Chor Maio Ventura Santos Antropologia Raça Dilemas Nova Genetica

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 22

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

SANTOS, R. V.; MAIO, M. C.: Antropologia, raa e os dilemas das identidades na era da genmica. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005. A nova gentica, pela sua atual proeminncia, uma fonte de criao de identidades entre grupos sociais e mesmo nacionais. Narrativas genticas interagem com narrativas histricas e sociais; o muitssimo novo (a genmica) toca, interage e, em muitos casos, fricciona-se com o muito antigo (raa e tipologias). Neste trabalho analisa-se um conjunto de debates em curso acerca de interpretao de dados genticos obtidos em estudos conduzidos no Brasil. Os debates tm mobilizado bilogos, cientistas sociais e movimentos sociais, entre outros. Os resultados e as implicaes dessa pesquisa, conhecida como Retrato Molecular do Brasil, alm de envolver a academia, tm servido como campo de disputa do qual participam, por exemplo, desde ativistas do movimento negro no Brasil at membros de grupos da extrema-direita europia. Uma anlise contextualizada desses debates mostra-se til para melhor compreender as imbricaes entre antropologia, gentica e sociedade no mundo atual. PALAVRAS-CHAVE: gentica; raa; movimento negro; extrema-direita; pensamento social; etnicidade. SANTOS, R. V.; MAIO, M. C.: Anthropology, race, and the dilemmas of identity in the age of genomics. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, v. 12, n. 2, p. 447-68, May-Aug. 2005. Given its current preeminence, the new genetics affords the creation of new identities among social and even national groups. Genetic narratives interact with historical and social narratives; that which is extremely new (genomics) touches, interacts with, and in many cases grates against that which is old (race and typologies). The interpretation of genetic data from studies conducted in Brazil has recently triggered debates among biologists, social scientists, social movements, and other actors, debates which are analyzed in this article. The findings and implications of this research (Molecular Portrait of Brazil) go beyond the academy, serving as a battleground that includes activists from Brazils black movement and even members of far-right European groups, for example. A contextualized analysis of these debates proves helpful in better understanding the overlappings between anthropology, genetics, and society in todays world. KEYWORDS: genetics; race; black movement; far right; social thought; ethnicity.

Antropologia, raa e os dilemas das identidades na era da genmica Anthropology, race, and the dilemmas of identity in the age of genomics

Ricardo Ventura Santos


Escola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz Rua Leopoldo Bulhes 1480 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brasil [email protected]

Marcos Chor Maio


Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Avenida Brasil, 4036 21040-361 Rio de Janeiro RJ Brasil [email protected]

v. v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 200512, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

447

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Introduo

iversos autores tm enfatizado que a nova gentica (ou genmica) est penetrando de forma avassaladora nos mais diversos domnios do mundo contemporneo, gerando uma revoluo tecnocultural associada aos genes que tem transformado tecnologias, instituies, prticas e ideologias (Goodman et al., 2003; Haraway, 1997; Lippman, 1991; Rabinow, 1992; Santos & Maio, 2004). Conhecimentos e tecnologias da nova gentica no somente redimensionam loci biolgicos, culturais e sociais no entorno prximo dos indivduos, como tambm reconfiguram relaes macro-sociais, histricas e polticas de amplo alcance. O antroplogo Paul Brodwin (2002) incisivo ao se referir s inter-relaes entre desenvolvimento de tecnologias genticas, sociedade e construo de identidades sociais no mundo contemporneo. No contexto da crescente valorizao da gentica, padres de identidade historicamente reconhecidos podem ganhar ainda mais legitimidade ou serem negados pelos resultados de seqenciamentos de DNA, bem como emergirem outras proposies que at ento no eram socialmente reconhecidas. Tal o caso da relao entre raa e genmica nos dias atuais. Em seu livro Against Race Paul Gilroy afirma que qualquer ponderao acerca dos elementos que influenciaram o que chama de crise da raciologia deve dar especial ateno para a genmica. Segundo ele, a distncia que [a genmica] guarda de verses antigas de reflexo racial produzida nos sculos XVIII e XIX reafirma que o significado das diferenas raciais est sendo transformado medida que as relaes entre seres humanos e natureza so reconstrudas atravs do impacto da revoluo do DNA e dos desenvolvimentos tecnolgicos (Gilroy 2000, p. 13-4; ver tambm 1998). Advogando uma renncia deliberada e auto-consciente de raa como meio de categorizar e dividir a humanidade (p. 17), Gilroy enfatiza que a revoluo biotecnolgica requer uma mudana no entendimento de conceitos como raa, espcie, corporificao e especificidade humana. Em outras palavras, demanda que reconceptualizemos a relao entre ns mesmos, nossa espcie, nossa natureza e a idia de vida: precisamos nos perguntar, por exemplo, se ainda h lugar nesse novo paradigma de vida para a idia de diferenas raciais especficas (p. 20, grifo no original). Ressaltando o tom utpico de seu argumento (p. 7), Gilroy reconhece que sua radical posio anti-raa pode comprometer ou dificultar (ou at mesmo trair) aqueles grupos cujas reivindicaes legtimas e at mesmo democrticas repousam em formas de identidade solidariamente moldadas a grande custo a partir de categorias impostas pelos seus opressores (p. 52). Raa e seus derivativos
448
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

constituem um conjunto dessas categorias. Para Gilroy, abandonar raa romper com um elo, com uma cadeia de longa permanncia histrica:
Por um lado, os beneficirios das hierarquias raciais no desejam desistir de seus privilgios ... Por outro, grupos sociais que tm sido subordinados atravs da dimenso racial e das estruturas sociais resultantes ... vm por sculos empregando os conceitos e as categorias de seus dominadores, proprietrios e perseguidores para, justamente, resistir ao destino que raa lhes alocou... (2000, p. 12)

precisamente essa articulao entre beneficirios e subordinados, nos termos de Gilroy, e o papel da genmica na desestabilizao do pensamento racial, que pretendemos abordar neste trabalho. Para tanto, nos debruaremos sobre um estudo de caso que explora a proeminncia da nova gentica no trato de um certo conjunto de questes scio-polticas contemporneas, em particular no plano das inter-relaes entre raa, diversidade biolgica e construo de identidades. Tomaremos como estudo de caso os contedos e as recepes de pesquisas sobre as caractersticas genticas da populao brasileira baseadas na anlise do DNA mitocondrial, do cromossomo Y e do DNA nuclear. Estamos nos referindo a uma srie de estudos que denominaremos de Retrato Molecular do Brasil, coordenados pelo geneticista Srgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e cujos resultados foram publicados em revistas de divulgao cientfica no Brasil (como Cincia Hoje), bem como em revistas especializadas (American Journal of Human Genetics e Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America), a partir de 2000. Alm da reverberao em crculos acadmicos, esses trabalhos receberam ampla ateno da mdia nacional e estrangeira, tendo gerado acalorados debates entre especialistas e tambm manifestaes de representantes de movimentos sociais. Em muitos circuitos, a recepo de Retrato Molecular do Brasil foi entusistica (ver referncias em Santos & Maio, 2004). Na opinio de alguns, uma demonstrao cabal das potencialidades da gentica de reconstituir a histria biolgica do povo brasileiro. O jornalista Elio Gaspari referiu-se ao trabalho como um artigo fenomenal ... uma verdadeira aula, motivo de orgulho para a cincia brasileira. Escreveu tambm: a comprovao cientfica daquilo que Gilberto Freyre formulou em termos sociolgicos, referindo-se magnitude da mestiagem no Brasil. H mais gente [no Brasil] com um p na cozinha do que com os dois na sala... (Gaspari, 2000), expresso utilizada at mesmo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando em campanha em meados da dcada de 1990.
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

449

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

J para o ativista do movimento negro Athayde Motta, a pesquisa dos geneticistas (utilizando alta tecnologia) seria um simulacro de suporte cientfico para o mito da democracia racial brasileira. E mais, os resultados dariam margem a possibilidades quase infinitas de manipulao, incluindo a possibilidade de injetar sangue no moribundo mito da democracia racial (Motta, 2000a,b; 2002) ou mesmo virar uma campanha pr-democracia racial ... um discurso poltico-ideolgico cuja funo primordial manter o estado de desigualdades raciais no Brasil (Motta, 2003). No menos crtico do trabalho dos geneticistas brasileiros foi um grupo de extrema direita, de orientao neonazista, chamado Legion Europa, baseado na Europa e nos Estados Unidos. Um certo M. X. Rienzi, autor de inmeros textos no site do grupo na Internet,1 escreveu: os autores [os pesquisadores da UFMG], da maneira mais sem vergonha, subjetiva e no cientfica, abertamente mostram sua viso poltica sobre o assunto de raa. Complementou: J tempo de parar de tentar deformar realidades naturais para as encaixar em ideologias polticas; ao invs disso, devem-se aceitar as realidades raciais existentes e lidar com elas da melhor maneira possvel. Como se depreende dessas reaes, o trabalho dos geneticistas brasileiros teve tal divulgao e impacto que se nota, num certo momento, uma curiosa situao de proximidade entre um ativista do movimento negro e um membro de um grupo de extrema direita. Ambos, por mais distintas que sejam suas posies e propostas polticas, criticam Retrato Molecular do Brasil, em larga medida acusando-o de produzir, atravs da cincia, um discurso poltico-ideolgico comprometido e com conseqncias antagnicas s suas respectivas vises de mundo. Tendo como pano de fundo esses contedos e reaes, algumas das questes que pretendemos aprofundar neste trabalho so as seguintes. Como se d e qual o papel da nova gentica na produo dessa aparente proximidade? Como se fazem presentes os temas do essencialismo, do racismo, do racialismo e do estabelecimento de identidades nessas crticas? Como cincia e poltica se entrelaam nesses debates, cujos limites, claramente, no se atm aos espaos dos laboratrios de biologia molecular? Valorizando o contraste como lente analtica, pretendemos, atravs de uma leitura pormenorizada das posies de setores a princpio to distantes no espectro ideolgico, melhor compreender algumas das interrelaes entre temas antropolgicos e a gentica no mundo atual, com nfase na questo da raa, relaes raciais e projetos sciopolticos nacionais e internacionais. Interessa-nos refletir sobre o espao que o conhecimento gentico emergente ocupa no sentido de influenciar, e at mesmo transformar, noes de coerncia e identidades sociais, e as respostas de grupos organizados frente a ele.

450

Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

A diversidade do povo brasileiro vista a partir da gentica


Em um influente trabalho da dcada de 1960, os geneticistas Francisco M. Salzano e Newton Freire-Maia salientaram que as populaes brasileiras apresentam uma oportunidade mpar para o estudo de problemas dos mais fascinantes e complexos (1967, p. 1). Seus estudos apontaram que as populaes brasileiras caracterizam-se, em geral, por apresentarem grande heterogeneidade gentica ... A heterogeneidade deriva da contribuio que lhe deram os seus grupos raciais formadores ... So, por isso, nossas populaes um timo material para uma srie de estudos sobre comparaes intra e intertnicas, bem como sobre os efeitos da mestiagem (Salzano & Freyre-Maia, 1967, p. 157). Nas dcadas de 1960 e 70 realizou-se uma grande quantidade de estudos sobre mistura racial no Brasil (ver Sans, 2000). Fundamentavam-se na anlise de marcadores genticos clssicos, como, por exemplo, no sistema de grupos sangneo Rh, Diego e protenas sricas Gm (gamaglobulinas). nesse contexto da histria da gentica no Brasil que se insere o conjunto de trabalhos que denominamos Retrato Molecular do Brasil. Pode-se dizer que constitui o captulo mais recente de uma vertente de investigao proeminente na gentica de populaes humanas que floresceu no Brasil na segunda metade do sculo XX. Para alm disso, a pesquisa de Srgio Pena e colaboradores, juntamente com outros estudos genticos (ver Salzano & Bortolini, 2002; Callegari-Jacques et al., 2003), inovam e ampliam as possibilidades de anlise atravs da utilizao do novo arsenal tcnico oferecido pela biologia molecular. Atravs do seqenciamento de pores do mtDNA e do cromossomo Y, os geneticistas buscaram apresentar um panorama comparativo da distribuio geogrfica e dos padres de ancestralidade das matrilinhagens e patrilinhagens da populao brasileira. Ecoando a extensa literatura em gentica de populaes no Brasil (incluindo uma continuidade discursiva que coloca a composio da populao brasileira como mpar e fascinante em virtude do alto grau de miscigenao), o intuito destrinchar, do ponto de vista biolgico, a histria de formao do povo brasileiro, enfatizando a realidade scio-demogrfica do pas no tocante mestiagem. Um primeiro artigo da srie Retrato Molecular do Brasil foi publicado em portugus em 2000 (Pena et al., 2000) na revista mensal de divulgao cientfica (Cincia Hoje) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC). Dois artigos diretamente relacionados, com a apresentao dos resultados em pormenores para a comunidade cientfica, apareceram no American Journal of Human Genetics (Alves-Silva et al., 2000; Carvalho-Silva et al., 2001), bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States ou PNAS (Parra et al., 2003).
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

451

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Na investigao sobre polimorfismos de DNA do cromossomo Y, que envolveu aproximadamente 250 homens auto-classificados como brancos de diversas regies do pas, a vasta maioria de marcadores identificados foi de origem europia, com uma muito baixa freqncia de marcadores oriundos da parte sub-Saara da frica e uma completa ausncia de contribuio amerndia (Carvalho-Silva et al., 2001). J os resultados das anlises do DNA mitocondrial, baseadas na mesma amostra, apontaram um quadro mais complexo, com a amostra apresentando 33% de contribuio amerndia e 28% de contribuio africana, ou seja, uma surpreendentemente elevada contribuio matrilinear de origem amerndia e africana nos homens brancos brasileiros estudados (Alves-Silva et al., 2000). Segundo os autores de Retrato Molecular do Brasil, o padro de reproduo diferencial (com patrilinhagens averiguadas atravs do cromossomo Y predominantemente de origem europia e matrilinhagens averiguadas atravs do DNA mitocondrial sobretudo africanas e amerndias) detectado pelas anlises genmicas faz amplo sentido luz da histria de colonizao do territrio brasileiro a partir de sculo XVI: os primeiros imigrantes portugueses no trouxeram suas mulheres, e registros histricos indicam que iniciaram rapidamente um processo de miscigenao com mulheres indgenas. Com a vinda dos escravos, a partir da segunda metade do sculo XVI, a miscigenao estendeu-se s africanas (Pena et al., 2000, p. 25). Em termos de resultados, o que emerge das pesquisas genticas a corroborao quanto natureza mestia da amostra de (autoclassificados) brancos brasileiros, j que a maioria (aproximadamente 60%) das matrilinhagens de origem amerndia ou africana. Se nos dois trabalhos publicados no American Journal of Human Genetics os autores enfocam sobretudo aspectos gentico-moleculares e filogeogrficos, no texto de divulgao cientfica publicado em Cincia Hoje eles no so econmicos ao apontarem as implicaes sociais e polticas que podem derivar da pesquisa no que tange ao combate ao racismo no Brasil:
O Brasil certamente no uma democracia racial ... Pode ser ingnuo de nossa parte, mas gostaramos de acreditar que se os muitos brancos brasileiros que tm DNA mitocondrial amerndio e africano se conscientizassem disso valorizariam mais a exuberante diversidade gentica do nosso povo e, quem sabe, construiriam no sculo XXI uma sociedade mais justa e harmnica. (Pena et al., 2000, p. 25) 2

Em janeiro de 2003, os geneticistas publicaram um outro trabalho, intitulado Color and genomic ancestry in Brazilians. Ao contrrio dos estudos anteriores, que envolveram indivduos de
452
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

diversas regies do Brasil, a pesquisa de Parra et al. (2003) foi conduzida em uma comunidade rural especfica (Queixadinha), localizada no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais. Inicialmente, um conjunto de aproximadamente 170 pessoas teve seus componentes classificados como brancos, intermedirios e pretos, segundo critrios morfolgicos, por dois pesquisadores (o que os autores denominam de avaliao clnica). Levaram-se em considerao caractersticas como pigmentao da pele, cor e textura do cabelo e formato do nariz e dos lbios. Em seguida, coletou-se material biolgico (amostras de sangue) de cada um dos indivduos e procedeu-se anlise de uma bateria de marcadores informativos de ancestralidade (MIAs), evidenciados a partir do DNA nuclear. Para fins comparativos foram tambm analisadas amostras de trs outros grupos (africanos de So Tom, populaes indgenas amaznicas e portugueses). Possivelmente o principal achado do estudo de Parra et al. (2003) foi que no h correspondncia entre classificao morfolgica e biolgica na amostra de Queixadinha, notando-se grande sobreposio e dificuldade de distino das caractersticas genmicas daqueles morfologicamente classificados como brancos, intermedirios e pretos. Em contraste, a comparao das caractersticas genticas dos trs outros grupos (africanos de So Tom, populaes indgenas amaznicas e portugueses) apontou para diferenas acentuadas. Concluram os autores: Nossos resultados sugerem que no Brasil, no nvel individual, cor, determinada por avaliao fsica, um preditor pobre da ancestralidade genmica africana, estimada por marcadores moleculares (Parra et al., 2003, p. 177).

Recepes e crticas aos estudos genmicos Athayde Motta e a Perspectiva do Movimento Negro
Em trabalho anterior (Santos & Maio, 2004), descrevemos e contextualizamos as crticas do ativista do movimento negro, Athayde Motta, em relao s pesquisas de Srgio Pena e colaboradores. A seguir recuperamos alguns dos principais pontos. Motta escreveu pelo menos quatro textos fortemente crticos ao trabalho dos geneticistas, que apareceram em Afirma: Revista Negra Online (Motta 2000a,b; 2002; 2003). Os principais aspectos enfatizados so os seguintes: proximidade de Retrato Molecular do Brasil com formas consideradas equivocadas e ultrapassadas de interpretao da histria, cultura e sociedade brasileira; questionamento quanto importncia da gentica na definio de identidades coletivas; e impactos dos resultados genticos no que tange implementao de polticas pblicas voltadas para o combate do racismo no Brasil. No texto Gentica para as massas, Motta (2000a) discorre de forma negativa sobre a existncia de paralelos entre interpretaes
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

453

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

dos geneticistas e o que chama de outros retratos do passado colonial brasileiro. Subentende-se que os paralelismos so com a viso freyreana:
[Retrato Molecular no Brasil] no se distancia muito do retrato colonial de um pas inicialmente formado por populaes indgenas e homens brancos e, posteriormente, por populaes indgenas, negras e, ainda, mais homens que mulheres brancos. Levandose em conta que eram os portugueses que tinham por hbito brutalizar as nativas indgenas e as escravas negras, a pesquisa apenas confirma geneticamente o que j era mais ou menos sabido por quem tem um mnimo de senso crtico sobre o Brasil.

Em sua argumentao Motta tambm procura destituir a evidncia gentica de importncia na delimitao de identidades e na definio dos padres de sociabilidade no Brasil:
a informao de que 60% da populao branca brasileira descende de negros e ndios pode dar algum combustvel para quem gosta de dizer que no existem brancos no Brasil, mas no a gentica quem vai tornar isto possvel. Dentro dos padres de relaes raciais e culturais de nossa sociedade, a definio do ser branco est longe de ser uma questo de gentica ou biologia. (2000a)

As crticas mais contundentes de Motta Retrato Molecular do Brasil so quanto s possveis implicaes dos dados genticos para fins de polticas pblicas. Ainda que faa as ressalvas de que as possibilidades quase infinitas de manipulao ... no culpa da pesquisa nem dos pesquisadores (2000a) e que o trabalho dos geneticistas utiliza alta tecnologia e boas intenes para produzir um mapa gentico de uma amostra da populao branca brasileira (2000b), afirma que a pesquisa fornece um simulacro de suporte cientfico para o mito da democracia racial. Vejamos ento alguns dos principais aspectos das crticas de Motta. Primeiro, baseiam-se no texto publicado em Cincia Hoje, sem referncias aos trabalhos publicados nos peridicos especializados (American Journal of Human Genetics e Proceedings of the National Academy of Sciences), com pouca nfase em aspectos tcnicos. Segundo, o crtico ressalta o que considera ser uma aliana dos geneticistas com modalidades conservadoras de explicar o Brasil, sobretudo atravs de Gilberto Freyre. Terceiro, questionada a relevncia do conhecimento biolgico na revelao de realidades histricas e sociais no Brasil (ou seja, a gentica no estaria evidenciando nada de novo que a histria, a antropologia e a sociologia j no tenham apontado),3 bem como seu papel no delineamento de polticas pblicas.

454

Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

M. X. Rienzi e a perspectiva da extrema-direita


Legion Europa um grupo de extrema-direita, de orientao neonazista, cujo site na Internet apresenta informaes sobre suas concepes e metas polticas, incluindo uma grande quantidade de textos de carter doutrinrio (ver Nota 1). No possvel identificar onde esto localizados fisicamente (ou seja, no h endereo postal), ainda que se depreenda que sua base seja na Europa ou Estados Unidos em razo dos contedos abordados. No site encontram-se vrios ensaios analticos sobre pesquisas em gentica humana, a maioria dos quais de autoria de M. X. Rienzi (um pseudnimo). Um deles aborda o trabalho dos geneticistas brasileiros. Logo na abertura do Legion Europa est uma resposta para a indagao Quem somos ns?. A linha argumentativa que seu objetivo reverter um quadro de enfraquecimento tnico e sciopoltico dos Euros, supostamente desencadeado pela influncia de outras raas, qualificadas como inferiores e parasitas. L-se:
Ns somos europeus (Euros), ou povos de vrias descendncias tnicas europias, que compartilhamos uma biocultura/biohistria tradicionalmente conhecida por Civilizao Ocidental. Nossa raa o solo a partir do qual o jardim conhecido como Civilizao Ocidental floresceu. Ns somos as abelhas que coletam o melhor de cada flor para fazer o mais doce dos mis, mas tambm podemos picar poderosamente aqueles que ousem pisar em nossos ps. Somos uma raa, com vrias tribos, mas ainda assim um povo com uma biocultura/bio-histria comum. Foi atravs da traio, da deslealdade contra nosso povo por parte dos OUTROS, que aqueles que no so de nossa raa grupos de fora ou outgroups - foram capazes de prosperar e atingir uma tal influncia nos eventos mundiais que nossa prpria existncia est agora ameaada por eles.

Perpassa todo o contedo do site um discurso que se apia em pressupostos de superioridade racial ariana, militarismo (h inmeras referncias aos espartanos, por exemplo), anti-semitismo (e tambm invocaes contra rabes e indianos) e valorizao do nacional socialismo alemo (Juventude de Hitler e SS como estruturas corporativas modelares), entre outros aspectos. Destaca-se tambm no discurso da Legion Europa a valorizao de conhecimentos cientficos e de tcnicas no terreno das cincias biolgicas, e sobretudo da gentica. o que se percebe na leitura da chamada Declarao dos Direitos Etno-raciais (um bvio paralelo com a Declarao dos Direitos Humanos da ONU), na qual h recorrentes referncias ao uso de tecnologias biolgicas para promover a recuperao de padres de homogeneidade e coerncia dos Euros:

v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

455

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Todo grupo etno-racial, incluindo todos os povos de descendncia europia, tem o direito de sobreviver ... Todo grupo etnoracial tem o direito de estabelecer qualquer que seja o grau de homogeneidade biolgica e cultural nas terras onde vive, incluindo o direito a estabelecer Estados-naes completamente homogneos, excluindo outros grupos etno-raciais ... O grupo etno-racial um grupo de parentesco extenso, uma famlia extensa. Do mesmo modo que uma pessoa tem o direito de promover os interesses de sua famlia, tambm deve ter o direito de promover os direitos de seu grupo etno-racial. No deve haver leis que impeam a promoo ampla dos interesses etno-raciais das pessoas. Deve haver liberdade completa de expresso e de reunio, para formar partidos polticos, para promover homogeneidade etno-racial e separatismo e para se opor globalizao e imigrao do tipo etno-racial ... Aos grupos etnoraciais deve ser permitido seguir quaisquer tipos de estratgias reprodutivas que desejem, incluindo endogamia, eugenia e clonagem humana ... A busca dos interesses etno-raciais deve receber a mais alta prioridade e dignidade. A todos deve ser permitido promover o melhor para seus respectivos povos, a ponto de no infringir de maneira injusta os direitos etno-raciais de outros grupos.

no bojo desse racismo extremado que se insere o ensaio de Rienzi (identificado como um bilogo da regio nordeste dos EUA) sobre a pesquisa dos geneticistas brasileiros publicada no PNAS em 2003. Antes de entrar no contedo das crticas propriamente, podemos conjeturar sobre as razes que levaram o Legion Europa a se interessar pelo trabalho dos pesquisadores brasileiros. Alm do tema (raa e gentica de populaes), o artigo foi veiculado em um peridico que considerado como um dos mais influentes do mundo.4 De fato, um veculo bastante prestigioso, publicado duas vezes por ms e que geralmente considera para publicao contribuies dos prprios membros da Academia Nacional de Cincias dos EUA ou trabalhos por eles indicados.5 Alm da visibilidade que o PNAS por si oferece aos artigos l publicados, o texto de Parra et al. foi selecionado pela assessoria de imprensa do peridico para compor a chamada pauta de sugestes (tipsheet dating), que preparada e disseminada a cada novo fascculo do peridico. Os trabalhos includos nessa pauta so previamente disponibilizados para a imprensa, de modo que os jornalistas tenham tempo para preparar matrias de divulgao. Dos aproximadamente 40 artigos que compunham o volume no qual saiu o trabalho de Parra et al., alm do prprio, somente trs outros foram selecionados, o que garantiu uma ampla divulgao da pesquisa gentica realizada no Brasil e nas mais diversas partes do mundo. A crtica de Rienzi ao estudo de Queixadinha ocupa em torno de quatro pginas. longa e minuciosa. Tem por ttulo uma indagao:
456
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

Cientistas provam que raa no existe?. Para o crtico do Legion Europa, o trabalho dos geneticistas brasileiros uma pea ideolgica travestida de cincia. Rienzi inicia seus comentrios afirmando que o trabalho dos pesquisadores brasileiros circulou amplamente na Internet por ocasio de sua publicao. Sua preocupao que se acredite que os resultados do estudo brasileiro possam ser extrapolados para outros contextos. Para tanto, faz meno a um ponto enfatizado no material de divulgao do PNAS, qual seja, de que os resultados da pesquisa apontam que no Brasil no se detecta uma clara correlao entre traos fsico-raciais e marcadores genticos de origem e ancestralidade. Segundo Rienzi, para a turma dos que negam raa, esse achado dos brasileiros prova que o conceito de raa invlido do ponto de vista biolgico. Recuperando um trecho de uma entrevista de Srgio Pena divulgada por ocasio da publicao do trabalho, quando o geneticista afirmou que as concluses do estudo aplicavam-se somente ao Brasil e que no devem ser ingenuamente extrapoladas para outros pases, Rienzi finda por concluir que o que se disseminou para o pblico geral que os resultados obtidos no estudo brasileiro teriam aplicabilidade universal. Depois de palavras introdutrias at moderadas, Rienzi parte para crticas extremamente cidas, que incluem at o contedo da epgrafe do trabalho de Parra et al. (Vejam vocs lderes, de todo o mundo, fazendo novamente! Pretos, brancos, amarelos, pardos, povos de todas as cores matando povos de todas as cores. Porque Sat sempre o mesmo, extrada do livro de S. L. Carter The Emperor of Ocean Park). Para ele, de uma maneira reveladora, por meio dessa epgrafe os geneticistas apresentam suas verdadeiras vises sobre a questo da raa de uma maneira sem vergonha, subjetiva e no cientfica. Indaga como um peridico como o PNAS pode veicular um texto to carregado de subjetividade sentimental. O restante das observaes de Rienzi compe um rosrio de questes tericas e metodolgicas que revelam uma leitura especializada e minuciosa do texto dos geneticistas. O articulista entra em pormenores acerca das caractersticas das amostras, critrios de classificao utilizados, nmero e tipos de marcadores genticos empregados, particularidades de interpretao de tabelas, grficos e testes estatsticos, entre outros pontos. Sua concluso a seguinte:
Em resumo, este artigo, de modo algum, invalida o conceito biolgico de raa. Que algum venha a fazer tal afirmao [com base nas evidncias apresentadas] altamente irresponsvel, para dizer o mnimo ... Pode-se indagar se, no que diz respeito aos temas relacionados biologia humana, estamos agora lidando com o mesmo tipo de establishment entrincheirado, com motivaes scio-polticas com as quais Galileu teve de lidar em
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

457

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

seu trabalho em astronomia. Se permitimos que o politicamente correto informe a pesquisa em gentica humana, estamos nos dirigindo de volta aos dias da Inquisio ... J tempo de parar de tentar deformar realidades naturais para as encaixar em ideologias polticas; ao invs disso, devem-se aceitar as realidades raciais existentes e lidar com elas da melhor maneira possvel.6

A proximidade distante: racialismo igualitrio e racialismo hierrquico


Paul Brodwin, a quem j nos referimos na Introduo, autor de um comentrio que, de certo modo, dissolve os limites entre o laboratrio e a sociedade: traar nossa ancestralidade atravs de um conjunto particular de alelos ou mutaes do cromossomo Y ou do DNA mitocondrial tornou-se no s um procedimento de laboratrio, mas tambm um ato poltico (2002, p. 324). Na sua viso, as premissas e as repercusses, sejam quais forem as respostas fornecidas pela gentica, so mltiplas e significativas. Que agentes sociais solicitaram a realizao dos testes e quem forneceu as amostras? Quem interpreta os resultados e quem os divulga? Em que contextos as novas interpretaes so lanadas em pblico? Como sero utilizadas? Nas sees anteriores buscamos recuperar dois conjuntos de recepes/reaes, oriundas de um ativista do movimento negro no Brasil e de um porta-voz de um movimento de extrema-direita europeu-norte-americano, que enfocaram resultados de investigaes genmicas recentes realizadas no Brasil. Ambos manifestaram pontos de vista abertamente crticos quanto aos resultados, repercusses e implicaes das pesquisas genmicas dos geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais. Athayde Motta referiu-se a Retrato Molecular do Brasil como um discurso poltico-ideolgico cuja funo primordial manter o estado de desigualdades raciais no Brasil; M. X. Rienzi, por sua vez, considera os estudos dos cientistas brasileiros como discursos no-cientficos, de natureza poltico-ideolgica a servio da conspurcao das realidades naturais, ou seja, da existncia de diferenas e hierarquias raciais. O que chamamos de proximidade (devidamente colocada entre aspas, por razes que exploraremos a seguir) evidencia, entre outros aspectos, a enorme influncia e fora que o conhecimento gentico possui no mundo contemporneo, no caso como fonte de questionamento acerca de noes de identidade e coeso de grupos sociais. Alcana um status, com visibilidade e legitimidade de tal ordem, que finda por colocar prximas dimenses e atores sociais que se localizam distantes no plano da ideologia e da ao poltica. No livro Ns e os outros: A reflexo francesa sobre a diversidade humana, o historiador e filsofo Tzvetan Todorov introduz uma
458
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

distino terminolgica que pode nos ajudar a compreender a tal proximidade qual nos referimos. Todorov enfatiza a diferena entre racialismo (de ordem ideolgica, uma doutrina referente s raas humanas) e racismo (de ordem comportamental, o mais das vezes, de dio e desprezo com respeito a pessoas com caractersticas fsicas bem definidas e diferentes das nossas, 1993, p.107). Antes de abordar Motta e Rienzi sob a tica do racialismoracismo, preciso compreender como a prpria gentica moderna, incluindo as pesquisas genmicas contemporneas no Brasil, na linha de Retrato Molecular do Brasil, se colocam diante dessa dade conceitual. A crtica ao conceito de raa a partir da gentica de populaes e do neodarwinismo j existe h muitas dcadas. Suas influncias estiveram presentes, por exemplo, por ocasio da elaborao das primeiras declaraes sobre raa da Unesco, ainda na dcada de 1950. Na agenda de combate ao racismo em diversas partes do mundo, na segunda metade do sculo XX, fez-se presente de modo pronunciado um iderio anti-racialista. Tal agenda enfatiza a noo de que o conceito de raa no cientificamente vlido, sendo pouco til para descrever a diversidade biolgica humana. A partir de tal nfase, era de esperar, por conseguinte, que seriam enfraquecidas algumas das importantes bases conceituais (existncia de raas) que levavam ocorrncia de tratamentos discriminatrios e reproduo de desigualdades sociais baseadas em raa. De certo modo, essa tem sido a posio de um significativo grupo de geneticistas. Como demonstra a elaborao das Declaraes sobre Raa da Unesco, emergiu no ps-guerra um biologia ou pelo menos um grupo de pesquisadores que advogava um homem universal e biologicamente equipado para a igualdade e o direito plena cidadania (nos termos de Donna Haraway, 1989; 1997). Pelo esforo de um grupo de bilogos, do qual constavam Theodosius Dobzhansky e Julian Huxley, era possvel articular biologia evolucionria e humanismo, visando estimular entre os seres humanos cooperao, dignidade, controle da agresso e progresso no clima ps Segunda Guerra (ver Santos, 1996). Retrato Molecular do Brasil herdeiro dessa influente tradio universalista, concomitantemente anti-racialista e anti-racista, que marcou uma significativa parcela das pesquisas sobre variabilidade biolgica humana ao longo da segunda metade do sculo XX.7 Mesmo que no necessariamente aceita em seu vis biolgico, a proposta interpretativa derivada das pesquisas genmicas encontrou ampla ressonncia positiva em vrios crculos no Brasil por conta sobretudo de suas implicaes. Mesmo estando cada vez mais evidente que o Brasil no uma democracia racial, como demonstram as estatsticas scio-econmicas, permanece a viso do pas como racialmente e culturalmente hbrido. Valorizada por largos
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

459

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

segmentos da sociedade brasileira, esta percepo sustenta que compartimentalizaes precisas so pouco discernveis, portanto em larga medida levando neutralizao de identidades raciais bem delimitadas. Com a autoridade e a valorizao conferida pela genmica, o quadro delineado pelas pesquisas genticas aproximase e d subsdios a esta vertente, ainda que os geneticistas reiterem a pouca relevncia do conceito de raa em sua acepo biolgica. Sobretudo, as narrativas sobre a (bio)histria da formao do povo brasileiro produzidas pela genmica, nos moldes de Retrato Molecular do Brasil, vm ao encontro de um imaginrio social amplamente arraigado que v na miscigenao um elemento positivo e definidor da identidade do Brasil enquanto nao. A aparente proximidade entre Motta e Rienzi torna-se infinitamente distante ao constatarmos que, se no primeiro predomina uma matriz racialista, mas eminentemente anti-racista, no segundo predomina o binmio extremo racialismoracismo. Mesmo diante dessas imensas diferenas, h um ponto de convergncia em relao s pesquisas genmicas, que repousa na crtica proposio de dissoluo de identidades (biolgicas e raciais) que transborda de Retrato Molecular do Brasil, ou seja, seu respaldo para uma perspectiva anti-racialista. Motta considera que prevalece no Brasil um sistema de relaes raciais arcaico e perverso, que finda por mascarar a existncia de discriminao e preconceito, favorecendo a persistncia de desigualdades. O anti-racialismo enfatizado pela gentica, como expresso em Retrato Molecular do Brasil e outras pesquisas genticas, visto por ele como solapando as bases que fundamentam possibilidades de identidades coletivas necessrias para organizar resistncias a opresses. Compartimentalizao e polarizao, com vistas a fortalecer identidades raciais, so modalidades de sociabilidade a serem implementadas em aes polticas visando combater o racismo, semelhana da experincia norte-americana. Se o racialismo de Motta tem, a princpio, o objetivo de superar iniqidades (sua crtica ao trabalho dos geneticistas mineiros est estreitamente associada s implicaes dos dados genticos para as discusses sobre a implementao de aes afirmativas no Brasil), o racialismo da Legion Europa tem precisamente o intuito de estabelecer e reforar iniqidades, em muitos planos. Ou seja, em um predomina um racialismo igualitrio; em outro, um racialismo hierrquico. Na proposta da Legion Europa, h o perigoso acoplamento entre racialismo (com forte teor biolgico) e racismo, que segundo Todorov produz resultados particularmente desastrosos: tal , precisamente, o caso do nazismo (1993, p. 107). Os elementos j apontados compartimentalizao, polarizao, antagonismo e conflito, novamente com vistas a fortalecer identidades raciais informam e constituem a essncia das apropria460
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

es de Rienzi em relao ao trabalho dos geneticistas brasileiros. A nfase na compartimentalizao por parte da Legion Europa (eufemisticamente) construda atravs de metforas que enfatizam jardim, flor e mel (Nossa raa o solo a partir do qual o jardim conhecido como Civilizao Ocidental floresceu. Ns somos as abelhas que coletam o melhor de cada flor para fazer o mais doce dos mis, mas tambm podemos picar poderosamente aqueles que ousem pisar em nossos ps), sob a qual se esconde forte dose de dio racial, eugenia, preconceito e hierarquia, representados pelo ferro das abelhas.

Relativizando polaridades
Quase trs dcadas atrs, Lvi-Strauss publicou em seu livro O olhar distanciado o captulo Raa e cultura. Trata-se de uma combinao de palavras que lembra o ttulo de seu muito conhecido Raa e Histria, originalmente de 1952, que foi escrito por encomenda da Unesco em sua iniciativa anti-racista no ps-holocausto (LviStrauss, 1960 [1952]). Em dado momento, Lvi-Strauss se refere ao aparecimento da gentica de populaes na cena antropolgica (1986, p. 14) para abordar os temas da raa e do racismo. Raa e cultura um testemunho de que as imbricaes entre antropologia e gentica no so to recentes assim. Nos dias de hoje, no incomum que, quando antroplogos refletem e escrevem sobre a gentica, refiram-se com freqncia s noes de biodeterminismos ou bio-reducionismos. o que sugere Roger Lancaster (2003, 2004) para a antropologia norteamericana contempornea. Como ressalta este autor, ao longo da ltima dcada, a biomitologia permeou a cultura americana como nunca antes. A idia de que aspectos de gnero, orientao sexual e instituies sociais so geneticamente (ou neuro-hormonalmente) determinadas floresce sombra do Projeto Genoma Humano (2004, p. 4). Enfatizando o papel da sociobiologia e da psicologia evolutiva nesse processo, Lancaster no atribui a disseminao de vises bio-reducionistas unicamente expanso de certos campos da cincia, mas sobretudo s formas como o conhecimento cientfico divulgado pelos meios de comunicao.8 Explicaes sobre a maneira como um pequeno conjunto de elementos, ou esse ou aquele gene ou estrutura biolgica, determina essa ou aquela caracterstica complexa, e com acenos para o desenvolvimento de drogas ou de outras tecnologias para fins de cura de doenas ou remediao de complexos problemas sociais, encontram amplo espao nos meios de comunicao. Segundo Lancaster, so fceis de serem veiculadas e absorvidas pelo grande pblico graas estrutura simplificada causaefeitosoluo que predominam nesses raciocnios. Mesmo que venha a ser refutada por pesquisas subseqentes,
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

461

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

reduzida a probabilidade de que a negao de uma dada formulao bio-reducionista venha a ganhar igual espao nos meios de comunicao que aquele conferido formulao original.9 Lancaster tambm observa que a nfase em essencializaes, com afinidades com bio-reducionismos, impregna certos debates sobre polticas de identidade nos Estados Unidos. Por exemplo, esse o caso de setores do movimento gay, que abraam a noo da existncia do gene gay para sustentar argumentos jurdicos relevantes nas discusses no campo dos direitos civis. Ou seja, proposies bio-reducionistas oriundas da biologia so absorvidas por segmentos de grupos sociais organizados, que as utilizam em suas formulaes de ao poltica no campo da delimitao e do fortalecimento de identidades. Sobre essa coalizo, ele comenta:
A poltica de identidade, a quintessncia da justificativa americana moderna para a ao social e a compensao poltica atravs da nfase em identidades essenciais profundamente enraizadas, oferece um solo frtil para o bio-reducionismo. Todos, incluindo tanto os marginalizados e oprimidos, quanto os dominadores, querem ter uma parte na ao ... Mais do que qualquer outra coisa, o reducionismo de hoje se prope a conferir estabilidade s identidades nos points de capiton [pontos de ancoragem] da biologia ou seja, almeja assegurar estabilidade e certezas numa era na qual quase nada sobre identidade ou biologia parece fixo ... Alm do mais, esta abordagem para garan-tir direitos bsicos e reconhecimento encontra ressonncia numa antiga tradio ocidental de entendimento do que natureza como aquilo que excede controle consciente e vontade. (2004, p. 5)

Quais as relaes entre essa digresso e o nosso estudo de caso? Mltiplas, incluindo que os debates em torno das pesquisas genmicas no Brasil so, no mago, discusses acerca de polticas de identidade. Se no caso apontado por Lancaster movimentos sociais podem vir a beber na fonte do reducionismo biolgico, incorporando algumas premissas em suas aes polticas, nos debates em torno de Retrato Molecular do Brasil o que temos a cincia solapando bases que aliceram posies no plano de polticas de identidades. As pesquisas genticas realizadas no Brasil evidenciam que, menos que essncias profundas e imutveis, o que se tem a revelao de uma notvel mistura. Com uma certa licena retrica, podese dizer que os resultados dos seqenciamentos do DNA evidenciam que as aparncias enganam; sob a pele, brancos se mostram em menor ou maior grau genomicamente africanos, e negros, em menor ou maior grau europeus. Uma mensagem subliminar de Retrato Molecular do Brasil que fentipo e gentipo podem ser largamente distantes. So, portanto, argumentos que primam pela
462
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

nfase na fluidez, instabilidade e indefinio de categorias no plano racial. Segmentos da sociedade, atravs de representantes de grupos organizados, sejam ligados ao movimento negro como Motta, mas sobretudo a extrema-direita de Rienzi, em diferentes graus vem no discurso anti-essencialista de Retrato Molecular do Brasil uma ameaa para suas premissas.10 Ressalte-se que a perspectiva antiessencialista que se depreende da pesquisa genmica pode se tornar pea relevante em jogos retricos de grande relevncia sciopoltica graas autoridade e legitimidade que desfruta na sociedade ocidental nos tempos atuais. Os debates em torno de Retrato Molecular do Brasil findam por desestabilizar o que o senso comum (ao menos no plano de algumas correntes das cincias sociais) tende a considerar como uma das polaridades mais comuns do im, qual seja, da biologia (e da gentica) como inexoravelmente atrelada proposio e defesa de princpios deterministas e essencializados. Se nos exemplos de Lancaster h coalizo entre uma certa vertente do pensamento biolgico e movimentos sociais, em Retrato Molecular do Brasil o embate frontal com a cincia, na defesa de um anti-essencialismo que visto como ameaador para certas pautas de ao social e poltica.11

Consideraes finais
Ao longo deste trabalho refletimos acerca das repercusses de pesquisas sobre a variabilidade biolgico-genmica da populao brasileira, em particular como vieram a se constituir em arena de disputa e contestao de premissas relacionadas a embates sciopolticos e histricos extremamente amplos. Num certo sentido, por meio da repercusso do estudo publicado no PNAS, Queixadinha, um povoado rural minsculo e pobre do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, que mal consta dos mapas nacionais e muito menos de atlas estrangeiros, tornou-se pea de um jogo que, em ltima instncia, atrela-se a embates discursivos relacionados permanente tenso tnico-racial derivada da imigrao das ex-colnias africanas e asiticas e dos pases do Leste para a Europa Ocidental, bem como do processo de unificao do continente europeu. Podemos nos indagar se, mediante a nfase na dimenso genmica, Queixadinha talvez no represente, sob novas vestes, a idia do Brasil como modelo analtico privilegiado em debates sobre miscigenao, raa e relaes raciais, como j o foi diversas vezes no passado.12 Nessa reatualizao do Brasil como paradigma de pas no qual se verificam, por meio da pesquisa genmica, os paradoxos da utilizao do conceito de raa, Queixadinha vista pela extrema direita representada pelo Legion Europa como um anti-modelo ferozmente contestado.
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

463

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Os elementos apresentados ao longo do texto tambm nos levam a refletir sobre o que, afinal, constitui a antropologia na era da gentica. Ser que estamos diante de uma situao de novas tecnologias biolgicas alimentando, direta ou indiretamente, a emergncia de novas configuraes ideolgicas? Os panoramas traados permitem-nos afirmar que, menos que uma combinao entre novas tecnologias biolgicas e novas configuraes ideolgicas, o que percebemos no horizonte , parafraseando Luiz Fernando Duarte, novas tecnologias biolgicas e velhas configuraes ideolgicas.13 DNA e genoma se hibridam com raa, tipologias e nacionalismos, tendo como pano de fundo questes de identidade e de transformao poltica que transcendem fronteiras nacionais especficas e atingem configuraes internacionais de amplo alcance. Podemos conceber o processo de genetizao da sociedade como o aglomerado de transformaes e gerao de novos significados no mbito das sociedades ocidentais que tm na nova gentica ou genmica uma de suas bases e importante elemento propulsor (Lippman, 1991). Sobre as relaes entre genetizao e identidades, Paul Brodwin (2002, p. 324) comentou: o conhecimento gentico emergente tem o potencial de transformar noes contemporneas de coerncia social e de identidade de grupo ... o que est em jogo a estima pessoal e autovalorizao, a coeso dos grupos, acesso a recursos e discusses sobre injustias histricas. Como procuramos argumentar, o significado das diferenas raciais, e sua prpria essncia e existncia, esto sendo reconstrudos pelos impactos da genmica. de indagar se esses novos conhecimentos e tecnologias alteram o panorama de maneira radical ou, pelo contrrio, reinstalam e reforam percepes sobre diferenas raciais de formas at mesmo mais insidiosas e deterministas. Na prtica, o que percebemos que as relaes entre conhecimento e tecnologias biolgicas e as diferenas raciais podem assumir mltiplas formas a depender do contexto scio-poltico no qual se instauram. Vimos que a chamada genetizao da dinmica social na linha de Retrato Molecular do Brasil no leva necessariamente a uma maior ou mais intensa naturalizao das diferenas raciais. Parafraseando Paul Gilroy, deriva da pesquisa sobre a genmica dos brasileiros uma perspectiva contra raa que renuncia de maneira deliberada e autoconsciente a noo de raa como forma de categorizar e dividir a humanidade (2000, p. 17). Portanto, necessrio relativizar a premissa segundo a qual o processo de genetizao da sociedade, at mesmo com seus desdobramentos no plano das polticas de identidade, sempre sinnimo de determinismo, essencializao e hierarquia, atributos que tendem a ser inexoravelmente atrelados biologia por uma larga gama de reflexes scio-antropolgicas.14
464
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

Nossos agradecimentos aos dois pareceristas annimos de Histria, Cincias, Sade Manguinhos pelos instigantes comentrios. Uma primeira verso deste trabalho foi apresentada no simpsio Antropologia na Era da Gentica, realizado durante a XXIV Reunio Brasileira de Antropologia, Recife, 12 a 15 de junho de 2004.

No instvel e complexo tabuleiro no qual interagem conhecimento cientfico, racismo e racialismo, contextos locais e transnacionais e pautas de reivindicaes de movimentos sociais os mais diversos, a abordagem genmica para a variabilidade biolgica humana firma-se como dimenso que rearticula padres de proximidade e distncia entre beneficirios das hierarquias raciais e grupos que tm sido subordinados atravs da dimenso racial, nos termos de Gilroy. Se a ultra-moderna linguagem dos genes e do DNA consolida-se como extremamente influente nos debates sobre polticas de identidade no mundo contemporneo, a hiperantiga perspectiva da raa e de diferenas essencializadas perdura como elemento que ainda est longe de ser ofuscado, mas que experimenta constante reconfigurao em sua interao com conhecimentos e tecnologias emergentes.

NOTAS
1 A abertura do site do Legion Europa (www.legioneuropa.org) apresenta as seguintes entradas: Who we are; What we believe; What to do?; Euroholidays; Ideology of Ethnicity; Culture; Racial Diversity; History; Race Reality; Commentaries; Links. A pgina eletrnica esteve on-line at pelo menos fevereiro de 2004, no tendo voltado a ser disponibilizada at o presente (jun. 2005). Todo o material contido no site, em 2.11.2003, foi impresso e uma cpia dessa documentao depositada na Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2

Outro exemplo quanto s possibilidades de atrelamento entre conhecimento gentico e questes sociais, com implicaes para o campo das polticas pblicas, o recm-publicado artigo Pode a gentica definir quem deve se beneficiar das cotas universitrias e demais aes afirmativas?, de Pena & Bortolini (2004).

Curiosamente, quando o intuito da pesquisa gentica o de revelar padres de ancestralidade dos negros, Motta a apresenta de uma maneira bastante positiva. o caso de um documentrio intitulado Motherland: a Genetic Journey, produzido pela BBC. Nele so apresentados resultados quanto s origens genticas de britnicos afro-caribenhos. Participantes do programa, depois de realizados os testes genticos, viajaram s regies de seus antepassados (identificadas a partir das evidncias genmicas) de modo a entender um pouco mais sobre a cultura da qual, em alguns pontos, compartilham at hoje. Complementam os comentaristas: Ter o respaldo de um centro cientfico reconhecido foi importante para Motherland. No apenas para assegurar a seriedade do programa, mas tambm para provocar no meio cientfico a reflexo sobre [o fato] de que genes e cromossomos podem representar muito mais do que a definio do sexo de um animal (Cesar & Motta, 2004). Santos & Maio (2004) comentam sobre essa construo da imagem de uma gentica do bem.
4

A verso on-line do PNAS recebe cerca de quatro milhes de consultas por semana, segundo consta na pgina da Internet do peridico (www.pnas.org/misc/about.shtml, acessado em 24.5.2004). No caso do artigo de Parra et al., a indicao partiu de Francisco Mauro Salzano, eminente geneticista da UFRGS e um dos dois nicos cientistas brasileiros membros da Academia Nacional de Cincias dos Estados Unidos, que publica o PNAS.

Para fins de sistematizao, vale destacar alguns aspectos da crtica do Legion Europa. Primeiro, baseia-se somente no texto publicado no PNAS (sequer so mencionados os trabalhos publicados no American Journal of Human Genetics ou na Cincia Hoje). Segundo, preocupa particularmente o crtico a ressonncia do trabalho dos geneticistas brasileiros na mdia internacional, e que os resultados possam ser extrapolados para contextos outros que no o Brasil. Terceiro, so comentrios com grande nfase em aspectos tcnicos (referentes biologia molecular e outras dimenses da metodologia), que partem de algum que se considera da mesma comunidade dos cientistas (ou seja, da rea de gentica de populaes).
7

Segundo Santos & Maio (2004, p. 86), No bojo dessa perspectiva, o homem brasileiro apresentado pelos geneticistas, uma vez livre de perspectivas racistas e consciente de sua biologia, estaria em melhores condies para buscar a equidade e a cidadania plena, para si e para seus pares. No caso de Retrato Molecular do

v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

465

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Brasil e das demais pesquisas genticas de Pena e colaboradores, os resultados, considerados pelos cientistas como propcios construo de possibilidades democrticas, foram apropriados e/ou traduzidos de modo distinto por outros segmentos envolvidos no debate sobre raa e relaes raciais no Brasil.
8 Sobre esse tema, ver Condit (1999), Horgan (1993), Massarani et al. (2003) e Rose (1997), bem como inmeros artigos no peridico Public Understanding of Science. 9

A propsito, as reflexes de Lancaster tm um ar de nostalgia, quando ele observa que esses novos bioreducionismos e essencializaes, atualmente prevalentes tanto em alguns crculos acadmicos como na cultura popular (norte-americana), no somente revertem dcadas de sofisticada teorizao sobre a cultura e de pesquisa emprica sobre variabilidade cultural; vm tambm tomar um lugar que a antropologia anteriormente ocupava na esfera pblica, agora progressivamente dominada por explicaes simplrias e de fcil absoro (Lancaster, 2004, p. 4).
10 Sobre Retrato Molecular do Brasil, Athayde Motta fez o seguinte comentrio: a informao de que 60% da populao branca brasileira descende de negros e ndios pode dar algum combustvel para quem gosta de dizer que no existem brancos no Brasil, mas no a gentica quem vai tornar isto possvel. Dentro dos padres de relaes raciais e culturais de nossa sociedade, a definio do ser branco est longe de ser uma questo de gentica ou biologia (2000a). O pomo da discrdia na perspectiva de Motta no propriamente o antiessencialismo da gentica, mas um anti-essencialismo que, originado no plano biolgico, pode penetrar no plano scio-cultural e se tornar definidor de vises de mundo. 11 A esquematizao de Manuel Castells sobre as formas e as origens da construo de identidades til para refletir sobre o nosso tema. Castells se refere identidade legitimadora, identidade de resistncia e identidadeprojeto. Esta ltima acontece quando os atores sociais, com base no material cultural a sua disposio, constroem uma nova identidade que redefine sua posio na sociedade e, conseqentemente, se propem a transformar o conjunto da estrutura social (Castells 1997, p. 8; ver tambm Calhoun, 1994). Tanto a noo de afro-descendentes como a de europeus podem ser compreendidas luz da noo de identidade-projeto, no recorte das relaes raciais. O que ocorre que a gentica, atravs de Retrato Molecular do Brasil, em menor ou maior escala, desestabiliza importantes premissas que amparam essas identidades-projeto, da a resistncia manifestada por Motta e Rienzi.

possvel que Queixadinha oferea, em termos de modelo analtico para fins de estudos genmicos sobre raa e diversidade biolgica do povo brasileiro no incio do sculo XXI, o equivalente ao que representaram as pesquisas sobre comunidades rurais tradicionais do interior da Bahia, coordenadas por Charles Wagley na dcada de 1950, no mbito de um conjunto de investigaes promovido pela Unesco no ps-holocausto. Como enfatizou Wagley na introduo de Race and Class in Rural Brazil, que apresenta os resultados das pesquisas etnogrficas realizadas nas vrias localidades, o mundo tem muito a aprender com o estudo das relaes raciais no Brasil ... Os vrios projetos sobre o tema das relaes raciais, os quais foram estimulados pelo projeto Unesco no Brasil, devem nos dar pela primeira vez um conhecimento objetivo da situao tal como ela existe sob uma variedade de condies por todo este vasto e diversificado pas (Wagley, 1952, p. 89). Sobre o Brasil nos debates envolvendo raa e racismo no ps-guerra, ver Maio (1998; 2001).
13

12

Comentrio durante discusso no grupo de trabalho Pessoa e corpo: novas tecnologias biolgicas e novas configuraes ideolgicas, coordenado por Luiz Fernando Dias Duarte e Jane Russo, XXVII Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, 25-27 out. 2003).
14 Sobre esse ponto ver a excelente discusso de Peter Wade (2002) em seu recente livro Race, Nature and Culture (em particular, os captulos 5 e 6).

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS Alves-Silva, J. et al. 2000 Brodwin, Paul 2002 Calhoun, G. 1994 Callegari-Jacques, S. M. et al. 2003 The ancestry of Brazilian mtDNA lineages. American Journal of Human Genetics, v. 67, p. 444-61. Genetics, identity, and the anthropology of essentialism. Anthropological Quarterly, v. 75, p. 323-30. Social theory and the politics of identity. In: Calhoun, G. (org.) Social Theory and the Politics of Identity. Oxford, Blackwell. Historical genetics: spatiotemporal analysis of the formation of the Brazilian population. American Journal of Human Biology, v. 15, p. 824-34.

466

Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES

Carvalho-Silva, D. R., Santos, F. R., Rocha, J.; Pena, S. D. J. 2001 Castells, Manuel 1997 Condit, C. M. 1999 Gaspari, Elio 16.4.2000. Gilroy, Paul 2000 Gilroy, Paul 1998 Goodman, A. H.; Heath, D.; Lindee, M. S. (org.) 2003 Haraway, Donna 1997 Haraway, Donna 1989 Horgan, J. 1993 Lancaster, Roger N. 2004 Lancaster, Roger N. 2003 Lvi-Strauss, Claude 1986 Lvi-Strauss, Claude 1960 Lippman, A. 1991 Maio, Marcos Chor 2001 Maio, Marcos Chor 1998 Massarani, L.; Moreira, I.; Magalhes, I. 2003 Parra, F. C. et al. 2003 Pena, Srgio D.; Bortolini, M. C. 2004

The phylogeography of Brazilian Y-chromosome lineages. American Journal of Human Genetics, v. 68, p. 281-6.

The power of identity. vol. II. The information age: economy, society and culture. Malden: Blackwell. The meaning of the gene: public debates about human heredity. Madison: University of Wisconsin Press. O branco tem a marca de Nana. Folha de S. Paulo, Caderno A, p. 14. Against race: imagining political culture beyond the color line. Cambridge: Harvard University Press. Race ends here. Ethnic and Racial Studies, v. 21, p. 838-47. Genetic nature/culture: anthropology and science beyond the two-culture divide. Berkeley: University of California Press.

Modest-witness, Second-millennium: femaleman meets oncomouse: feminism and technoscience. London: Routledge. Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. New York & London: Routledge. Eugenics revisited: trends in behavioral genetics. Scientific American, v. 268, n. 6, p. 122-8. The place of anthropology in a public culture reshaped by bioreductivism. Anthropology News, v. 45, n. 3, p. 4-5. The trouble with nature: Sex in science and popular culture. Berkeley: University of California Press. O Olhar Distanciado. Lisboa: Ed. 70. Raa e histria. (Raa e Cincia I.) So Paulo: Perspectiva. Prenatal genetic testing and screening: constructing needs and reinforcing inequities. American Journal of Law and Medicine, v. 17, p. 15-50 Unesco and the study of race relations in Brazil: regional or national issue? Latin American Research Review, v. 36, p. 118-36. O Brasil no Concerto das Naes: a luta contra o racismo nos primrdios da Unesco. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, v. 5, p. 375-413. Quando a gentica vira notcia: um mapeamento da gentica nos jornais dirios. Cincia e Ambiente (Santa Maria), v. 26, p. 141-8. Color and genomic ancestry in Brazilians. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 100, p. 177-82. Pode a gentica definir quem deve se beneficiar das cotas universitrias e demais aes afirmativas? Estudos Avanados (Universidade de So Paulo, SP), v. 18, n. 50, p. 31-50.

v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005

467

RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO

Pena, Srgio D. et al. 2000 Rabinow, P. 1992 Rose, S. 1997 Salzano, Francisco M.; Bortolini, M. C. 2002 Salzano, Francisco M.; Freire-Maia, Newton 1967 Sans, M. 2000 Santos, Ricardo Ventura; Maio, Marcos Chor 2004 Santos, Ricardo Ventura 1996 Todorov, Tzvetan 1993 Wade, Peter 2002 Wagley, Charles (org.) 1952

Retrato Molecular do Brasil. Cincia Hoje, n. 159, p. 16-25. Artificiality and enlightenment: from sociobiology to biosociality. In: Crary, J.; Kwinter; S. (org.) Incorporations. New York, Zone Books. p. 234-52. A perturbadora ascenso do determinismo neurogentico. Cincia Hoje, n. 126, p. 18-27. The evolution and genetics of Latin American Populations. Cambridge: Cambridge University Press. Populaes brasileiras: aspectos demogrficos, genticos e antropolgicos. So Paulo: Ed. Nacional/Ed. USP. Admixture studies in Latin America: from the 20th to the 21st century. Human Biology, v. 72, p.155-77. Qual retrato do Brasil? Raa, biologia, identidades e poltica na era da genmica. Mana: Estudos de Antropologia Social, v. 10, n. 1, p. 61-95. Da morfologia s molculas, de raa populao: trajetrias conceituais em antropologia fsica no sculo XX. In: Maio, Marcos Chor; Santos, Ricardo Ventura (org.) Raa, Cincia e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. p. 125-40. Ns e os outros. A reflexo francesa sobre a diversidade humana. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Race, nature and culture: an anthropological perspective. London: Pluto Press. Race and class in rural Brazil. Paris: Unesco.

FONTES ELETRNICAS Cesar, R.; Motta, Athayde Motta, Athayde Motta, Athayde Motta, Athayde Motta, Athayde Motherland: uma viagem gentica. Disponvel em: www.afirma.inf.br, acesso em: 26.5.2004. Contra a gentica, o conhecimento. Disponvel em: www.afirma.inf.br , acesso em: 4.2.2003. Saem as raas, entram os genes. Disponvel em: www.afirma.inf.br, acesso em: 15.9.2002. Gentica para as massas. Disponvel em: www.afirma.inf.br, acesso em: 11.10.2000. (2000a) Gentica para uma nova histria. Disponvel em: www.afirma.inf.br, acesso em: 11.10.2000. (2000b)

Recebido para publicao em outubro de 2004. Aprovado para publicao em janeiro de 2005.

468

Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

Você também pode gostar