uma escola para os filhos dos trabalhadores mveis: o risco da destruio das bases da inventividade so-

Sobre esse tema, ilustrativa a extensa bibliografia de Carlos Rodrigues Brando. Cf., em especial, Brando (1983; 1984 e 1990).
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cial que o ocultamento da memria social e da cultura de origem prope, que a prxis autodefensiva sugere a todo momento. A existncia de uma escola para os trabalhadores mveis, isto , a formalizao escolar da diferena, no destruiria a conflitividade criativa dessa situao, o autodefensivo do segredo e do ocultamento? No se estaria institucionalizando (e capturando) a diferena e trazendo-a para o universo do poder e do controle social de que a escola, no fundo, um instrumento? Ao mesmo tempo, essa dvida prope outra. Manter em mbitos separados, de um lado, a cultura e os modos de ser da sociedade de origem, de certa maneira confinados na vida privada e domstica, e, de outro, a escola enquanto agncia da cultura e da sociedade de adoo, certamente dificultaria a interculturalidade que h nos valores da solidariedade, da integrao na diferena que dela se espera numa perspectiva humanstica. Para enfrentar essas dificuldades, preciso saber que sociedade o (i)migrante carrega consigo, qual sua sociedade de referncia e qual sua disposio para abrir mo dela e assimilar a sociedade de adoo. Resta saber que motivos pode ter o migrante para manter apego sociedade de origem e com ela continuar a se identificar. Sobretudo, convm ter em conta em que medida retornar parte do projeto do (i)migrante. preciso saber, tambm, qual o legado dessas referncias aos filhos, em que medida os pais no se importam de se tornar estrangeiros em face dos filhos assimilados, certamente atravs da escola. Qual a funo da sociedade de adoo no retorno e na regenerao da sociedade de origem? Ser unicamente fonte dos ganhos do trabalho? Por outro lado, preciso saber que motivos podem ter os setores que se interessam pelos (i)migrantes para preservao de sua cultura e de sua identidade. Preservar para que, afinal? A relativa ansiedade que acompanha (i)migrantes em sociedades ricas, originrios de sociedades pobres, para assimilar lngua, falas, modos, etc., parece indicar que h alguma dose de desapreo pelas prprias tradies e pelos prprios modos de ser herdados da sociedade de origem. Esse estado compreensvel, sobretudo em sociedades hostis e agressivas em relao a estrangeiros e forasteiros, particularmente entre os da classe mdia, j de certo modo desenraizados por sua origem social, abertos para o que mdio e, portanto, para o que no tem identidade. Nessa perspectiva, pensar a escola em sociedades de encontro de portadores de tradies culturais desencontradas no uma coisa simples. No se trata apenas de impor um ato de vontade poltica e pedaggica para assegurar que a convivncia e a interao intercultural se realize. Nem cabe pensar o (i)migrante como vtima de uma convivncia adversa. Dificuldades h sempre dos dois lados. Nos ltimos trinta anos, no Brasil, povos tribais alcanados pela nova onda de ocupao capitalista do territrio, pela chegada a suas terras do branco inescrupuloso vido de lucro, manifestaram, depois de um perodo inicial de tenso e conflito, interesse pelo conhecimento da cultura do adventcio, poderoso e, geralmente, rico. Essa uma situao inversa dos pases
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europeus, dos Estados Unidos e do Canad. Queriam compreender como funciona a cabea do branco que invade suas terras e tenta domin-lo. Assimilaram rapidamente a escola como meio de acesso a essa informao vital para defesa de sua cultura e de seu modo de vida. Portanto, a escolarizao concebida a como um meio de ter algum domnio e alguma compreenso sobre a diversidade cultural e social. Um meio para poder administrar autodefensivamente a competncia destrutiva do adventcio poderoso e sua cultura. Nesse sentido, fica evidente algo que quase todos ns temos dificuldade para entender: a escola, tal como a concebemos, uma instituio prpria da cultura da sociedade de adoo, e do poder que ela representa, e no instituio neutra em que possam conviver concepes at antagnicas do que ensinar e aprender. A escola institucional e formal , assim, destinada no s aos enraizados, mas tambm queles que se espera enraizar. Se falamos em escola temos que pensar nessa dificuldade. Se falamos em educao, podemos, ento, alargar a problemtica e sua compreenso. Porque podemos falar na informalidade da educao que parte do processo de socializao, sobretudo, socializao secundria das novas geraes. Em meu pas, a escola convencional no tem qualquer compromisso com as tradies culturais das classes subalternas, das pessoas simples. Sobretudo, no o tem com as populaes de origem rural, expulsas do campo pelas grandes transformaes que tm ocorrido na agricultura. So, no geral, pessoas portadoras de uma cultura comunitria e camponesa, profundamente marcada por mediaes religiosas do catolicismo tradicional dos tempos da Conquista. No raro, cultura criada pelos missionrios no sentido de conciliar as tradies indgenas, dos povos conquistados, com as concepes religiosas do catolicismo da Contra-reforma. Criou-se a um catolicismo popular revestido por formas culturais indgenas. H no mundo urbano brasileiro, lugar de destino desses migrantes, um grande desapreo por essa cultura ancestral, desapreo que aparece na sua folclorizao e at mesmo na sua ridicularizao. A hostilidade cultural da instituio escolar a essas tradies, fortssimas ainda nas populaes urbanas de origem rural e mesmo nas populaes que permanecem no campo, no chegou a destru-las porque as prprias populaes tradicionais desenvolveram vrios mecanismos pedaggicos para transferir s novas geraes o seu saber. Isso no quer dizer que a cultura tradicional no esteja ameaada2. Quer dizer apenas que ela tem agentes sociais de defesa e autoproteo, por meio de sua transferncia seletiva a membros das novas geraes. Por tudo isso, uma escola para os filhos dos trabalhadores mveis pode estar sugerindo uma escola excludente, um agravamento da excluso social. Mesmo que se imagine essa escola como escola da interculturalidade. Talvez se possa pensar numa escola em dilogo com a diversidade social e cultural da populao circundante. No uma escola do poder e sim uma escola da sociedade real, a sociedade da diversidade, da diferena.

Como na Frana e em outros lugares, tambm no Brasil a escola de modo geral avessa funo de mediao cultural na relao entre residentes e adventcios. Sobre a Frana, cf. Lorcerie (1996).
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Cf. Fernandes (1961).

Nessa perspectiva, porm, necessrio admitir que a educao deve comportar uma pedagogia em que o aluno tambm o educador. Basicamente, ele o conhecedor dos cdigos e padres culturais da sociedade de origem. Ou, ao menos, ele que tem o vnculo privilegiado de viver no limite com os depositrios do saber da sociedade de origem, que so os membros de sua famlia. Estamos falando, pois, mais propriamente em uma dimenso da socializao das novas geraes que envolve a simultnea ressocializao das geraes adultas encarregadas pela sociedade de adoo de realizar a tarefa pedaggica de educar os (i)migrantes. Inverto aqui uma constatao de um grande socilogo de meu pas. Estudando grupos infantis informais em bairros de imigrantes estrangeiros da cidade de So Paulo, descobriu que as crianas tinham um importante papel na ressocializao de seus pais para a sociedade de adoo3. Esse tema, certamente, envolve questes polticas, sobretudo pela crtica implcita s instituies da ordem. H um certo risco de que a proposta de uma escola para os filhos de trabalhadores mveis corresponda ao temor do conflito que a cultura residual dos (i)migrantes possa acarretar. Portanto, alm de nos perguntarmos qual escola para os filhos dos trabalhadores mveis?, deveramos, igualmente, fazer indagaes a respeito de quais so as condies sociais e polticas para se pensar numa escola da interculturalidade. Convm lembrar que trabalhadores mveis no so cidados dos pases em que trabalham. Raramente tm direitos. No raro so clandestinos ou tendem clandestinidade. No votam. No constituem massa de presso poltica e de reivindicao social. Vivem num mundo de silncio poltico compulsrio. Significa que devam viver, tambm, num mundo de silncio cultural ou educacional? H condies de quebrar esse silncio? Tem acontecido? Uma escola para os filhos dos trabalhadores mveis sem dvida uma proposta de quebra desse silncio, ou dessa fala cultural intramuros, circunscrita ao mbito do privado ou dos guetos culturais que (i)migrantes muitas vezes tendem a formar. Antes de passar pela questo propriamente pedaggica e institucional (qual escola?) as sociedades que se inquietam democratica e positivamente com a necessidade de fazer da escola um instrumento da interculturalidade precisariam traduzir essa inquietao em aes afirmativas de dilogo cultural. Nesse sentido, mais do que a escola (e o poder que a rege), o que parece vir antes a sociedade civil enquanto fonte de reconhecimento da legitimidade da diferena social e cultural das origens nacionais ou regionais. Os prprios protagonistas da convivncia espacial de culturas que podem, mais do que ningum, erguer os andaimes para a construo social da realidade dessa convivncia. Se a sada est nos setores da sociedade civil sensveis, estamos falando mais em cumplicidade do que em direitos. Nesse caso, estamos falando em movimento social. Nas sociedades de adoo, o caminho seria que es-

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ses setores se mobilizassem no sentido de quebrar as regras e de oferecer aos filhos desses trabalhadores o equivalente no escolar da escola de que precisam, a da interculturalidade e do acolhimento. Ao menos como um primeiro momento, como momento de criar o lugar da escola mvel em lugar da escola dos imveis. E nesse sentido, sublinhar mais que o poder socializador da escola, o poder socializador do aluno, tanto do que vem de longe quanto do que j est l. Sublinhar e reconhecer a grande dimenso humanstica dessa espcie de pedagogia dos inocentes. Estamos, em grande medida, falando numa educao sem escola ou numa escola adjetiva em relao ao processo formal de educar. A escola formal e enraizada num certo sentido adversa s possibilidades educacionais dos transumantes, porque no assume nem pode assumir seus valores, seus objetivos, o tipo de ser humano que procuram ser. A escola formal no inimiga da cultura dos adventcios. Mas, lhe indiferente.

Recebido para publicao em agosto/2001

MARTINS, Jos de Souza. Towards a pedagogy of the innocents. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 21-30, November 2001.

ABSTRACT: The idea of a school for the children of migrant workers, an issue that has been of concern in the countries of North America and Europe, proposes the dilemmas of socialization and education of those uprooted in face of a rooted institution such as the school. To conciliate the school with the social situation of quasi transhumance of these workers children it would be necessary to recognize the educational and socializing functions of the students themselves, the student as teacher of cultural diversity. In other words, to admit a pedagogy of the innocents.

KEY WORDS: migrant workers, school, interculturality, socialization, education, social identity.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

BRANDO, Carlos Rodrigues. (1983) Casa de escola. Campinas, Papirus. _______. (1984) Saber e ensinar. Campinas, Papirus. _______. (1990) O trabalho de saber (Cultura camponesa e trabalho rural). So Paulo, FTD. DUBREUIL, Bertrand. (2001) Inmigration et stratgies familiales en milieu scolaire. Migrations et Socit, Paris, XIII(76): 77-79, mai-aot.
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FERNANDES, Florestan. (1961) Folclore e mudana social na cidade de So Paulo. So Paulo, Editora Anhembi. LORCERIE, Franoise. (1996) Lcole, lieu de mdiation culturelle. Migrations et Socit, Paris, VIII(46-47): 29-41, juillet-octobre.

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