Revista Brasileira de Literatura Comparada - 09

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Diretoria A B R A L I C 2005/06

Presidente Jos Lus Jobim (UERJ/UFF)


Vice-presidente Lvia Reis (UFF)
1 Secretrio Antonio Carlos Secchin (UFRJ)
2 Secretrio Joo Cezar de Castro Rocha (UERJ)
1 Tesoureiro Roberto Aczelo Quelha de Souza (UERJ)
2
0
Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ)
Conselho Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG)
Eduardo Coutinho (UFRJ)
Gilda Neves Bittencourt (UFRGS)
Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA)
Maria Ceclia Queirs de Moraes Pinto (USP)
Maria Eunice Moreira (PUC/RS)
Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Suplentes Mrcia Abreu (UNICAMP)
Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Conselho editorial Benedito Nunes, Bris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,
Joo Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar,
Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago,
Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel.
ABRALIC
C.G.C.04901271/0001-79
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Instituto de Letras
Rua So Francisco Xavier 524, 11
0
andar - CEP 20559-900
Bairro Maracan - Rio de Janeiro 1 RJ
Fone/Fax: (21) 2587-7313
E-mail: [email protected]
4 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
2006 Associao Brasileira de Literatura Comparada
A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- Dl 03-6963J uma
publicao anual da Associao Brasileira de Literatura Comparada
(AbralicJ, entidade civil de carter cultural que congrega prOfessores
universitrios, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada,
fundada em Porto Alegre, em 1986.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poder ser
reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,
sem permisso por escrito,
Editores Jos Lus Jobim
Lvia Reis
Antonio Carlos Secchin
Joo Cezar de Castro Rocha
Roberto Aczelo de Souza
Claudia Maria Pereira de Almeida
Formatao e Casa Doze Projetos & Edies
produo grfica
Tiragem 2000 exemplares
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associao
Brasileira de Literatura Comparada - v,l, n,l (1991 ),-
Rio de Janeiro: Abralic, 1991-
v, ,n,9, 2006
ISSN 0103-6963
1 , Literatura comparada - Peridicos, I. Associao
Brasileira de Literatura Comparada,
CDD 809,005
CDU 82,091 (05)
A revista e o X Congresso Internacional
da ABRALlC
Jos Lus Jobim
Lvia Reis
Antonio Carlos Secchin
Joo Cezar de Castro Rocha
Roberto Aczelo de Souza
Claudia Maria Pereira de Almeida
editores
5
Este segundo nmero da Revista Brasileira de Literatura
Comparada, editado em nossa gesto, aponta para a possibilidade
de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de dar nfa-
se aos peridicos cientficos que tenham periodicidade no mnimo
bianual nas avaliaes do QUALIS.
O lanamento desta edio no X Congresso Internacional
da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006,
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em promoo
conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universida-
de Federal do Rio de Janeiro - faz parte tambm das comemora-
es referentes aos 20 anos de atividades ininterruptas de nossa
associao, como no poderia deixar de ser.
Agradecemos aos pesquisadores de todo o pas e do exteri-
or que responderam ao callfor papers, e no podemos deixar de
dizer que gostaramos de ter mais espao para acolher ainda mais
artigos do que o j elevado nmero que ora publicamos. De todo
modo, a prpria diversidade dos articulistas que contribuem para
este nmero uma comprovao expressiva da importncia nacio-
nal e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado.
Agradecemos tambm aos nossos pareceristas ad hoc, que
trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudssemos lan-
ar este nmero ainda em nosso evento de 2006.
Quanto ao evento em si, foi no perodo entre 31 de julho e
04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso da ABRALIC,
6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo profes-
sores e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contan-
do com mais de 2.000 inscritos.
sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fundada em
1986, na UFRGS, completando assim 20 anos em 2006. Desde
ento, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas se-
guintes Universidades: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC,
UFBa, UFMG e UERJ. Seus ltimos dois congressos (UFMG e
UFRGS) reuniram, cada um, cerca de 1.700 professores e pesqui-
sadores. Hoje, a ABRALIC a associao cientfica mais antiga e
com maior destaque na nossa rea, e a maior associao de estu-
dos literrios da Amrica Latina. Sua diretoria eleita bianualmente,
compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus mem-
bros so da VERJ, UFF e UFRJ), responsveis por todas as ativi-
dades no binio. H tambm um Conselho, integrado por ex-pre-
sidentes e por pesquisadores de destaque na rea, que dialoga
com a diretoria, nos assuntos de interesse da ABRALIC.
O X Congresso Internacional da ABRALIC discutiu o lo-
cal, o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetrio: lu-
gares dos discursos literrios e culturais, e teve como subtemas:
Lugares dos discursos literrios e culturais. Construo de iden-
tidades: local, regional, nacional, internacional, tnica, sexual,
lingstica, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Me-
trpole e colnia. O colonial e o ps-colonial. Herana ibrica e
Novo Mundo. Relaes culturais e blocos transnacionais
(MERCOSUL e Unio Europia). Exceo cultural e
globalizao. Homogeneidade e heterogeneidade. Polticas cul-
turais nacionais e internacionais. Intersees, compartilhamentos,
articulaes, singularidades, diferenas, assimetrias e hierarquias
nos fluxos literrios e culturais. Quadros de referncia da circula-
o e aquisio do saber cultural e literrio. As teorias e seus
lugares de enunciao. Modos de ver, modos de julgar, descries
e prescries.
Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu
tanto o Encontro Regional da ABRALIC-2005 quanto este X Con-
gresso Internacional da ABRALIC, convm aqui reiterar a nossa
concepo deste termo:
"Um lugar , antes de mais nada, uma construo elaborada
A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC
I Jobim, J.L. ABRALIC:
Sentidos do seu lugar. Rev.
Brasileira de Literatura
Comparada, Rio de Janeiro, 8,
p. 95-112, 2006.
por vrias geraes de homens e mulheres que nele habitaram
ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que
tem. Ele constitudo por redes pblicas de sentido, formado-
ras de subjetividade. Nele se constituem interpretaes pbli-
cas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste
lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar,
circulam elementos que de algum modo impem sentido s
experincias singulares dos sujeitos, elementos em relao aos
quais estes sujeitos interpretam suas experincias (e os textos
que lem), bem como direcionam suas aes. Em outras pala-
vras, o lugar sempre fonte de pr-concepes que de alguma
maneira contribuem para a elaborao de nosso dizer, pois
nele se situa o sistema de referncias deste dizer - incluindo
determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, siste-
ma que sempre j estabelece um limite dentro do qual nosso
campo de enunciao se circunscreve. Lugares tm sempre
histria, e mesmo o apagamento de certos elementos
constitutivos da histria do lugar tambm decorrente de ra-
zes histricas." 1
Mais do que nunca, hoje, faz-se necessrio estudar as corre-
laes entre os lugares e os discursos literrios e culturais, gerando
construes de toda ordem, derivadas no s de relaes polticas
assimtricas, mas tambm de todo um quadro complexo de interse-
es, compartilhamentos, articulaes, singularidades, diferenas,
assimetrias e hierarquias nos fluxos literrios e culturais.
Com o evento de 2006, pretendemos, entre outras coisas:
1) Dar prosseguimento ao trabalho acadmico que at o presente
momento vem caracterizando o perfil da Associao Brasileira de
Literatura Comparada (isto , situar o estudo da Literatura em
relao a problemas tericos fundamentais para a discusso do
quadro de referncias em que se situam estes estudos, bem como
em relao a pesquisas desenvolvidas em outras reas das Cinci-
as Humanas); 2) Buscar uma maior integrao acadmica entre os
associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias inter-
universitrias, a partir da realizao dos simpsios temticos e da
sinergia gerada pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuio re-
flexiva em relao aos quadros de referncia que delimitam fluxos
literrios e culturais; 4) Incentivar a emergncia de novas parceri-
as e projetos entre pesquisadores da rea; 5) Enfocar as mais re-
centes teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a
7
8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
atividade literria e seu papel de verdadeira interseco entre as
diversas reas de conhecimento, perspectiva que mantm o car-
ter multidisciplinar dos eventos da ABRALIC.
Tivemos a presena dos seguintes pesquisadores, como con-
ferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC, todos com
reconhecida qualificao e produo acadmica: Ana Pizarro (Uni-
versidade de Santiago de Chile), Benjamin AbdallaJr. (USP), Edson
Rosa da Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich
Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa
Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca
(Universidad de la Repblica - Uruguai), Jean-Marc Moura
(Universit de Lille), Luisa Campuzano (Universidade de Hava-
na), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman
(PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso
(Universidade de Roma - La Sapienza), Zil Bernd (UFRGS).
Ressalte-se que a publicao em livro das conferncias, a
exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional
da ABRALIC-2006, permitir a um pblico mais amplo o acesso
ao resultado do evento.
As atividades, em todos os dias do congresso, foram distri-
budas em mesas-redondas, na parte da manh e ao final da tarde,
da qual participaram os pesquisadores convidados, e em Simpsios,
organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela
Comisso Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez)
mesas-redondas, cada uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (se-
tenta e um) Simpsios, funcionando em um turno (manh ou tar-
de), durante os dias do evento.
Trs universidades participam diretamente da organizao des-
se Encontro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
sede do evento, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria da ABRALIC
foi responsvel pela organizao, junto com uma Comisso
Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: Jos Lus
Jobim (UERJIUFF); Lvia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin
(UFRJ); Joo Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Aczelo
Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almeida
(UERJ); Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lcia de Souza
Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo
Bouas Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ)
A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC
Alm dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, in-
dispensveis para tornar possvel a realizao do X Congresso In-
ternacional da ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles
cujo trabalho foi fundamental para o sucesso do empreendimento.
Para terminar, gostaramos de chamar a ateno sobre o novo
sistema de envio de todos os textos completos das comunicaes a
serem apresentadas em cada simpsio, para publicarmos, de modo
que, no primeiro dia do Congresso, cada participante pudesse rece-
ber, junto com o material do congresso, os anais, com a sua comu-
nicao j publicada.
9
Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de
simpsios, a seu critrio, pudessem fazer apenas a discusso dos
trabalhos, j que estes estavam disponveis bem antes do evento.
Este um novo procedimento, j que o prprio formato dos con-
gressos de nossa rea no beneficia um possvel aprofundamento
crtico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura bsica de
nossos congressos consiste em apresentaes de cerca de 20 minu-
tos, sem discusso posterior - ou, pelo menos, sem uma discusso
que merea, at pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como
relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invs de se levarem
papers que so lidos sem discusso, se possa introduzir a prtica de
disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedi-
car-se apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a
um maior adensamento geral das argumentaes desenvolvidas so-
bre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalizao
de opinies contrrias, obriga ao acuramento de posies. Ressal-
te-se que tanto a deciso sobre a disponibilizao e circulao (ou
no) dos textos antes do evento (por exemplo, atravs de anexos
em e-mails para os participantes dos simpsios) quanto a sua forma
de apresentao ou discusso no prprio evento foram decises
does) prprio(s) coordenador(es) de cada simpsio.
A todos os scios e participantes do X Congresso Internaci-
onal da ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuio.
Sumrio
A revista e o X Congresso Internacional 5
da ABRALlC
Artigos
A formao, os deslocamentos: modos de escrever
a histria literria brasileira
Joana Luza Muylaert 1 3
Antonio Candido e o projeto de Brasil
Regina Zilberman 35
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos 49
A crnica na imprensa peridica oitocentista:
Machado de Assis e a formao do pblico leitor
Patrcia Ktia da Costa Pina 65
O marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias
de publicao de um romance como folhetim
Socorro de Ftima Pacfico Vilar 79
De So Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana
para Monteiro Lobato
Marisa Lajolo 99
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
Dlia Cambeiro 1 07
Matriaux pour une tude de la rception de la littrature
brsilienne en France
Pierre Rivas 1 29
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos
trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
Andra Borges Leo 141
Os cadernos de campo de Roger Bastide:
entrecruzamentos mltiplos
Maria de Lourdes Patrini-Charlon 161
Da representao do horror ao vazio da representao
Edson Rosa da Silva 1 81
12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A literatura e a virtualizao do texto literrio
Rogrio Lima 191
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais
Ana Cludia Viegas 213
O hipotexto de N 011
Luiz Gonzaga Marchezan 229
Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
Marlia Librandi Rocha 243
Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes
ngela Maria Dias 259
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de
Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti
Maria Luza Berwanger da Silva 269
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade
e Fernando Pessoa
Maria Esther Maciel 283
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
Thais Flores Nogueira Diniz 293
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
Laura Cavalcante Padilha 307
Resenhas
Dom Quixote: utopias
Andr Trouche e Lvia Reis, org.
Rodrigo F. Labriola 323
Conceitos de literatura e cultura
Eurdice Figueiredo, org.
Maisa Navarro 327
Jacques Derrida: pensar a desconstruo
Evando Nascimento, org
Carla Rodrigues 330
Histria. Fico. Literatura.
Luiz Costa Lima
Srgio Alcides 336
Apresentao dos autores 345
A formao, os deslocamentos:modos
de escrever a histria literria brasileira
Introduo
Joana Luza Muylaert de Arajo
(UFU)
As relaes entre culturas literrias diversas tm recebido
da crtica brasileira contempornea tratamentos distintos, confor-
me o ponto de vista terico inseparvel das escolhas do crtico e
da sua sensibilidade para certos temas, autores e textos, e no
outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisria e
inacabada das interpretaes assumida explicitamente nos tex-
tos de crticos e historiadores da literatura. A pergunta que ento
proponho, neste trabalho, refere-se possibilidade de se postular
histrias da literatura brasileira orientadas para os vazios, para as
rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e
orgnico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a
tradio ou a formao de textos cannicos brasileiros.
Em sntese, a proposta tambm poderia ser nos termos, a
seguir, formulada: compreendendo a formao da literatura brasi-
leira no como linha evolutiva de uma identidade essencialista e
original a ser revelada, mas como imagem construda no cruzamen-
to da cultura e da subjetividade dos diversos intrpretes, passara-
mos ento a identificar vriasformaes da literatura brasileira, tantas
quantas propuseram os historiadores desde o romantismo.
Em outras palavras, o que poderamos interpretar, talvez
equivocadamente, como desacertos da crtica, oferece-nos ao con-
trrio os elementos indispensveis para a afirmao de uma escri-
ta caleidoscpica da histria, diversa e dispersa, com as aporias
incontornveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crtica
e historiografia.
A hiptese aqui apresentada pressupe a reavaliao de ques-
l3
14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tes tericas pertinentes ao campo da historiografia literria, bem
como ao terreno da crtica no Brasil, marcada pela insistncia no
descompasso das produes literrias brasileiras em relao s lite-
raturas europias. E, uma vez que toda opo terica nos com-
promete em atitudes prticas, o ponto de vista escolhido me le-
vou a assumir o gesto propositivo de afirmar em relao aos
textos no o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles
efetivamente se realizou.
Nesse gesto est implicada, portanto, uma perspectiva crti-
ca em relao s abordagens totalizantes da literatura brasileira,
uma perspectiva plural e mais arriscada da histria literria como
representaes assumidamente fragmentadas e inacabadas ou, nas
palavras de Siegfried J. Schmidt, como construes "to
multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO,
1996, p. 116). E desse ponto de vista que proponho examinar a
possibilidade de outras escritas da histria literria brasileira, alm
das que vem sendo elaboradas a partir da idia de "formao" como
um percurso evolutivo, relativamente contnuo, de estilos, formas e
temas literrios ou, ainda, como superao da tradio.
A reflexo pretendida implica, em sntese, afinidade com as
principais vertentes da historiografia literria contempornea, com-
prometidas com a redefinio dos paradigmas que sustentaram a
historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de lite-
ratura nacional, de histria e narrativa ficcional enquanto gneros
estanques, de poca e de periodizao e, particularmente, a cate-
goria dos textos cannicos, os chamados clssicos universais da
literatura. So questes da teoria literria, inseparveis da
historiografia, que o historiador contemporneo - compelido a
problematizar o seu ofcio - deve incorporar na sua escrita. Duplo
desafio, portanto: alm de uma inescapvel opo terica entre as
diferentes concepes a respeito da histria, deve ao mesmo tem-
po teorizar sobre as mudanas constantes dos padres estticos
ou as vrias representaes do que chamamos literatura, pois do
historiador se espera que assuma a responsabilidade crtica,
explicitando seus pressupostos tericos e seus mtodos, revelan-
do, at onde isso possvel, as marcas de sua subjetividade na
construo das histrias que narra e problematiza.
No caso dos crticos brasileiros, distinguimos aqueles que,
em seus trabalhos de crtica historiogrfica, vm promovendo des-
A fonnao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
locamentos importantes nos modos de percepo de tudo o que
se compreendeu at ento como histria da literatura nacional,
tanto no que se refere a uma suposta brasilidade perceptvel nos
textos considerados quanto no que diz respeito a uma tambm
presumvel continuidade de formas e estilos sucedendo-se numa
relao linear de causas e efeitos. Antes, porm, de expor algumas
propostas dentre as mais representativas de uma historiografia no
apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crtica de suas
prprias premissas, considero necessria uma breve nota sobre o
s-entido da idia de "formao" e seus desdobramentos na
historiografia literria moderna no Brasil, destacando-se os traba-
lhos de Antonio Candido e Roberto Schwarz.
o sentido da formao na historiografia de Antonio
Candido
Momento decisivo para a historiografia literria brasileira
o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crtica
de autores como Silvio Romero e Jos Verssimo, desenvolver
conceitos fundamentais como os de sistema e formao literria,
pilares de seu trabalho historiogrfico, construdo a partir da idia
de que, como todo discurso, a histria literria brasileira consiste
na construo poltica/ideolgica de um projeto mais ou menos
consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e ins-
tituies, interessados em solidificar a sua prpria literatura. Com
o necessrio distanciamento em relao ao mecanicismo de algu-
mas abordagens sociolgicas da literatura, o autor pretende, con-
forme ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpreta-
o dialtica", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vida
artstica e literria nos seus diferentes momentos" (CANDIDO,
1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crtico dispe de um
conjunto de princpios balizadores das anlises que empreender.
Em linhas gerais, a noo de sistema desenvolvida pelo
autor, sustenta-se na inter-relao dos trs fatores - produo,
recepo e transmisso - que asseguram a formao e a continui-
dade de uma tradio literria no pas. A respeito, escreve o autor,
explicitando seu mtodo, que a mtua dependncia entre autor,
obra e pblico interessa na medida em que "esclarecer a produo
artstica", pois importa estudar as relaes da literatura com a
15
16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vida social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite per-
ceber "o movimento dialtico que engloba a arte e a sociedade
num vasto sistema solidrio de influncias recprocas" (CANDIDO,
1976, p. 24).
Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singu-
lar "dissonncia" no conjunto de autores clssicos que procura-
ram explicar o Brasil, orientados pelo comum propsito de apre-
ender as "linhas evolutivas mais ou menos contnuas" do processo
social e cultural do pas, matria do recente trabalho de Paulo
Arantes sobre o sentido da idia de formao, "verdadeira obses-
so nacional", na ensastica brasileira.! No ensaio em questo,
. interessa ao autor traar a histria crtica de uma destacada linha-
gem de "intrpretes do Brasil", iniciada pelos escritores romnti-
cos e retomada por crticos do final do sculo XIX, como Silvio
Romero, Araripe e Jos Verssimo, salientando-se a figura de
Machado de Assis, e mais recentemente redefinida, a partir de
novos princpios tericos, por Antonio Candido e Roberto
Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradio, desse
modo compreendida "no como peso morto, mas como elemento
dinmico e irresolvido, subjacente s contradies contempor-
neas" (ARANTES, 1997, p.34).
Roberto Schwarz: tradio e modernidade -
descompassos da cultura brasileira
na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai
empreender a reflexo sobre a obra de Machado de Assis, dando
continuidade ao que permaneceu sugerido nas ltimas linhas do
segundo volume da Formao da literatura brasileira. Escreve
Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos
da cultura brasileira, que a experincia da segregao entre as
elites intelectuais do pas e as classes populares passou a ser per-
cebida como um impasse - que inviabilizava a sintonia da nao
com os pases europeus mais avanados - apenas a partir da me-
tade do sculo XIX.
2
No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de
Slvio Romero, em polmico e equivocado julgamento a respeito
I ARANTES, Paulo Eduardo e
ARANTES, Otlia Beatriz
Piori. Sentido da formao.
So Paulo: Paz e Terra, 1997.
2 SCHWARZ, Roberto. Naci-
onal por subtrao. In: -. Que
horas so? So Paulo: Cia das
Letras, 1989.
A fonnao. os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
de Machado de Assis. Na passagem em questo, o crtico e histo-
riador evolucionista, equvocos parte, acusa no quadro intelec-
tual brasileiro uma ciso social, um disparate: de um lado, uma
pequena elite europeizada, distanciada do grosso da populao,
sem outro talento seno o de "copiar"; de outro, a maioria inculta,
produtores annimos do folclore, da arte popular. A cpia, o arre-
medo, o pastiche seriam a conseqncia natural de uma produo
intelectual realizada por escritores, polticos e estudiosos sem ne-
nhuma relao com o mundo sua volta.
Certo que o problema no poderia ser reduzido a um es-
quema to simples como o exposto nessa descrio realizada pelo
escritor, em que so apontados os efeitos de questes cujas razes
foram apenas aludidas.
A explicao para o descompasso cultural no interior da soci-
edade brasileira e entre o pas e as naes centrais desenvolvidas
no poderia ser de natureza racial, conforme propunha Slvio
Romero; sem considerar os disparates das mesmas teorias raciais,
basta a evidente constatao de quem imitava no caso no eram os
mestios do povo, mas a elite branca, europeizada, como observa o
autor de Que horas so? O pecado original, nas palavras de Roberto
Schwarz, no residia na cpia, mas no fato de que s uma classe
copiava. Slvio Romero v nos tempos coloniais um relativo espri-
to de coeso nacional e atribui isso "hbil poltica de segregao"
que nos mantinha num circuito de idias exclusivamente portugue-
sas e brasileiras. Foi apenas depois com a vinda de D. Joo VI para
o Brasil e, sobretudo, a partir do Imprio, que a cpia do modelo
europeu e a distncia entre elite letrada e populao inculta passa-
ram a ser percebidas como "disparate" ou "descompasso". O que
sempre existiu - a imitao, a separao entre elite e classes popu-
lares - desde os tempos da colnia, tomou -se um impasse, um dile-
ma terico para as geraes de intelectuais a partir da metade do
sculo XIX. Dilema terico que expressa, por sua vez, os impasses
de natureza econmica, social e poltica do pas. Como a passagem
da colnia a Estado autnomo no acarretou, no Brasil Imprio,
uma real modificao da estrutura bsica caracterstica da antiga
colnia, assentada na escravido e no latifndio, o contraste entre
formas de vida do Brasil Colnia e formas modernas de civilizao
burguesa, entre velhos princpios e as idias liberais apenas acen-
tuou as dimenses de um problema j antigo.
17
18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Diante desse quadro, compreensvel que tudo o que signifi-
casse moderno fosse, simultnea e paradoxalmente, desejado e rene-
gado como ameaa estrangeira "coeso" e "identidade nacional".
A tese da cpia cultural proposta por Slvio Romero surge
como tentativa de explicar a discrepncia entre os dois Brasis.
Evitando a imitao, estaria solucionado o problema, o pas se
reconciliaria consigo prprio, a cultura nacional estaria salva. Mas
esse, como se v, constitui um falso problema. A renncia cpia
, na verdade, impensvel'e mesmo indesejvel; de fato, no so-
mos atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque so-
mos atrasados. A cpia no constitui necessariamente um valor
negativo, menos ainda ela a causa de graves desigualdades soci-
ais e culturais no interior de uma mesma sociedade. Mas essas,
porm, so avaliaes possveis segundo uma perspectiva con-
tempornea nossa, do sculo XX; juzos portanto que no esta-
vam no horizonte de um autor do sculo passado, inspirado por
teorias raciais e pelo darwinismo social, como o caso de Slvio
Romero. Em linhas gerais, essa a leitura crtica de Roberto
Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva poltica dos
conflitos de classe, retoma o problema anunciado no sculo XIX.
Roberto Schwarz: forma - expresso e matria social
na obra de Machado de Assis
Tradicionalmente, Machado de Assis considerado uma
das raras excees na experincia literria nacional; escritor uni-
versal - voltado para uma temtica centrada em problemas que
afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - cons-
truiu uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos
modernos esquemas da forma narrativa contempornea ao es-
critor do que da provinciana prosa de acentuada cor local. Esse
aspecto do romance machadiano, porm, nem sempre foi consi-
derado uma qualidade. Basta lembrar as antigas polmicas em
torno do sentimento nacionalista, supostamente precrio e mes-
mo ausente, na obra do escritor.
Seguindo as propostas sugeridas pelo prprio Machado no
clebre artigo "Notcia da atual literatura brasileira - Instinto de
nacionalidade", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo da fic-
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
o machadiana expresso na forma, no a forma como a enten-
dem os formalistas, mas numa "forma-expresso" da estrutura do
pas. O que significa essa "forma-expresso" para o crtico?
O grande desafio para os escritores brasileiros do final do
scclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a realidade
nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Ado-
tar o romance" implicava "acatar tambm a sua maneira de tratar
as ideologias". O romance uma forma importada da Europa "cujos
pressupostos, em razovel parte, no se encontravam no pas, ou
encontravam-se alterados". Ora, o nico modo de ser verossmil-
isto , de ser fiel nossa condio j que a "dvida externa nas
letras", to inevitvel quanto nas demais esferas da sociedade, nos
conduzia imitao de uma forma imprpria, inadequada para ex-
pressar a realidade do pas - era explicitar essa impropriedade, essa
inadequao na forma importada. E essa "faanha" coube a Macha-
do de Assis que soube reiterar, em nvel formal, os deslocamentos
de ideologias, prprias de nossa formao social, utilizando para
isso, de modo consciente e crtico, a forma importada. Machado
encontrou na stira e na ironia a forma adequada a uma nova mat-
ria. Na segunda fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma
forma brasileira verossmil filiando-se, como era inevitvel, s ten-
dncias europias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras,
Machado foi original porque soube imitar de modo criativo.
O nacionalismo de Machado, portanto, no exclui a univer-
salidade, presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como
o caso de Memrias pstumas de Brs Cubas em que a
indissolubilidade entre forma literria e matria social se revela
mais explcita na prpria construo do enredo atravs do narrador.
Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar
que, por meio da atitude desabusada, prepotente e voluntariosa
do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamen-
to tpico da elite intelectual brasileira, da qual Brs Cubas fazia
parte, Machado conseguiu revelar a realidade nacional utilizando
uma forma universal importada. Brs Cubas representa o homem
culto brasileiro que "dispe do todo da tradio ocidental", ado-
tando a esse respeito uma atitude de superioridade irreverente e
afetada, sem consistncia crtica. O cosmopolitismo de Brs Cu-
bas no passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral
que ostenta se mostra "uma espcie de pacotilha, na melhor tradi-
19
20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o ptria, em que o capricho de Brs Cubas toma como provn-
cia a experincia global da humanidade e se absolutiza". Brs
um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo co-
nhecimento acumulado, banaliza "todas as idias e formas dis-
posio de um homem culto do tempo", substituindo-as constan-
temente de acordo com as suas veleidades pessoais. Ora, a uni-
versalidade da narrativa machadiana reside exatamente no fato de
a forma romance utilizada desmascarar, na sua prpria constru-
o, o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a
proposta de Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador , ao
mesmo tempo, tema (contedo) e princpio formal do romance;
frmula que, presente na prosa machadiana da segunda e grande
fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano,
desprovido de credibilidade", um lugar no primeiro plano da lite-
ratura contempornea universal, embora reconhecido apenas bem
mais tarde e, ainda assim, em crculos restritos.
3
Machado teria
encontrado, desse modo, a soluo para o problema apresentado
h algum tempo em "Instinto de nacionalidade", conforme j indi-
camos. Mas, como reiterou em vrios artigos, o crtico entende
que o verdadeiro antagonismo reside nos conflitos de classe soci-
ais, por sua vez refletidos e refratados nas formas literrias; se as
causas dos impasses nas esferas cultural e literria so em essn-
cia de natureza histrica, a crtica deve pr em relevo as relaes
entre forma artstica e necessidade histrica. A insistncia de
Roberto Schwarz na perspectiva sociolgica se contrape a algu-
mas das recentes tendncias da crtica literria brasileira, mais afi-
nadas com o pensamento desconstrutivista europeu. So vrios
os textos em que o autor discute essa questo, reformulando o
problema da "formao", central na obra de Antonio Candido. A
propsito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louv-
vel, na crtica brasileira; que o apreo pelo pensamento crtico
das geraes anteriores, resgatado, claro, em novas bases, con-
forme j apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a
esse respeito.
ainda Roberto Schwarz quem chama a ateno para a
vida intelectual no pas, marcada pela ausncia de "um campo de
problemas reais, particulares, com insero e durao histrica
prprias, que recolha as foras em presena e solicite o passo
adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele-
'As observaes de Roberto
Schwarz sobre Memrias
Pstumas de Brs Cubas,
comentadas neste artigo,
encontram-se em L'm mestre na
periferia do capitalismo:
Machado de Assis. So Paulo:
Duas Cidades, 1990.
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
vncia do problema da "formao em descompasso", conforme
discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, com o olhar
voltado para o que h de prprio e ajustado nos escritos brasilei-
ros que pretendo circunscrever um campo de problemas crticos
pertinentes ao conjunto da produo literria nacional e suas rela-
es com o contexto mais amplo da literatura universal, assim
denominada provisoriamente. Ao incorporar as abordagens crti-
cas inspiradas na perspectiva da histria literria como represen-
tao de uma tradio inventada, sempre contingente em relao
a nossas concepes e a nosso presente, encaminho essa reflexo
para uma outra direo, diversa e, em certa medida, divergente,
en relao dos dois autores mencionados, cuja historiografia se
enraza na idia de tradio como sistema mais ou menos coeren-
te e coeso de obras e autores nacionais.
Pressupostos da idia de "formao": recortes
Em conhecido texto, tanto quanto polmico, Haroldo de
Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos bsicos da
Formao da literatura brasileira: momentos decisivos. Valen-
do-se de tericos como Walter Benjamim e Derrida, entre outros,
o crtico ops as noes de "constelao" e "disseminao" aos
princpios de "sistema" e "origem", eixos da historiografia de
Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam
na afirmao de que a perspectiva histrica fundamentada na ori-
gem, na suposio de um comeo no inventado ou
deliberadamente construdo, corresponde a uma "viso
substancialista da evoluo literria" correlata, por sua vez, a "um
ideal metafsico de entificao nacional". Sem considerar as dife-
renas entre a historiografia do sculo XIX e a proposta de
Candido, ressalta o propsito comum, verificvel em todas elas,
de estabelecer uma "tradio contnua" de "estilos, temas, formas
ou preocupaes", o que leva o crtico a reduzir a concepo
historiogrfica de Candido a mera reedio do modelo romntico
de histria literria, "voltada para o desvelamento evolutivo-
gradualista" da literatura nacional.
Outro escritor foi mais conseqente na crtica dirigida
Formao, sobretudo pelo xito em conciliar o respeito ao "mes-
tre" (LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame da obra. Sbrio
21
22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
no tom e consistente na argumentao, Luiz Costa Lima inicia o
ensaio com observaes sobre o que denomina de "eixos da ativi-
dade crtico-literria no sculo XX" (LIMA, 1992, p.153), visan-
do, a partir dessas observaes, situar no panorama contempor-
neo o trabalho historiogrfico de Candido. Ou, nas palavras do
ensasta, dirigir-se Formao indagando "como ela se localiza
quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questo da especificidade da
linguagem literria", "a relao da linguagem literria com a socie-
dade" e "a idia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156).
Submetendo ao crivo de uma leitura crtica passagens do
prefcio segunda edio e o captulo terico-metodolgico da
Formao, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia pa-
recer "afastamento das histrias orientadas pela exclusividade do
fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributrio (LIMA, 1992,
p.156). Tarefa nada fcil, devemos reconhecer, a de se propor a
crtica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na
sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros
de seus pressupostos tericos e juzos de valor, ao eleger "vrios
caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a
realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36).
Ainda mais levando-se em conta a astcia de uma crtica
que, longe de negar a subjetividade inerente ao seu exerccio, pelo
contrrio, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsa-
bilidade de suas escolhas, conforme atesta o pargrafo final do
captulo introdutrio da Formao:
Sob este aspecto, a crtica um ato arbitrrio, se deseja ser
criadora, no apenas registradora. Interpretar , em grande
parte, usar a capacidade de arbtrio; sendo o texto uma
pluralidade de significados virtuais, definir o que se esco-
lheu, entre outros. A este arbtrio o crtico junta a sua lingua-
gem prpria, as idias e imagens que exprimem sua viso,
recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente
estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39).
Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passa-
gens, uma atitude crtica, derivada "de uma concepo a-hist-
rica da forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e
de uma insustentvel dicotomia entre interpretao e conhecimento
objetivo. Em outras palavras, a declarada subjetividade crtica no
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
se faz acompanhar de uma explicitao das teorias e mtodos
adotados e, ao que se sabe, precisamente a teoria o elemento
esclarecedor da "conduta interpretativa do crtico" (LIMA, 1992,
p.157). Sendo assim, "o favorecimento da tolerncia metodolgica"
(presumivelmente solidrio de uma atitude consciente de seus li-
mites, derivados das idiossincrasias do crtico), ao contrrio do
que poderia parecer, pretende na verdade fazer desaparecer as
marcas da subjetividade inicialmente assumida e, no mesmo pas-
so, legitimar a objetividade da crtica, uma vez colada ao seu ob-
jeto, de fato e de direito, "a realidade superior do texto"
(CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com
leve ironia, descreve o impasse desse "crtico-caador":
Atividade dirigida por valores, a cadeia de decises em que a
crtica se insere - a cadeia formada por pressupostos tericos,
operacionalizao metodolgica e pragmtica crtica - implica
que seu agente no mais pode ser confundido com um caador
que, em busca da caa, se orienta pelos rastros que a presa
deixa. Ao crtico, assim como ao historiador, s cabe a analo-
gia com o caador se se lembrar que um e outro no s perse-
guem rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros ras-
tros: os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158).
23
Alm da concepo a-histrica da forma, acima menciona-
da, Costa Lima acusa um outro rastro na Formao, em sintonia
com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "asse-
gurado pelo tom descritivo da narrativa" (LIMA, 1992, p.160).
Esses traos do autor na obra, longe de garantir objetivida-
de, so antes reveladores dos inevitveis, incontornveis, juzos
de valor. Isso porque "a estabilidade esttica" - ou viso a-hist-
rica da forma - no se deveria apenas ao primeiro eixo da moder-
na historiografia no sculo XX (a questo da especificidade da
linguagem literria), mas a "uma concepo mais tributria de uma
viso tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA,
1992, p.l59).
Examinada a suposta evidncia da idia de sistema literrio,
assegurada na volumosa descrio dos fatos literrios, Luiz Costa
Lima lana a pergunta que Candido no fez, mas cuja resposta
estaria diluda tanto na exposio de seus pressupostos quanto
nos captulos dedicados histria dos "momentos decisivos" da
24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
formao literria brasileira:
[ ... ] quo extensa dever ser a recepo para que se lhe tenha
como dec1aradora de um sistema? Bastar uma recepo ates-
tada para que o sistema se afirme em funcionamento? Se o
fosse, a fama local de Gregrio no justificaria sua excluso.
Se, portanto, no basta uma recepo localizada, qual a exten-
so necessria? (LIMA, 1992, p.162).
Na passagem da Formao, abaixo destacada por Costa
Lima, renem-se os dois traos que confirmam "a articulao de-
cisiva da Formao ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo da
preocupao crtica contempornea, precisamente aquele que de-
rivava da atitude dominante no sculo XIX" (LIMA, 1992, p.l64),
a idia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assi-
nala: '[ ... ] Os escritores brasileiros que [ ... ] lanaram as bases de
uma literatura brasileira orgnica, como sistema coerente e no
manifestaes isoladas' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, esto
explcitos - embora no explicados nem assumidos pelo autor da
Formao - os conceitos de coerncia eforma orgnica deriva-
dos do funcionalismo antropolgico ingls. Costa Lima, apesar
de no se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importncia
decisiva desse legado na concepo de sistema" (LIMA, 1992,
p.163) incorporada na historiografia de Candido. Em sntese, afir-
ma o autor "que o decisivo na armadura terica da Formao
menos a idia de articulao entre produo e recepo literrias
do que sua extenso nacional e seu carter de coerncia" (LIMA,
1992, p.163), favorecendo a "coeso homogeneizante" na inter-
pretao da histria da literatura brasileira. O fato de o barroco
ter sido excludo da Formao se explica "no tanto porque sua
circulao fosse drasticamente menor que a dos rcades, seno
porque impede que se lanassem as bases de uma literatura brasi-
leira orgnica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164).
Tanto a excluso de Gregrio como a incluso dos rcades "s se
explicam porque o peso decisivo recai na qualificao de sistema
nacional" (LIMA, 1992, p.164).
Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva
representatividade de um sistema literrio, vejamos como o crti-
co formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Cam-
pos. Ao reivindicar o resgate do barroco, sua incluso no cnone,
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita das
histrias literrias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos
polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversrio e,
por esse motivo sobretudo, perde fora, em grande parte, o con-
junto de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa no a questo,
Tendo como alvo principalmente a idia de sistema, Haroldo de
Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta deci-
siva: o que se entende por nacional?
Na esteira de Joo Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos
lembrar que a stira barroca era prevista e codificada nos tratados
poticos, o que "impediria, se no por vezo anacrnico, que se
envolvesse a poesia de Gregrio em algum propsito nacional"
(LIMA, 1992, p.165).
Um outro problema, portanto, no centro da polmica sobre
a formao da literatura brasileira e que gerou, assim como a ques-
to do nacional, algumas respostas equivocadas, contra as quais
se manifestaram outros crticos, alm dos aqui citados. Em rela-
o ainda ao "seqestro do barroco", muito oportunamente es-
creve Lgia Chiappini:
A contradio bsica de Haroldo de Campos est em, ao mes-
mo tempo, contestar a histria contnua, a tradio que Anto-
nio Candido se props a perseguir nos momentos decisivos de
sua constituio, e integrar a Gregrio de Matos que, no en-
tanto, v como ruptura, Recusar como ideolgica essa tradio
e, no entanto, querer inclu-lo nela. Trata-se, no mnimo de um
equvoco. Gregrio s poderia entrar em um outro livro, no
neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, no este
(CHIAPPINI, 1992, p.175).
Devemos ainda ressaltar o anacronismo muitas vezes no
percebido por crticos de Antonio Candido, que, ao postularem a
incluso de Gregrio de Matos na Formao, no se do conta
dos princpios que abraam, julgando contradiz-los. Noes como
uma suposta origem absoluta (que, alis, Candido no postulou) e
uma periodizao tributria da concepo romntica retomam
cena, comprometendo o adequado entendimento da Formao,
apontando erros onde houve extrema coerncia em relao aos
propsitos do autor, devidamente explicitados. A esse respeito,
recorro mais uma vez s palavras esclarecedoras de Lgia Chiappini:
25
26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
"a origem no um problema para Antonio Candido, mas para
seus crticos. O que lhe interessa no defender uma tradio
hegemnica, mas entender a constituio de uma hegemonia, pro-
jeto que ele explicita claramente para leitores que queiram enten-
der" (CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro captulo, "Literatu-
ra como sistema".
No sendo a "origem" propriamente um problema, volta-
mos ento ao que, ao lado da idia de formao, motivou este
texto: a idia de sistema literrio nacional, preponderante nas his-
trias de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questo bem
mais complexa do que supe uma crtica apressada.
Este e outros problemas a ele relacionados - como os vn-
culos entre culturas literrias hegemnicas e perifricas - tm re-
cebido da historiografia brasileira contempornea tratamentos dis-
tintos, conforme o ponto de vista terico inseparvel, sempre, das
escolhas e da sensibilidade do crtico para certos temas, autores e
textos, e no outros.
A essa altura j podemos perguntar se seria possvel, dentro
do registro da formao, postular histrias da literatura que no
impliquem a noo de sistema nacional coerente e orgnico. Ou
ainda: possvel, desejvel escrever uma histria literria no
propriamente desvinculada da idia de formao mas, simultnea
e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando.
Em outros termos: entendendo a formao da literatura bra-
sileira no como percurso evolutivo de uma identidade suposta-
mente essencialista e original (ou, no entender de Candido, como
"continuidade ininterrupta de obras e autores" (CAND IDO, 1975,
p.25), mas como construo discursiva de seus diversos intrpre-
tes, representao at certo ponto inseparvel de seu prprio refe-
rente, seria mais apropriado falar deformaes da literatura brasi-
leira, do romantismo s mais recentes teorias da histria literria.
A propsito, a idia de "formao de um sistema literrio",
proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele prprio
explicitara, com o projeto romntico de construo nacional e da
literatura. Essa noo, como sabemos, fez escola, inaugurando
uma considervel tendncia do pensamento crtico brasileiro no
sculo XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo
Arantes, "tirar as devidas conseqncias do roteiro traado por
Antonio Candido, reapresentando o problema da formao como
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
uma questo material de acumulao da experincia intelectual
nas condies francamente proibitivas da dependncia"
(ARANTES, 1997, p.32-33). Desde ento, "o sentimento
acabrunhador da posio em falso de tudo o que concerne cultu-
ra brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tnica de toda a
crtica brasileira solidria com o autor das "idias fora do lugar".
27
Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequao
que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso
trato enviesado com as idias" (ARANTES, 1997, p.33) como
uma das possibilidades de se reapresentar o problema da forma-
o literria brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasilei-
ros, motivadas por outro sentimento - o de que, em matria de
prosa ou poesia literria, nem sempre a crtica comparativa pro-
voca sensao de descompasso ou desacerto, a menos que se iden-
tifique o historiador da literatura brasileira ao historiador da na-
o brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laos
indissociveis entre literatura e sociedade.
Porque, no redundante nem excessivo reiterar, o que na
verdade est em pauta , antes, uma questo de perspectiva teri-
co-poltica, em jogo nas diversas propostas crticas da produo
literria brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resul-
tar de uma outra convico: a de que o sentimento de sermos
ainda uma cultura perifrica em desacerto com a cultura
hegemnica central - ou "uns desterrados em nossa terra", con-
forme clebre formulao de Srgio Buarque de Holanda, no pa-
rgrafo de abertura de Razes do Brasil (1995, p.31) - no seria
privilgio do brasileiro, mas sentimento comum s culturas mo-
dernas, margem dos grandes centros de deciso poltica e eco-
nmica, que vem se aprofundando na mesma proporo dos
impasses e contradies da sociedade contempornea.
Na impossibilidade de se sentir em casa, familiarizado com
o que seria prprio de sua cultura, na impossibilidade de superar o
desterro ou acertar os ponteiros do relgio nacional, por que no
assumir e incorporar a estranheza que nos constitui? Por que no
acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - des-
de o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirma-
o desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se
traduzido como expresso de uma melanclica ou nostlgica bus-
ca do que nunca teria ou ter existido?
28 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
com o sentimento paradoxal de estranha familiaridade
que assumimos identidades que no nos pertencem, assim, poe-
tas, prosadores e (por que no?) historiadores deveriam narrar
suas histrias como se fossem um outro, com o olhar oblquo de
quem, no se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem
diante de si, precisa criar as conexes, os vnculos, ali onde as
lacunas, as fraturas no permitem uma imagem coesa e coerente.
A histria da literatura, percebida como busca criativa de um sen-
tido para as experincias de uma coletividade, solicitaria do histo-
riador o mesmo gesto de deslocamento, de pr-se no lugar do
outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibi-
lidade de apreenso totalizante e absoluta da experincia literria,
esse historiador sustentaria na sua prpria voz as mltiplas e dis-
persas vozes da cultura, construindo, no lugar das histrias tra-
dicionais teleolgicas, narrativas caleidoscpicas, micro-histri-
as, anotaes margem.
Consideraes finais
Gostaria de encerrar essas consideraes/recortes evocan-
do dois autores argentinos que, em seus ensaios crtico-poticos
sobre a histria e a tradio literria de culturas margem, reve-
lam percepes inteiramente novas para quem havia se habituado
a pensar o problema como impasse, beco sem sada, ou ainda como
contradio a ser, num futuro incerto, superada.
De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhe-
cidos - "O escritor argentino e a tradio" (BORGES, 1998) e
"Sobre os clssicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se
apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles
no se apresentaram casualmente minha lembrana. Ao contr-
rio, esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem
qualquer veleidade terica definitiva, produzidos, pois, de um outro
lugar - no propriamente acadmico/disciplinar - pareceram-me,
por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma
palavra outra que no as que costumam soar dos lugares j conhe-
cidos e percorridos.
Como de costume, em sua prosa quase austera em contras-
te com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
principais contradies implcitas na noo de obras clssicas. Cls-
sico, nos lembra o autor, " aquele livro que uma nao, ou um
grupo de naes, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas
pginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e
passvel de interpretaes sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Con-
tingentes e, em certa medida, imponderveis, essas decises variam
tanto quanto as formaes histricas sobre as quais se erigiram.
Levando mais longe a provocao, relembra que, se houve
um tempo em que "acreditava que a beleza era privilgio de uns
poucos autores", agora sabe "que comum e est a nossa espreita
nas casuais pginas do medocre ou em um dilogo de rua"
(BORGES, 1999, p.168). At aqui nada de muito novo nos re-
velado, no fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as
quais relativiza julgamentos consagrados pela crtica a respeito de
um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir:
Para alemes e austracos, o Fausto uma obra genial; para
outros, uma das mais famosas formas do tdio, como o segun-
do Paraso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de
J, a Divina Comdia, Macbeth (e, para mim, algumas das
sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada
sabemos do futuro, salvo que diferir do presente. Uma prefe-
rncia pode muito bem ser uma superstio (BORGES, 1999,
p.l68).
Sendo assim, a "beleza" de um texto no se revela na forma,
na estrutura, na imanncia textual, nem tampouco em qualidades
vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existncia de
obras clssicas eternas. Essa "beleza" antes resultado de um
encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glria
de um poeta depende, em suma, da excitao ou da apatia das
geraes de homens annimos que a pem prova, na solido de
suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168).
Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar
ainda o deslocamento radical da perspectiva centrada na obra (e,
portanto, no autor) para uma direo, seno oposta, divergente,
destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessidade ine-
vitvel de referncias e sua extrema precariedade, construdas que
so sobre o movedio, incerto territrio do tempo. Movimento
divergente tambm no sentido de que desloca o foco para outras,
29
30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
diversas, diferentes literaturas, por ns no apenas desconheci-
das, mas quase sempre sequer suspeitadas. Num gesto de sincera
modstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento das
letras malaias ou hngaras seja completo, tenho certeza de que, se
o tempo me propiciasse a ocasio de seu estudo, encontraria nelas
todos os alimentos que o esprito requer" (BORGES, 1999, p.l68).
Concluindo, na questo dos clssicos interferem as barrei-
ras lingstica, poltica ou mesmo geogrfica, obrigando aqueles
que da literatura se ocupam a admitir as limitaes de seus
parmetros de "beleza", que so tambm as da coletividade de
que fazem parte. Afinal, a preferncia por determinados autores e
textos tanto uma questo pessoal quanto das "geraes de ho-
mens" que, "urgidas por razes diversas, lem com prvio fervor
e com uma misteriosa lealdade" os livros tornados clssicos
(BORGES, 1999, p.169).
Isso posto, poderamos pensar que Borges, um iconoclasta,
desconsidera ou minimiza a importncia dos clssicos, quando o
que se passa no exatamente assim. Em outro texto, tratando do
escritor argentino e da tradio, afirma com veemncia o
pertencimento cultura ocidental do escritor argentino e de todos
os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998).
Como no caso dos clssicos, a tradio ocidental do outro/
nosso colonizador tambm "um gosto adquirido", incorporado
e transformado por sua vez em outra tradio, nossa, prpria, e
do outro simultaneamente. Numa certa medida, no haveria como
escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o
escritor margem" ao beco sem sada das imitaes mais ou me-
nos bem feitas do modelo europeu ou do sonho romntico de uma
literatura autntica, surgida de um outro lugar, de uma ptria de
origem imaculada, no de outros povos mas prpria supostamen-
te. Estaramos assim ligados cultura ocidental por destino ou
fatalidade histrica e portanto no teramos escolha.
Por outro lado, a condio de culturas e tradies mar-
gem (uma vez que se expressam nos limites de um centro, to
imaginado quanto real, mas em relao ao qual no se percebem
to estreitamente vinculadas que no possam com ele romper sem
que, com esse gesto, se sintam rfos de origem e de valores par-
tilhados) proporciona inesperadas possibilidades de transgredir,
inovar sem a imposio de uma "devoo especial" diante de toda
A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
a cultura ocidental herdada. "Creio que os argentinos, os sul-ame-
ricanos em geral ( ... ) podemos lanar mo de todos os temas eu-
ropeus, utiliz-los sem supersties, com uma irreverncia que
pode ter, e j tem, conseqncias afortunadas", o que nos diz
Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser euro-
peu sendo argentino, descartando com essa atitude todos os luga-
res comuns da velha questo sobre o local e o universal.
Em outros termos, essa a perspectiva de Ricardo Piglia.
"O olhar oblquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as qua-
lidades do escritor do "prximo milnio", conforme uma "sexta
proposta" para a literatura, imaginada pelo autor de Nome falso-
Homenagem a Roberto Arlt, para ser acrescentada s de talo
Calvino j conhecidas. O "deslocamento" a que se refere Piglia
(2001) - da periferia para o centro - no mais diz respeito ao
mapeamento geogrfico das culturas hierarquizadas. No seria esse
o sentido do gesto prprio do escritor " margem". Piglia fala de
um lugar especfico - "do subrbio do mundo" - verdade, mas
para mostrar que esse o lugar da linguagem, ou da literatura,
nesse caso tomadas sinnimas.
A verdade tem a estrutura de uma fico de onde outro fala.
Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A
literatura seria o lugar em que sempre outro o que vem falar.
"Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre h outro a. Esse
outro aquele que tem que saber ouvir para que isso que se
conta no seja uma mera informao e tenha a forma da expe-
rincia. Parece-me, ento, que poderamos imaginar que h uma
sexta proposta. A proposta que eu chamaria, ento, a distn-
cia, o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar
que a linguagem fale tambm na fronteira, naquilo que se ouve,
naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3).
Creio que desse lugar distanciado em relao prpria
palavra, quase sempre cristalizada, que o historiador da literatura
libertaria outros sentidos para a histria que narra, libertaria a ver-
dade da correspondncia, no limite impossvel, com os fatos, apro-
ximando-se do narrador ficcional na medida em que cede espao
para a entrada em cena do outro que nos constitui. O historiador
contaria no exatamente o que aconteceu mas, como o poeta!
prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ainda, como quer
31
32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Piglia, "O ponto cego da experincia, que quase no se pode trans-
mitir", a menos que se "suponha uma relao nova com a lingua-
gem dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2).
Referncias
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formao: trs estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e
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completas. So Paulo: Globo, 1998, p.288-296, V.I.
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p.167-169, v.2.
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2 v. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1975.
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estudos de teoria e histria literria. So Paulo: Editora Nacional, 1976, pp.
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CHIAPPINI, Ligia. Os equvocos da crtica Formao. In: D'INCAO, Maria
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LIMA, Luiz Costa. Concepo de histria literria na Formao. D'INCAO,
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dentro da vida: ensaios sobre Antonio Condido. So Paulo: Companhia das
Letras, Instituto Moreira SaBes, 1992, p.153-169.
OLlNTO, Heidrun Krieger. (org.) Histrias de literatura. As novas teorias
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A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira
PIGLlA, Ricardo. Uma propuesta para el nuevo milenio. Margens - Caderno
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--o Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.
So Paulo: Duas Cidades, 1990.
33
1 Cf. ANDERSON, Benedict.
Nao e conscincia nacional.
Trad. de Llio Loureno de
Oliveira. So Paulo: tica,
1989.
35
Antonio Candido e o projeto de Brasil
Regina Zilberman
(PUC-RS)
Mas olhemos antes, em sua generalidade, a Formao da litera-
tura brasileira. O livro, fundamental como poucos outros sero
em nossa cultura - do porte, digamos, de Um estadista do Imp-
rio, Casa-grande e senzala, Razes do Brasil -, , antes de mais
nada, uma histria do Brasil. Mas uma histria que se desenrola
numa regio mental diferente. Trata-se do Brasil pensando a si
prprio. O monlogo interior do Brasil.
Antonio Callado
No estudo sobre o que chama de comunidades imaginadas,
Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regi-
es do globo terrestre, se constitui o sentimento de nao ou a
conscincia nacional.
1
Se, na Europa, a introduo da imprensa fra-
turou a unidade do latim, promoveu a ascenso das lnguas vemculas
e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador da Igreja, na Amri-
ca o processo foi distinto. Nesse continente, a conscincia nacional
associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento
de uma sensibilidade singular, conforme a qual as pessoas geradas
no Novo Mundo comearam a se perceber vinculadas ao espao
natal, a se entender desde uma noo de pertena terra de origem,
a qual desejaram transformar em nacionalidade.
Anderson indica que, na Europa da imprensa nascente, houve
a territorializao da lngua, que fragmentou a unidade at ento
garantida pela f e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cu-
nho "nacional", condio que garantiu sua permanncia na Idade
Moderna. Na Amrica, talvez seja possa afirmar que a
"territorializao" foi literalmente telrica, graas assimilao
36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
entre o espao e o sentimento suscitado por ele.
Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a
associao entre nacionalidade e conquista do territrio tenha se
dado de modo mais completo. Ainda que a independncia tenha
envolvido a rea ocupada pelas treze colnias originais, a expan-
so na direo do Ocidente j se anunciava no sculo XVIII; e, na
primeira metade do sculo XIX, o pas incorporava a Louisiania,
disputava o Texas e avanava clere rumo conquista da regio
junto orla do oceano Pacfico. A Doutrina Monroe, ambgua aos
olhos atuais, significou, em 1823, uma tomada de posio poltica
que tinha como referncia o desenho geogrfico do Estado que se
apresentava populao norte-americana.
Outros povos elegeram frmulas distintas, sem abrir mo
da relao entre nacionalidade e espao fsico. Alguns colocaram
a literatura na funo de intermedirio, transferindo-lhe a tarefa
de representar o sentimento da nacionalidade que se definia por
um apreo especial conferido ptria, local de nascena e perma-
nncia. No Brasil, o processo tomou configurao particular, pois,
mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consci-
ncia nacional, coube literatura substitu-lo, tomar seu lugar e
constituir, ela mesma, a encarnao do nacional.
No foram os tericos e militantes da Independncia que
delegaram literatura aquela misso, pois a tarefa definiu-se algu-
mas dcadas aps a separao da metrpole. Foi preciso, inicial-
mente, suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos
intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, de-
pois apear o imperador do poder e ento buscar na histria os
dados que ajudariam a encorpar a conscincia da nacionalidade.
que essa no podia se construir revelia das relaes mantidas,
desde o perodo colonial, com a Metrpole, de modo que se fez
custa da conciliao entre separatismo e aceitao da dependn-
cia econmica e cultural.
O aparecimento, em 1838, de instituies como o Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro, modelado conforme o de Pa-
ris, colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o
fato de que, no comeo da dcada de 1840, seus membros ainda
buscassem frmulas que ensinassem "Como se deve escrever a
histria do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e ven-
cido, em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemo Carl F. Philip
Antonio Candido e o projeto de Brasil
2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich
Philipp von. Como se deve
escrever a Histria do Brasil.
Revista do Instituto Histrico
e Geogrfico Brasileiro. Rio
de Janeiro 6 (24) : 389 - 411.
Janeiro de 1845. Cf. igualmente
ZILBERMAN, Regina Romance
histrico, histria romanceada. In: .
AGUIAR, Flvio; MEIHY,
Jos Carlos Sebe Bom;
V ASCONCELOS, Sandra
Guardini T. (Org.). Gneros de
fronteira. Cruzamentos entre o
histrico e o literrio. So Paulo:
Xam, 1997.
J Cf. DENIS, Ferdinand.
Resumo da histria literria
do Brasil. Trad. e notas
Guilhermino Cesar. Porto
Alegre: Lima, 1968. Cf.
GARRETT, Almeida. Bosquejo
da Histria da Poesia e Lngua
Portuguesa. In: _. Parnaso
Lusitano. Paris: J. P. Aillaud,
1826.
4 SILVA, Joaquim Norberto
de Sousa. "Bosquejo da
histria da poesia brasileira."
In: ZILBERMAN, Regina;
MOREIRA, Maria Eunice. O
bero do cnone. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1998. p. I O.
Originalmente publicado em
Modulaes poticas. Rio de
Janeiro: Tipografia Francesa,
1841.
von Martius, sugestivo das dificuldades experimentadas por aque-
le colegiado, numa poca em que a autonomia poltica parecia
assegurada.
2
A mesma dcada de 40 do sculo XIX presenciou fenme-
no interessante: se ainda era preciso estabelecer parmetros para
a redao da histria do Brasil, que, da sua parte, no podia evitar
a afirmao da presena e influncia portuguesa, a histria da lite-
ratura, por outro lado, j propunha algumas formulaes bem de-
finidas. As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na
trajetria literria que o pas parecia dispor: em 1826, tanto o
francs Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almeida Garrett, am-
bos residentes na ocasio em Paris, conferiam detida ateno aos
poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusi-
tanos.
3
Mas os brasileiros no demoraram a se manifestar, valen-
do a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa
Silva,j ento membro do Instituto Histrico e Geogrfico Brasi-
leiro, redigia o "Bosquejo da histria da poesia brasileira", bas-
tante calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ainda as-
sim, confiante de que ''j possuamos uma literatura, seno legi-
timamente nacional, - que raras o so -, ao menos em parte",4
sintoma de que igualmente contabilizvamos um passado e con-
sistamos uma nao.
A literatura corporificou doravante a nao, respondeu por
ela e prestou contas, em nome da autonomia e da auto-suficin-
cia, ausente talvez em outros setores da vida pblica e social. Os
historiadores da literatura converteram-se em avalistas da nacio-
nalidade, o que, se, de um lado, aumentou sua responsabilidade,
de outro, afianou a notoriedade que alcanaram, bem como sua
insero nos aparelhos de Estado: no sculo XIX, o Colgio de
Pedro 11 e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; no sculo
XX, a universidade, onde exercem seu ofcio.
A histria da histria da literatura , pois, a da trajetria da
busca, encontro e afirmao da nacionalidade, expressa e materi-
alizada pelas obras que formam aquele acervo. Antnio Candido
situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se
integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contra-
dies, indicando, por extenso, as alternativas que se abrem ao
pesquisador a partir do modo como desempenhou sua funo.
37
38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
1. Uma histria de formaes
Quando publicou, em 1959, a Formao da literatura bra-
sileira: momentos decisivos, Antonio Candido j tinha percorrido
os caminhos da histria da literatura, matria de sua Introduo
ao mtodo crtico de Slvio Romero, de 1945, e de sua participa-
o, com o captulo "O escritor e o pblico", no projeto encabe-
ado por Afrnio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O
crtico literrio talvez fosse mais notrio, graas atuao na re-
vista Clima, no comeo da dcada de 1940, e nos jornais Folha
de So Paulo, Dirio de So Paulo e Estado de So Paulo (cujo
famoso Suplemento Literrio ajudou a planejar e a manter), nos
anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Brigada
ligeira, de 1945, e O observador literrio, de 1959.
5
Quando publicado, "Formao da literatura brasileira:
momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais ex-
tenso e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento da
tradio da literatura brasileira, com nfase na documentao dos
sculos xvrn e XIX, citada ao longo dos dois volumes do livro.
Candido costuma falar com certa modstia da obra, atribuindo
sua feitura encomenda do editor Jos de Barros Martins, que o
encarregara de elaborar "uma histria da literatura brasileira,
aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a di-
vulgao sria e o compndio", aguardara pacientemente "nada
menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado,
portador de um ttulo no muito usual nos meios literrios.
6
Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso
Furtado publicava a Formao econmica do Brasil e que, na
dcada anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Jnior
editara Formao do Brasil contemporneo: colnia, enquanto
Nelson Werneck Sodr, em 1944, escrevera e publicara, pela co-
leo Documentos Brasileiros, da Jos Olympio, a Formao da
sociedade brasileira. Um ano antes do aparecimento da Forma-
o da literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lanara
Os donos do poder, cujo subttulo informava tratar a obra da "For-
mao do patronato poltico brasileiro".
O captulo das "formaes" congregava importantes inte-
lectuais e pesquisadores do Brasil at o princpio da dcada de
60, que, por meio do ttulo de seus livros, confessavam determi-
S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa;
SCARAB6TOLC, Elosa
Faria (Org.). Dentro do texto,
dentro da vida. Ensaios sobre
Antonio Candido. So Paulo:
Companhia das Letras; Poos
de Caldas: Instituto Moreira
Salles, 1992.
6 CANDIDO, Antonio. Prefcio
da la edio. In: ___ o
Formao da literatura
brasileira. Momentos
decisivos. 2. ed. revista. So
Paulo: Martins, 1964. V. I, p.
13.
Antonio Candido e o projeto de Brasil
7 IGLSIAS, Francisco.
Introduo. In: FURTADO,
Celso. Formao econmica
do Brasil. Braslia: Editora
Universidade de Braslia, 1963.
8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich.
El nacimiento de la tragedia.
Introduo, traduo e notas
Andrs Snchez Pascual.
Buenos Ayres: Alianza, 1998.
9 Cf. NIETZSCHE, Friedrich.
La genealoga de la moral.
Introduo, traduo e notas
Andrs Snchez Pascual.
Buenos Ayres: Alianza, 1998.
nada afinidade intelectual entre si.
No prefcio Formao econmica do Brasil, Francisco
Iglsias destaca que, ainda que o autor do livro, Celso Furtado,
fosse economista, a atitude que assume na redao da obra a do
historiador. O mesmo atributo confere Iglsias a Caio Prado Jnior,
que, em 1945, escreve a Histria econmica do Brasil. Nesse
caso, destaca que o trabalho de Prado Jnior importa sobretudo
para a histria, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista
talvez desejasse ser acolhido pelos economistas.? A observao
de Iglsias indica como o termo "formao", presente direta ou
indiretamente nos ttulos, vincula-se ao mbito da histria, apre-
sentando-se como uma das facetas da investigao das genealogias.
O estabelecimento das "formaes" uma maneira de fazer
histria, que, desde logo, nega uma tendncia do gnero, a de
buscar as origens ou o ato primordial da fundao. Esse procedi-
mento vigorou no sculo XIX, sobretudo quando se estabilizaram
as histrias nacionais, caracterizadas pelo esforo de fixar o mo-
mento, ou a data, de nascimento da ptria. Aceito o episdio inici-
al, estruturava-se a cronologia, contnua e ascendente, na direo
do aperfeioamento das marcas iniciais e diferenciadoras, que vi-
riam distinguir e assegurar o perfil nacional.
O sculo XIX mostrou-se prdigo no que diz respeito a
histrias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas
histrias da literatura. Tambm essas movimentavam-se na busca
dos incidentes fundadores, a gnese mtica, a partir da qual se
construa uma tradio; marcada por especificidades e diferenas.
O pensamento romntico, valorizando as origens e a primitividade,
colaborou para fundamentar teoricamente a historiografia da lite-
ratura, que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobre-
tudo graas sua aliana com a escola e o ensino.
N a passagem do sculo XIX para o XX, pensadores como
Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo da histria, de um lado,
entendendo o nascimento como um evento consagrador, e no
como manifestao de primitividade inacabada e imperfeita, de
que exemplo seu estudo sobre a tragdia grega;8 de outro, valo-
rizando a pesquisa em nome das genealogias, momento de revela-
o, compreenso e anlise da natureza dos temas e objetos que
vm a ser matria da reflexo do filsofo.
9
A pesquisa focada na genealogia privilegia o comeo, acom-
39
40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
panhando a transformao, e no sua evoluo. S que o comeo
mvel, porque corresponde ao tempo em que a investigao
inicia, ocasio escolhida e fixada pelo pesquisador, que a elege em
sintonia com o tema a estudar e a perspectiva a assumir. Se o tema
perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o
trabalho executado, passando, doravante, um a depender do ou-
tro. O ngulo metodolgico adotado faz com que o tema dependa
do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas for-
mulaes apresentadas.
O modo como Antonio Candido lida com a formao da
literatura brasileira guarda afinidades com essa proposta de se fa-
zer histria, cujo resultado permitiu-lhe, por extenso, refletir so-
bre a sociedade brasileira a partir de paradigmas que suplantam as
limitaes impostas pela tica romntica.
2. Formao e sistema
Candido explica o entendimento da noo de formao na
introduo de sua obra, dividida em quatro captulos. O primeiro
comea por uma tomada de posio, estando declarado no par-
grafo de abertura que" este livro procura estudar a formao da
literatura brasileira como sntese de tendncias universalistas e
particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor com-
preender o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifes-
taes literrias" e "literatura propriamente dita", sendo essa
considerada "um sistema de obras ligadas por denominadores
comuns".11
Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de
que os textos literrios esto interligados garante a identificao
do sistema. A literatura no se confunde com a obra; pelo contr-
rio, ultrapassa-a, constituindo uma armao que acolhe ou rejeita
criaes distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrio no es-
gota, porm, a de sistema, que transcende o universo arts-
tico, ao incluir um de sujeitos e de concepes vigentes no
meio onde a criao individual aparece. Eis a natureza dos deno-
minadores comuns, assim discriminados pelo Autor:
Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (ln-
gua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e
10 CANDIDO, Antonio. Op. cit.
p.25.
11 Id. p. 25. nfases do A.
Antonio Candido e o projeto de Brasil
12 Id. p. 25-26.
13 CANDIDO, Antonio. "A
literatura e a vida social". In:
. Literatura e sociedade.
Estudos de teoria e histria
literria. So Paulo: Nacional,
1965. p. 27. nfases do A.
14 Cd. JAKOBSON, Roman.
Lingstica e potica. In: _.
Lingstica e comunioao. 2.
ed.Trad. Isidoro Blickstein e
Jos Paulo Peso So Paulo:
Cultrix, 1969. p. 123.
psquica, embora literariamente organizados, que se manifes-
tam historicamente e fazem da literatura aspecto orgnico da
civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um con-
junto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do
seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes
tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo
transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em es-
tilos), que liga uns a outros. O conjunto dos trs elementos d
lugar a um tipo de comunicao inter-humana, a literatura, que
aparece, sob este ngulo como sistema simblico, por meio do
qual as veleidades mais profundas do indivduo se transfor-
mam em elementos de contato entre os homens, e de interpreta-
o das diferentes esferas da realidade. 12
Candido refere-se a trs elementos - sumariamente resumi-
dos ao produtor literrio, ao conjunto de receptores, e ao meca-
nismo transmissor, a linguagem - que possibilitam a uma obra
literria aparecer e amalgamar-se a um processo de comunicao
interpessoal. Percebe-se desde logo que o sistema conta com, pelo
menos, quatro fatores, pois um deles, a linguagem, definida de
modo muito amplo no excerto citado, inclui tanto um suporte
material, que varia segundo sua especificidade, quanto um cdigo
virtual.
No ensaio, datado de poca aproximada, "A literatura e a
vida social", Candido insiste no modelo tridico, referindo-se aos
"trs momentos indissoluvelmente ligados da produo, e [que J
se traduzem, no caso da comunicao artstica, como autor, obra,
pblico."13 Trata-se, porm, de uma simplificao de sua intuio
metodolgica, que, de certo modo, condiz com o modelo preferi-
do pela teoria da comunicao, formado por seis elementos em
permanente integrao e comutao: 14
contexto
emissor ou remetente mensagem ou obra
canal
cdigo
recebedor ou desti-
natrio
Na perspectiva de Candido, esse modelo, ainda que orgni-
co, no esttico, mas dinmico, j que a interao entre os fato-
41
42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006
res da comunicao aciona e anima o sistema. Alm disso, confere
papel categrico ao pblico, noo coletiva que abriga os desti-
natrios das manifestaes dos produtores literrios. Por ltimo,
materializa o significado da formao, pois essa somente se concreti-
za quando esto presentes os sujeitos, os meios e as intenes artsti-
cas que, conjugados, mobilizam-se para prover de cultura e de litera-
tura a um determinado ambiente ou cenrio geogrfico.
No Brasil, segundo Antonio Candido, "isto ocorre a partir
dos meados do sculo XVIII, adquirindo plena nitidez na primei-
ra metade do sculo XIX": 15
com os chamados rcades mineiros, as ltimas academias e
certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras for-
mando conjuntos orgnicos e manifestando em graus variveis
a vontade de fazer literatura brasileira.
16
Amparado na noo de sistema, Candido pode enraizar a
formao num determinado tempo e em certo espao, liberando-
se dos atos fundadores, dos atestados de nascimento e de batis-
mo, das manifestaes isoladas, dos voluntarismos individuais. A
formao no constitui processo abstrato, nem o sistema opera
no vcuo, j que inclui, como se fosse um stimo fator, uma dada
inteno - no caso, a vontade de fazer literatura brasileira. O his-
toriador da literatura retoma ao ponto de onde saram os pesqui-
sadores que o antecederam, para oferecer sua interpretao dos
acontecimentos. O sistema pode no ter incio, mas dispe de uma
finalidade, matria principal do projeto da historiografia literria
brasileira.
3. Incio e projeto
Em 1996, Antonio Candido publicou uma Iniciao lite-
ratura brasileira, resumo originalmente destinado a fazer parte
de obra coletiva a ser publicada na Itlia "no quadro das comemo-
raes do 5 Centenrio do descobrimento da Amrica" .17 A co-
letnea programada no se concretizou, o autor conservou o ori-
ginal at decidir lan-lo "como texto interno da nossa Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So
Paulo", com o intuito de "oferecer aos jovens da Casa uma esp-
15 CANDIDO, Antonio.
Formao da literatura
brasileira. V. I, p. 27.
16 Id. p. 27.
17 CANDIDO, Antonio. Nota
prvia. In: _. Iniciao
literatura brasileira. 3. ed. So
Paulo: Humanitas, 1999. p. 9.
Antonio Candido e o projeto de Brasil
I8 Id. ibid.
19 CANDIDO, Antonio.
Apresentao. In: _./nicillo
literatura brasileira. p. 11.
20 Id. p. 12.
21 Id. p. 13.
22 Id. p. 13.
cie de aide mmoire que esclarea o desenho geral da literatura
brasileira e sirva de complemento a textos mais substanciosos."18
Mais uma vez a modstia da apresentao no faz jus ao
texto, que, ao substituir a "formao" pela "iniciao", retoma
pontos fundamentais da obra de 1959. O primeiro deles aparece
na introduo, em que o autor observa, primeiramente, a pertena
da literatura do Brasil s "do Ocidente da Europa". A seguir, lem-
bra que, no nosso caso, "o conceito de 'comeo' nela bastante
relativo", porque, ao contrrio do que ocorreu com as "literatu-
ras matrizes" (como a portuguesa, em relao brasileira), 19 no
houve uma paulatina e simultnea constituio da lngua, da lite-
ratura e da sociedade. Na Amrica, deu-se o imediato e cabal trans-
plante de uma tradio literria j existente:
Assim, a literatura no 'nasceu' aqui: veio pronta de fora para
transformar-se medida que se formava uma sociedade nova.
20
A seguir, o autor completa e explcita o paradoxo:
Num pas primitivo, povoado por indgenas na Idade da Pedra,
foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a epsto-
la erudita, o sermo e a crnica dos fatos.
21
Alm de paradoxal, o processo tem um significado ideol-
gico que evidencia o papel exercido pela literatura durante a colo-
nizao e a trajetria subseqente da sociedade brasileira:
A histria da literatura em grande parte a histria de uma
imposio cultural que foi aos poucos gerando expresso lite-
rria diferente, embra em correlao estreita com os centros
civilizadores da Europa.
22
A concluso', surpreendente pela convico, motiva a ne-
cessidade de explicar o sentido da palavra "imposio":
Esta imposio atuou tambm no sentido mais forte da pala-
vra, isto , como instrumento colonizador, destinado a impor e
manter a ordem poltica e social estabelecida pela Metrpole,
atravs inclusive das classes dominantes locais.
Com efeito, alm da sua funo prpria de criar formas ex-
43
44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
pressivas, a literatura serviu para celebrar e inculcar os valo-
res cristos e a concepo metropolitana de vida social, conso-
lidando no apenas a presena de Deus e do Rei, mas o mono-
plio da lngua. Com isso, desqualificou e proscreveu poss-
veis fermentos locais de divergncia, como os idiomas, crenas
e costumes dos povos indgenas, e depois os dos escravos afri-
canos. Em suma, desqualificou a possibilidade de expresso e
viso-de-mundo dos povos subjugados.
Essa literatura culta de senhores foi a matriz da literatura
brasileira erudita.
23
Rejeitando, por outra via, o conceito de fundao ou come-
o mtico, tal como fizera na Formao, Candido, na Iniciao,
reitera o carter motivado e pragmtico que acompanha a presen-
a e a ao da literatura no espao americano. Mais explicitamen-
te materialista que nos anos 50, no tem iluses quando ao papel
que exercem os aparelhos culturais e a tradio literria no pro-
cesso de ocupao e colonizao do Novo Mundo. Contudo, no
se deixa levar pela perspectiva reducionista, tratando de evidenci-
ar o modo dialtico com que se d o desenvolvimento da literatu-
ra nas condies impostas pelo meio - fsico, econmico, social-
original. Eis por que lembra que cabe "discemir na literatura bra-
sileira um duplo movimento de formao", decorrente da ao de
dois fatores diversos que requereram harmonizao: de um lado,
a necessidade de converter a realidade observada, diferente da
que caracterizava a literatura europia, em tema artstico, o que
significou inserir o novo no corpo do tradicional; de outro, a ne-
cessidade de alterar as formas convencionais, para que tivessem
condies de absorver os dados locais, o que significou adaptar o
velho s formulaes do at ento desconhecido.
O jogo que se estabelece determina a permanente e
irremovvel tenso experimentada pelos produtores literrios bra-
sileiros, que se expressam com mais intensidade medida que o
sistema se consolida. Esse adquire forma a partir da segunda me-
tade do sculo XVIII, reproduzindo-se na Iniciao o recorte his-
trico proposto na Formao, agora com nome e sobrenome, pois
o perodo designado "era de configurao do sistema liter-
rio", antecedido pela "era das manifestaes literrias" e suce-
23 Id. p. 13.
dido pela "era do sistema literrio consolidado" .24 Sistema, por !4 Id. p. 14. Itlicos do A.
Antonio Candido e o projeto de Brasil
25 Id. p. 15.
26 Em "Literatura e desen-
volvimento", Candido vale-se
mais uma vez da triplice repartio
paraentendere descrever a escala
de re-presentao do subdesen-
volvimento pela literatura
brasileira. Cf. CANDIDO,
Antonio. Literatura e desen-
volvimento. In: _. A educao
pew noite & outros ensaios. So
Paulo: tica, 1987.
27 Cf. VERSSIMO, Jos.
Histria da literatura bra-
sileira. De Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis
(1908).4. ed. Braslia: Ed. da
Universidade de Braslia, 1963.
sua vez, recebe definio ligeiramente diversa, ainda que o pensa-
dor no resista a defini-lo conforme um modelo tridico:
Entendo aqui por sistema a articulao dos elementos que cons-
tituem a atividade literria regular: autores formando um con-
junto virtual, e veculos que permitem o seu relacionamento, de-
finindo uma "vida literria": pblicos, restritos ou amplos, ca-
pazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas
circulem e atuem; tradio, que o reconhecimento de obras e
autores precedentes, funcionamento como exemplo ou justifica-
tiva daquilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar.
25
.
Talvez seja o impacto do mtodo dialtico, debitado a Hegel
e, depois, a Marx, que leve Antonio Candido a repartir em trs
parcelas a noo de sistema que elege, assim como acontece ao
recorte histrico proposto, que apresenta invariavelmente trs eta-
pas.
26
A etapa intermediria corresponde anttese da primeira
desde sua designao, pois, tal como na Formao e em ensaios
posteriores, ope as j mencionadas "manifestaes literrias"
"literatura", correspondendo essa a uma estrutura definida e com-
plexa. Por decorrncia, no pode encampar a diviso usual, prefe-
rida pela historiografia romntica e no desmentida depois, entre
as literaturas anterior e posterior Independncia, diviso aceita
mesmo pelo nada romntico Jos Verssimo, embora esse justifi-
que a repartio em termos estticos, e no exclusivamente hist-
ricos.
27
Com efeito, conforJTle Candido, tanto o que precedeu a se-
parao poltica de Portugal e o Romantismo, quanto esse ltimo
movimento constituem uma nica etapa, relativamente homog-
nea e contnua, caracterizada no por estilos, temas ou escolas,
mas pela adoo de um projeto comum.
na Formao que Candido refere-se pela primeira vez a
esse projeto, descrito ainda na introduo da obra. Dado o fato de
que ele define a natureza da literatura brasileira, desenhando sua
personalidade e percurso, o projeto revela-se metodologicamente
mais importante para a construo da histria literria do que o
reconhecimento do sistema e seu funcionamento. Esse constitui
pr-condio da literatura, mas corresponde a uma armadura que
requer preenchimento, o corpo e a alma traduzidos pelo projeto.
45
46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Que, no caso da literatura brasileira, tem o seguinte teor:
Os escritores neoclssicos so quase todos animados do desejo
de construir uma literatura como prova de que os brasileiros
eram to capazes quanto os europeus; mesmo quando procu-
ram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os
moldes universalistas do momento, esto visando este aspecto.
( ... )
Depois da Independncia o pendor se acentuou, levando a con-
siderar a atividade literria como parte do esforo de constru-
o do pas livre, em cumprimento a um programa, bem cedo
estabelecido, que visava a diferenciao e particularizao dos
temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importncia atri-
buda, neste livro, "tomada de conscincia" dos autores quanto
ao seu papel, e inteno mais ou menos declarada de escrever
para a sua terra, mesmo quando no a descreviam.
28
Ao identificar o projeto que anima os escritores brasileiros,
nascidos ou residentes na Amrica portuguesa, Candido procede
a uma importante inverso. Diferentemente dos historiadores da
literatura que o antecederam (e a alguns que o sucederam), ele
no vai atrs da expresso nacional, que conferiria distino e
autonomia s obras produzidas no torro natal ou relativas a ele.
Pelo contrrio, ele transfere a busca para os autores estudados:
so os intelectuais e criadores de boa parte dos sculos XVIII e
XIX que trataram de se mostrar brasileiros, produzir uma arte
"legitimamente americana", segundo os termos utilizados por Joa-
quim Norberto, antes citados, e, com isso, competirem em p de
igualdade com seus confrades europeus, em vez de emularem-nos.
Candido no incorpora tal busca como sua, de modo que
no precisa cobrar dos homens que fizeram a histria da literatura
brasileira a realizao de uma idia pr-concebida e antecipada pelo
pesquisador. Em vez de ver o tecido pelo avesso, como seguida-
mente agiu a intelectualidade nacional perante seu prprio passado,
ele analisa o lado direito, verificando o que foi alcanado na direo
da realizao de um projeto que fez do Brasil uma nao.
Nao com seus problemas e paradoxos, sem dvida. Como
se observou antes, os romnticos elegeram a literatura para, mais
do que representar, corporificar a nacionalidade; da sua parte,
porm, o pas, povoado por iletrados, na maioria escravos, depois
28 CANDIDO, Antonio.
Formao da literatura
brasileira. V. I, p. 28.
A rota dos romances para o Rio de laneiro no sculo XIX 47
imigrantes oriundos de regies muitos pobres da Europa, s po-
deria frustr-los. Antes disso, como o prprio Candido destaca, a
literatura tinha sido instrumento de dominao, imposio cultu-
ral, incu1cao de valores estranhos aos habitantes originais da
Amrica; tinha sido tambm instrumento de excluso, pois apenas
no sculo XX, e nas ltimas dcadas principalmente, as formas de
expresso populares receberam atestado de legitimidade artstica,
podendo ser inseridas ao cnone e circular pela escola e pelas
instituies culturais.
Por tudo isso, a literatura parecia o veculo menos adequa-
do a passar atestado de autonomia e nacionalidade a seus usuri-
os. Foi ela, contudo, que recebeu a incumbncia, e narrar sua his-
tria igualmente acompanhar um trajeto de muitos fracassos e
poucos sucessos. Trata-se, porm, de uma histria consolidada,
frgil no que diz respeito aos resultados, mas resistente enquanto
itinerrio compacto e contnuo. Entend-la eqivale a entender a
ns mesmos e a nosso lugar no trajeto percorrido, tendo, sempre
que possvel, a obra de Antonio Candido como nosso guia.
A rota dos romances para o Rio de
Janeiro no sculo XIX
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos
(USP)
o objetivo principal deste artigo lanar luz sobre o merca-
do livreiro europeu das primeiras dcadas do sculo XIX, com
especial nfase nos editores que exerceram um papel fundamental
na disponibilizao e circulao dos romances ingleses no Brasil
oitocentista. O interesse principal, aqui, recai sobre os mecanis-
mos e prticas de mercado que possibilitaram que o principal porto
brasileiro naquele perodo fosse um dos centros de irradiao e dis-
seminao dos romances para o restante do territrio nacional. Tra-
ta-se de investigar um dos importantes atores no processo de difu-
so do gnero, na medida em que foram responsveis por criar con-
dies materiais para a implantao do romance tambm no Brasil.
O assunto de que vou tratar aqui foge do terreno propria-
mente literrio. Ele forma, porm, junto com outros componen-
tes, tais como a disponibilidade de equipamentos e bens culturais
e a instituio de espaos pblicos de leitura, a base material que
possibilitou o acesso dos leitores aos livros durante o perodo que
se seguiu chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em
1808. A abertura dos portos s naes amigas e os interesses co-
merciais em ambos os lados do Atlntico favoreceram a integrao
do pas no mercado livreiro internacional, que experimentava, por
sua vez, um momento de notvel expanso mundial. O ato do
Prncipe Regente ocorria, ao que tudo indica, num momento bas-
tante propcio para os livreiros europeus, ansiosos por expandi-
rem suas vendas e encontrarem novos consumidores para os li-
vros que imprimiam e vendiam.
Antes de penetrar nesse territrio, no entanto, gostaria de
explorar alguns dos argumentos que Franco Moretti apresenta em
49
50 Revista Brasileira de Literatura n.9, 2006
seu Atlas do Romance Europeu
l
, para, por um lado, confirmar
algumas de suas observaes, e por outro complicar ligeiramen-
te o quadro que ele desenha dos mercados narrativos por volta
da primeira metade do sculo XIX. Entre suas principais teses,
Moretti demonstra a existncia, nesse perodo, do que ele deno-
mina de "duas superpotncias narrativas" - a Gr-Bretanha e a
Frana - como centros produtores e exportadores de fico, fato
que em si no deveria causar estranheza na medida em que esse
predomnio apenas reproduziria, no plano literrio, o papel cen-
tral que a base franco-britnica exerceu na "transformao do
mundo entre 1789 e 1848"2. Os mapas de Moretti se restringem
aos circuitos percorridos pelos romances franco-britnicos no res-
tante da Europa e lhe permitem afirmar que, "na maior parte dos
pases europeus, a maioria dos romances so, muito simplesmen-
te, livros estrangeiros"3. Embora no tenha sido seu propsito
incluir na sua geografia literria os pases deste lado de c, se o
tivesse feito, as constataes de Moretti dificilmente seriam di-
ferentes. Da mesma maneira que hngaros, italianos, dinamar-
queses e gregos
4
, tambm os leitores brasileiros iriam se famili-
arizar com o novo gnero por meio dos romances ingleses e
franceses que, predominantemente, passaram a circular no Rio
de Janeiro de modo cada vez mais significativo a partir das pri-
meiras dcadas do sculo XIX e a se espraiar para as outras
provncias do Imprio logo em seguida. O Brasil integrava-se,
dessa forma, s rotas transatlnticas do mercado literrio, que
tinha seu centro na Frana e na Gr-Bretanha.
Restaria, assim, verificar se o que Moretti l nos mapas eu-
ropeus, a preponderncia expressiva dos romances cannicos e
um "padro regular e montono" de entusiasmo pelos mesmos
tipos de livros - ou, em suas prprias palavras, "uma Europa
unificada por um desejo pelo que Peter Brooks chamou de 'ima-
ginao melodramtica"'5 -, tambm vale para caracterizar as
obras de fico que se alugavam ou vendiam nas boticas e livrari-
as e que se emprestavam nos gabinetes de leitura e bibliotecas
fluminenses. Um exame dos romances disposio dos leitores
brasileiros revela no apenas uma espcie de monoplio das es-
tantes por autores como, por exemplo, Walter Scott, Charles
Dickens, Daniel Defoe e Eugene Sue, mas tambm exibe uma in-
teressante diversificao de ttulos e subgneros novelsticos, pos-
I Franco Moretti. Atlas of the
Europea1l Novel, 1800-1900.
London. Verso, 1999. Trad.
bras.: Atlas do Roma1lce
Europeu, 1800-1900. Trad.
Sandra Guardini Vasconcelos.
So Paulo. Boitempo, 2003.
Ver captulo 3, "Mercados
narrativos, c. 1850", p. 153-
208.
2 Eric J. Hobsbawm. Ver
prefcio, A Era das
Revolues, Europa J 789-
1848_ Trad. Maria Tereza
Lopes Teixeira e Marcos
Penchel. Rio de Janeiro. Paz e
Terra, 1977, p.l5.
3 Moretti, p. 197.
4 Moretti, p. 197.
, Moretti, p. 187.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 51
6 Ver Jos de Alencar. "Como e
porque sou romancista". Obra
Completa. Rio de Janeiro, Ed.
Jos Aguilar, 1959, vol. I, 125-
155.
7 Silver{ork: designao jocosa
para se referir aos romancistas
de princpios do sculo XIX que
tratavam da vida e dos
costumes elegantes, derivada
das descries que o Fraser 's
Magazine fazia de Edward
Bulwer-Lytton como "polidor
de garfos de prata". Embora
Lytton afirmasse que seus
propsitos eram satricos, esses
romances ofereciam aos leitores
uma experincia vicria da vida
em sociedade. Entre os
romancistas "silver-fork"
encontravam-se Lady Charlotte
B ury, Lady Blessington,
Benjamin Disraeli e Catherine
Gore, cujos romances encon-
tramos nos acervos dos
gabinetes de leitura flumi-
nenses.
, Na sua anlise da produo e
circulao do romance na
Europa, Moretti se vale da
teoria de Wallerstein para
identificar os pases que
pertenceriam ao centro,
semi periferia e periferia do
sistema. Ver op. cit., p. 184.
9 Moretti, p. 190.
10 Moretti, p. 191.
sivelmente facilitada pela posio perifrica do Brasil nesse mer-
cado. Isto , para c os livreiros mandaram um pouco de tudo:
Richardson e Marivaux, Lesage e Sterne, Radcliffe e Paul de Kock,
Charlotte Bronte e Chateaubriand, Bulwer-Lytton e Fenlon,
Fielding e Dumas, s para citar alguns freqentadores assduos
dos anncios de jornal ou dos catlogos dos gabinetes de leitura
desse perodo. Chegaram igualmente aqueles que Moretti afirma
no terem tido presena significativa nos outros pases da Europa
alm da Gr-Bretanha e Frana, como as aventuras do Capito
Marryat, to apreciadas por Jos de Alencar
6
, Ainsworth, Miss
M.Elizabeth Braddon, Wilkie Collins, ou Georgiana Fullerton, as
"industrial noveIs" de Elizabeth Gaskell e os romances "silver-
fork"7. Poderamos pressupor, portanto, que essa diversidade te-
ria colocado em circulao no Brasil um amplo e importante acer-
vo de temas, formas, procedimentos e tcnicas para os primeiros
brasileiros que se arriscaram no terreno da fico. Talvez mais
amplo do que tiveram sua disposio seus sucedneos nos pa-
ses da semi-periferia e da periferia da Europa.
8
Por outro lado, ao atribuir a seleo a foras culturais parti-
culares de cada lugar - "o padro geogrfico sugere uma afinida-
de cultural entre a forma especfica e o mercado especfico"9 -,
Moretti deixa na sombra um dos elos fundamentais nessa cadeia
de circulao, pois sequer menciona o papel exercido pelo comr-
cio livreiro no processo. No seria razovel imaginar que, numa
fase de industrializao da produo de livros, os interesses co-
merciais possam tambm ter estado na base dessas exportaes?
Se assim for, possvel complicar ligeiramente o quadro dos mer-
cados narrativos construdo por Moretti trabalhando com a hip-
tese de que no so necessariamente "o catolicismo que 'selecio-
na' os romances religiosos para o pblico italiano" ou "a maior
emancipao das mulheres [que] seleciona narrativas de livre es-
colha emocional nos pases protestantes"lO os nicos fatores res-
ponsveis pela circulao de certas obras, e no de outras, nos
diferentes pases. A concluso lgica nos levaria a supor, dessa
maneira, que, se de um lado os pases importavam os livros, na
outra ponta livreiros de olho no mercado podem muito bem ter
imposto escolhas e padres de gosto, apostando no que j havia
sido previamente testado, aprovado e se mostrara bem-sucedido
no centro do sistema.
52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Nessa perspectiva, o comrcio livreiro se juntaria aos ou-
tros componentes do circuito de circulao dos livros, tais como
os jornais, os peridicos especializados e os crticos, nessa funo
de mediao e de estabelecimento de um cnone literrio que, no
caso do romance, foi se construindo paulatinamente desde o s-
culo XVIII. As disputas e polmicas entre livreiros, crticos e pe-
ridicos so um captulo curioso da histria do romance ingls
setecentista e do bem a medida de quo influente era sua ativida-
de e quo explcitos os seus interesses comerciais.
ll
Essas so algumas das trilhas que gostaria de explorar nesse
ensaio, na tentativa de retraar os caminhos dos romances da Eu-
ropa para o Brasil, na primeira metade do sculo XIX. evidente
que no se pode esquecer a presena dos livreiros franceses e
portugueses no Rio de Janeiro entre 1808 e a suspenso da censu-
ra em 1821, estudados por Maria Beatriz Nizza da Silva, Lcia
Maria Pereira das Neves, Tnia Bessone e Leila Algranti 12. Como
salienta essa ltima, esse foi um perodo em que vrias casas e
editoras de origem francesa, estabelecidas em Portugal desde o
sculo anterior, "comearam a abrir filiais no Brasil, enviando seus
representantes para atuarem no comrcio de livros"13 , atividade
que, a essa altura, no era especializada - "eram negociantes que
em meio a vrias quinquilharias e objectos de luxo tambm vendi-
am livros" .14 Havia, ainda, os negociantes franceses que, fugindo
da Restaurao ou em busca de melhores condies de vida, ha-
viam entrado no Brasil a partir de 1815 e que, estabelecidos em
diferentes tipos de negcio, vendiam livros.1
5
Por ora, entretanto,
pode ser proveitoso inverter a direo do olhar e buscar recons-
truir os circuitos de que participaram os homens que fizeram a
histria do livro na Europa no sculo XIX.
No cabe, aqui, investigar de forma exaustiva o comrcio
livreiro nessa primeira metade do sculo XIX, mas creio ser pos-
svel desenhar um quadro desse momento de expanso do comr-
cio internacional do livro na Europa e arriscar algumas hipteses
sobre seu impacto na circulao de livros em nosso pas, naquele
perodo. Quero salientar que, embora meu recorte sejam sempre
os romances ingleses, eles so representativos desse comrcio in-
ternacional, que engloba britnicos, franceses, portugueses e as
to conhecidas contrafaes belgas. De qualquer forma, essa ex-
panso do comrcio europeu e os efeitos que surtir por aqui s
11 Ver Sandra Guardini T.
Vasconcelos. A Formao do
Romance Ingls. Ensaios
Tericos. Faculdade de Filo-
sofia, Letras e Cincias
Humanas, Universidade de So
Paulo, 2000. Tese de Livre-
Docncia, 3 vol.
12 Maria Beatriz Nizza da Silva.
Livro e sociedade no Rio de
Janeiro (1808-1821), Revista
de Histria, vol. XLVI, n. 94,
abril-junho 1973, p. 441-457;
Lcia Maria Bastos Pereira das
Neves. Comrcio de livros e
censura de idias: A acti-
vidade dos livreiros franceses
no Brasil e a vigilncia da
Mesa do Desembargo do Pao
(1795-1822). Ler Histria, n.
23, 1992, p. 61-78; Leila
Mezan Algranti. Censura e
comrcio de livros no perodo
de permanncia da corte por-
tuguesa no Rio de Janeiro
(1808-1821). Revista Portu-
guesa de Histria, voI. 23, n.
1,1999,p.631-663.
13 Leila Mezan Algranti.
Poltica, religio e mora-
lidade: a censura de livros no
Brasil de D. Joo VI (1808-
1821). In: Maria Luiza Tucci
Carneiro (org.). Minorias
Silenciadas. Histria da Cen-
sura no Brasil. So Paulo,
EDUSP/ Imprensa Oficial do
EstadG"FAPESp, 2002, p. 1Il-112
14 Lcia Maria Bastos Pereira
das Neves, op. cit., p. 64.
i5 Ver Tnia Bessone da C.
Ferreira e Lcia Maria Bastos P.
das Neves. Livreiros franceses
no Rio de Janeiro: 1808-1823.
Histria Hoje: Balano e
Perspectivas. IV Encontro
RegionaldaANPUH-RJ.Riode
Janeiro, Associao Nacional
dos Professores Universitrios
de Histria, 1990, p. 190-202.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX
16 Depoimentos de comer-
ciantes estrangeiros no Rio de
Janeiro, na dcada de 1810, do
notcia das dificuldades e
demora na entrega dos produtos
e no desembarao alfandegrio
e da falta de infra-estrutura
porturia. Ver Herbert Heaton.
A Merchant Adventurer in
Brazil 1808-1818. The
Journal of Economic History,
vol. 6, n. I, maio de 1946.
17 Ver Frdric Barbier. Le
Commerce Intemational de la
Librairie Franaise au XIXe
Siecle (1815-1913). Revue
d'Histoire Moderne et
Contemporaine. Torne XXVIII,
janvier-mars 1981,p. 94-I17.
18 Fonte: National Archives
(PRO), CUST 9/1 e CUST 9/
35, respectivamente.
19 Barbier, op. cit., p. 11 O.
20 "De la situation actuelle de la
librairie et particulierernent des
contrefaons de la librairie
franaise dans le nord de
l'Europe", in Revue Britannique,
Paris, torne XXVI, 4e. srie, mars
1840, 52-97. A revista traz um
quadro com valores comparativos
pgina 80.
iro se fazer sentir a partir da dcada de 30, quando o Brasil j
gozava de sua condio de pas politicamente independente.
Em tomo do decnio de 1840, as inovaes, melhorias e
maior rapidez nos transportes terrestres (ferrovias) e martimos
(vapores), nas transaes bancrias
l6
e nos servios postais, as
mudanas nas tcnicas de impresso e nos modos de produo e
distribuio, somadas expanso do pblico leitor graas ao au-
mento da alfabetizao, comeavam a facilitar significativamente
a circulao dos livros na Europa. O comrcio livreiro, a partir
principalmente de Londres e Paris, passou por um processo de
profissionalizao, com a substituio do antigo "bookseller" res-
ponsvel pela impresso, edio e venda ou aluguel de livros, pela
figura do "publisher", o editor moderno especializado apenas na
edio dos livros. Alm disso, a reordenao jurdica do comrcio
livreiro internacional, que passou a incluir convenes, leis de
propriedade literria e acordos bilateriais entre editores, possibili-
tou estabelecer redes de vendas, permitindo o contato e a relao
direta entre profissionais, por meio da figura do livreiro comissrio
permanente. Muitas vezes, o livreiro exportador acabava por fun-
dar uma verdadeira sucursal no exterior, por intermdio de um mem-
bro da sua prpria famlia
l7
, como foi o caso de B.L. Garnier no
Rio de Janeiro a partir de 1844. A abertura dos portos brasileiros
ocorria, portanto, num momento absolutamente auspicioso para os
livreiros europeus. J em 1812, os registros alfandegrios da Gr-
Bretanha informavam exportaes da ordem de f346 em "livros
impressos". E se at 1848 seu crescimento esteve longe de ser ex-
cepcional, tendo atingido apenas f404 naquele ano
lS
, a participa-
o da Frana aparece como muito mais expressiva, com 11 tonela-
das de livros em portugus e em latim impressos ali e enviados ao
Brasil em 1821.
19
Segundo dados da Revue Britannique, no ano de
1838 a Frana expediu 230.000 francos em livros para o Brasil, ao
passo que no ano anterior as contrafaes belgas que tambm tive-
ram o nosso pas como destino haviam somado 16.000 francos.
2o
A anlise das referncias bibliogrficas relativas aos roman-
ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro apresenta resultados
interessantes do ponto de vista da atividade editorial europia. Longe
de exibir uma concentrao, no entanto, o total de 99 autores e 502
ttulos coletados se divide entre casas editoriais diversas e proce-
dncias vrias, como podemos verificar nos quadros abaixo:
53
54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Autores britnicos (identificados)
Sc. 18 Sc. 19
30 69
Obras annimas
Sc. 18 Sc. 19
11 24
Lngua
Ingls
Francs
Portugus
Espanhol
Editoras: origem
Frana
Inglaterra
Portugal
Blgica
Sem dados
9
225 ttulos
146 ttulos
128 ttulos
3 ttulos
Alemanha (Leipzig)
Brasil (Rio de Janeiro)
EUA (Nova York)
Sua (Genebra)
84 ttulos
81 ttulos
40 ttulos
33 ttulos
24 ttulos
11 ttulos
11 ttulos
2 ttulos
Tamanha disperso dos ttulos por tantas editoras europias
obriga a levantar diferentes hipteses para tentar explicar o cami-
nho desses livros at o Brasil. Do lado de c, as licenas concedi-
das pela Mesa de Desembargo do Pao do testemunho das ativi-
dades de livreiros como Paulo Martim Filho (estabelecido Rua
da Quitanda), Joo Roberto Bourgeois, que no s fazia negcios
com Luanda, Lisboa, Porto e Londres, mas enviava livros do Rio
de Janeiro para diversos cantos do Brasil, e Pierre Constant Dalbin,
que foi tambm editor de obras de Cervantes, Fnelon,
Chateaubriand e Lesage, entre outros.
21
Alm disso, sabemos, por
exemplo, que, assim que se abriram os portos em 1808, "os brit-
nicos chegaram em grande nmero. Por volta de agosto, tinham
entre 150 e 200 comerciantes ou agentes comerciais no Brasil".22
21 Tnia Bessone da C. Ferreira
e Lcia Maria Bastos P. das
Neves. Livreiros franceses no
Rio de Janeiro: 1808-1823. p.
194 e ss. Fernando Guedes
informa que a casa Rolland
tinha entre seus "importantes e
perdurveis clientes no Rio de
Janeiro" um certo Joo Baptista
Bourgeois. com quem Rolland
fez "negcios entre 1798 e
1815". Ver Fernando Guedes.
O Livro e a Leitura em
Portugal. Lisboa. Ed. Verbo,
1987. p.148-150. nota 1.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 55
22 Rory Miller. Britain and
Latin America in the
Nineteenth and Twentieth
Centuries. Longman, 1993, p.
42. Herbert Heaton: "Por volta
do final de 1808 haviam sido
enviados ao Rio de Janeiro
produtos britnicos no valor de
pelo menos cinco milhes de
dlares. Com eles ou antes deles
foram os comerciantes britnicos
ou agentes comissionados s
vintenas. Em setembro, era
possvel reunir sessenta e duas
firmas britnicas no Rio para
subscrever um abaixo-assinado;
e, uma vez que eles descreviam a
si mesmos como compreendendo
'uma grande maioria dos
comerciantes respeitveis
residentes aqui', parece seguro
supor que, se acrescentsssemos
a minoria e os no respeitveis,
alcanaramos um total de cem
negociantes britnicos apenas no
Rio." In: A Merchant
Adventurer in Brazil 1808-
1818, op.cit., p. 6.
23 Ver Geoffrey Jones.
Merchants to Multinationals.
British Trading Companies in
the Nineteenth and Twentieth
Centuries. Oxford, Oxford
University Press, 2000. H
notcia de que 60 casas
comerciais britnicas estavam
funcionando no Rio de Janeiro
em 1820. Ver D.C.M. Platt.
Latin America and British
Trade, 1806-1914. London,
Adam & Charles Black, 1972.
24 Nelson Schapochnik
menciona o gabinete de leitura
de Cremire, na Rua da
Alfndega, e os de Mongie,
Dujardin e Mad Breton, na Rua
do Ouvidor. Veja "Contextos de
Leitura no Rio de Janeiro do
sculo XIX: sales, gabinetes
literrios e bibliotecas", in
Stella Bresciani (ed.). Imagens
da Cidade. Sculos XIX e XX.
(ANPUH/So Paulo: Marco
ZeroIFAPESp, 1993), 147-162.
Villeneuve, Didot, Mongie,
Crmire, Garnier, Plancher,
Dujardin eram alguns desses
livreiros.
Muitos comeavam como "commission merchants" e serviam como
agentes dos fabricantes e atacadistas britnicos, negociando dire-
tamente com eles. Mais importante mercado latino-americano para
a Gr-Bretanha at o final do sculo XIX23 , quando foi suplanta-
do pela Argentina, o Brasil portanto passou a fazer parte de uma
rede que, alm dos negcios diretos com as editoras europias,
muito provavelmente se valeu dos correspondentes e dos viajan-
tes para estabelecer as rotas percorridas pelos romances at che-
gar aos leitores brasileiros. O mercado livreiro local, mesmo que
incipiente no inci0
24
, logo se expandiu a ponto de tornar possvel,
algumas dcadas mais tarde, encontrar livros publicados por Aillaud
e Hachette em Paris, por Routledge e Bentley em Londres, ou
Bernhard Tauchnitz em Leipzig. Ele se mostrava, dessa forma,
extraordinariamente atualizado em relao s modas literrias eu-
ropias, e adotava prticas semelhantes s da famosa Mudie's
Library25, que incluiu a ttica de anunciar sua seleta de livros nos
jornais para aquecer as vendas e acabou por se transformar na
melhor propaganda que podia haver para qualquer romance. A
biblioteca circulante de New Oxford Street possua um Departa-
mento de Exportao para os excedentes e recebia encomendas
no s do continente europeu, mas tambm de locais to distantes
quanto So Petersburgo, ndia, China e Amrica.
26
Seu maior ri-
val era W.H. Smith, que abriu sua primeira banca de livros na
Euston Station, em Londres, e por volta de 1862 possua uma
rede de 185 filiais em estaes ferrovirias inglesas, fazendo ne-
gcios e entregas em toda a Inglaterra e tambm no estrangeiro.
O tamanho desses empreendimentos pode justificar o comentrio
de Anthony Trollope em 1870: "We have become a novel-reading
people [ ... ]"27.
A histria do acesso da burguesia cultura letrada, no scu-
lo XVIII, e, posteriormente, da classe operria ao mundo da fic-
o, no sculo XIX ingls se fizera graas formao de um cir-
cuito de que participaram livreiros, bibliotecas circulantes e edi-
es cada vez mais acessveis, colocando o livro ao alcance de um
nmero cada vez maior de pessoas. Esses circuitos letrados foram
fundamentais na formao do leitor mdio. Concorreram para isso
colees como a Routledge's Railway Library, a Bentley's Standard
NoveIs, a The Parlour Library (com 279 ttulos publicados entre
1847 e 1863) e a Routledge's Standard NoveIs, que reuniam ro-
56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
mances tanto do sculo XVIII quanto do sculo XIX, como por
exemplo Caleb Williams, Thaddeus of Warsaw, Frankenstein,
Hungarian Brothers, Otranto, Vathek, St. Leon. A Bentley's
Standard NoveIs, cujas trs sries somaram 158 volumes
28
, repre-
sentou um notvel avano no processo de democratizao de lei-
tura, graas s suas edies baratas de romances conhecidos.
Michael Sadleir afirma que "( ... ) quando [os editores] lan-
aram a srie [Bentley's Standard NoveIs] no a planejaram
deliberadamente como uma srie barata de fico popular con-
tempornea, mas sim como uma tentativa de registrar a fama per-
manente de certos romances escritos desde o grande perodo do
romance do sculo XVIII, que, entretanto, no haviam sido
republicados adequadamente at o momento, de forma barata e
acessvel"29. Entretanto, o fato que essas colees contriburam
decisivamente para disponibilizar obras de fico a um contingen-
te cada vez mais substantivo de leitores. Pblico para isso havia,
j que a classe operria havia comeado a ganhar acesso educa-
o formal na Inglaterra oitocentista. (Enquanto na dcada de 1790
Edmund Burke estimava a dimenso do pblico leitor na Gr-
Bretanha em cerca de 80.000 indivduos, em torno de 1814 a
Edinburgh Review contabilizava no menos de 200.000 pessoas
dos setores mdios da sociedade como o pblico para as leituras
de entretenimento e instruo.)30
Iniciada em 1831, com 126 volumes, a coleo da Bentley's
Standard NoveIs s se encerrou em 1862, constituindo-se, ainda
de acordo com Sadleir, "num marco da histria da publicao de
edies baratas". Em 1849, a Routledge lanava a sua prolfica,
bem-sucedida e longeva Railway Library que, sem qualquer pre-
tenso de ater-se a textos significativos, tinha como objetivo pu-
blicar fico popular a preos populares. At 1899, havia publi-
cado 1.277 ttulos, os famosos "yellowbacks", livros de formato
pequeno e baixo preo vendidos nas bancas das estaes ferro-
virias, para serem lidos durante as viagens de trem e que re-
ceberam essa denominao por causa de suas capas cuja cor pre-
dominante era o amareloY Acrescente-se ainda a Smith, Elder's
Library of Romance, com apenas 15 volumes, formada por fico
completamente original e especializada nas histrias romanescas,
como o prprio ttulo da coleo indica
32
. Muitos desses livros
aqui chegaram ainda em suas edies originais, no traduzidas,
" Tendo iniciado suas
atividades com uma pequena
loja em 1844, Charles Edward
Mudie expandiu seus negcios
em 1852, tendo se tomado um
dos mais influentes livreiros do
sculo XIX ingls. Era
conhecido como "Leviat
Mudie". Ver Guinevere Griest.
Mudie's Circulating Library
and the Victorian Novel.
David & Charles, [1970].
26 Ver William C. Preston.
Mudie's Library. Rep. Good
Words, October 1894;
Guinevere Griest, op. cit.
27 G. Griest, op. cit.[nmero de
pgina no recuperado 1
28 Priorizando novas tiragens
de romances em formato
acessvel e em grande escala,
essa coleo marcou poca
com suas trs sries: la. srie
(1831-1854, com 126 ttulos;
2a. srie (1854-1856), com 22
ttulos; 3a. srie (1859-1862),
com 10 ttulos, agora sob o
nome geral de "BentIey's
Popular Noveis". Ver Michael
Sadleir, XIX-Century Fiction.
A bibliographical record
based on his own collection.
London, Constable & Co.,
1951,2 vols.
29 No original: "In other words,
when they [the editors]
launched the series they did not
deliberately foresee it as a
cheap-edition series of current
popular fiction, but rather as an
attempt to register the
permanent fame of certain
noveis written since the great
period of eighteenth-century
novel-writing, but not hitherto
fittingly reprinted in handy and
cheap form". Michael Sadleir,
op. cit., vol. 2, p. 94.
300S dados podem ser
encontrados em William SI.
Clair, The Reading Nation in
the Romantic Period.
Cambridge ,C ambridge
University Press, 2004.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 57
" Ver Chester Topp. Victorian
Yellowbacks and Paperbacks,
1849-1905. Denver, Hennitage
Antiquarian Bookshop, 1993-
1999,4 vols; Michael Sadleir.
Collecting "Yellowbacks"
(Victorian Railway Fiction).
Constable, London, [1938], p.
127-161.
31 A Smith, Elder & Co. foi
fundada em 1816eeraumadas
editoras de grande prestgio no
sculo XIX, tendo publicado
Charlotte Bronte, William
Thackeray, Anthony Trollope,
Elizabeth Gaskell e George
Eliot. Ver Robin Myers &
Michael Harris. A Genius for
Letters. Booksellers and
Bookselling from the 16th to
rhe 20th century. Winchester,
St. Paul's Bibliographies;
Delaware, Oak Knoll Press,
1995. Foi a Smith, Elder & Co.
que publicou o Catlogo da Rio
de Janeiro British Subscription
Library.
lJ Os dados podem ser
encontrados em Richard D.
Altick. The English Common
Reader. A Social History ofthe
Jfass Reading Public, 1800-
1900. 2nd ed. Columbus, Ohio
State University Press, 1998.
Ver Appendix B, p. 383-384.
" Romances publicados em
srie ao preo de um penny
(moeda inglesa).
como o caso de Marryat, W.H. Ainsworth e G.P.R. James (dig-
nos representantes da Railway Library), dos annimos The
Disinherited and The Ensnared e The Mascarenhas, da Smith,
Elder & Co. Outros, chegaram em traduo, vindos de Lisboa,
Paris, Bruxelas ou Leipzig, como o caso de M. Banim, M.E.
Braddon, Wilkie Collins, etc.
A aposta na edio ou reedio em colees baratas dos
romances favoritos do pblico (entre os 279 ttulos da The Parlour
Library, por exemplo, se reeditaram romancistas como Elizabeth
Gaskell, Jane Austen, Elizabeth Inchbald, Anne Bronte, Jane
Porter, etc.) rendeu vendas que nos deixam espantados, mesmo
dentro dos padres dos dias de hoje: Guy Mannering, de Scott,
vendeu 2.000 cpias no dia seguinte ao de sua publicao; Rob
Roy, tambm de Scott, vendeu 10.000 numa quinzena e mais de
40.000 at 1836; Pickwick Papers, de Dickens, vendeu um total
de 800.000 exemplares at 1879; A Christmas Carol, tambm
de Dickens, vendeu 16.000 s no dia de sua publica0
33
So
nmeros que impressionam no s como indicadores de verda-
deiros fenmenos editoriais - os best-sellers do sculo XIX -
mas tambm porque so prova concreta da existncia de um cr-
culo cada vez maior de leitores e de um processo inegvel de
democratizao do acesso ao livro.
As edies baratas no se restringiram aos romances do s-
culo XVIII ou aos escritores mais consagrados como Scott e
Dickens. Aos poucos, elas deram lugar produo de novos tipos
de fico para atender mudana de gosto dos leitores das classes
mais baixas. Os velhos romances reeditados em novas tiragens
haviam prestado um bom servio mas decerto devem ter comea-
do a parecer fora de moda aos novos leitores citadinos - sua lin-
guagem era destoante e soava antiquada, a vida que retratavam
parecia estranha e era necessrio um estilo mais contemporneo,
mais prximo e adequado aos novos tempos.
Decorrente da industrializao e da migrao do campo para
a cidade, a formao de uma nova cultura urbana, se deu incio a
uma era de fico de massa, nas dcadas de 1840 e 1850, confir-
mou no. gosto popular os nomes de Ann Radcliffe, cuja influncia
na fico popular foi enorme, e de Walter Scott, cujo Ivanhoe foi
onipresente e gozou de uma popularidade que atravessou o scu-
lo. As penny-issue novels
34
, embora tenham elegido outros temas
58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
e interesses, mais afeitos a essa cultura urbana, fundiram o gtico
e o histrico e imitaram exaustivamente esses modelos. Segundo
Louis James
35
, The Pickwick Papers (1836-7) de Dickens foi o
livro mais plagiado de seu tempo. As penny-issue noveis esto
fora do escopo dessa discusso, mas o que interessa ressaltar aqui
que, com freqncia, foram as edies baratas dos romances
populares na Inglaterra que chegaram ao Rio de Janeiro.
At 1829, as vinte e cinco Waverley noveis de Walter Scott
haviam vendido 500.000 exemplares e at 1860, em torno de 2 a
3 milhes
36
Scott tambm teve papel fundamental na consolida-
o de um formato de edio que se iniciou com seu Waverley, em
1814. Como significava bons negcios para as bibliotecas
circulantes e gabinetes de leitura porque podia ser alugado para
trs leitores simultaneamente, o romance em trs volumes virou
moda pelas mos de Charles Edward Mudie, que no s ajudou a
difundi-lo como lhe conferiu status, dignidade literria e serieda-
de, em comparao com os "yellowbacks", considerados leitura
leve e de entretenimento. Mais importantes, porm, foram as con-
seqncias que esse formato teve na prpria estruturao dos ro-
mances pelos romancistas, que se viram obrigados a lev-lo em
conta e passaram a adequar suas narrativas extenso dos "three-
deckers": o uso de incidentes, a tendncia a longas descries, os
enredos mltiplos, a nfase nos retratos das personagens, a rique-
za de detalhes, as digresses autorais, as reflexes ou as conver-
sas com o leitor. No se trata, como se poderia supor, de simples
pormenores, uma vez que esses procedimentos sero aqueles que
se tornaro familiares tambm para os nossos escritores, desse
lado de c do Atlntico.
Enquanto Richard Bentley logo adotou, tambm ele, o for-
mato dos trs volumes mas tratou de baixar os preos, e George
Routledge e W. H. Smith apostavam nas "railway libraries", os
editores franceses imediatamente reagiram com edies baratas
(caso de Charpentier, Levy e Hachette, entre 1838 e 1855)37 e
com as colees do "chemin de fer"38 . Assim como os ingleses,
tambm eles haviam se aberto para o estrangeiro (Gosselin,
Bossange e Didot eram livreiros exportadores), chegando alguns
inclusive a se instalar nas colnias, ou ex-, como foi o caso das
falTI11ias Bossange e Garnier, no Rio de Janeiro.
39
Os irmos Michel
e Calman Levy, por exemplo, criaram uma biblioteca familiar a
35 Louis James. Fictionfor the
working man, 18301850.
London, Penguin, 1974.
36 Ver WiIliam St. Clair, op.cit.,
ver quadro p. 221.
37 Jean. Yves MoIlier. L'Argent
et les Lettres. Histoire du
Capitalisme d'dition, 1880-
1920. Paris, Fayard, 1988.
38 Em lo de abril de 1852,
Louis Hachette props-se, em
nota s Compagnies de
Chemins de Fer, a publicar o
sucedneo francs das "railway
noveis": "MM. L. Hachette et
Cie ont eu la pense de fare
toumer les 10isirs forcs et
l'ennui d'une longue route au
profit de I' agrment et de
l'instruction de tous." Cf. Jean
Mistler, La Librairie Hachette
de 1826 nos jours. Paris,
Hachette, c. 1964, p. 123.
40
Mollier, L'Argent et les Lettres,
p.365. Ver tambm Jean
MistIer, op. cit., p. 269.
39 Baptiste-Louis Gamier (1823-
1893) foi o irmo que se
estabeleceu no Rio de Janeiro em
I 844,segundoinforma Laurence
Hallewell. O Livro no Brasil. so
Paulo,EDUSP, 1985,p. 127-128.
Martin Bossange, por sua vez,
juntamente com seus dois filhos
Adolphe e Hector, forma urna
empresa familiar com ramifi-
caes internacionais, com lojas
emLeipzig,Madri,noMxico,em
Montral, Npoles, Nova Iorque,
OdessaeRiodeJaneiro. VerDiana
Cooper-Richet. L'imprim en
Iangues trangeres Paris ao XIXe
siecle: lecteurs, diteurs, supports.
In: Revue franaise d'/stoire du
livre, ns. 116-117, 3e e 4e
trirrestres, 2002, p. 203-235 (p. 213).
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 59
40 Mollier, L'Argent et les
Lettres, p. 365. Ver tambm
Jean Mistler, op cit., p. 269.
41 A Revue Britannique de
maro de 1840 ressaltava a
importncia dos colporteurs e
da colportage na distribuio
dos livros. Ver nota 16.
42 Jean-Yves Mollier, op. cito
43 Ver Jean-Franois Botrel. La
librairie "espagnole" en France
au XIXe siecle. In: Jean-Yves
Mollier. Le Commerce de la
Librairie en France au X/Xe
siecle, /789-1914. Versailles,
IMEC ditions; Paris, ditions
de la Maison des Sciences de
I'Homme, p. 292-3. Nota
explicativa: quintal uma
antiga medida de peso
equivalente a 4 arrobas; um
quintal mtrico equivale a cem
quilogramas.
44 Frdric Brubiec lb! Publishing
Industry and Printed Output in
Nineteentb-Centwy France. In:
Kennetb Carpenter (ed.). Books
andSociety in History. New Yorlc,
R.R. Bowker, 1983, p. 199-230
[p.205].
45 Jean-Yves Mollier, L'Argent et
/es Lettres, p. 91.
46Williamst. Oair,op.cit., p. 296-
297. Segundo Diana Cooper-
Richet, Giovanni Antonio
GaIignani insta1anocentm de Paris
uma livraria, um gabinete de
leitura e uma casa editora, consa-
grados literatura britnica e a
jornais em ingls, enquanto Louis-
Claude Baudry lana. em 1829, a
coleo Ancient and modem
BritishAuthors, com 32 ttulos. A
partir dos anos 30, Galignani e
Baudry iriam se associar, ofere-
cendo aos leitores Walter Scott,
Maria Edgeworth, Dickens e
Thackeray. Ver L'imprim en
languestrangres Paris au XlXe
siecle: lecteurs, diteurs, supports.
In: Revue franaise d'histoire du
livre,ns.1l6-1l7,3ee4etrimestres,
2002, p. 203-235.
um franco o volume e, em 1889, seu catlogo contava com 1.414
ttulos de 277 autores, a includos Dickens, Ann Radcliffe e G.R.
Reynolds,40 Enquanto uma rede de colporteurs
41
e de viajantes
comerciais ou vendedores itinerantes (os "commis voyageurs")
era o ponto de contato entre os comerciantes e os clientes e con-
sumidores e garantia as exportaes para a Amrica do Sul duran-
te o sculo XIX42, os nmeros demonstram que no comeo do
sculo XX a Frana j havia exportado para a Amrica Latina
"(Argentina, Mxico e Brasil, essencialmente) uma mdia de 1.100
quintais mtricos de livros em lnguas estrangeiras ou mortas".43
Paris, centro das modas, tinha um pblico leitor capaz de
transformar em best-seller qualquer aventura literria
44
e, ao final
da guerra de 1815, tornou-se um dos grandes centros de publica-
o de textos em lngua inglesa. Enquanto os irmos Firmin Didot
tinham a propriedade literria das obras de Scott
45
, Baudry publi-
cava textos em ingls e, j ao final da dcada de 1820, os novos
romances ingleses eram vendidos em Paris no prazo de trs dias
de sua publicao em Londres, em edies de boa qualidade e por
um preo quatro vezes menor que o britnico. Tambm se torna-
ram comuns os acordos e as sociedades, como a de Baudry e
Galignani, ou a de Firmin Didot e Hachette, com fins de
compartilhamento da produo e distribuio dos livros. Entre
1830 e 1850, Baudry e Galignani ofereciam um bom catlogo de
literatura inglesa recente
46
e o mesmo Baudry, assim como Aillaud
e Pillet Ain, publicava ainda tradues de romances em portugu-
s, Constata-se, dessa maneira, o quanto esses livreiros e editores
contriburam para as trocas e transferncias culturais e como,
mesmo que indiretamente, exerceram um papel fundamental no
processo de difuso e disseminao de autores e romances em
circuitos ml iro mais amplos e territrios muito mais distantes do
que o dos pases europeus.
Cada uma das casas editoras tem, obviamente, sua histria.
Para ilustrar esses caminhos tortuosos do romance pelo mundo,
valho-me dos casos mais representativos no que diz respeito quele
conjunto de 502 romances ingeses que chegaram ao Rio de Ja-
neiro no sculo XIX, O primeiro abarca um conjunto de ttulos
que, embora tenham sido publicados por editoras diferentes, re-
presenta a participao inglesa nesse mercado, com suas inventi-
vas solues para a democratizao do livro. Refiro-me especifi-
60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
camente s edies populares da Routledge, da Chapman and Hall
(1849-1902), da Bentley, da J.S. Pratt e da S. Fisher, com uma
contribuio diferenciada mas tendo em comum o fato de estarem
todas envolvidas na produo de encadernaes baratas. De to-
dos, talvez George Routledge (1812-1888) seja o exemplo mais
paradigmtico. Tendo comeado suas atividades como livreiro em
1836, Routledge j em 1844 havia se tomado editor, publicando
tanto grandes autores quanto romancistas menores, e tambm obras
estrangeiras em ingls, como as de Lesage, Eugene Sue, Balzac,
Cervantes e Dumas.
47
"Imitao deliberada e no totalmente es-
crupulosa da ParIour Library", editada por Simms & M'Intyre de
Belfast e cujo propsito era difundir boa literatura num formato
elegante e barat0
48
, a bem-sucedida Railway Library, a um shilling
o volume reimpresso, foi a verso de Routledge para aquela srie.
Tacada certeira, sua iniciativa de associar o smbolo do progresso
e modernidade da Inglaterra vitoriana e industrial - o trem, as
ferrovias e as viagens de trem - e o romance sobreviveu meio
sculo, at 1899, e foi imitada do outro lado do Canal da Mancha
por Louis Hachette e em Portugal pelo editor Manuel Antonio de
Campos Jnior, com sua coleo "Leitura para Caminhos de Fer-
ro", de 1863.
49
Tanto em Londres quanto em Paris, esforos simi-
lares em estabelecer uma poltica de preos baixos e edies po-
pulares criaram novos parmetros editoriais e produziram os exem-
plares que atravessaram o oceano e vieram aportar no Rio de Ja-
neiro. Seriam eles tambm destinados aos eventuais viajantes das
estradas de ferro brasileiras, implantadas a partir do decnio de
1850 pelas companhias inglesas?50
O segundo caso diz respeito conhecida Casa Hachette.
Responsvel por uma coleo de 150 volumes vendidos a um fran-
co cada - a Bibliotheque des Meuilleurs Romans trangers -,
Louis Hachette ajudou a divulgar na Frana um conjunto de auto-
res estrangeiros, entre os quais os ingleses ocupavam um lugar de
honra: Bulwer-Lytton, CharIotte Bronte, Benjamin Disraeli,
Mayne-Reid, William Thackeray e CharIes Dickens. este ltimo
que me interessa particularmente aqui, porque representa um caso
emblemtico das mudanas que passavam a ocorrer no mundo da
edio. Desde 1854, algumas obras de Dickens figuravam no ca-
tlogo da Bibliotheque de Chemins de Fer e, desde as dcadas de
1830 e 1840, vrios de seus romances podiam ser lidos em fran-
47 Ver Chester Topp. Victorian
Yellowbacks, vol I.
48 Michael Sadleir, op. cit.,
volume lI, p. 167.
49 Ernesto Rodrigues. Cultura
Literria Oitocentista. Porto,
Lello Editores, 1999, p. 13.
500S britnicos estiveram
envolvidos na construo e
operao das ferrovias bra-
sileiras desde o incio (a
primeira linha foi inaugurada
em 1854) e nos ltimos anos do
Imprio havia vinte e cinco
delas controladas por grupos
britnicos em diversos cantos
do pas, como por exemplo a
The So Paulo Railway, The
Minas and Rio Railway
Company, The Recife and So
Francisco Railway, etc. Fonte:
Catlogo da Exposio "Os
Britnicos no Brasil", So
Paulo, Centro Brasileiro
Britnico, 2001.
-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 61
'I Citado por Jean Mistler,
op.cit., p.l60. Devo todas as
informaes referentes Casa
Hachette a essa obra e a Jean-
Yves Mollier, Louis Hachette
11899-1864). Le fondateur
d'un empire. Paris, Fayard,
1999.
52 Sobre esse tpico, ver
Herman Dopp. La Contrefaon
des Livres Franais en
Belgique,J 815-1852. Louvain,
Liv. Universitaires, Uystpruyst
d., 1932; Franois Godfroid.
Nouveau Panorama de la
Contrefaon Belge. Bruxelles,
Acadmie RoyaJe de Langues
et de Littrature Franaises,
[1986].
cs, seja em tradues livres como a de Mme Niboyet para As
Aventuras de Mr. Pickwickem 1838, ou o David Coppeifield que
Pichot havia traduzido para a Revue Britannique, tendo como
ponto comum entre todas elas a infidelidade das tradues. Para
fazer frente aessa situao, emjaneiro de 1856 Dickens e Hachette
assinam um contrato de publicao e logo depois Paul Lorain
escolhido para supervisionar o trabalho de traduo da srie de 28
romances do escritor ingls, iniciando-se uma parceria estreita entre
autor, editor e tradutores que vai render frutos no sentido de uma
maior profissionalizao dessas relaes. Alm disso, Dickens as-
sume o papel de conselheiro na escolha dos romances ingleses
para traduo e coopera com Hachette nos contatos que o editor
francs busca estabelecer com outros autores ingleses da poca.
Em minuta de carta a Dickens, datada de maio de 1856, Hachette
declarava:
Je dsirerais maintenant tendre ces relations [avec Milady
Fullerton, auteur de Lady BirdJ aux autres crivains dont les
ouvrages sont les plus estims en Angleterre et son de nature
tre le mieux accueillis en FranceY
Como seus sucedneos, Hachette tambm tinha uma ativi-
dade importante na exportao por meio do Dpartment tranger
Hachette (D.E.H.) e especial interesse na Inglaterra e Alemanha,
mantendo representantes e viajantes e s vezes at mesmo seus
dirigentes em andanas pelo mundo, a partir do final do Segundo
Imprio. O dado de que os esforos da casa editora se dirigiam
sobretudo Amrica Latina pode ser comprovado pelo fato de
que a coleo de romances ingleses em circulao no Rio de Ja-
neiro no sculo XIX publicados por Hachette consta de 44 ttu-
los, a maior por parte de um s editor.
Haveria ainda que ressaltar a presena e a participao das
contrafaes belgas, nessa coleo. A controvrsia que cerca a
propriedade ou impropriedade do uso do termo e sua definio
conhecida e exige uma certa cautela na sua aplicao. Associada
ou no idia de fraude e plgio, vista como imoral e corruptora
do gosto, a contrafao foi fenmeno mundial e no apenas belga,
favorecido pela ausncia de regras e de regulamentao internaci-
onal quanto a direitos autorais e legais.
52
Assim, tanto Aillaud, em
62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Paris, quanto Bassompiere, em Liege, os Baudoin freres e Berthot,
em Bruxelas, Chapman, em Londres, Dujardin em Gand e
Tauchnitz em Leipizig, podiam ser includos na lista dos
contrafacteurs. No entanto, foram os belgas que souberam tirar
proveito da maior liberdade de imprensa vigente nos Pases Bai-
xos, livres da censura e dos impostos pesados que marcavam as
atividades na Frana sob Napoleo, e a contrafao belga viveu
seu perodo de apogeu entre 1815 e 1850, quando entrou em
declnio graas assinatura da primeira conveno franco-belga
de direitos do autor, em 1852. "Une rproduction bon march",
conforme a definiu Herman Depp53 , a contrafao belga adotou o
formato reduzido (in-12, in-18 ou in-32) no lugar do in-8
D
parisiense, com papel de qualidade inferior e tipos mais cerrados.
E, embora a contrafao belga de livros em lngua inglesa tenha
sido modesta, dada a universalidade do francs como lngua de
cultura, foram vrios os livreiros belgas que publicaram autores
ingleses: em 1825, P.J. de Matt de Bruxelas tinha em catlogo os
romances de Walter Scott; em 1835, Wahlen publicou sua
"Collection d' Auteurs Anglais Modernes", alm de Banim,
Blessington, Gore e Radcliffe; Mline ou Wahlen publicaram ain-
da Bulwer, Dickens, Edgeworth, Goldsmith, G.P.R. James,
Marryat, Scott, Trollope.
Os franceses, evidente, se ressentiram da concorrncia
belga, mas, como Emile de Girardin deixou claro, "La Blgique a
fait ce qu'elle avait le droit de faire, et ce que la France n'avait
aucun scrupule de pratiquer l' gard des livres anglais ... "54 , o que
d a medida de quo generalizada era a prtica nos dois pases.
A Revue Britannique de maro de 1840 comentava:
MM. Galignani et Baudry, de Paris, sont les seuls qui, force
de soins et de persvrance, soient parvenus donner la
contrefaon des ouvrages anglaises une certaine importance.
Ces diteurs ont pour clientelle les trente mille familles anglaises
qui habitent la France, la Suisse, la Savoie, l' ltalie et les diverses
parties de l' Allemagne ( ... )55
Vindos de Bruxelas, so trinta e trs os ttulos de romances
ingleses que compem o acervo fluminense, dos quais trinta e um
em francs e dois em ingls, o que apenas confirma a avaliao da
mesma Revue Britannique a respeito da predominncia flagrante
53 Herman Dopp, op. cit., p. 12.
54 Citado por Herman Dopp, op.
cit, p. 12.
55 Revue Britannique, mars
1840, p. 60-61.
.-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 63
56 William Todd & Ann
Bowden.Tauchnitz International
Editions in EnglishJ 84 J -1955. A
Dibliographical history. New Yolk,
BibliographicalSocietyofAm'rica,
1988, p. 3.
57 Idem, ibidem, p. 770 e 1022.
e universalidade da lngua francesa, considerada como "instrument
de haute sociabilit" no perodo. Como dizia o autor (no identi-
ficado) do artigo, os editores belgas sabiam muito bem como ex-
plorar o filo que a apatia dos franceses parecia deixar de lado,
aproveitando-se ainda do fato de que "aujourd'hui, Londres
consomme par semaine de 12 [sic] 1.500 francs de contrefaons
belges". curioso lembrar que a prpria Revue Britannique, ori-
ginalmente editada em Paris, tinha sua similar belga, com uma
tiragem de 1.200 exemplares.
Por outro lado, os ttulos em ingls, originrios de fora da
Gr-Bretanha, se concentram nas mos de outro dos casos inte-
ressantes que vale a pena destacar. Trata-se de outro pequeno
conjunto de 24 romances, que tambm circularam no Rio de Ja-
neiro naquele perodo, todos produzidos pelo mesmo editor, um
alemo de Leipzig. Bernhard Tauchnitz (1816-1895) fundou a
editora em 1837 e a partir de 1841 passou a publicar uma coleo
de autores britnicos e norte-americanos em ingls, um costume
bem-estabelecido no continente, como o provava a parceria entre
as firmas de Baudry e Galignani.
56
A editora encerrou suas ativi-
dades apenas em 1943, ao ser destruda em um bombardeio. Na-
quele ano, a coleo havia atingido a impressionante cifra de 5.370
volumes, a maior parte deles de fico.
57
O principal alvo de Tauchnitz no era o mercado britnico,
mas o prprio continente europeu, e as ferrovias faziam o trans-
porte de seus livros para diversos pontos da Europa, para dali
serem enviados para o exterior: de Bremen para os Estados Uni-
dos, de Dresden para Viena, de Paris, para a Espanha, Portugal,
frica e Oriente Prximo. Por contrato com os autores, os volu-
mes no podiam ser exportados para a Gr-Bretanha, mas acaba-
vam l chegando pelas mos de turistas britnicos que os compra-
vam durante suas viagens ao continente. Uma oferta de publica-
o vinda de Tauchnitz significava uma consagrao, e no nos
surpreende saber que Dickens, Marryat e Bulwer-Lytton foram
alguns dos romancistas que autorizaram o editor alemo a public-
los. Pelham, or the Adventures of a Gentleman, de Bulwer Lytton,
e The Posthumous Papers ofthe Pickwick Club, deDickens, inau-
guraram a coleo em 1842, que anunciava como seus traos dis-
tintivos a correo do texto, a elegncia exterior e os baixos pre-
os, e podia se gabar de que, muitas vezes, a "edio internacio-
6.+ Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
nal" era lanada muito antes de sua contraparte nacional. Segun-
do dados de 1937, a firma havia produzido mais de 40 milhes de
exemplares e o legendrio Baro de Tauchnitz havia recrutado
6.000 livreiros em todo o mundo.
58
Quer seja nas edis de Hachette, de Tauchnitz ou da
Routledge Railway Library, ou em contrafaes belgas, os roman-
ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro ao longo do sculo
XIX ajudam a contar a histria dos circuitos, rotas e caminhos
percorridos por esses livros a partir dos diversos centros euro-
peus em seu longo percurso at os portos brasileiros. O que eles
nos mostram que os mercados narrativos de que fala Moretti
so efetivamente sem fronteiras. Por ocasio do centenrio de
Tauchnitz, um outro editor, Walter Hutchinson (1887 -1950), pres-
tou-lhe uma homenagem, lembrando-lhe as realizaes:
There are no boundaries in literature - neither race nor creed,
and books, I sometimes think, fonu probably the best basis for
that true internationalism which it is hoped will one day be
established in the world. Baron Tauchnitz, whose Centenary it
is to be fittingly celebrated throughout the world, was, in my
opinion, one of the greatest of embassadors, for he made
available to millions of people the works of the greatest authors
af alI nations. Baron Tauchnitz's brilliant idea developed into
an internatianal institution and few men have left behind them
in their work a more enduring memoriaP9
Mesmo que se oua nessas palavras um certo exagero
encomistico, caracterstico dessas ocasies, foroso reconhe-
cer que, assim como ocorreu no caso de Tauchnitz, o grande feito
desses homens foi ligar os continentes por meio dos livros. Foi
graas a esses espritos empreendedores, ao seu faro para os ne-
gcios e sua ousadia que os livros se tornaram mais baratos, que
as tiragens aumentaram e que obstculos foram transpostos para
que os romances chegassem s mos de seus leitores, mesmo que
eles fossem em pequeno nmero e estivessem distantes, do outro
lado do oceano.
" Cf. Tauchnitz-Edition. The
British Library, London, 1992.
59 Idem, ibid.
1 CAMPOS, Humberto de.
"Elogio do Analfabetismo". 1.1.:
Dirio da Tarde. Ilhus, 28 de
maro de 1933,. p.2
, Idem.
A crnica na imprensa peridica
oitocentista : Machado de Assis e a
formao do pblico leitor
Patrcia Ktia da Costa Pino
(UESC)
I. Oralidade e jornalismo
No dia 28 de maro de 1933, o escritor Humberto de Cam-
pos publicou, na pgina dois do Dirio da Tarde, peridico ilheense
de destaque na sociedade da poca, o protesto "Elogio do Analfa-
betismo", de onde destaco o fragmento a seguir: "Brasileiro que
sabe ler o nome no pega mais no cabo da enxada, abandona a
lavoura, e vem para a cidade ... "l . Sua concepo de ordem social,
cultural e econmica fica clara no texto em questo: h indivduos
privilegiados - os donos das terras - que podem e devem estudar,
dominar as letras e os clculos; h, por outro lado, aqueles que,
desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens,
devem contentar-se em "servir aos senhores". Campos termina a
crnica: "Quem planta alfabeto no apanha feijo"2 . Ou seja, para
esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveri-
am, com seu suor cotidiano, sustent-los, na eterna reproduo
de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel.
Esse patriarcalismo brasileiro remonta aos tempos coloniais
e vem do outro lado do oceano. A Metrpole construiu, nos scu-
los em que explorou nossas riquezas materiais e humanas, um pas
dividido entre os que tinham e sabiam e os que no tinham e no
conseguiam nunca saber. No tnhamos escolas, ou as tnhamos
em pequenssimo nmero; no tnhamos imprensa; no tnhamos
meios de produo e ampla circulao de conhecimento, enfim.
Somente a partir de 1808, o Brasil conquistou o direito de
contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo
65
66 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
negado nos sculos precedentes, reduziu nossas letras impressas
marginalidade. Com a chegada de D. Joo VI e a transferncia
da Corte para c, entramos, tardiamente, na era da imprensa. Mas,
tudo o que impresso demanda leitura, supe-se. E como, at
ento, o impresso era raro, a habilidade da leitura era um tanto
ociosa, pelo menos, no que tange aos grupos populares e, em
particular, s mulheres e aos negros.
Na parte introdutria deA letra e a voz, Paul Zumthor estu-
da trs formas de oralidade: a primria, prpria de grupos analfa-
betos, sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influ-
ncia externa da escrita; a terceira, chamada segunda, que se re-
faz pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita
(possuidora de uma escritura) e cultura letrada, na qual " ... toda
expresso marcada mais ou menos pela presena da escrita ... "3
Mesmo voltadas para a Idade Mdia europia, as reflexes
de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as pr-
ticas culturais oitocentistas brasileiras. Ns no eliminamos radi-
calmente a oralidade; aqui, escrita e oral partilham a cultura. A
voz surge como alternativa para o olho, permitindo que a leitura
fique na interseo visual/auditivo e contactando diretamente o
universo oral do leitor.
a Brasil do incio do sculo XIX era carente de editoras,
livrarias e peridicos. Com o correr do sculo, a situao muda
em parte, surgem livreiros, editores de peridicos
4
Mas os leito-
res, esses espcimes raros, demandavam uma verdadeira emprei-
tada de caa por parte dos produtores de bens culturais impres-
sos. Essa precariedade, se criou obstculos para a formao de
grupos de leitores, por outro lado, viabilizou o aproveitamento
dos protocolos de comunicao oral que reinavam por estas plagas,
deu margem sua incorporao aos padres do impresso, aproxi-
mando este ltimo de possveis receptores.
Tal incorporao, como a entendo, significou, de certa for-
ma, fazer do papel e da tinta substitutos do corpo e da voz dos
contadores de causas, dos porta-vozes das instncias administrati-
vas etc, num processo de modernizao das aes de produo e de
recepo. Se, nas prticas culturais marcadas pela oralidade, o tom,
o gesto, do suporte voz, no mbito das prticas letradas, tornou-
se necessrio o estabelecimento de instrumentos que orientassem a
recepo do impresso, mediando o trnsito do oral para o escrito.
3 ZUMTHOR, Paul. A letra e
a voz: a "literatura" medieval.
Traduo de Amlio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. So
Paulo, Companhia das Letras,
1993.p.18
4 PINA, Patrcia Ktia da Costa.
Literatura e jornalismo no
oitocentos brasileiro. Ilhus,
EDITUS, 2002. p.29-59.
A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao 00 pblico leitor 67
5 LAJOLO, Marisa e
ZILBERMAN, Regina. A
formao da leitura no Brasil.
So Paulo, tica, 1996. p. 16
6 ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. "O Jornal e O
Livro". In.: --o Obra
completa. 5ed. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1985. V.3.
p.943-944
Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... s existem o
leitor, enquanto papel de materialidade histrica, e a leitura, en-
quanto prtica coletiva, em sociedades de recorte burgus, onde se
verifica no todo ou em parte uma economia capitalista."5 Leitor e
consumidor so, portanto, termos equivalentes no dezenove, no
s brasileiro. Enquanto indivduo de carne e osso, o leitor do
dezenove o mantenedor do comrcio cultural: orientar seu gosto,
estabelecer modos de habitu-lo a determinado tipo de texto e/ou
de publicao eram aes autorais/editoriais importantssimas.
Nesse contexto, o jornalismo foi fundamental. Suas carac-
tersticas - periodicidade, universalidade, variedade de temas e
matrias, atualidade, difuso - fazem dessa prtica cultural um
grande instrumento de agregao de pblico (leitores e/ou ouvin-
tes). O jornalismo desenha o espao social, marca seus contornos,
suas reas de interseo; tudo, nas pginas dos jornais, tem uma
seqncia, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de
cultura impressa, especificamente, os tipgrafos e editores de jor-
nais, desde os incios do sculo XIX, constroem suas pginas, a
fim de que pudessem atender s necessidades e expectativas dos
indivduos que, em funo da nova ordem social e econmica,
passavam a ser vistos como consumidores em potencial.
Em 1859, Machado de Assis publica, no Correio Mercantil,
uma apologia ao Jornal:
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal um
sintoma, um exemplo desta regenerao. A humanidade, como
o vulco, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve
no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em
que preenchesse o fim do pensamento humano? No; nenhum
era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrtico,
como ele. Foi a nova cratera do vulco.
6
Aos vinte anos de idade, o Bruxo do Cosme Velho lana um
de seus feitios, atravs do texto "O Jornal e O Livro", do qual foi
retirado o fragmento acima. O feitio a que me refiro a confisso
pblica de sua paixo pelo jornalismo, paixo que ele almejava
contagiante.
Referindo-se ao jornal como uma alavanca de Arquimedes
no que tange inteligncia humana, possibilidade jornalstica
de penetrao social que Machado de Assis rende homenagem.
68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
Para enfocar a importncia do jornalismo, o romancista fluminense
faz uma breve reflexo sobre as relaes entre a imprensa e o livro:
o livro era um progresso; preenchia as condies do pensa-
mento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; no
era ainda a tribuna comum, aberta famlia universal, apare-
cendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um siste-
ma planetrio. A forma que correspondia a estas necessidades,
a mesa popular para a distribuio do po eucarstico da publi-
cidade, propriedade do esprito moderno: o jornaP ,--o op. cit., p.945
o livro era pouco: de circulao restrita, de manuseio dif-
cil, interessando diretamente quase que apenas a um grupo seleto
de indivduos cujos hbitos culturais foram estabelecidos quer no
convvio escolar e acadmico, quer no convvio social com outros
indivduos de formao cultural erudita, caso do prprio Macha-
do de Assis, o livro s atendia em parte aos anseios de difuso
cultural prprios desse escritor e de seus contemporneos.
Reside a a importncia do jornal: dirios, semanais, quinze-
nais ou mensais, os peridicos vinham preencher uma imensa la-
cuna no Brasil oitocentista - vinham mediar as relaes entre a
cultura oralizada, ou auditiva, que se constituiu e firmou no Brasil
Colnia, e a cultura letrada, pautada pela insero e circulao do
impresso como mdia veiculadora e organizadora do pensamento.
Erafciller um jornal: suas folhas se dobravam, era pouco volu-
moso, podia ser guardado at nas algibeiras. Podia ser lido na
esquina, compartilhado por muitas pessoas. O jornal inclua, as-
sim, os trnsitos cotidianos oitocentistas em suas possibilidades
de apropriao, as quais j estavam previstas e configuradas em
sua materialidade, em sua forma.
Na teorizao de Luiz Costa Lima, h uma distino entre
oralidade e auditividade. O primeiro conceito por ele entendido
como prprio de culturas desconhecedoras da escrita, as quais
tm na palavra falada o instrumento maior para a construo e a
manuteno da memria e das tradies grupais. O segundo, por
sua vez, caracteriza o uso de estratgias de aprendizagem, produ-
o e circulao de conhecimentos de natureza oral, por parte de
culturas que conhecem e dominam a escrita. A auditividade, as-
sim, traz um peso negativo, pois implica o desprestgio do escrito
e do impresso. Para o referido pesquisador, " ... a cultura auditiva
A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor
8 LIMA, Luiz Costa. "Da
Existncia Precria: O Sistema
Intelectual no Brasil". In.:-.
Dispersa demanda: ensaios
sobre literatura e teoria. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1981.
p.16
9 ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. Op. cit., idem.
profundamente uma cultura de persuaso. Mas da persuaso
sem o entendimento. Donde, da persuaso sedutora."8 Conside-
rando a cultura brasileira como marcada pela auditividade, Luiz
Costa Lima a caracteriza como uma espcie de reino do espetcu-
lo, onde viceja o ornamental e ilusrio. Como se organizaria a
empresa jornalstica nesse Brasil espetaculoso?
Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de
receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da
sociedade. Os antecessores do jornal dirio - dentre eles desta-
que-se a leitura coletiva, em praa pblica, de ordens, leis, avisos
oficiais - supriram, por alguns sculos, as necessidades de comu-
nicao dos que aqui viviam e contriburam para que se estabele-
cesse uma tradio de oralidade. O jornal dialoga com as marcas
deixadas por essa tradio, revi sita-a e a coloca em interao com
as mudanas culturais trazidas pelo sculo XIX.
Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o
jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chegada
da Famlia Real, a Imprensa Rgia, a Gazeta do Rio de Janeiro e
o Correio Braziliense, tendo, a princpio, Portugal como refern-
cia e, com o peridico de Hiplito da Costa, o Brasil como ncleo
explcito de suas tentativas de construo de um grupo receptor
expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circu-
lar mais ampla e livremente.
lI. O jornal e sua importncia como suporte da escrita
Para Machado de Assis,
o jornal apareceu, trazendo em si o grmen de uma revoluo.
Essa revoluo no s literria, tambm social, econmi-
ca, porque um movimento da humanidade abalando todas as
suas eminncias, a reao do esprito humano sobre as frmu-
las existentes do mundo literrio, do mundo econmico e do
mundo social.
9
Alm de mudar as prticas de produo literria, e isso por
envolver um pblico amplo, "democrtico", diferente das elites
habituadas ao consumo do livro, o jornal - e os demais peridi-
cos, acrescente-se - abalaria as estruturas das sociedades a ele
69
70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sujeitas. E por que tal convico? No Brasil, especialmente, por-
que o jornalismo, na tica machadiana, efetuaria um processo de
educao informal, levando esse novo pblico, historicamente
habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crena
e a adeso s idias alheias, a fazer contato com uma maneira de
produzir e divulgar bens culturais cuja nfase vai para o individu-
al, o particular, o reflexivo.
Cumpre ressaltar que a questo no problematizar uma
possvel ameaa ao livro pela "popularidade" do jornal. Andr
Belo assinala que
o sentimento de que o livro estava ameaado apareceu pela
primeira vez na segunda metade do sculo XIX, no momento
em que, por razes econmicas, culturais e tecnolgicas, a lei-
tura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de
leitores que no liam livros habitualmente. 10
As relaes entre livro e jornal m e d e m - s ~ exatamente pelo
tipo de pblico a que cada uma dessas mdias atende, pelos usos a
que cada uma dessas mdias pode se submeter. O livro tem um
leitor raro no Brasil Colnia e no Brasil Imprio, raro por inme-
ras razes: pouca escolaridade da populao, desprestgio histri-
co da leitura em favor da audio, preo das publicaes etc. Para
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... 0 livro configura-se como
lugar em que a noo de propriedade mostra a cara, conferindo
visibilidade a um princpio fundamental da sociedade capitalista.
construda a partir da idia de que bens tm donos, fazem parte
das transaes comerciais ... "1l O livro patrimnio, bem dur-
vel, pertence a uma ordem social ligada noo de permanncia e
de valor material agregado. O livro no era e no para "qualquer
um". Infelizmente ...
O jornal responde a uma demanda diferenciada: seu consu-
midor queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer
entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para "man-
ter a prosa na esquina". E mais que tudo: no queria - e ainda no
quer - perder a segurana de se sentir parte de um processo mai-
or, um processo que no o exclui atravs de mecanismos de sele-
o que o caracterizam negativamente em comparao com seg-
mentos sociais privilegiados.
:0 BELO, Andr. Histria &
liwo e leitura. Belo Horizonte,
Autntica, 2002. p.20
11 LAJOLO, Marisae
ZILBERMAN, Regina. O
preo da leitura: leis e nmeros
por detrs das letras. So Paulo,
tica, 2001. p.l8
A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor 7\
12 LIMA, Luiz Costa.
"Machado de Assis: Mestre de
Capoeira 11". In.: Jornal do
Brasil. Caderno Idias. Rio de
Janeiro, 4 de janeiro de 1997.
p.5
13 SANTAELLA, Lcia.
Cultura das mdias. 2ed. So
Paulo, Experimento, 2000.
p.53
Em "Machado de Assis: Mestre de Capoeira lI", publicado
no Caderno Idias do Jornal do Brasil, a propsito da edio das
crnicas machadianas feita por J ohn Gledson, Luiz Costa Lima d
uma pequena amostra de como se configuraria o carter auditivo
da cultura brasileira na pgina jornalstica: "Ora, curiosamente, o
xito de Machado dependia de que seus leitores estivessem habi-
tuados, como ele prprio diria, s letras grandes, tipos in oitavo,
com muitas ilustraes nas margens."12 Essa transposio para o
impresso de elementos ornamentais, sugestivos de prticas cultu-
rais auditivas, era efetivamente necessria para que o jornal pu-
desse ter acesso aos novos consumidores que na poca ganhavam
visibilidade - para que pudesse, sim, seduzi-los. E nessa afirma-
o no vai nenhum desdouro, uma questo de "economia de
mercado".
A sociedade brasileira, at a difuso da imprensa, em mea-
dos de sculo XIX, mantm hbitos culturais formados no mbito
da oralidade, isto , o leitor brasileiro foi criado nos liames da
palavra-espetculo. O ornato o seduz, a reflexo o afasta. preci-
so reeduc-lo. Para Machado de Assis, o jornal a mdia adequa-
da para levar essa tarefa a bom termo, conjugando prticas orais e
prticas letradas.
Segundo Lcia Santaella, a linguagem jornalstica insere-se
perfeitamente no mundo de consumo capitalista:
o jornal, por seu lado, aps um primeiro momento (suas fases
ainda artesanais) de importao de beletrismo literrio, foi
gradativamente desenvolvendo seu prprio know-how (ps-in-
dustrializao) buscando para si uma imagem de objetividade,
economia e imparcialidade que o mosaico jornalstico parecia
realizar, satisfazendo a necessidade de condensao informati-
va e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de
acontecimento - (fico). J3
Enquanto suporte de informao e cultura, o jornal pode
suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase
inicial, no Brasil do sculo XIX, ele poderia ser lido em qualquer
lugar, por uma ou por vrias pessoas, poderia ser alvo de uma
leitura coletiva, alcanando, assim, at mesmo receptores analfa-
betos - poderia ser, tambm, emprestado, vencendo limites, im-
posies e dificuldades financeiras.
72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A viabilizao da leitura como ato social, da leitura por gru-
pos, da audio do lido, faz do jornal o elemento revolucionrio a .
que se refere Machado de Assis.
EmA ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importn-
cia do meio material do impresso para a efetivao de um proces-
so receptivo:
Manuscritos ou impressos, os livros so objetos cujas formas
comandam, se no a imposio de um sentido ao texto que
carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as
apropriaes s quais so suscetveis. As obras, os discursos,
s existem quando se tomam realidades fsicas, inscritas sobre
as pginas de um livro, transmitidas por uma voz que l ou
narra, declamadas num palco de teatro. 14
o suporte da escrita, ento, influi diretamente no processo de
recepo. O livro, ao surgir, incrementou uma elitizao da leitura:
quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em
geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor
dialoga to s com o lido. O livro objeto de status, de determina-
o do lugar social dos grupos que com ele so habituadas.
Luiz Costa Lima, em "Comunicao e Cultura de Massa" ,
afirma que, no sculo XIX europeu, h imensa quantidade de pu-
blicaes, entre jornais, romances-folhetim etc, mas no h, ainda
uma efetiva "cultura de massa", uma vez que se mantm enorme
distncia entre produes culturais destinadas elite citadina, ao
homem urbano, e ao homem rural, por exemplo. Segundo ele, "A
comunicao cultural tem suas centrais indicadas nos mapas das
cidades: so os teatros e seus sucedneos, os chs recitativos, os
jornais matinais, as salas de concerto." 15 Isso significa que, na
tica do terico em questo, nem a produo cultural que se que-
ria voltada para novos e amplos segmentos sociais efetivava seus
objetivos de circulao e consumo. Mas, j um comeo de mu-
dana, j um sinal de incorporao de fraes sociais at ento
excludas do circuito cultural.
Ao relacionar livros e jornais, Luiz Costa Lima tem um ponto
de vista conteudstico: entre a adaptao de um dado assunto para
um livro e para um artigo de jornal h uma boa distncia, o que
no impediria que "questes graves" fossem tratadas nos dois
veculos. Na verdade, enquanto mdias da escrita, livros e jornais
14 CHARTIER, Roger. A ordem
dos livros: leitores, autores e
bibliotecas na Europa entre os
sculos XIV e XVII. Traduo
de Mary Del Priore. Braslia,
Editora da Universidade de
Braslia, 1994. p.8
l' LIMA, Luiz Costa.
"Comunicao e Cultura de
Massa". In.: MOLES, Abraham
A. et alii. Teoria da cultura de
massa. Introduo, comen-
trios e seleo de Luiz Costa
Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1990. p 40
A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor
\6 CHARTIER, Roger. Op. cit.,
p.16
17 __ "Do Livro Leitura".
In.: -. et alii. Prticas da
leitura. Traduo de Cristiane
Nascimento. Introduo de
Alcir Pcora. So Paulo,
Estao Liberdade, 1996. p.96
tm funes, em geral, diferenciadas: pela periodicidade curta,
pela freqncia da publicao, pela multiplicidade de assuntos
enfocados em uma mesma edio, as folhas tendem a tratar pano-
ramicamente o que noticiam, informando o pblico dos aspectos
essenciais de cada fato; os livros, por outro lado, do um enfoque
verticalizado aos assuntos que abordam e isso, no mnimo, por
uma questo de volume e extenso.
Segundo Roger Chartier, "O essencial compreender como
os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, maneja-
dos e compreendidos" .16 Essa diversidade no implica, necessari-
amente' marcas de hierarquizao, no faz, por exemplo, o livro
melhor que o jornal, mas aponta para a relao indispensvel en-
tre contedo e suporte material do texto.
Em "Do Livro Leitura", Chartier trabalha com a questo
da posse do livro e com a questo dos usos do impresso e das
formas de apropriao do mesmo, colocando a histria do im-
presso como uma histria das prticas culturais a ele associadas:
ele expe duas formas de abordagem da histria do impresso e da
leitura - a que enfoca a produo de textos e a que aborda a pro-
duo de livros. O que importa para a investigao da leitura via
produo de textos so as senhas, explcitas ou implcitas, traba-
lhadas pelo autor, suas instrues ao leitor, as quais tm duas es-
tratgias, a saber, inscrever no texto convenes sociais ou liter-
rias e empregar tcnicas que objetivam a produo de um deter-
minado efeito:
Existe a um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da
escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a
impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma
maneira de ler que lhe indicada, seja fazendo agir sobre ele
uma mecnica literria que o coloca onde o autor deseja que
esteja. 17
Essas instrues, no entanto, se cruzam com outras, relacio-
nadas ao suporte material da escrita e que envolvem questes tipo-
grficas, como disposio e diviso dos textos, ilustraes etc. Tal
trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com
ele, e traz implcito o tipo de leitor a que o impresso se dirige:
73
74 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Os dispositivos tipogrficos tm, portanto, tanta importncia
ou at mais, do que os 'sinais' textuais, pois so eles que do
suportes mveis s possveis atualizaes do texto. Permitem
um comrcio perptuo entre textos imveis e leitores que mu-
dam, traduzindo no impresso as mutaes de horizonte de ex-
pectativa do pblico e propondo novas significaes alm da-
quelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. 18
o enfoque do suporte material da escrita abre, portanto,
espao para o social. Os protocolos de leitura implicados no im-
presso indiciam os possveis usos que cada grupo social pode fa-
zer dele. Como afirma Mrcia Abreu: "A leitura no prtica neu-
tra. Ela campo de disputa, espao de poder."19 A percepo da
problemtica envolvida no consumo do impresso implicou, desde
seus comeos, um investimento em estratgias capazes de abrir
caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem cir-
cular produtivamente nas sociedades.
Faustino Xavier de Novaes, em tom bastante divertido, pu-
blica em O Futuro, uma "Chronica", texto bastante interessante,
do qual retiro o seguinte fragmento, para reflexo: "Um peridico
que encerra cinco artigos, ocupando 40 pginas, e uma gravura, e
que s desagrada pelo formato, um excelente peridico. Falta-
lhe s crescer, ou diminuir, e tudo isso poder suceder com o
tempo."20 Pode-se perceber que o cronista parece se dar conta da
importncia do suporte material do impresso em seu processo de
consumo e apropriao: tamanho, quantidade de textos, de pgi-
nas, presena de ilustraes, localizao das mesmas, relao en-
tre o lugar do texto e o dos anncios, enfim, so fatores decisi-
vos, ao que tudo indica, na relao entre o bem cultural impresso
e seu possvel e desejado consumidor.
No sculo XIX brasileiro, ao que tudo indica, independen-
temente de o escrito circular no livro ou no jornal, sua transfor-
mao em moeda cultural de troca cotidiana foi objetivo comum a
toda a nossa elite intelectual. O consumo da cultura impressa tor-
nou-se capital nessa poca. Aument-lo era prioridade, ao contr-
rio do desejo de Humberto de Campos, expresso no protesto de
1933, cuja abordagem deu incio a este estudo. Para isso, era pre-
ciso tornar essa cultura impressa no apenas um instrumento de
educao distensa, informal: o consumidor educado dentro de de-
terminados padres passaria a exigir a permanncia desses mes-
IS __ Op. cit., p.98
19 ABREU, Mrcia. "Prefcios:
Percursos da Leitura". In.:-.
(org.). Leitura, histria e
histria da leitura. Campinas,
Sp, Mercado das Letras,
Associao de Leitura do
Brasil; So Paulo, FAPESP,
2002. p.IS
20 NOVAES, Faustino Xavier
de. "Chronica". In.: O Futuro:
periodico litterario. Fundao
Casa de Rui Barbosa, Rev20 1,
V.I, n I, set.l862. p.1
.:.. ~ r n i c a na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor
21 ASSIS, Joaquim Maria
\, lachado de. "29 de outubro de
1893". In.: --o A semana. Rio
de Janeiro/So Paulo/Porto
Alegre, W. M. Jackson Inc.,
1957. V. I. p.409
"-. Op. cit., p.435
mos padres. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impos-
tos, at porque essa imposio no era explcita. Era preciso re-
volucionar o horizonte de expectativas da poca.
IH. Na impossibilidade de uma concluso ...
No dia 29 de outubro de 1893, Machado de Assis publica,
em A Semana, uma curiosa crnica. Trata-se da representao de
uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se
afastara da coluna na semana anterior por problemas de sade. A
leitora reclama a presena do cronista, colocando sob suspeita a
doena alegada e imputando ao texto a caracterstica de soporfe-
ro.
21
uma leitora ousada, sem dvida.
O espao deixado vago por Machado de Assis na Gazeta de
Notcias do dia 22 de outubro foi ocupado por um texto de Ferreira
de Arajo, diretor do referido peridico. Houve, apenas, uma al-
terao no ttulo da seo usualmente ocupada pelo escritor
fluminense: em lugar de "A Semana", "Uma Semana". Trocar a
definio do "A" pela indefinio do "Uma" poderia dar ao leitor
habituado coluna uma idia de exceo, camuflando a lacuna e,
simultaneamente, exibindo-a.
Ferreira de Arajo demonstra grande empenho em descul-
par-se com o leitor:
Doente o cronista, doente ou alistado em um batalho de vo-
luntrios, voluntrio ou preso sem noo de culpa, preso ou
nadador barrigudo, fora que algum o substitua por esta vez
s, amigo leitor, que h tempos trazes o paladar apurado pelo
manjar dos deuses, que todos os domingos te servem.
22
O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mes-
mas: somente por doena, guerra ou priso o cronista poderia
afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicaes que
simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas
do leitor oitocentista. Era necessrio ocupar o lugar deixado por
Machado de Assis. Outra questo que ressalta do fragmento aci-
ma: o leitor um "amigo", algum a quem no se poderia decep-
cionar, um "amigo" que j se habituara a encontrar "manjares
jornalsticos" naquela mesma seo do peridico, todo domingo.
75
76 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o hbito estabelecido pelo cronista machadiano parece ter
um papel fundamental na interao do jornal com o receptor:
resguard-lo, ao que tudo indica, essencial. Na crnica de 29 de
outubro, em que retoma Machado de Assis, um outro aspecto des-
sa necessidade de se criarem e alimentarem hbitos de recepo
aparece no dilogo do cronista com a leitora ousada e irrequieta:
- No, no me mande embora, deixe-me ficar ainda um instan-
te. to bom v-la, mir-la ... E depoi's, advirto que estou ape-
nas na tira oitava, e tenho de dar, termo mdio, doze.
- Vamos; fale por tiras.
- Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. No
esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feiti-
os e o gosto que sinto em estar a seu lado.
23
o cronista parece ficar merc do consumidor: pede que
este continue a l-lo. S que a advertncia de que um determina-
do nmero de tiras deveria ser preenchido, alm de apontar para a
obrigao profissional do jornalista - que deve ocupar um deter-
minado espao no papel, espao este que lhe prvia e sistemati-
camente indicado - d outra dimenso ao relacionamento escri-
tor/jornal/pblico: o termo mediano desse circuito - o jornal -
tinha sua organizao particular, a qual precisava ser seguida pe-
los dois outros termos - escritor e pblico, isso para que se esta-
belecessem hbitos de consumo para a mercadoria adquirida, em-
prestada ou ouvida, i.e., a fim de que o que estivesse impresso
pudesse ser conhecido. Assim, o aparecimento repetitivo da mes-
ma coluna, nos mesmos dias, em um dadO peridico, seria, de um
lado, garantia de circulao para o jornal e, de outro, garantia de
distrao para o consumidor.
Dividir o espao do papel impresso entre o texto literrio
ou no e anncios de Semolina, espartilhos, mquinas de costura;
usar o texto como moldura para uma ilustrao central; conversar
familiarmente com os leitores; publicar as sees sempre na mes-
ma pgina e em dias pr-determinados; usar linhas separadoras de
colunas e condutoras do olhar do leitor; trabalhar com tipos mai-
ores para facilitar a leitura.
24
Todas essas estratgias, muitas delas
simbolizando uma incorporao de prticas culturais auditivas ao
espao da escrita, funcionaram para persuadir, seduzir, envolver o
receptor oitocentista brasileiro.
23 _. Idem, p.409
24 PIN A, Patrcia Ktia da
Costa. Op. cit., p.149-162
A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor
Todas elas indiciam o imenso valor cultural da pgina
jornalstica nesse processo de construo de hbitos de leitura e
consumo do impresso, permitindo que se reflita sobre sua funcio-
nalidade social, sobre como o jornal, enquanto suporte da escrita
- literria ou no -, contribuiu para uma espcie de educao
informal do pblico, tomando-se, at hoje, mdia privilegiada no
reino da escrita, configurando-se como a alavanca de Arquimedes
a que se referiu Machado de Assis, em 1859.
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o marido da adltera, de Lcio de Mendona,
ou as estratgias de publicao de um romance
como folhetim
Socorro de Ftima Pacfico Vilar
(UFPB/Cnpq)
o marido da adltera faz parte daquele rol de obras do
sculo XIX que foram relegadas por certa histria da literatura
brasileira que "dividia o tempo em segmentos demarcados pelo
surgimento de grandes escritores e grandes livros" (DARNTON,
1990, p. 132). No Brasil, alm de esquecidos alguns livros, tam-
bm o foram o suporte por onde circularam - predominantemente
o jornal- e os leitores que os leram e participaram indiretamente
da sua elaborao. nosso objetivo portanto, trazer para o centro
do debate tanto a figura de Lcio de Mendona, como escritor
importante do sculo XIX, como tambm o seu romance e o pa-
pel que o jornal desempenhou na formulao de um gnero liter-
rio, fundamental para a formao da literatura brasileira, que o
romance-folhetim.
Para no fugir a essa tradio de escritor jornalista ou jor-
nalista escritor to peculiar ao sculo XIX, a carreira de Lcio de
Mendona, autor de O marido da adltera, objeto de anlise des-
te ensaio, esteve desde muito cedo ligada ao jornal. Sabe-se que,
quando aluno do Colgio Pimentel, em 1864, fundou e manteve
como redator e proprietrio um pequeno jornal, A Aurora
Fluminense. Em 1867, j na Corte, funda outro jornal A Tesoura,
que ilustrado. Na dcada de 70 passa a trabalhar no jornal A
Repblica, como tradutor e noticiarista, ao lado de Machado de
Assis, Jos de Alencar, Quintino Bocaiva, entre outros, convi-
vendo assim com vrias geraes de escritores. Depois da passa-
gem pelo jornal Colombo do interior de Minas Gerais, Lcio de
Mendona volta ao Rio de Janeiro em 1888 e funda o jornal O
Escndalo, porta-voz do carter militante desse autor: "Chama-
se O Escndalo esta revista porque vivemos num tempo tristssimo,
79
80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
delimitado, constrito, impregnado de conveno e de mentira tem-
po que escandaloso dizer a verdade. Pois havemos de diz-la,
nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa a quem
doer" (MENDONA, 1934, p.32).
Com o fim desse jornal, Lcio de Mendona passa a traba-
lhar na a redao de O Pas e do Jornal do Brasil. No Rio, estabe-
lece contato com outros escritores, entre os quais Pardal Mallet,
Olavo Bilac, Lus Murat e Raul Pompia. Com Machado de Assis,
Medeiros de Albuquerque e outros, ele funda a "Panelinha", que
consistia de encontros mensais, em que aproveitavam almoos e
jantares para discutir interesses da profisso. Em 1889, outro lu-
gar de reunio desses intelectuais, para um dirio ch das cinco
foi a redao da Revista Brasileira, onde Lcio de Mendona,
agora membro do Supremo Tribunal Federal, teria ressuscitado a
idia de criar a Academia Brasileira de Letras, "a ser fundada ofi-
cialmente pelo governo republicano". Desde ento, a "Academia
passou a ser tema de interesse dos debates dos presentes, que,
concordando com Lcio, iniciaram uma intensa campanha pelas
pginas dos jornais em prol do apoio governamental na
implementao do plano acadmico" (RODRIGUES, 2001, p. 34).
Talvez porque, como afirma Joo Paulo Rodrigues, o projeto ori-
ginal de uma Academia patrocinada pelo Estado tenha falhado, o
nome de Lcio de Mendona muito pouco lembrado na criao
da Academia, cabendo todo o mrito de fundador figura Macha-
do de Assis. Alm do carter de fundador, Machado de Assis foi
responsvel pela idia equivocada, segundo Joo Paulo Rodrigues,
de que a instituio tinha e tem carter "apoltico": "Era [Macha-
do de Assis] o exemplo maior de escritor que havia conseguido se
manter puro, o que significava que conservara sua produo e sua
postura afastadas da ingerncia poltica ( ... )" (Idem, p. 60).
Apenas em 1901, em um jantar em que se reuniram vrios
escritores em um almoo oferecido por Lcio, em homenagem ao
lanamento do seu livro Horas do bom tempo, "Valentim Maga-
lhes proclama-o, em pblico, 'o verdadeiro fundador da Acade-
mia Brasileira" (Idem, p. 68). Sobre sua participao no surgimento
da Academia, Coelho Neto assim comenta:
Lcio era o mais corajoso e solcito dos aios da pobrezinha.
Foi ele que a vacinou com a linfa da perseverana. Foi ele que
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
I Sua obra consiste prin-
cipalmente de livros de poesia
(conf. MENDONA, 1934)e
alguns trabalhos jurdicos, alm
da sua colaborao em jornal.
a curou da coqueluche, que lhe ps ao pescoo o colar de mbar
para evitar as crises de dentio, que a batizou no templo das
musas e que lhe incutiu na alma a grande f, tnico que a forta-
leceu para vencer os percalos da primeira infncia ... "(Apud,
MENDONA, p. 175)".
Foi no jornal Colombo, onde Lcio de Mendona trabalhou
de maro de 1879 a junho de 1885, que foram publicados os cap-
tulos do folhetim O marido da adltera, seu nico romance
l
. Como
a maioria dos jornais e folhas das cidades do interior, o pequeno
jornal da provncia de Campanha, do estado de Minas Gerais, tan-
to circulou por todo o estado e pas, como fez circular em suas
pginas matrias e artigos dos principais jornais da corte e de ou-
tras provncias. O certo que este romance s foi publicado em
livro em 1882, pela tipografia de Oliveira Andrade, proprietrio
do jornal Colombo.
Lcio de Mendona dedica O marido da adltera, que cha-
ma de "ensaio de romance", ao colega Dr. Esperidio Eloy de B.
Pimentel Filho, a quem confessa, pedindo a benevolncia do ami-
go que do romance nada pode esperar como obra de arte, uma
vez que fora
Escrito para folhetim do Colombo, quase sempre hora de
fechar-se o correio da Campanha, e impresso em folha de livro
logo depois da publicao peridica, sem tempo de corrigir-se,
sem prvia leitura do trabalho completo, o que deu causa a
numerosas retificaes posteriores ( ... ) (p. 22)
Na sua dedicatria, Lcio de Mendona encena uma con-
cepo bastante corrente no sculo XIX acerca do jornal. Moran-
do em So Gonalo, ele enviava pelo correio o folhetim a ser
publicado no jornal Colombo, da cidade de Campanha. Assim, o
texto escrito para o jornal sempre fruto da urgncia, redigido ao
calor da hora, sem burilamento ou correo, o que caracteriza o
demrito com que foram tomadas as publicaes em jornais. Ao
mesmo tempo, a divulgao de um romance em jornal era essen-
cial para os autores, pois ele dava projeo aos folhetins, muitos
dos quais, rapidamente transformados em livros, de onde eram
apagadas as marcas que lhes dava o jornal. o que se observa no
depoimento de Coelho Neto, autor de obra to volumosa que, ao
81
82 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
contrrio da presso sempre alegada como transtorno pelos escri-
tores, sentia grande prazer enquanto escrevia, mas se assustava
depois com os erros ali encontrados: "Tenho um processo de tra-
balho constante. S as novelas foram acabadas e retocadas antes
de serem entregues aos editores. resto da minha obra tem sido
escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei
fantasma, O turbilho" (In RIO, 1907, p. 56).
Talvez porque tenha lhe faltado essa reviso que no ro-
mance de Lcio de Mendona percebemos de forma bastante evi-
dente as caractersticas do romance-folhetim, revelando, como est
implcito nas palavras do autor, que o jornal imprime um modo de
escrever e constitui um gnero que lhe bastante peculiar. Trata-
se do romance-folhetim, cujo "texto definido externamente pela
forma como apresentado: o fragmento cotidiano do jornal que
vai por sua vez constituindo fascculos que levam ao todo do vo-
lume" (MEYER, 1996, p. 159). Em outras palavras, segundo
Antonio Hohlfeldt (2003, p. 40), citando Lise Quefflec, a carac-
terizao do romance-folhetim francs possui as seguintes carac-
tersticas do ponto de vista da sua estrutura e circulao:
Seu suporte o jornal e, por isso, ele deve possuir atualidade
em seus temas; divulgado na seqncia diria do rodap do
jornal, exige rapidez de escrita mas, ao mesmo tempo desen-
volvimento do prprio enredo, exigindo por vezes o retomo de
alguma personagem ou no valorizando determinada figura para
a qual o romancista havia reservado um papel de maior signi-
ficao na narrativa.
H ainda que se considerar o romance-folhetim a partir do
tipo de contedo e do pblico que o l. Assim temos que havia os
romances para homens, o romance para mulheres e aqueles desti-
nados a crianas e jovens; naqueles dedicados s mulheres, como
o caso de O marido da adltera, prevalecem os de narrativa
"lacrimenjante ou sentimental", as narrativas de "alcova", cujo
relato principal diz respeito traio (HOHLFELDT, p. 45).
Mesmo correndo o risco de toda a generalizao, podemos
afirmar que O marido da adltera e A conquista de Coelho Neto
so uns dos raros romances do sculo XIX que deixam explcita
essa ntima relao entre jornal e literatura. Em A conquista, Co-
elho Neto tem como objetivo mostrar o jornal e sua importncia
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
nas conquistas e na "odissia" de toda uma gerao de escritores,
a quem dedica o livro. Como ele mesmo afirma na dedicatria,
dele apenas a memria, que utiliza para tratar da vida de todos
os que "venceram" e no perderam a esperana. Seu romance traz
para o centro do debate, o modo como alguns dos principais inte-
lectuais da poca se utilizaram e trabalharam no jornal. Entre eles,
Aluisio de Azevedo, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Jos do Patro-
cnio, Pardal Mallet, Guimares Passos e Paula Ney (OLIVEIRA,
1985, p. XIII). No romance A conquista, o autor encena esse co-
tidiano de trabalho atravs do personagem Anselmo, que todos
identificam com ele prprio. Nele, Anselmo afirma que "levanta-
va-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade,
sentando-se imediatamente mesa de trabalho. Escrevia o artigo
de fundo, a Bomia, romance au jour le jour, a crnica do dia,
redigia o noticirio e todas as sees" (p.21O).
Em A conquista, a literatura ganha um suporte e uma
materialidade e os escritores deixam de ser prncipes de poetas e
passam condio de empregados e trabalhadores. Como afirma
Cristiane Costa em Pena de aluguel, esse brilhante estudo sobre a
relao entre os escritores e o jornal, "o jornalismo tambm esta-
va longe de ser uma profisso bem-remunerada. Para conseguir
melhor renda, at os mais famosos escritores eram polgrafos obri-
gados a se dividir por vrios rgos de imprensa" (2005, p.55).
Mas apesar da presena constante da literatura e do jornal, no h
na construo do romance os elementos prprios a outros livros
do mesmo autor, construdos para e no jornal, como Capital Fe-
deral, o Rei fantasma, O turbilho, acima referidos.
Segundo Flora Sussekind, em um dos rarssimos estudos
motivados pelo romance O marido da adltera, "o papel prepon-
derante do jornal na organizao da narrativa e como elemento
que se faz referncia a todo o momento" (1993, p.219). O roman-
ce Marido da adltera construdo por cartas da personagem
central Laura e do amigo de Lus, seu marido, Otvio redao
do jornal O Colombo. Denominadas respectivamente de "Cartas
de uma desconhecida" e "As confidncias do morto". Em ambas,
o autor utiliza mais do que as cartas aos leitores do jornal, pois faz
uso das cartas pessoais de Lus dirigidas ao amigo e de cartas de
Laura a amiga Malvininha, bem como de uma cpia de seu livro
de lembranas. Todo esse artifcio prprio ao romance-folhetim,
83
84 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
conforme analisaremos a seguir, serve para contar a histria de
uma moa do interior que, ao se mudar para o Rio de Janeiro,
deixa-se seduzir pelo primeiro rapaz que encontra. Baseado no
determinismo, o autor tenta provar a influncia da famlia no car-
ter de Laura, a personagem principal. Alis, a famlia quem v
em Lus, jovem bacharel, a oportunidade de tramar o casamento
da filha, a fim de "reparar" o erro do passado. Lus, por sua vez,
ama Eugenia que obrigada a casar com um jovem rico. Laura
depois de casada vai com o marido para o interior, onde passa a
tra-lo, movida pelo tdio e pela falta de amor. O ltimo caso de
Laura ser na casa da irm, que era uma cortes, famosa pelos rui-
dosos casos amorosos com homens ricos. Numa rocambolesca tra-
ma, Lus toma conhecimento do adultrio e se mata em seguida.
Em O marido da adltera, do ttulo ao leitor implcito, do
uso que a narradora faz do pseudnimo, passando pelas cartas em
que so contadas as desventuras da adltera e do seu marido,
observamos as marcas explcitas dessa relao. Na verdade, at
mesmo o captulo inicial, " redao do Colombo" onde Laura
pede ao redator para que publique por sua vez, reproduz o argu-
mento do primeiro captulo de Os dramas de Paris, de Ponson du
Terrail, onde este vai contar como submeteu um manuscrito ao
diretor do jornal La Patrie, que constava de mais de 100 folhetins,
(MEYER, 1996, p.147).
Entre as tantas razes para se justificar o pouco caso que a
histria da literatura teve com a contribuio do jornal para sua
consolidao, pode-se incluir a rgida diviso que colocou em la-
dos opostos jornalistas e escritores, ou que identificou a literatura
com a "alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa". Cristiane
Costa tenta retomar e compreender os laos que uniram o jornalis-
mo e a literatura e indagar sobre essas entidades que so autor jor-
nalista e autor literrio e de "como e quando os dois campos se
constituem em separado. Para ela, "somente na dcada de 20 do
sculo passado que a literatura (ou, antes, o beletrismo) ser ex-
pulsa do jornal", mas "essa separao ser to naturalizada que se
esquecer que as duas atividades comeararnjuntasem 1808" (2005,
p. 14). Para analisar essa relao nas primeiras dcadas do sculo
XX, a autora toma como base o clebre Momento Literrio, de
Joo do Rio, especificamente uma das cinco perguntas: "O jornalis-
mo, especialmente no Brasil, um fator bom ou mal para a arte
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
literria?" (Rio: 1907, p. XVIII). As respostas, sejam em forma
de cartas, seja atravs das entrevistas, foram publicadas primeira-
mente na Gazeta de Notcia - seguindo um caminho bem conhe-
cido do texto literrio - e s em 1907 tiveram sua publicao em
livro. Segundo nota de seu editor, os depoimentos fizeram tanto
sucesso, "que os principais jornais dos principais Estados no du-
vidaram em aplic-los s respectivas literaturas" (Idem, p.VII).
Em geral, tinha-se uma viso ambgua do jornal. Ao mesmo
tempo em que se reconhecia sua importncia para a formao da
literatura brasileira e para a consolidao e reconhecimento da
carreira do autor, revelava-se o que consistia a queixa mais co-
mum: o teor superficial, ligeiro e pouco profundo dos textos pro-
duzidos em jornal, marcados pela necessidade de serem produzi-
dos de forma rpida e cotidiana, fazendo com que os jornalistas
escrevessem sob presso. Acreditava-se que, movidos pela pres-
so, dificilmente conseguiriam produzir algo de qualidade. Nada
diferente do que afirmava, em 1859, Machado de Assis na crnica
"O folhetinista". Para ele, o folhetinista uma planta europia que
se alastrou pelo mundo afora "por onde maiores propores to-
mava o grande veculo do esprito moderno, o jornal" (1986, p.
967). Ele no tem dvidas que o folhetinista uma "nova entidade
literria", que une a "arte do til e do ftil, o parto curioso e
singular do srio, consorciado com o frvolo", com dias tecidos a
ouro, a no ser por aqueles em que tinha que escrever, quando
"passam-se sculos nas horas que o folhetinista gasta mesa a
construir a sua obra". Essa dificuldade, segundo o autor, origina-
se do "clculo e do dever". Essa imagem do folhetim - que ser o
espao por excelncia do literrio -, do romancista, do poeta e do
jornal criada por Machado de Assis modelo de uma concepo
que se fortalecer durante o sculo XIX. Esta lgica do literrio
como o ftil til, parece nortear a personagem Jos do Patrocnio
do romance A conquista, de Coelho Neto, que ao propor a cria-
o de um jornal, inclui a crnica literria, mas com a ressalva de
que para ele, as "duas coisas srias do jornal so o noticirio e a
gerncia" (COELHO NETO, 1985, p. 150).
Na desvalorizao do texto publicado em jornal, est impl-
cita a valorizao do livro pelo tempo que se lhe podia dispensar
na r e v i s ~ ~ , na correo dos erros tipogrficos e at mesmo para
evitar-se algo muito comum aos folhetins que era a inverossimi-
85
86 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
lhana, muitas vezes constatada na morte de um personagem que
voltava trama muitos meses e captulos depois, em um sinal cla-
ro de que o autor no lia o escrevia e era trado pela memria. Na
verdade, o escritor de folhetins contava com a desateno do seu
leitor, ou leitora, como sempre explicitou Machado de Assis, uma
vez que estes eram publicados emjornais que circulavam em dias
alternados, s vezes semanalmente, outras vezes quinzenalmente.
o caso do jornal Colombo, onde primeiramente foi publicado o
romance em questo, que saa apenas nos dias 2, 8, 14,20 e 26 de
cada ms (MENDONA, 1934, p.23). Mesmo que fosse publica-
do em dias espaados, os leitores do jornal, a quem Lcio de ~ l e n
dona, editor do Colombo e personagem do romance no queria
desagradar, prezavam a seqncia, o desenrolar de toda histria e
a perspectiva de desenlace final, razo por que ele temeu que a
carta que dava incio quela histria no fosse seguida por outras:
"publica-se a primeira carta (que ela havia dirigido aos redatores
para que fosse publicada). Mas as outras? Mas publicar a primeira
e ter talvez de seqestrar as seguintes? nada menos que excitar
a curiosidade dos leitores e deix-la insaciada: m ao em todo
caso, talvez desgosto para os assinantes, descortesia com certe-
za" (p. 25). A preocupao com os leitores revela as injunes
que este comeava a exercer no tocante s assinaturas dos jornais.
Observe-se que no h por parte do redator do jornal qual-
quer manifestao no sentido de no publicar a carta. Por isso,
que no gesto de Laura da certeza da publicao de suas cartas,
assim como no do amigo de Lus o outro narrador da histria,
revela-se uma imagem bastante prxima do que ocorria nos jor-
nais: esse era um espao propcio a vrios gneros literrios
2

parte todos os propsitos polticos e libertrios do jornal, dir
Silva Ramos em O momento literrio, h uma "feio essencial-
mente mercantil das folhas dirias, revelada nas pequeninas preo-
cupaes de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de
sensao, ao paladar das criadas de servir ( ... ) (1907, p. 179)".
Deixando de lado os preconceitos de Silva Ramos, suas observa-
es talvez nos ajudem a entender por que alguns escritores trata-
ram de "retirar" de seus textos as marcas do jornal. Afinal, as
folhas e jornais eram muitos e toda a colaborao era bem-vinda.
Como sugerem as palavras do editor Lcio de Mendona em rela-
o ao desejo de Laura de ter suas cartas publicadas: "a vo para
, Para Flora Sussekind (1993,
p. 2 I 6), o fato de o missivista ir
se tornando o narrador principal
do relato, deve-se simpatia do
diretor de O Colombo, uma vez
que este no poderia deixar de
se aliar a "algum que encara o
jornal como um espao
polmico, plural, semelhana
da imagem liberal que sonha
para0 pas".
) marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
a imprensa as suas cartas, e iro pelo mesmo caminho as que vie-
rem. Se, porm, como mais provvel, Laura de M. quer fazer
romance sentimental, ainda que verdadeiro, que o faa embora; s
temos que lhe agradecer a colaborao, que interessante" (p.
26). No havia seleo, nem critrios para a publicao dos textos
no jornal e grande parte do que se publicava era ou annimos, ou
sob pseudnimos.
Como argutamente observa Flora Sussekind (1993), o jor-
nal exerce no romance o papel de protagonista, pois que foi atra-
vs dele que Laura conheceu Lus Marcos, naquilo que era muito
comum: os bacharis iniciarem (muitos evidentemente no conse-
guiram passar dos annimos e da "colaborao solicitada") sua
carreira literria, publicando em jornais de So Paulo, o que foi o
caso do prprio Lcio de Mendona. Laura "j conhecia o nome
de Lus Marcos, e sabia de cor muitos versos dele publicados em
folhas de So Paulo que o bacharel mandava famlia" (p. 59/60).
O jornal era O Apstolo lido no s por Laura, mas por sua amiga
beata que tambm j conhecia o rapaz de nome e lamentava que
ela viesse a casar "com um inimigo da religio" (p. 99). H tam-
bm o episdio, j notado por Flora Sussekind, em que Laura,
planejando um futuro na Corte para ela, imagina uma carreira
jornalstica para o marido para a qual tinha os pr-requisitos ne-
cessrios: "tinha amizades no jornalismo fluminense, podia obter
que o tomassem para colaborador de alguma das folhas dirias" ... (p.
123). H inclusive um momento irnico, visto pelo prprio Lus,
minutos antes de ele mesmo ler em um jornal a sua nefasta hist-
ria. Ao entrar em uma barbearia, enquanto esperava viu um rapaz
"muito embebido na leitura de umjornal do dia, em que colabora-
vam escritores novos. Imaginei pelo interesse, que estaria lendo
algum artigo dele prprio" (p. 148). atravs da leitura de jornais
que Lus toma conhecimento da traio da mulher. tambm pelo
jornal que seu amigo se inteira da morte dele. No jornal, ele reco-
nhece a histria de Lus e identifica no pseudnimo a verdadeira
autora do folhetim.
Mais que isso, o jornal era o lugar das disputas amorosas,
palco dos amores impossveis, dos amores risveis, revelados numa
guerra de textos nem sempre tidos por "literrios", seja atravs de
poemas amorosos - muitas vezes em forma de carta - seja em
trovas populares, mas todos de uma forma preponderantemente
87
88 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
marcados pelo anonimato, escondidos pelo pseudnimo, recurso
utilizado por praticamente todos os escritores e muitos leitores
que viam seus textos publicados, como fez Laura, com o nome
ngela do folhetim que Lus leu. Dentro da narrativa mesma, per-
cebe-se que anteriormente esta histria, que era lida atravs de
cartas, veio a pblico, em um jornal, quando um "amigo literato
distinto" props a Otvio que se revelasse a traio de Laura,
"num conto engenhoso, que s os interessados entendessem" (p.
145). Outro uso para o jornal tambm est descrito no romance.
Trata-se de uma fala de Joo, padrinho de Laura, inconformado
com o fato de sua famlia no lhe ter procurado quando passaram
aperto financeiro: "- Diabo! - dizia com voz velada de comoo.
- Por que no me escreveram ... para toda parte do mundo ... ainda
que fosse pelo jornal? .. "( p. 53).
Muito nos ajudaria poder consultar os originais onde foi
publicado pela primeira vez O marido da adltera, para determi-
nar com preciso o nmero de exemplares e meses em que foi
dado a pblico. Mas pela estrutura dos captulos e a informao
de que O Colombo saia pelo menos 5 vezes por ms, podemos
nos aproximar desse tempo real. O livro composto de 14 partes,
dividas entre as cartas que Laura escreve aos leitores do jornal e
aquelas que escreve a sua amiga Malvininha, alm das memrias
do seu livro de lembranas, que formam os IX captulos denomi-
nados de "Cartas de uma desconhecida"; a outra parte denomina-
da de "As confidncias do morto", refere-se s cartas do narrador
ao jornal e quelas de Lus que lhe chegaram s mos. Ao todo
so 6 cartas distribudas em 3 captulos. Essa variedade de gne-
ros e multiplicidade de vozes, ou "virtuosismo rocambolesco"
como observa Marlyse Meyer, ao analisar os romances de Poison
du Terrail, so constitudas pelas "famosas gavetas caractersticas
do romance arcaico ... ". Segundo a autora (1996, p. 159):
Internamente o texto apresenta os mais variados processos nar-
rativos, que emprestam todos os modelos para compor uma
vertiginosa construo em abismo estruturada em embuste e
ardil como forma de articulao do enredo: embuste de verda-
de, embuste de mentira, vtimas de mentira (cmplices e pr-
informados) etc.
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
Nessa "construo em abismo", h o embuste da narradora,
"ardilosa" como mulher e tambm como narradora; se ela enga-
nou o marido, engana agora os leitores. Primeiramente, faltando
com a verdade, quando surge um outro narrador, amigo de Lus,
o marido trado, que resolve contar a verdadeira verso da hist-
ria. Histria do passado alis que ele conhecia em detalhes, mas
que resolvera ocultar do seu amigo; era o segredo de Laura, seu
envolvimento com o jovem oficial rio-grandense. Se por um lado
Laura escreve para que seu exemplo seja "lio proveitosa a algu-
mas outras", supondo serem as leitoras quem liam os seus escritos
e os romances-folhetins, por outro, o missivista duvida que seja
uma mulher aquela quem escreve as cartas. Trata-se de outro
embuste, agora com relao prpria escrita: "Digo que deve ser
um homem porque no de pena feminina aquele estilo embebido
de realidade; o mais que digo v-se pela desapiedada nudez em
que se revelam os fatos vergonhosos dessa vida de mulher" (p.
73). No se trata de falta de capacidade ou de talento para escre-
ver um romance, mas da necessidade que estes romances tm do
engodo, do ardil para o "bom" andamento do folhetim.
89
Considerando que a maioria das cartas e dos captulos
corresponde ao espao do jornal destinado ao folhetim, exceo
do captulo VI, muito longo, que provavelmente foi dividido em
sua publicao, temos que este romance levou algo em torno de 4
meses para ser publicado. Como um bom romance-folhetim, es-
crito quase sempre no limite da hora, como sugere a dedicatria
do autor, O marido da adltera possui um "mistrio do passado"
(MEIYER, 1996) que vai nortear toda a trama. Primeiramente,
em relao prpria Laura que esconde do marido o fato de j
haver tido um relacionamento no passado, o que na moral
oitocentista j se constitui como um adultrio; Lus Marcos por
sua vez amava Eugnia que casou com um homem rico. Em meio
a esses pequenos segredos, h um maior que no o adultrio,
nem o motivo pelo qual ela o pratica, mas a pergunta principal:
teria, portanto o suicdio de Lus Marcos relao com esse epis-
dio? Teria o marido tomado conhecimento da traio de Laura?
Como se deu a traio? Este era o verdadeiro mote para o desen-
rolar do folhetim.
Contrariando o esteretipo do folhetim sobre adultrio, nesse
romance a adltera no punida com a morte, nem com a reclu-
90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
so, porm, sua "falta"deveria ser reparada com a expiao pbli-
ca do seu remorso. A narrativa tem incio com a personagem Laura
de M. justificando a publicao de sua histria como sendo uma
forma de provar aos amigos dele que agora compreendia, "ainda
que muito tarde, o homem honrado que foi [seu] marido - para
desgraa sem remdio e para meu desesperado remorso" (MEN-
DONA, 1974, p. 23)3. Mas o narrador faz questo de mostrar
ao leitor que se trata de mais um engodo dela, posto que depois
da morte do marido, "s depois de gasta e repelida, tendo descido
toda a escala da degradao, que se foi refugiar na provncia se
na devoo, refugium peccatorum", onde passa a escrever sua
histria (p. 152).
Pois qual no a surpresa do leitor contemporneo - que
pode voltar as pginas do texto e confirmar que o marido estava
morto quando ela deu incio narrativa - quando no ltimo cap-
tulo, surge uma carta do marido de Laura, o dr. Lus Marcos de
Lima, ao missivista narrador em que conta como tomou conheci-
mento da traio da mulher. A citao longa, mas ser funda-
mental para acompanharmos como a narrativa construda com esses
fragmentos dirios no tem compromisso com a verossimilhana,
mas com movimento vertiginoso da elaborao "simultnea":
Na estao, comprei as folhas do dia, a Gazeta, o Jornal, a tal
folha dos rapazes. Na travessia fui lendo a Gazeta; no ferro-
carril, abri o jornal, e embrenhei-me nas correspondncias da
Europa at que me faltou luz. A poucos quilmetros da esta-
o terminal, abri o jornalzinho. Atraiu-me o folhetim .. .\ngela,
assinado por um pseudnimo auspicioso; mas , proporo
que me adiantava, a leitura ia ganhando para mim um interesse
terrvel. ngela era um feliz retrato de Laura, completo. minu-
cioso, desenhando at um imperceptvel defeito que ela tem no
lbio inferior. O marido, designado apenas por doutor, era eu,
visto atravs de um baixo dio que eu no conhecia (p. 149).
Voltemos pois ao primeiro captulo como leitores da narra-
tiva integral, publicada em livro, desconfiados do fazer folhetinesco.
Nele, a protagonista dirige sua carta aos leitores do jornal Colombo,
tempos aps a morte do seu marido. Como se observa na passa-
gem acima, a histria que Lus l, a mesma histria publicada em
o Colombo, est contada em outro jornal, o tal jornalzinho "em
'.-\ partir dessa citao, fart;
referncia apenas ao nmero da
pgina do romance de Lcio de
\1endona.
'J marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
que colaboravam escritores novos"(p. 148). Portanto, temos aqui
duas possibilidades bastante plausveis em se tratando de um fo-
lhetim. Primeiramente, o folhetim ngela, no representaria uma
outra histria apenas parecida com a sua, como somos quase obri-
gados a considerar. Mesmo cor' a total inverossimilhana desta
passagem, esta seria a mesma histria escrita por Laura com a
finalidade de precipitar o fim trgico e intensificar embuste e o
ardil da personagem. Nesse caso, levando em conta a forma de
escrever e ler um folhetim, a coerncia no se daria com os cap-
tulos iniciais, mas com aquilo que tinha sido recentemente publi-
cado, pouco importando se o que se passava naquele momento
diferia do incio do romance. A citao acima do ltimo folhe-
tim, separado do clmax da narrativa por uma cpia de carta, em
que com tom momo, Lus se despede do amigo narrador e
confidencia o amor impossvel que nutria por Eugenia, bem como
o sofrimento ao se despedir dela. Esse captulo, referente quinta
carta das "Confidncias do morto" precedido pela "Cpia do
meu livro de lembranas", onde Laura, sem nenhum pudor ou
culpa - diferentemente do que afirmava no primeiro captulo -
narra sua aventura com o jovem estudante de medicina, na man-
so da sua irm em S. Loureno, tal qual descrito pelo folhetim
ngela. O captulo do folhetim termina com a inesperada viagem
do marido e a possibilidade de ela passar trs dias e trs noites
com o amante.
Segundo, a outra possibilidade, bastante plausvel do ponto
de vista do romance-folhetim, a de Otvio ter levado a cabo a
sugesto do amigo "literato distinto" de revelar tudo a Lus, atra-
vs "de um conto engenhoso, que s os interessados entendes-
sem", e que foi publicado no jornalzinho lido pelo marido trado.
Seja qual for a soluo encontrada pelo autor, ambas, so perfei-
tamente adequadas ao desfecho de um folhetim publicado emjor-
naI. O importante para a ao deste tipo de romance que ele
descobrisse os atos da mulher. Descobri-lo pelo jornal ento,
uma forma de negociar o sentido do texto, diminuindo a assimetria
entre este e o leitor (ISER, 1999, p. 28), favorecendo a produo
de sentido do qual o leitor tambm participa, haja vista que ele
est lendo a mesma histria tambm numa folha de jornal. Dessa
forma, temos aqui uma estratgia sabida dos escritores do sculo
XIX, que pela boca da personagem Teixeira, mdico e filsofo de
91
92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A conquista consiste em oferecer ao pblico leitor que "est ainda
no perodo infantil do deslumbramento", os romances preferidos
que "so os de complicado enredo, os magnificentes, os emara-
nhados que no passam de ampliaes de contos de fadas para
crianas grandes. No h ainda o critrio esttico, no sei se pos-
so dizer assim. O leitor no se preocupa com a substncia nem
com a forma; a inverossimilhana o seu ideal, quanto mais irre-
al melhor" (COELHO NETO, p. 132, Grifos nossos).
Filiado esttica realista, O marido da adltera, ao mesmo
tempo em que "aumenta a complexidade do espao de jogo" (ISER,
1999, p. 69), ao apresentar a trama sob vrios olhos, precisa de
alguma forma manter presente o contexto citado, na referncia
implcita que faz a outros romances do gnero. Dessa forma, o
adultrio, ou a tese naturalista que o romance tenta provar - a de
que o carter da personagem foi forjado pela herana familiar e
pelas condies do meio - compreende a "citao" da "alta litera-
tura", aliada aos ingredientes fundamentais do "baixa literatura"
caracterstica do romance-folhetim, publicado no jornal. Assim
que, para Lcio de Mendona, editor do jornal e personagem do
romance, a primeira carta de Laura revela um "caso literrio dos
mais atraentes e dos menos embaraosos" numa aluso explcita a
um assunto comum a esse gnero de romance, ao mesmo tempo
em que ela "por mais que nos queira prevenir em sentido contr-
rio, , apesar de sua desgraa, ou por amor dela prpria, uma
romntica. Sinto dizer-lho: mas est se vendo ... " (p. 25). Assim,
ao consider-la romntica, o autor traz para dentro do texto ou-
tras personagens de romances realistas, por sua vez, leitoras de
folhetins e romances romnticos, cujo paradigma a personagem
Madame Bovary, aludida seja pelo adultrio, seja pelo tdio que
sentia quando passou a morar em B. depois do seu casamento,
como relata em carta para a amiga Malvininha:
Malvininha, est decidido: a tal roa, que os senhores poetas
nos impigem como um ninho de tranqilas felicidades, um
mar morto de tranqila pasmaceira, de inesgotvel aborreci-
mento!
[ ... ]
Mas as horas vazias de trabalho precisavam ser cheias de outra
equivalente ocupao se que outra assim existe; e no o eram.
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
Desta falta me veio o tdio, que caminho certo da perdio
para as naturezas imaginativas, como infelizmente minha vida
Cp. 120)
Os amores de folhetim e o adultrio esto presentes tam-
bm na leitura que o narrador, amigo de Lus, faz do Processo
Clmenceau, de Alexandre Dumas Filho e discute com Lus e
Otvio, no tempo em que eram estudantes em So Paulo. Nele, o
marido adulterado mata a adltera, uma jovem que ele mal conhe-
cia, mas com quem resolvera casar. O narrador defende a conduta
do marido trado. J Lus argumenta de forma contrria, justifi-
cando que como o homem casara com sua fantasia - j que no
conhecia a famlia, nem a origem da mulher - fora ele e no ela
quem traiu. O fato que Lus Marcos, ao acusar o marido que
mata a adltera, est se condenando, assumindo para si toda a
responsabilidade pelo que viria a fazer dali a dois anos. Suas pala-
vras so ao mesmo tempo antecipao e excesso folhetinesco na
medida em que toma mais "vil" a traio de Laura que o enganou
antes do casamento; ele j uma "vtima da verdade" antes mes-
mo de ela vir tona, pois se este o no previu, se o no evitou,
com certeza, culpado (p. 76).
Ao contrrio do narrador, Lus Marcos v como nica sada
para o marido trado do Processo Clmenceau, o "dever de ma-
tar-se". Otvio, seu amigo e narrador, embora fique sabendo do
segredo de Laura, evita escrever para o amigo contando, na espe-
rana de encontr-lo em breve. Mas os ardis supostamente mon-
tados pela famlia dela para que passe a noite com Laura e o casa-
mento de Eugnia, seu verdadeiro amor, precipitam e exigem dele
o casamento. O amigo por sua vez, o sujeito pr-informado a qual
se refere Marlyse Meyer, toma-se cmplice do passado de Laura,
levando o amigo a ser vtima da mentira. Porm, ao narrar a hist-
ria, tenta de alguma forma justificar aos leitores de o Colombo a
sua atitude.
Outra estratgia de romance folhetim trazida para este ro-
mance diz respeito ao passado do prprio Lus Marcos. Este tam-
bm tinha um segredo que nunca chegou a conhecer. Na segunda
carta do seu amigo, ficamos sabendo "que a famlia a que Lus,
enjeitado, apenas julgava pertencer por adoo e caridade, era
sua pelo sangue, e a herana do homem que o criou, renunciada
93
94 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
por ele em favor dos colaterais, no era mais do que uma restitui-
o, e desfalcada, da herana do prprio pai". Assim, quando mais
tarde o tio movido pela culpa, na tentativa de reparar seu erro,
instituiu Lus seu herdeiro universal, este sem o saber repudiou a
herana num gesto herico e de desprendimento.(p. 82).
Outro aspecto tpico do folhetim o ttulo que nos remete
diretamente ao assunto tratado, sem as sutilezas machadianas de
nomear D. Casmurro um romance sobre adultrio. Nesse caso, o
ttulo at redundante, pois segundo Marlyse Meyer, o adultrio
sempre do gnero feminino (1996, p. 253). Na verdade, esse
ttulo revela uma das nuances dos romances-folhetins, publicados
em jornais, que antecipavam o lanamento de um novo romance,
a poucos dias de finalizar o que estava em publica0
4
Muitas
vezes, esses anncios vinham at mesmo sem o nome do autor, o
que revela a importncia de um ttulo direto, chamativo, que ante-
cipasse para o leitor de folhetins o teor daquilo que iria ler como
algo j conhecido. Assim foram Anjos e demnios, de Alxis
Bouvier, Os companheiros do crime, E. Chavett, A carne de Os-
car Metinier, Caixo Negro de George Pradel, entre tantos. Coe-
lho Neto trata desse aspecto quando conta a Joo do Rio a hist-
ria do seu livro Rajah de Pendjab. Como estava precisando de
dinheiro props escrever um folhetim para substituir aquele que
fora perdido pela Gazeta. Sugeriu como ttulo O prncipe encan-
tado, o que no foi aceito por se tratar de um "'ttulo velho".
Sugeriu Rajah de Pendjab, que foi aceito e proposto para dar
incio em dois dias: "E a reclame foi feita para um romancista
francs, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do
Humphreys" ... (RIO, 1907, p. 57).
Em seu ensaio, "O romance epistolar e a virada do sculo"
Flora Sussekind (1993, p. 211) chama a ateno para o fato de
que "o romance brasileiro tambm passou ao largo da trilha
epistolar", razo pela qual ela dedica seu estudo a dois exempla-
res desse gnero: O marido da adltera e A correspondncia de
uma estao de cura de Joo do Rio, de 1918. Embora escassa no
romance, a carta freqentou com muita assiduidade o jornal, prin-
cipalmente nas polmicas e debates, como aquela que travam Laura
e Lus pela verso verdadeira da histria. Na carta cabiam os vri-
os tipos de texto literrio: poesia, narrativa,"ensaio". Pelo menos
nos jornais paraibanos, desde 1854, encontramos cartas polmi-
4 Quando fao referncia
circulao do texto literrio em
jornais, ela diz respeito aos
jornais paraibanos nos quais
desenvolvo pesquisa. Faltam-
me dados sobre os jornais que
circularam no Rio de Janeiro,
mas creio que o processo
verificado nas Provncias
repetia aqueles da Corte.
o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
cas, de carter poltico e cartas mais pessoais, como aquelas que
Laura, Lus e seu amigo escrevem. Ainda est por se fazer uma
pesquisa sobre os gneros utilizados pelos jornais, que foram apa-
gados depois de sua publicao em livro.
Ein uma nota de Vida literria no Brasil- 1900, Brito Bro-
ca informa que o gnero epistolar tomava-se comum em algumas
revistas, entre elas O Pirralho (1911 - 17) e que aquela era uma
voga francesa(BROCA, 1958, p. 229). Exemplo dessa utilizao
da carta pelo cnone da literatura brasileira, o das cartas escritas
por Machado de Assis que, no se adequando aos propsitos dos
priorizados por Afrnio Coutinho, organizador de suas obras
completas, prefere juntar todas sob o epteto de Miscelnea, nome
bastante apropriado, pois que sob essa rubrica se enquadrava toda
a sorte de escritos. Mas o certo que nessa Miscelnea se inclu-
em vrias cartas, entre as quais "Carta redao da imprensa aca-
dmica", publicada no jornal de mesmo nome, de So Paulo, cujo
teor visa responder a crticas que foram feitas a sua comdia Ca-
minho da porta. Outra, dirigida a Henrique Chaves e publicada na
Gazeta de Notcias, faz o necrolgio de Jos Telha Ferreira de
Arajo. H ainda outro exemplo clssico do uso de cartas no jor-
nal, que so aquelas que deram a Jos de Alencar notoriedade,
quando comeou a escrev-las sobre a Confederao dos Tamoios,
publicadas em 1856, com o pseudnimo de Ig, no Dirio do Rio
de Janeiro, nas quais critica o poema pico de Domingos Gonal-
ves de Magalhes, dileto do Imperador e considerado ento o maior
poeta da literatura brasileira (LIRA NETO, 2006).
Na verdade, a carta um dos elementos fundamentais para
uma das "marcas sui generis"do folhetim que o exagero amplifi-
cador. A perspectiva levantada por Marlyse Meyer (Idem, 160),
na anlise da obra de Ponson du Terrail, e bastante apropriada ao
romance de Lcio de Mendona, demonstra que "um bom exem-
plo desse excesso so as cartas, as narrativas intercaladas, as lei-
turas de depoimentos, testamentos, etc ... ". Como j comentamos,
O marido da adltera lana mo dessa estratgia para cativar o
leitor e prolongar o enredo folhetinesco, alm de permitir as tais
gavetas literrias a que se refere Marlyse Meyer. Do ponto de
vista de Laura, h a carta intencionalmente elaborada para a leito-
ra do jornal Colombo, com vistas ao propsito nobre de tirarem
delas "lio proveitosa". Do ponto de vista da construo do
95
96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
folhetim e dos leitores que o lem, uma adltera arrependida, ten-
tando provar as conseqncias de uma "educao corruptora e
falsa" no matria de interesse. Tanto que sua primeira traio -
do ponto de vista da moral oitocentista - ao manter relaes com
o jovem estudante, perdoada por um padre. preciso, portanto,
provar o seu engodo e para isso, surgem as cartas que escreve
para Mal vininha - "acabado produto da educao com que se cri-
ara, entre mimos babes e brutalidades viloas, na ociosidade, na
ignorncia e no namoro" - cujo carter assim descrito pelo narrador
aproxima-a mais do perfil de Laura e justifica por que a escolheu
para fazer suas confidncias. Nelas no a adltera arrependida
quem narra, mas a mulher entediada, insatisfeita com o marido e o
casamento. Seu livro de lembranas, por sua vez, vai revelar a
"verdadeira" Laura, que se deixa seduzir por uma nica frase do
estudante, com quem ter um caso. Do lado do narrador, as cartas
que publica como "As confidncias do morto" so compostas da
memria desse narrador e de cartas escritas por Lus a ele que,
cmplice involuntrio da mulher, se sentir na obrigao de res-
taurar a verdade e eximir-se da culpa.
Enfim, pode-se concluir, que o estranhamento causado as
solues estticas de O marido da adltera causam certa estra-
nheza ao leitor contemporneo, porque desnuda em sua estrutura
as estratgias e o modelo de narrar prprios ao folhetim. Estes,
por sua vez, fazia-se a partir de um leitor real, o leitor de jornal.
"Leitor intencionado, fico do leitor no texto" (lSER, 1996, p. 79),
a quem autor e narrador originalmente se dirigiram, cujas injunes
foram determinantes na elaborao do romance-folhetim.
=" marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim
Referncias
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SUSSEKIND, Flora. Papis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993
1 Texto presentado en la 8'
Jomadns Andinns de Literatura
wtitw Americana (Lima, 9 a 13
de agosto de 2004).
, "So muitos os estudos sobre
o romance, a poesia, o teatro, o
cinema, a pintura e a msica,
entre outras linguagens, nos
quais est presente, explcita ou
subjacente, a idia de"
nacional". ( ... ) Sem prejuzo
das contribuies realizadas e
possveis a partir do emblema
nacional, cabe experimentar a
perspectiva aberta pela idia de
contato, intercmbio, permuta,
aculturao, assimilao,
hibridismo, mestiagem ou,
mais propriamente, transcul-
turao." (p.94-95) In: Ianni,
Octavio. "Transculturao".
In: -. Enigmas da moder-
nidade mundo. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira. 2000
J Sus cuentos fueron publicados
bajo los siguientes ttulos:
Urups. So Paulo: Ed. Revista
do Brasil, 1918; Cidades
.\fortas. So Paulo: Ed. Revista
do Brasil, 1919; Negrinha. So
Paulo: Revista do Brasil e
Monteiro Lobato & Cia. 1920
De So Paulo 01 Aconcagua: una
trayectoria latinoamericana para
Monteiro Lobato
1
Para Octavio Ianni, in memoriam
Marisa Lajolo
(Unicamp)
Muchos son los estudios sobre la novela, la poesa, el teatro,
el cine, la pintura y la msica - entre otros tantos lenguajes-
en los cuales se encuentra presente - de forma explicita o
subyacente la idea de " nacional" ( ... ) Sin prejuicio de las
contribuciones realizadas y posibles a partir deI emblema na-
cional cabe experimentar la perspectiva abierta por la idea de
contacto, intercambio, permuta, aculturacin, asimilacin,
hibridismo, mestizaje o - mas propiamente dicho -
transcul turacin
2
EI escritor brasileno Jos Bento Monteiro Lobato naci en
Taubat -ciudad deI interior paulista- en 1882. Su abuelo -el
Vizconde de Trememb-, era propietario de ti erra en una regin
de agricultura y economa decadentes a partir de fines deI siglo
XIX. La madre de Monteiro Lobato era hija ilegtima deI Vizconde,
pero ese origen -en aquella poca estigmatizado- no impidi que
su hijo se tomase heredero deI abuelo.
De su origen rural, Monteiro Lobato parece haber mantenido
una sensibilidad bien sintonizada con personajes, situaciones y
paisajes interioranos. Sus cuentos magistrales
3
giran en tomo a la
identidad de este campesino -el polmico jeca tatu-,
inevitablemente atropellado por el progreso, que en las primeras
dcadas deI siglo XX arruin pequenas ciudades deI interior
paulista. De ah surge la metfora ciudades muertas , la cual da
99
100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ttulo aI libro en cuyo af.o de lanzamiento (1919) vendi ms
de cuatro mil ejemplares. pn 1918 Urups tuvo tres ediciones,
alcanzando la estupenda cifra de cinco mil ejemplares. Reeditada
aI af.o siguiente, en 1919 la obra parece haber llegado a doce
mil ejemplares. Cidades Mortas vendi 4 millares durante el
af.o de su lanzamiento, y ambos libros (Urups y Cidades Mor-
tas) fueron reeditados en 1920, cuando junto con el nuevo t-
tulo -Negrinha-, prosiguieron su carrera de xito, totalizando
20 mil ejemplares en 1920.
Como todos los jvenes de su c1ase social, Monteiro Lobato
estudi Derecho y se gradu en 1904. En 1907 fue nombrado
promotor pblico en otra pequef.a ciudad deI interior paulista -
Areias-, y all vivi durante algunos af.os. Con la muerte deI abuelo
en 1911, Monteiro Lobato hereda la hacienda a la cual se muda
con su familia (se haba casado en 1908). Desde all enva artcu-
los para la prensa, colaborando con el peridico O Estado de So
Paulo y con la Revista do Brasil. Ambos eran vehculos de gran
circulacin y de slida respetabilidad.
Fue en un gran peridico paulista que en 1914 Monteiro
Lobato public los dos artculos que tornaron famoso su nombre
en todo el pas: "Velha praga" (12 de noviembre de 1914) y
"Urups" (23 de diciembre deI mismo af.o). En ambos, Lobato
haca una crtica cida e implacable a las costumbres interioranas.
Es en la Revista do Brasil que, poco tiempo despus, inicia su
trayecto de xitos como editor y empresario de cultura.
De colaborador, Monteiro Lobato se convierte en propietario
de la Revista do Brasil. En efecto, en 1917 vende la hacienda, se
muda a So Paulo y aI af.o siguiente compra la Revista do Brasil.
Y es desde la mesa de redaccin de tal revista, que comienza a
planear y construir una dimensin latinoamericana para la litera-
tura. Para su literatura, para la literatura brasilef.a, para la literatu-
ra latinoamericana.
Son tradicionales, ai menos en la tradicin de los estudios
literarios brasilef.os que conozco, las investigaciones que tratan
de "encontrar" o "construir" convergencias temticas y estticas
entre intelectuales latinoamericanos brasilef.os y no brasilef.os.
Investigaciones de este tipo son instigantes, sin embargo pueden
enriquecerse an ms con estudios que le confieran materialidad a
las convergencias estticas y crticas que ellas rastrean. Esta
Je So Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
verti ente de recorte materialista, histrico y recepcional resulta
esencial para desarrollar un discurso crtico comprometido con
una teora literaria de Amrica Latina, en oposicin a una teora
literaria en Amrica Latina.
Siguiendo la estela de ngel Rama, Cornejo Polar, y Anto-
nio Cndido, este trabajo parte de la hiptesis de que no siempre
las categoras crticas forjadas en los centros hegemnicos
responden de manera satisfactoria a las prcticas literarias vigen-
tes en la periferia. Del centro a la periferia es el rayo que cubre la
distancia entre las expresiones teora literaria en Amrica Latina
y Teora Literaria de Amrica Latina.
Monteiro Lobato puede ser una clave para el estudio de
estas relaciones literarias latinoamericanas. Por lo tanto es hacia
l que llamo la atencin de los colegas, invitndolos a revisitar la
obra deI escritor que habit en los estantes de lectura y en los
corazones infantiles de Amrica Latina, de Mxico a la Patagonia,
de los Andes aI Po de Acar.
Monteiro Lobato fue uno de los primeros arquitectos de la
utopa de una Amrica unida por libros y lectores ... Asi que en su
vasta obra podemos rastrear manifestaciones reincidentes -aunque
tenues y efmeras- de un proyecto para la formacin de un sistema
literario latinoamericano.
Desde la perspectiva de Antonio Candido, la existencia de
un sistema literario resulta fundamental para que se puedan discu-
tir las diferentes articulaciones de la literatura con la sociedad. En
el caso de nuestra Amrica, tal sistema necesita responder a las
diferentes e inestabls articulaciones entre las diversas literaturas
latinoamericanas, y de todas y de cada una de ellas con la sociedad
pluritnica, polilingstica y no homogneamente letrada de
nuestros pases.
Las relaciones entre autores, obras y pblicos, la mediacin
de intermediarios entre estos tres polos de la lectura literaria, las
formas histricas asumidas por tales relaciones y mediaciones, la
base tcnica disponible y la legislacin que reglamenta el comer-
cio nacional e internacional de libros, junto a los datos cuantitativos
y cualitativos de pblicos disponibles, son elementos que le
confieren materialidad a (concretizan) lo que se estudia cu ando
se estudia literatura, sobretodo desde una perspectiva historico-
comparativa .
101
102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
En el material sobre el cual me apoyo para la construccin
de este sistema comienza a revelarse de forma modesta y doms-
tica, a travs de una carta de 1920. En ella Monteiro Lobato, ya
de gran renombre y p r o p i ~ t a r i o de la Revista do Brasil, le escribe
a Lus da Cmara Cascudo (1898-1986), entonces un intelectual
todava indito de una lejana provincia deI nordeste brasileno (Rio
Grande do Norte). La carta es pequena, sin embargo, ya docu-
menta el empeno de Lobato en la construccin de una red entre
intelectuales de diferentes puntos de Amrica: en la misma le anun-
cia a Cmara Cascudo el envo de una obra argentina, de la cual
haba recibido algunos ejemplares para distribuirIos en Brasil:
Y espero mandarle un libro interesante que la "Nosotros", re-
vista argentina, me encomend que distribuya entre nuestros
hombres de letras.
Esta promesa fija la figura de Monteiro Lobato como
intermediario y difusor de la literatura argentina en territorio
brasileno, aI colocar en circulacin a escritores deI pas vecino, no
slo ms all de las fronteras argentinas, sino tambin ms all deI
eje Rio de Janeiro -So Paulo.
Muchas y muchas cartas deI acervo de Monteiro Lobato
depositadas en la UNICAMP por sus herederos refuerzan y
detallan este su papel de divulgadorA. EI autor integra una red de
intelectuales -en especial brasilenos y argentinos- que no slo
intercambiaban libros y divulgaban sus respectivas producciones,
sino que tambin debatieron y desarrollaron proyectos para
viabilizar el intercambio literario entre sus pases. En la Revista do
Brasil, Monteiro Lobato publica a escritores argentinos, aI tiempo
que varios de sus textos circulan por Argentina durante los anos
veinte deI siglo pasado.
5
Estas traducciones muestran que no fue apenas desde la
posicin de distribuidor que Monteiro Lobato dia curso aI (hasta
hoy) ambicioso proyecto de dar amplitud latinoamericana a un
proyecto cultural y literario. Algunos anos ms tarde, tambin
consigui una abundante (y hasta hoy probablemente inigualada)
circulacin de sus obras en la Amrica hispnica.
En carta de 1943 ,el comenta con su esposa las grandes
expectativas que depositaba en el mercado argentino:
4 Los herederos de Monteiro
Lobato depositaron un valioso
acervo dei escritor en el Centro
de Documentao Alexandre
Eullio, en el Instituto de
Estudos da Linguagem, de
Unicamp. La investigacin de
dicho acervo - de la cual este
trabajo es un resultado parcial
- cuenta con financiamiento de
la Fapesp y dei CNPq.
5 Urups es publicado en
Argentina en J 921, en la
Biblioteca de Novelistas
Latinoamericanos (trad. de
Benjamin Garay), y en ese
mismo ano la revista Nosotros
(a. 15, v. 38, n. 145, mayo de
1921, pp. 96-100) publica el
ensayo "Letras brasilenas:
visin general de la literatura
brasilefia". Tambin en ese afio
La Novela semanal (a. 5, n.
183, 16 de mayo) publica el
cuento "Negrinha" con el ttulo
de "Alma negra" (Cf Artundo,
Patrcia. Tesis de Doctorado.
USP,2OO2).
De So Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
6 Maria Pureza da Natividade
Lobato era la esposa de
"'Ionteiro Lobato .
7 Ruth Monteiro Lobato
(t 916- XXXX) fu la ultima
ruja de Monteiro Lobato y D.
Purezinha.
Purezinha 6 :
( ... )
Recib el contrato de la edicin de todos mis libras infantiles en
espanol en la Argentina. Todos. Y para comenzar saldr un
bloque de cinco. El negocio me parece excelente, pues alI podr
tener una renta tal vez mayor que la de aqu, y de ese modo
podr reservar una de esas rentas para ir acumulando una
fortunita para ti y para Ruth 7. Mi preocupacin ahora son
slo t y Ruth. He de dejarlas bien. Tranquilicnse. Ahorrando
unos 5 contos por ano, en pocos anos estarn seguras -y habr
la renta de mis libras aqu y alI. Hasta 60 anos despus de mi
muerte. No le temas aI futuro ( ... )
Efectivamente la promesa se cumple, aunque slo en parte.
I no se hace rico, pero su obra circula por toda Amrica Latina.
Y algunos anos despus de esta carta, Lobato sigue el camino de
sus libros: entre junio de 1946 y junio de 1947 se muda a la Ar-
gentina, donde junto a algunos amigos funda la editora Acteon.
La persistencia con que Monteiro Lobato invierte en Argen-
tina es reforzada por una carta de ( 13 de) agosto de 1946 enviada
desde Buenos Aires aI amigo brasileno Otaviano (Alves de Lima).
En ella , Monteiro Lobato muestra una aguda percepcin de las
especificidades y potencialidades dei mercado argentino (en
oposicin ai brasileno). En ese sentido demuestra un tino comer-
ciai poco comn entre los hombres de letras, si bien sto ya lo
haba probado con anterioridad en los anos 20, cu ando transform
una pequena casa editorial en la mayor editorial brasilena.
EI escritor atribuye la pujanza dei mercado editorial argenti-
no a la gran difusin del idioma espanol, as como a una legislacin
que prcticamente subsidia la produccin dellibro, aI no tas ar su
materia prima:
En el campo editorial, Argentina goza de dos grandes ventajas
sobre Brasil: 1) el papel para libras entra libre de derechos de
aduana; 2) existe un mercado exterior para la produccin. EI
ano pasado la praduccin de libras fue de diez mil toneladas,
de las cuales cinco mil fueran exportadas. Fjate que maravilla.
Ah no exportamos libra alguno y sobre el papel importado
tenemos una tasa equivalente aI 100% deI precio de costa.
Solamente existe exencn para el papel de peridicos y revis-
103
104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tas. Esto explica el tremendo desarrollo de la industria editori-
al argentinas.
Es as que a lo largo de toda su vida, Monteiro Lobato fue
multiplicando sus lazos con el mundo editorial/literario
latinoamericano. De regreso a Brasil, en carta a otro amigo -
Godofredo Rangel - relata que
( ... ) este mes escrib 20 libritos nuevos para la Editorial Codex
de Buenos Aires, libritos juguetes, de poco texto y muchas
ilustraciones coloridas. Saldrn en dos lenguas. Y abora voy a
escribir unos seis para un editor de Mxico -que ms tarde
tambin podrn salir aqu. -( ... ) (30.07.1947)
Ya en su Historia dei mundo para los ninas 9 - la versin
que Lobato da de la conquista de Amrica por los espanoles tiene
un acento critico poco comun en livros infantiles anteriores a lo
politicamente cierto de nuestros das. Ya en aquel entonces
ensefiaba Lobato que
La conquista de Amrica por los europeos fue una tragedia
sangrienta . i A hierro y fuego i era la divisa de los predicadores
dei cristianismo . Mataran a diestra y siniestra , destruyeron
todo 10 que encontraron y llevaron todo el oro que haba. Otro
espanol , llamado Pizarro, hizo en el Per lo misino con los
incas, otro pueblo civilizado, muy adelantado que exista all
(108)
Las lecciones de este narrador las aprendan bien los
personajes que, a semejanza de lo que se quera que se pasase
con los lectores, preguntan a quien les contaba la historia:
- Pero, l, qu diferencia hay, abuelita, entre estos hombres y
aquel tila, o aquel Gengis Khan, que march hacia Occidente
con los terribles trtaros, matando, arrasando y saquendolo
todo l,(1l0)
A esta tan sencilla cuanto actual pregunta, le contesta
Dona Benita ,la abuela tantas veces en la obra de Lobato alter
ego deI escritor :
8 Nunes, Cassiano (org),
Monteiro Lobato vivo. RJ.
MPM Propaganda / Record
1986, p. 122
9 Se trata de una adaptacin dei
libro Child's history of the
world de Y.M.Hiller , publicada
en 1933 en Brasil, y que
alcanzara 9 ediciones hasta
1943. En 1947 la versin
espaiiola de este Iibro se publica
en dos volmenes por el
editorial argentino Arnericalee.
Unacuartaedicin (traduccin
deM.J. de Soza) sale alaluzen
1956 por el editorial Losada (
copyright by Editorial
Americalee) . Ias citas vienen
de esta edicin .
De So Paulo al Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
10 La carta es citada por Edgar
Cavalheiro que, infelizmente,
no indica la fecha ni la
localizaci6n de las cartas; pero
la veracidad de la fuente es
confinnada por otras cartas
depositadas en la Unicamp, que
tambin se refieren al abortado
proyecto peruano de Monteiro
Lobato.Ell4deenerode 1947,
porejempl0, e1 escritor informa
a su amigo Rangel que "(. .. )
Habiendo ya visto y hecho
amistad con los rboles de
Buenos Aires, puedo mudarme
de pas y ando pensando en eso.
Escogiendo uno. Por el
momento Per est en primer
lugar ( ... )"
- La unica diferencia es que la historia ha sido escrita por los
occidentales, y nada ms natural que lleven el agua a su molino.
De ah que nuestros historiadores consideren como fieras a
los trtaros de Gengis Khan y como heroes a los conquistado-
res europeos. ( 110)
Se ve asi muy temprano en su obra, la comprensin critica
de Monteiro Lobato respecto la historia de Latinoamrica. Pero
es cu ando todava viva en la Argentina, que el da retoques finales,
y casi inesperados, aI antiguo proyecto de una literatura de identidad
latinoamericana. En esta nueva versin de la antigua utopa, la
latinoamericanidad lobatiana va ms all deI intercambio deI mer-
cado editorial latinoamericano. Lobato , desde Buenos Aires,
propone la latinoamericanizacin de su discurso literario y se
prepara para ello.
( ... ) me voy aI Peru. Esto aqu, de la misma forma que ah, no
tiene profundidad. Son dos pases que comenzaron con la llegada
dei europeo. Pero el Peru ya tena mil metros de profundidad
cuando el europeo lleg. De modo que all existe una
superposicin de civilizaciones y razas - cosa mucho ms
interesante que este inrnigracionismo de aqu y de ah.
Como se ve la inspiracin para este salto cualitativo
latinoamericano de su proyecto literario viene deI Peru 10 :
( ... ) En estos tres meses me voy ai Peru, a vivir por all algn
tiempo, a incarme, llamarme, guanacarme, chinchilarme, etc.,
y escribir rni mayor libro: mi pandilla de all deI Sitio, hundida
en el Peru de Atahualpa, presencia el drama de la conquista por
los fascinerosos Pizarro y Almagro, los nazistas de la poca.
( ... )
Incarse, llamarse, guanacarse, chinchilarse es una linda
metfora deI ritual de iniciacin latinoamericana para un escritor
brasilefo: pues solo despus de incarse, guanacarse, llamarse
y chinchilarse, Monteiro Lobato se cree listo para escribir un
libro sobre
( ... ) toda la tragedia de la destruccin de los incas, aztecas y
mayas por los espaoles invasores.l,La historia de Amrica se
105
106 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sabe por boca de quin? iDel Aconcagua! Slo un Aconcagua
puede tener la necesaria ausencia de nimo para contar la cosa
como realmente fue, sin falsedades patriticas, nacionalistas,
raciales o humanas ... Cp. 233)11 .
Infelizmente, el plan no se realiza. Lobato no viaja aI Peru,
ni escribe ellibro anunciado. Deja la tarea inconclusa para que
otros la realicen, tal vez hoy, quizs nosotros . Dicho sea de paso,
aI recontar desde otra perspectiva la tragedia brasilef.a de Canu-
dos, tal vez Vargas Llosa haya dado un gran paso en ese sentido
de nosotros contarmos la historia los unos de los otros. EI caso es
que Monteiro Lobato regres a So Paulo y muri un af.o despus,
el 04 de julio de 1948.
No obstante no haber escrito la historia de Amrica por boca
deI Aconcagua, esto no impide que Lobato ocupe un lugar impor-
tante en la historia de la literatura de esta Amrica. En la historia
de la literatura de la
Amrica deI Sur
Amrica deI Sol
Amrica de Sal,
para hablar como un contemporneo de Monteiro Lobato, Oswald
de Andrade. As, bien antes de la formalizacin de las teoras de la
globalizacin, Monteiro Lobato parece haber sido un escritor
latinoamericano que percibi la fecundidad de la mirada oblicua
con que, observndonos los unos a los otros, vamos construyendo
una identidad que , sin embargo sus mltiplas fauces, tiene en
cada una y en todas sus verti entes la solidez fuerte deI Aconcagua
o deI Po de Acar. Identidad de la cual los estudios literarios
tienen que dar cuenta lo que puede empiezar por construirse una
base de datos de las relaciones letradas y literarias latinoamericanas
y por inventar la epistemologa de la oblicuidad.
II Cavalheiro, Edgar, Monteiro
Lobato: vida e obra. Tomo 2.
So Paulo: Editora Brasiliense.
3'. Ed., 1962, p. 233.
Euclides da Cunha e Vargas Llosa:
dois olhares sobre Canudos
U ma sinttica introduo
Dlio Combeiro
(UERJ)
Nunca ser demasiado avivar-se a memria para o
terrvel massacre de Canudos, que em 5 outubro de 2007 comple-
tar 110 anos, para a figura de seu idealizador e a de seus seguido-
res. Muitos ttulos encontrar o pesquisador, ou um simples lei-
tor, cuja curiosidade intelectual o leve indagao. Desde o apa-
recimento de Os sertes, surgiram numerosos documentos - al-
guns ficcionais -, que, por vezes, fixaram alguns esteretipos a
respeito da rica temtica, mas, no se pode negar, acumulam im-
portante material de estudo. So inmeras crticas a uma possvel
influncia - o comentado Facundo, de Domingo Sarmiento -;
dura dico euclidiana em julgar o fenmeno - o Conselheiro e
sua gente so casos patolgicos -; alm de tantos outros instigantes
juzos. Alm disso, ao mesclar segmentos interpretativos, outros
de cunho criativo, com forte dose de imaginao sobre o fato,
provoca classificaes, que a situam como uma obra hbrida, cir-
culando entre a Histria e a Literatura. Raros textos, entretanto,
conseguiram subtrair-se influncia da anlise de Euclides e, sem
dvida, o autor denunciou o crime cometido contra uma coletivi-
dade, tambm provocou uma interpretao do Brasil.
Para esse breve trabalho de marcas comparatistas,
cotejam-se trechos de Os sertes com os d' A guerra do fim do
mundo, de Vargas Llosa, obra tambm extensa e cerrada. Pela
impossibilidade de nele comentarem-se as inmeras articulaes e
cenas da trama complicada e bastante enovelada, privilegiar-se-
o algumas passagens onde se evidenciam mais vivamente a refle-
107
108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
xo de Llosa sobre Canudos. Focaliza-se o dilogo respectiva-
mente entre as personagens ficcional e histrica Galileu Gall e frei
Joo Evangelista. Pretende-se refletir sobre a representao lite-
rria dos elementos evidenciados nas primeiras linhas desse en-
saio.
Uma tentativa de cotejo
Quando esteve no Rio de Janeiro, ao ser entrevistado sobre
por que escrevera uma obra sobre o serto brasileiro, Vargas Llosa
explicou que fizera um roteiro para a Paramount, em parceria
com Rui Guerra. No se realizou o filme - La guerra particular
ou Los papeles deI infierno - mas, desejando escrever a "Guerra
e Paz" latino-americana, ele transformou o roteiro em livro. Des-
lumbrado com Os sertes, assinala ter sido a obra fator importan-
te para escrever A guerra do fim do mundo, confessando que,
atravs dela, o trgico episdio no fora completamente esqueci-
do, como outros violentos choques havidos na Amrica Latina.
Sobre Canudos, lera imensa bibliografia, assinalando a falta
de representatividade dos vencidos nos textos pesquisados. Por-
tanto, em seu reescrever palimpsstico, retocando, sua maneira,
o mosaico euclidiano, entrelaou vozes representativas de nveis
sociais, econmicos e culturais. A escrita de Vargas Llosa articula
acontecimentos verdicos j longamente descritos por Euclides
da Cunha, porm, mesmo tendo como fonte a famosa obra, ques-
tiona o texto ncleo e abre imaginativos vos, no s na constru-
o da narrativa, bem como nos meandros da fbula. Recriando,
por outro vis, a epopia daqueles seres despossudos do arraial
baiano, Llosa pintou um monumental painel de imagens - misto
de crnica e situaes factuais - ao repensar, em perspectiva cr-
tica/criadora, o que chamou de um "mal-entendido nacional".
Munido do distanciamento crtico, ao inverso de Euclides, devido
separao temporal quanto s ocorrncias de Canudos, vai mes-
clando reflexes dialticas s novas faces e vises do que teria
sucedido poca, por meio de um narrador onisciente e inmeras
personagens. Desse modo, no mundo contemporneo, sua escrita
ilumina, com agudeza, aquele sangrento episdio da Histria do
Brasil.
Prmio Ernest Hemingway de 1985, essa representao da
Euclides da Cunha e Vargas LJosa: dois olhares sobre Canudos
epopia brasileira - uma alegrica luta entre ordem e transgresso
- entrelaa experincias pessoais de diversas personagens verda-
. deiras e fictcias, que emergem na trama, enredadas em monta-
gem bem atual. Os episdios sempre fragmentados retardam a
trama, modificam os focos narrativos, em alternado jogo de aes,
que, pouco a pouco, pelos vrios pontos de vista introduzidos por
um nico narrador onisciente, vo-se fechando e concluindo, em
micro estruturas aparentemente estanques. Embora independen-
tes, elas se coligam por mestria tcnica: na concepo de Baktin,
trata-se de uma escrita polifnica, em que vozes em contraponto,
tal qual na partitura musical, harmonizam-se, unem-se, em igual-
dade de importncia, sem haver sobreposio hierrquica de dis-
curso. Com essa tcnica Llosa sugere ao leitor a impossibilidade
de a verdade sobre aqueles fatos ser totalmente conhecida.
O tempo narrativo reflete a fragmentao daquele universo
em mltiplas linhas cronolgicas, estruturadas em constante fluxo
de idas e vindas, com imagens focadas/desfocadas, mas que se
interligam num "plot", ou seja, em uma intriga subjacente, nervo
da ao que tudo comanda: a histria de Canudos e a energia
magnetizadora do Conselheiro. Pode-se dizer que, na obra, a si-
nuosidade temporal (re)trabalha os fatos, na tentativa de
compreend-los, sem estabelecer vises binrias redutoras, ten-
tando criar um tertius inclusivo e auxiliar na leitura plural do ho-
mem em situao.
A arquitetura textual sugere uma estrutura mutante - de
certa forma caleidoscpica - pois os episdios amarram/desamar-
ram, em sucesso cambiante de quadros, impresses e sensaes,
produzindo, em sntese, a ao global, deflagradora da questo
poltica e religiosa nacionais. A narrativa, portanto, prima pela
ausncia de um ponto de vista nico ou exclusivo, com seus arti-
fcios desconstrutores, ramifica-se em histrias particulares coli-
gadas grande Histria. Tudo emerge do ataque a Canudos que,
no relato, est acontecendo, bem como da influncia que a expe-
dio ao arraial suscitou na vida de cada personagem.
Apesar de desencadeador da "guerra do fim do mundo",
Conselheiro no assume a fora da enunciao. Tudo o que se
sabe a seu respeito afIora indiretamente pela descrio, atos ou
dilogos de certas personagens que gravitam pelas bordas do re-
lato. Ancorada na Histria e na fico, A guerra do fim do mundo
109
110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
conserva alguns nomes histricos da obra euclidiana, entre eles,
Moreira Csar, que aparece em ao, como representante da or-
dem. Nela qualificado de temperamento "fantico" e "obsessi-
vo": acusaes freqentes, em Os sertes, mas em relao ao
Conselheiro. Cria tambm outros, de conotaes no raro irni-
cas ou de marcas universalmente expressivas, que, por analgicas
ilaes, suscitam reflexo pelo pensamento renovador que demons-
tram. Expressivo exemplo Galileu Gall, cujo nome composto
lembra dois cientistas: Galileu, fsico, astrnomo e escritor italia-
no do sculo XVI-XVII (1564-1642), introdutor da luneta na as-
tronomia, alm de outras inovaes cientficas e seu
posicionamento diante da Inquisio; Gall, o mdico alemo Franz
J osef Gall (1758-1828), criador da frenologia, teoria que estuda o
carter e as funes intelectuais e humanas, baseando-se na con-
formao do crnio.
Alis, na obra de Vargas Llosa, essa personagem - amlgama
de dois cientistas - desempenha relevante papel crtico. Com a
luneta de seu olhar inquiridor, tudo para ele objeto de pesquisa,
de questionamentos da ordem lgica e social. Na novela, ele
tambm frenlogo, alm de um revolucionrio politicamente
engajado, com posies anarquistas, tambm correspondente
de um jornal francs, cujo nome Etincelle de la rvolte j acena
para a prpria centelha da lucidez, o grmen do fogo, o estopim
clarificador da rebeldia, atravs de idias desconstrutoras. O
iconoclstico Galileu Gall parece ser um alter ego do narrador,
que, por meio deste, exercita sua posio diante dos fatos, valori-
zando os atos libertrios daquele herege nos confins de Belo Monte.
Entre inmeros da galeria imaginria de Llosa, h o Jorna-
lista Mope, irnico epteto, transformado em onomstico, pois
no desenrolar da narrativa jamais dito o seu verdadeiro nome.
Sem dvida, o autor pontua tambm sua crtica em relao ao
jornalista Euclides da Cunha, ao enxergar, com lentes deturpadas/
desfocadas, a veracidade das ocorrncias, segundo a opinio
subliminar que mina do texto. Gall enxerga melhor do que o Jor-
nalista Mope, que forado a fugir chega ao arraial completamen-
te desvinculado com o mundo de Canudos. Ele deseja escrever
um livro para relatar a guerra, porm perdera os culos - portan-
to, no via - e ficara sem pena e sem tinta durante a fuga - logo,
no escrevia. Por isso, lembra Euclides, criticado por sua viso
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
mope da realidade de Canudos.
Em diversificadas elucubraes, Llosa transita por vrios
patamares em tomo da Histria acontecida. Apreende o proble-
ma, contorna-o atravs de olhares diversificados, inverte-o em
choques de abordagens que se "dialetizam" na narrativa in fieri,
ou seja, no prprio processo de escrita. Em meio s entrelinhas,
nas dobras e subterrneos do discurso, mltiplas so as peripcias
das personagens impregnadas de situaes crticas.
No ludismo verbal de tempos e de espaos acoplados, deli-
neia-se na obra o comportamento e a psicologia do Conselheiro,
caracterizando seu desempenho no grupo, como organizador po-
ltico - o mito do heri civilizatrio - como orientador espiritual
- o mito do guardio do sagrado congregador.
O narrador abre o texto com o retrato fsico do Conselhei-
ro, aludindo a seu aspecto alto e magro que parece "estar sempre
de perfil". Os mesmos trajes usados aproximam-no do perfil
eternizado por Euclides da Cunha: a mesma tnica de azulo e as
sandlias de pastor. Os detalhes focalizam parte de seus hbitos
simples, desprovidos de qualquer preocupao corporal, chegam
ao famoso epteto - Conselheiro - que lhe deu fama e, aos pou-
cos, compe-se a aura mtica do chefe poltico-religioso. Em se-
guida ao primeiro retrato fsico e psicolgico, tem-se lrica descri-
o do ambiente natural dos vilarejos do serto, hora do
crespculo, do qual participavam os que se sentiam amparados
por suas palavras. Nesse momento, todos o "escutavam em siln-
cio, ( ... ) o interrompiam para tirar dvidas milenaristas,
escatolgicas. Terminaria o sculo? Chegaria o mundo em 1900?"
(VARGAS LLOSA, 1987,p.17). Essas e outras aluses fornecem
subsdios para uma interpretao de ele estar ligado experincia
do sagrado, no s pelas previses e anncios das desgraas dos
ltimos dias, mas pela fora de sua presena coroada de intensa
atmosfera mstica. O epteto de Conselheiro, que Antnio Vicente
Mendes Maciel recebeu, tambm corresponde justia divina e
humana, reunindo as funes essenciais de conselheiro do esprito
e da carne. Alm da fora carismtica que exercia sobre o outro,
ele atraa seus ouvintes - j seguidores ou no - por meio da po-
tncia da linguagem que empregava em seus sermes.
Euclides da Cunha afirmou que na apreciao dos fatos o
tempo substitui o espao para a focalizao das imagens e que o
111
112 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
historiador precisa de certo afastamento dos quadros que con-
templa, desta forma, nota-se a preocupao em compor um qua-
dro mais fiel possvel dos acontecimentos j ocorridos. Sem
aprofundarem-se opinies de que sua obra suscita vrias interpre-
taes quanto sua classificao, Euclides preocupou-se em trans-
mitir um relato compromissado com a verdade impessoal dos acon-
tecimentos, com a histria e no imagin-los - oposto a Vargas
Llosa, que, longe do espao e do tempo de Canudos, acrescentou
a verdade ficcional da trama romanesca realidade histria do
administrador daquela cidade santa. A vida material em Canudos
era dividida por tarefas entre os adeptos, porm passava obriga-
toriamente pelo crivo do lder, ratificando sua funo de chefe
religioso e de legislador poltico. No entanto, interferir no mundo
imaterial, no sobrenatural, apenas o Conselheiro poderia fazer,
sobretudo nos tempos de luta contra o Anticristo, pois eram dele
as profecias do que haveria de acontecer. Ele j revelara em seus
sermes que as foras do "co" viriam prend-lo e passar na faca
toda a cidade. Por isso, com as perseguies das tropas, com o
"comeo do fim do mundo", toda Canudos se uniu em tomo do
Conselheiro.
Nos dois escritores, encontra-se referncia tolerncia do
Conselheiro quanto ao amor livre e pregao contra a Repbli-
ca, "porque o dominador, se no estimulava, tolerava o amor li-
vre. Nos conselhos dirios no cogitava da vida conjugal, traan-
do normas aos casais ingnuos" (VARGAS LLOSA, 1987, p.146).
Tambm no texto de Llosa, acentua-se o fato de os seguidores
negarem o casamento civil e praticarem, com base nas leis pro-
postas pelo chefe, algo que a personagem Llis Piedade - repro-
duzindo a fala do consenso - comenta ser promscuo e represen-
tar a instituio do amor livre. A personagem acrescenta que, com
tal prova de corrupo e de heresia, as autoridades expulsaro os
fanticos. Tal a viso preconceituosa da personagem, nas fre-
qentes discusses dialticas que atravessam o livro, engrandeci-
do pelas possibilidades de diferentes leituras dos fatos.
A rebeldia quanto s normas do estado civil salienta-se nos
dois autores, confirmando-se acentuado interesse por temas de
insubordinao libertria de minorias. No caso dos iconoclastas,
o repdio s leis da Repblica significava estarem apenas preocu-
pados com as de Deus, confirmadas no casamento religioso. Para
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
eles, era de vital importncia a unio frente a Deus e no diante
dos homens.
Quanto rebeldia, Canudos descrito como reduto de
revoltosos durante o relato de Oall sobre encontro com Frei Joo
Evangelista do Monte Marciano - participante do famoso Relat-
rio sobre os acontecimentos. Nas consideraes do revolucion-
rio, Canudos sugere, dependendo do olhar que o aborde, um ut-
pico falanstrio, maneira de Fourier, ou refgio de insurretos
desobedientes das leis. Em comentrio ao clebre Relatrio, o
jornalista e frenlogo coloca a viso do Frei, que, enviado pelo
Arcebispo da Bahia ao povoado devido a denncias de heresia,
fica assustado e enojado com o que viu. Porm, refletindo sobre o
relato do capuchinho, Oall conclui que, logicamente, por causa da
condio de religioso, sua experincia no arraial deveria ter sido
difcil de compreender, at mesmo amarga. Para suas concluses
norteadas por princpios libertadores, diz Oalileu Oall que:
Para um ser livre o que o Relatrio deixa entrever por entre
suas remelas eclesisticas apaixonante. A pretexto de refrear
o casamento civil, o povo de Canudos aprendeu a unir-se e a se
desunir livremente sempre que homem e mulher estejam de acor-
do, pois, ( ... ) seu condutor e guia - a quem chamam de Conse-
lheiro - ensinou-lhes que todos os seres so legtimos pelo sim-
ples fato de nascer (VARGAS LLOSA, 1973, p. 56).
Sem dvida, ele um advogado das normas circulantes em
Canudos, comunga com o iderio da harmonia entre os seres en-
voltos pelo mesmo desejo. A entrevista do frenlogo com o
capuchinho a oportunidade de reforar a geografia libertria de
Canudos, opondo-se, ento, idia de distopia eternizada por
Euclides, ao utilizar famosos sintagmas depreciativos como "urbs
monstruosa", "refgio de fanticos", e "civitas sinistra do erro",
Tal encontro fictcio, entre Oall e o padre, realizado no refeitrio
do Mosteiro comentado com entusiasmo pelo correspondente;
confirmaria, tambm, nesse dilogo, a opinio de que em Canu-
dos a gente humilde e sem experincia praticava coisas que os
revolucionrios europeus consideravam necessrias para implan-
tar a justia na Terra. Sublinha-se aqui um dos veios essenciais: os
seres so mobilizados religiosamente pelo anseio de eqidade so-
cial. Em Euclides, o lder, que no escondia o horror que tinha
113
114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
pelo sexo feminino, chegando a no encar-las, comparado ao
frgio Montano, no que tange a restries impostas aparncia
fsica das mulheres, proibidas de se cuidarem. J os seguidores, a
uma "farndola de vencidos da vida, gente nfima e suspeita, aves-
sa ao trabalho, heris da faca" (CUNHA, 1993, p.120).
O relato do capuchinho enfatiza haver no arraial uma multi-
do de seres esqulidos, cadavricos, amontoados em cabanas de
barro e palha, alm de armados at os dentes "para proteger o
Conselheiro, que as autoridades tinham tentado matar antes"
(V ARGAS LLOSA, 1987 ,p.57). O padre assegurava ter visto em
Canudos facnoras perigosos, mencionando para Galileu o nome
de Joo Sat, um dos tenentes do Conselheiro. Tal constatao
estarrecera o religioso que, em misso ao lugar, interpelou o pr-
prio bandido sobre a existncia de delinqentes numa aldeia que
se diz crist. O padre recebeu como resposta que o desejo do
Conselheiro era o de faz-los homens bons e que se algum dia rou-
baram ou mataram foi pela condio em que viviam. Se fossem
banidos dali cometeriam novos crimes. Alm disso, entendiam a
caridade do chefe como a que Cristo praticara. A declarao entusi-
asma o anarquista, que a ela se refere em carta endereada a revolu-
cionrios europeus: "Essas frases, companheiros, coincidem com a
filosofia da liberdade" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 57).
A novela de Llosa, portanto, desenha uma geografia da li-
berdade e da fartura, sedimentada no mito de um espao utpico,
criado literariamente com esse nome por Morus e, de certa forma,
materializado em Canudos por seus habitantes, pois respeitavam
o direito do outro e os bens coletivos. O arraial enfocado como
um lugar de paz, abenoado, recebendo os seguidores o mesmo
tratamento que Jesus Cristo dispensara a seus fiis, sugerindo a
aproximao do Conselheiro com o Filho de Deus. Com isso, a
narrativa desenha a figura do lder como um protetor, um salva-
dor - um soter - levando sua palavra a fim de redimir no apenas
os sofrimentos materiais, a misria, mas o crime, o pecado. Se em
A guerra do fim do mundo, Canudos aparece como terra de aco-
lhida e aperfeioamento espirituais, incrustada numa geografia pro-
tetora, salvtica e sobretudo revolucionria, onde o chefe legisla-
va em leis fundamentadas no ius profano e no fas divino, em Os
sertes, a sociedade foi interpretada como bastante negativa. Gall
engrandece os seguidores, comenta que as pessoas de Canudos
::c:dides da Cunha e Vargas L1osa: dois olhares sobre Canudos
chamam-se a si mesmas de jagunos, palavra que quer dizer re-
voltados e que para elas Anticristo e Repblica so a mesma coi-
sa, considerando as palavras do lder religioso uma verdadeira
msica revolucionria para seus ouvidos. O novo regime, pertur-
ba a estrutura consignada, considerado o responsvel por todos
os males, alguns abstratos, sem dvida, mas tambm pelos con-
cretos e reais, como a fome e os impostos. J em Euclides, jagun-
o no possui a mesma conotao: no texto de Llosa recebe uma
carga romntica. O significado de revoltado, atribudo palavra
jaguno na obra do peruano, no encontra aproximao na do
brasileiro, que o representa como um bandido. Deve-se tambm
considerar que a interpretao de Gall torna a palavra
engrandecedora e heroicizante, pois, etimologicamente, jaguno
no remete a revoltado. Jaguno prende-se a zaguncho, uma arma
de arremesso, semelhante azagaia. O valor semntico atribudo
ao termo liga-se ao defensiva da chamada Guarda Catlica do
Conselheiro e de seus fiis, tratados como fanticos e revolucio-
nrios, em A guerra do fim do mundo e como facnoras, em Os
sertes.
Na crtica fala conservadora do capuchinho, Gall duvida
de que ele e sua ordem sejam grandes entusiastas do novo, pois, a
Repblica, paraso de maons, significou um enfraquecimento da
Igreja. Para o religioso, os conselheiristas formavam uma seita
poltico-religiosa insubordinada contra o governo constitucional
do pas, Canudos era um Estado dentro do Estado, pois l no se
aceitavam as leis, as autoridades no eram reconhecidas nem o
dinheiro da Repblica admitido. Preocupado com as mudanas no
vilarejo, garantia que, da mesma forma com que se institura a
promiscuidade de sexos, tambm se estabelecera em Canudos a
promiscuidade de bens: tudo era de todos. Para Gall, contrrio a
essa viso, o Conselheiro praxilizava idias sociais novas no ser-
to, ainda que to antigas no esprito humano. As "novas" idias
sociais, segundo o revolucionrio, encontravam-se taticamente ve-
ladas sob pretextos religiosos, devido ao nvel cultural dos
conselheiristas. Ao final de uma carta, ele pergunta aos destinatri-
os se no era notvel que no fundo do Brasil um grupo de insurretos
formasse uma sociedade em que se aboliu o casamento, alm do
dinheiro; onde a propriedade coletiva substituiu a individual.
Fiel a ideais polticos reformadores, afirma no participar
115
116 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
da consternao de Frei Marciano, quanto aos fenmenos obser-
vados em Canudos, pois o que experimentava com a concreta
realizao de uma possvel utopia na Terra era "alegria e simpatia
por esses homens graas aos quais, dir-se-ia, no fim do Brasil,
renasce de suas cinzas a Idia que a reao acredita haver enterra-
do na Europa no sangue da revolues derrotadas" (VARGAS
LLOSA, 1987, p.59).
Portanto, a partir da fala de uma personagem fictcia, Galileu
Gall, e de uma outra histrica, Frei Marciano, constri-se no tex-
to literrio, atravs de dialtico questionamento, a figura
emblemtica do Conselheiro conforme a concepo mtico-
messinica, quando um salvador viria para exercer o poder religi-
oso e o poltico em uma Terra desprovida da dor e do mal. Em
sutil intertextualidade com as lendas apocalpticas do fim do mun-
do e com a escrita de Os sertes, Vargas Llosa retoma, em vrias
passagens, o filo mtico to difundido na cultura luso-brasileira,
oriundo da Pennsula Ibrica, desenvolvido, sobretudo, por
Bandarra, nas Trovas, e por Vieira, em A histria do futuro.
Retornando-se ao foco em que Gall se manifesta com insis-
tentes reflexes questionadoras, tem-se, em outra carta, remetida
aos mesmos correligionrios, relatos concernentes a experincias
junto a homens do povo, defensores dos objetivos do "santo guia".
Comenta a vitria dos fiis contra os soldados do governo, diz
que os acontecimentos constatados de que os jagunos derrota-
ram cem soldados que marchavam contra Canudos "confirmavam
os indcios revolucionrios". Contudo, acrescenta, refletindo so-
bre a estratgia dos seguidores, que intuies e aes corretas se
misturavam com supersties inverossmeis. Deste modo, apesar
de entusiasmo pelas prticas daqueles homens rudes, ele conse-
gue emitir dialtica viso, situando-se entre dois horizontes: lou-
va as corretas aes, mas vislumbra arraigados aspectos supersti-
ciosos entre os fiis daquele cenobita. Em certa medida, nesse elo
de uma prxis concreta, desconstrutora do status quo vigente
concomitante a aspectos arcaicos de arraigadas crendices, reani-
ma-se, na escrita de Llosa, a prpria ambincia em que eclodiu a
utopia do Conselheiro: em Euclides, "um infeliz [que] destinado
solicitude dos mdicos, veio, impelido por uma potncia superior,
bater de encontro a uma civilizao, indo para a histria como
poderia ter ido para o hospcio" (CUNHA,1993, p.120). Quanto
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
117
a supersties, a intuies dos conselheiristas convm notar seus
comentrios cientificistas sobre a dbia psicologia do grupo:
o cl tumulturio de Antnio Conselheiro ( ... ) continuou a
marcha do desnorteado apstolo, pervagando no serto. ( ... )
No cogitava de instituies garantidoras de um destino na
Terra. Eram-lhe inteis Canudos era o cosmos ( ... ) transitrio
e breve: um ponto de passagem terminal, de onde descampariam
sem demora ( ... ) (CUNHA, 1993, p. 36).
Demonstra-se, assim, a diminuio de valor na anlise do
cl do Conselheiro. Tem-se o perfil "tumulturio", em que o con-
dutor se configura um homem sem rumo, um "desnorteado aps-
tolo". Para Euclides, Canudos no possui a chave soteriolgica,
no havendo ali uma conjuntura estvel, garantindo a seus pros-
litos eficaz apoio material. Aquele topos no seria um eterno cos-
mos, mas um caos transitrio e breve. J em Vargas LIosa, supers-
ties e intuies so motivos que participam do trao particular
da psicologia do grupo de maneira positi va, desprovida de lingua-
gem cientificista, caracterizadora do pensamento euclidiano.
Ainda por intermdio de GalI, em carta aos amigos, tem-se
a tentativa de questionamento racional, porm, no depreciativo,
segundo a lgica do revolucionrio. Ele vai atrs de todos os ind-
cios clarificadores do problema, sem pretender a Verdade absolu-
ta. Logo, sem descartar quaisquer hipteses, questiona:
So os smbolos religiosos, msticos, dinsticos, os nicos ca-
pazes de sacudir a inrcia de massas submetidas h sculos
supersticiosa tirania da Igreja e, por isso, utiliza-os o Conse-
lheiro? Ou tudo isso obra do acaso? Ns sabemos, compa-
nheiros, que na histria no h acasos, e por arbitrria que
parea, h sempre uma racionalidade encoberta atrs da mais
confusa aparncia. Imagina o Conselheiro a perturbao hist-
rica que est provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um
espertalho? Nenhuma hiptese descartvel, e, menos que as
outras, a de um movimento popular espontneo, no preme-
ditado. A racionalidade est gravada na cabea de todo homem,
mesmo na do mais inculto ( ... ) (VARGAS LLOSA, 1987, p. 93).
Advogando a racionalidade, alis tnica que permeia o dis-
curso de Euclides, refletindo as coordenadas dos fins do sculo
118 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
XIX, Gall utiliza esse artifcio lgico atravs de teses e antteses,
pois diz que nenhuma hiptese descartvel, a fim de ratificar o
valor de Canudos e de seu fundador. Valoriza, entretanto, uma
racionalidade "outra", diferente do pragmatismo cartesiano que
se manifesta na observao de Euclides daqueles "sertanejos bron-
cos"; abre, assim, a possibilidade de que se perceba com novo
olhar os que no comungam a fala oficial. A tentativa de Gall de
compor uma explicao convincente e no preconceituosa, para
aqueles fatos advindos de um chamado proftico, de marcas
escatolgicas, de um imaginado corte da Histria pelo lder e que
culminaram na formao da cidade. Em Os sertes, o arraial con-
cretizou a irracionalidade geogrfica pelas mos de um pietista
ansiando pelo reino de Deus e abrigaria uma horda de loucos.
Sublinhando a irracionalidade e a psicose coletiva, os seguidores
teriam sido atrados para l pelos "despropsitos do Santo
endemoninhado" cuja misso pervertedora levou-os a um "fana-
tismo que no tem mais limites". O lugar era visto como uma
distopia insana, "uma cidade dobrada por um terremoto", um
"ddalo desesperador" e um "baralhamento catico" que "traam
a fase transitria entre a caverna e a casa (00') traduzindo, mais do
que a misria do homem, a decrepitude da raa" (CUNHA, 1993,
p. 232-239). J o texto de Llosa fornece outros pontos de obser-
vao contrastantes, quanto aos elementos humanos e geogrfi-
cos encontrados em Os sertes.
Eternizando por meio do texto ficcional a compreenso do
fenmeno como um todo harmonioso, l-se no autor peruano que
"a diversidade humana coexistia em Canudos sem violncia, em
meio a uma solidariedade fraterna e um clima de exaltao que os
escolhidos no haviam conhecido" (VARGAS LLOSA, 1987, p.
97). Em Llosa, no se encontra aluso ao "diagnstico" euclidiano
dado a Canudos de loeus horrendus da loucura e do banditismo.
A populao no considerada uma turba de "temperamento
vesnico" guiada por um chefe "dominador incondicional", por
um "grande desventurado" e "retrgrado do serto". O texto de
Llosa alude sim a uma heterclita comunidade de necessitados e
de abandonados: ndios, negros, brancos, mulatos, homens consi-
derados de bem - ou mesmo bandidos - todos juntos em uma
comunidade de destino, unidos em constante harmonia de pensa-
mento e de objetivos, como desejava Charles Fourier. Eram co-
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
mandados pelo Conselheiro, que delegava Guarda Catlica a
defesa do territrio sagrado e, como diz o narrador sobre o "san-
to", o santurio atraa peregrinos de todo o mundo, tambm a
ateno do Anticristo Repblica.
Em A guerra do fim do mundo, a fala depreciativa encon-
trada na obra de Euclides assumida por personagens da classe
dominante e do poder constitudo. Um dilogo entre Moreira Csar
e o baro de Canabrava - rico latifundirio da regio - retoma
idias contidas em Os sertes quanto aos "escolhidos". Note-se
que o famoso coronel da Repblica fala dos seguidores como he-
reges dementes, incendirios e ladres de fazendas, que matavam
com balas explosivas e fuzis modernos. No entanto, o baro, sus-
peito de proteger os "jagunos", desmente as afirmaes, decla-
rando que tudo no passava de uma manobra para se fazer todo o
pas acreditar que Canudos significava aquele perigo to propalado.
Acrescenta, ainda, a seus argumentos:
Esses miserveis no tm armas modernas de nenhum tipo. As
balas explosivas so projteis de limonita, ou hematita parda
se prefere o nome tcnico, um mineral que ( ... ) os sertanejos
usam em seus bacamartes h muito tempo. ( ... ) Os fuzis ingle-
ses, sim. Foram trazidos por Epaminondas Gonalves, seu mais
fervoroso partidrio na Bahia, e para nos acusar de aliana
com uma potncia estrangeira e os jagunos. E quanto ao es-
pio ingls de Ipupiar, ele tambm o fabricou, mandando as-
sassinar um pobre-diabo que, para sua desgraa, era ruivo. O
senhor sabia disso? (VARGAS LLOSA, 1987, p.92).
Mas a crtica atualizada, tendo como idneo apoio reflexivo
Ataliba Nogueira, repensou a perseguio ao Conselheiro e a des-
truio de Canudos. A partir de conceitos desenvolvidos pelo es-
tudo da reviso de Os sertes por A. Nogueira,
deduz-se no ser apropriado o ttulo de herege dado ao funda-
dor de Canudos. Antnio Conselheiro no pregava idias hete-
rodoxas. No pode ser chamado de gnstico, muito menos de
bronco, pois sabia ler e escrever, deixando obras de f cujo
lastro de raiz ortodoxa catlica. Ratifica-se, dessa forma, que
ele no se ops aos dogmas da Igreja, ( ... ) nunca se nominou
Messias, muito menos Salvador,( ... ) mas se negava a seguir
119
120 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ordens de seus representantes. Portanto no foi um dissidente
radical da Igreja romana, como afirmou Euclides da Cunha.
estudioso viu a dinmica do fenmeno captada, de alguma for-
ma, porum esprito pr-concebido. ( ... ) Quanto a possveis anseios
de esperanas escatolgicas ( ... ), seria possvel que tais fantasi-
as msticas circulassem no imaginrio coletivo dos conselheiristas,
da mesma forma que circularam em vrios grupos religiosos de
vrias pocas (CAMBEIRO, 2003, p. 468-470).
Tal linha crtica, seguida por Roberto Ventura, atribui
o ataque ao temor das classes dirigentes de que o arraiallibertrio
se tomasse ameaa regional e nacional do ponto de vista da pro-
priedade, alm de constituir-se em um Estado dentro do Estado,
como diz o capuchinho a Galileu Gall. Para R.Ventura, a destrui-
o de Canudos
se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que
a fatores polticos, como os conflitos entre faces partidrias
na Bahia, a atuao da Igreja contra a atuao pouco ortodoxa
dos beatos e pregadores e as presses dos proprietrios de ter-
ras contra a comunidade, cuja expanso trazia escassez de mo-
de-obra e rompia o equilbrio poltico da regio. (VENTURA,
1997, p. 90).
Assim, o dilogo entre o coronel da Repblica e o latifundi-
rio demonstra que o tema da propriedade fundamental, sendo
trabalhado em A guerra do fim do mundo. Tambm o dilogo
entre Gall e um determinado jaguno aborda a questo da terra
como ponto de honra para os proprietrios da regio se defende-
rem contra outras possveis investidas dos "conselheiristas fanti-
cos". Ao tentar explicar que a perseguio ao Conselheiro e a sua
Jerusalm eram uma defesa da burguesia contra o ataque de mi-
norias carentes propriedade privada, o jaguno negou ser esta
a verdadeira causa.
Para o ponto de vista daquele homem simples, o poder,
representado no coronel, enviara soldados porque os fiis esta-
vam construindo templos, visto que a Repblica queria acabar
com a religio, oprimir a Igreja, os fiis e todas as ordens religi-
osas. Pior ainda: institura o casamento civil. Replicando as afir-
mativas do conselheirista sobre a interpretao das causas da
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
guerra, Gall diz que
abolir a propriedade e o dinheiro estabelece uma comunidade
de bens, faa-se em nome do que quer que seja, mesmo no de
nebulosas abstraes, algo ousado e valioso para os deserdados
do mundo, um comeo de redeno para todos. E que essas
medidas desencadearo contra eles, cedo ou tarde, uma dura
represso, pois a classe dominante jamais permitir que frutifi-
que semelhante exemplo: neste pas h pobres de sobra para
tomar todas as fazendas. O Conselheiro e seus seguidores tm
conscincia das foras que esto acionando? (VARGAS
LLOSA, 1987, p. 92).
Confinuando o dilogo existente nas duas obras, tem-se tam-
bm a aluso ao movimento da Vandia, acontecido durante a
Revoluo Francesa. Esse sectarismo manifestado aos ideais re-
volucionrios do sculo XVIII, comentado pela personagem de
Vargas Llosa como movimento retrgrado, inspirado pelos pa-
dres, foi tambm objeto de comparao com as leis internas de
Canudos. Em Os sertes, Euclides da Cunha refere-se aos aconte-
cimentos de Canudos como "a nossa Vandia", aludindo a ela em
seu livro e tambm em um artigo na imprensa, a possveis "foras
monarquistas em luta contra a Repblica ainda jovem ... "
(ANDRADE,2002,p.122).
Canudos - historicamente um "divrcio trissecular entre o
litoral e o serto" (ANDRADE, 2002, p. 179) - em Llosa repre-
senta um autntico paraso concretizado, em Euclides, mesmo
guardando o carter de um den, o arraial definido como um
primitivo abrigo de fanticos e de bandidos. Para o peruano, o
Conselheiro retratado como agente de um singular, expressivo e
importante fenmeno de uma cidadela libertria, sem dinheiro,
sem patres, sem polcia, sem padres, sem banqueiros nem pro-
prietrios, um mundo construdo com a f e o sangue dos pobres
mais pobres. Comparando-se o texto de Euclides com o de Llosa,
mas respeitando-se as devidas diferenas de poca e de viso,
conclui-se, parcialmente, que em Vargas Llosa existe uma conti-
nuidade literria do mito do chefe e da utopia salvadora, smbolo
de um mundo sem maldade, sem doenas, nem misria. Tal espa-
o fora criado e liderado por Antnio Conselheiro, ser carismtico
capaz de preparar os fiis em uma comunidade sonhada, uma re-
121
122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
produo da Cana e da Jerusalm bblicas para o milnio to
esperado e propiciador da volta ao Paraso. Entretanto, Euclides
da Cunha cita nomes e termos correntes poca, para descrever e
esboar, ante o olhar de futuros historiadores, o que chamou de
um crime. Ele pretendia descrever o acontecimento sob a tica
da realidade lgica e acabou seduzido tambm por pretensas ma-
nifestaes sebastianistas encontradas em quadrinhas dentro dos
casebres e anotadas em sua caderneta, embora isso fosse refutado
por estudiosos, dentre estes, Ataliba Nogueira e Roberto Ventura.
Porm, cabe enfatizar que, se Euclides se preocupava
principalmente com o fato histrico, com a viso cientfica e raci-
onal do fenmeno, Vargas Llosa, ao contrrio, investiu na roma-
nesca recriao da histria, de forma diversa, imaginativa, que,
sem abandonar o factual, descreve literariamente o movimento de
Canudos. Confirma-se na obra do escritor peruano a perspectiva
mtico-sagrada do fenmeno e, por ironia, essa constatao se
estende, ainda, obra euclidiana, pois, ao assinalar crendices e
ignorncias mticas/msticas, sublinha a permanncia de algo pri-
mordial naquela sociedade. Inconscientemente e sob a gide da
cientificidade, que deseja demonstrar e esclarecer, em seu relato
histrico-cientificista deu relevncia suficiente aos mitos que tran-
sitavam no universo de Canudos. Perpetuava-se no texto dos dois
escritores o momento em que se consolidava, na sociedade arcai-
ca de Canudos, a metamorfose de temas confluentes, tais como:
milenarismo, heresia, utopia, messianismo. Desta forma, mani-
festaram dados armazenados no imaginrio cultural, captaram em
pocas diversas da Histria fenmenos que eternizaram as aes
humanas e canalizaram para o texto a emergncia do mito do che-
fe poltico-religioso.
Na tentativa de concluir sem esgotar possibilidades de ou-
tras futuras reflexes, pode-se dizer que a figura literria do Con-
selheiro, em Os sertes, negativa. O autor alude ao chefe como
um evangelizador fatal e sinistro. Interpreta ter sido o Conselhei-
ro quem arrastara aquela pobre gente para uma desgraa incalcu-
lvel. A obra, apesar de registrar o mito atualizado de uma figura
carismtica, carece da inteno engrandecedora, encontrada em
Vargas Llosa. J em A guerra do fim do mundo, focalizaram-se
tambm as supostas ligaes anti-republicanas de Canudos, de-
senvolvendo-se, da mesma forma, o mito do chefe poltico-religi-
::<.IClides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
oso simbolizado no sebastianismo corrente na Baixa Idade Mdia
portuguesa revigorado no lder. Diversas vezes, tem-se o relato
de que os fanticos sebastianistas queriam restaurar o Imprio,
com a ajuda do Conde D'Eu, dos monarquistas, da Inglaterra,
apesar de a literatura encaminhar a interpretao para um movi-
mento messinico capaz de fundar um "mundo s avessas": um
dos topoi literrios mais conhecidos (CURTIUS, 1996, p. 139-
144), onde no existissem dores.
Quanto ajuda extramuros enviada por anti-republicanos
para Canudos, est igualmente tratada. Durante um dilogo entre
Moreira Csar e Padre Joaquim, proco de Cumbe, a idia de
conspirao estrangeira apresentada em situaes ridculas para
o poder. O padre, preso por suspeita de levar munies para os
jagunos, gozava de toda a liberdade no arraial, rezando missa,
visitando sua companheira e filhos, sendo interrogado por isto
pelo obsessivo Coronel:
- Falemos das balas explosivas ( ... ) Entram no corpo e estou-
ram como uma granada, abrindo crateras. Os mdicos no ti-
nham visto feridas assim no Brasil- de onde vm? Algum mi-
lagre, tambm? ( ... )
- Que um padre tenha filhos no me tira o sono - diz Moreira
Csar. Preocupa-me, apenas, que a Igreja Catlica ajude os
facciosos. Diga o nome de outros sacerdotes que ajudam Ca-
nudos (VARGAS LLOSA, 1987, p. 254-255).
Durante o dilogo entre o coronel e o padre, aparece mais
uma vez a descrio psicolgica dos jagunos atravs da tica do
poder, sugerindo-se no perfil ambguo do seguidor a concepo
da natureza do chefe: louco, mstico, santo e bandido.
Durante o interrogatrio, as dvidas e os mistrios
envolvendo o Conselheiro tambm se mostram:
- O Conselheiro? - pergunta Moreira Csar, sarcstico. - Um
santo, sem dvida?
- No sei, Excelncia - diz o prisioneiro. Eu me pergunto todos
os dias, desde que o vi entrar em Cumbe, h muitos anos. Um
louco, pensava no princpio. ( ... ) Apareceram uns padres
capuchinhos, enviados do Arcebispo, para investigar. No en-
tenderam nada, assustaram-se, tambm disseram que era lou-
123
124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
co. Mas como se explica ento, senhor? Essas converses, essa
paz de esprito, a felicidade de tantos miserveis?
- E como se explicam os crimes, a destruio de propriedades,
os ataques ao Exrcito? - interrompe o Coronel (VARGAS
LLOSA, 1987, p.256-257).
Alm da interferncia das personagens Gall, Frei Damio e
Padre Joaquim, chega-se a uma configurao de Canudos, do
Conselheiro e dos fiis, atravs do Jornalista Mope, que apresen-
ta outro ngulo do fenmeno. Os pensamentos do Jornalista so-
bre tudo o que se passava e o futuro da guerra so investigados
pelo narrador.
Acompanhando os acontecimentos, estava presente no ins-
tante da conversa entre o Padre e o Coronel. Aps o encontro, o
Jornalista Mope foi tocado por questes instigantes, buscando
mentalmente respostas esclarecedoras. Ele faz indagaes para
compreender se Canudos podia ser explicado somente atravs dos
conceitos de conjuntura, rebeldia, conspirao, intrigas dos pol-
ticos que pretendiam a volta da Monarquia. Com as palavras do
padre tivera a certeza de que no era bem assim. Para ele, forma-
va-se o contorno de algo "difuso, desatualizado, incomum, algo
que seu ceticismo no o impede de chamar divino ou diablico ou
simplesmente espiritual" e que uma dvida sobre a verdade o leva
pergunta: "O que ento? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).
Uma concluso parcial
Justamente tal pergunta gerou, nos textos literrios e crti-
cos uma srie de conceitos os mais variados sobre o fato. Uma
polmica se instala quanto ao comportamento de alguns seguido-
res, encarregados da defesa de Canudos contra ataques externos.
Nas descries de Euclides da Cunha e Vargas Llosa, os adeptos
aparecem como guerreiros e se igualam na fora aos militares.
Todavia, considerado estranho um grupo de pessoas religiosas
apresentarem uma milcia armada. Os jagunos, em Os sertes e
em A guerra do fim do mundo, formaram a Guarda Catlica, am-
bgua designao das "tropas" conselheiristas. Os dois autores
atestam a existncia de uma brigada de defesa composta de fan-
ticos e de antigos perseguidos pela polcia. Outra observao
::udides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
feita a respeito de armamentos, citados pelo dois autores, mas
refutado, no incidente das madeiras, pela crtica revisionstica, em
especial de A. Nogueira. Quanto ao porte de armas, a explicao
simplificada, j que normalmente um sertanejo traz sempre algo
que o defenda do ataque de um animal ou de um salteador em
suas incurses pelo mato.
Sejam eles jagunos armados - significando um revoltado
ou um bandido - ou simples fiis fanticos, deve-se recorrer
fora do Conselheiro que, em suas peregrinaes e sermes per-
suasivos, conseguiu arrastar todos os componentes da mar-
gem para a pgina da existncia. Tentando colocar o ser humano
acima dos desejos e paixes da vida material, ela atraa a ateno
dos ouvintes com suas promessas de um futuro restaurador, de
uma romntica ordem social igualitria. Por se sentirem atacados,
constituram um grupo defensivo, apavorados pelo medo de se-
rem dispersados. Os bens que conseguiram recolher, trazidos por
aqueles que aderiam causa, eram de todos. Eles temiam que
acabassem em mos do Anticristo Repblica, a fora
desarticuladora de Canudos - para Euclides, um "ddalo
desesperador de becos estreitos, ( ... ) em absoluta desordem, ( ... )
[obra de] uma multido de loucos" (VENTURA, 1992, p.91) -
porm experimentado como omphalos, como o centro do mundo,
pelos seguidores.
Em A guerra do fim do mundo, Antnio Conselheiro , para
alguns, um santo e um revolucionrio desejando efetivar, social-
mente, ideais igualitrios. Para os representantes do poder um
fantico rodeado de bandidos. J em Os sertes, um doente pa-
ranico aliciador dos desprovidos que viam na sua figura e pa-
lavra a nica salvao propagada em seus sermes. O organizador
religioso e poltico sugerido por Vargas Llosa, em Euclides da
Cunha, um louco apstolo extravagante, perseguido por estig-
ma atvico, portador de uma "psicologia especial". Ressaltado
por Vargas Llosa como um lder organizador, preocupado no
apenas em salvar os homens do Anticristo Repblica, emA guer-
ra do fim do mundo, ele o lder social e religioso de seus segui-
dores, munido de autoridade necessria para livr-los do pecado e
conduzi-los salvao aps o juzo final.
Assinala-se que a essncia rebelde e a sntese revolucionria
da utopia imaginada e concretizada por Antnio Conselheiro
125
126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
indicada ainda por Gall, aquele idealista que se identifica com o
lder e com o arraial. Mas sua preocupao com o material, com
o quotidiano, assim, afasta seu questionamento sobre a desigual-
dade entre os homens do campo metafsico e mstico, no se em-
penha em responder s questes que lhe coloca, a personagem
Jurema:
- O senhor acredita que o Conselheiro foi mandado pelo Bom
Jesus? Acredita nas coisas que ele anuncia? Que o mar ser
serto e o serto mar? Que as guas do Vaza-Barris vo virar
leite e suas barrancas, cuzcuz de milho pra que os pobres co-
mam? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).
Para finalizar, destaca-se a passagem em que durante sua
viagem rumo a Canudos, a fim de conhecer a cidade prometida e
seu fundador, Gall encontra um grupo de sertanejos que vagava
e lhes fala da seguinte maneira, em clara adeso quele to criti-
cado projeto:
_ No percais a coragem, irmos, no sucumbais ao desespe-
ro. No estais apodrecendo em vida porque um fantasma es-
condido atrs das nuvens assim o decidiu, mas porque a soci-
edade est mal formada. Estais assim porque no comeis, por-
que no tendes mdicos nem remdios, porque ningum se
preocupa convosco, porque sois pobres. Vosso mal se chama
injustia, abuso, explorao. No vos resigneis, irmos. Do
fundo de vossa desgraa, rebelai-vos, como vossos irmos de
Canudos. Ocupai as terras, as casas, apoderai-vos dos bens
daqueles que se apoderaram de vossa juventude, que rouba-
ram vossa sade, vossa humanidade ... (VARGAS LLOSA,
1987, p. 233).
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
127
Referncias
ANDRADE, O. de Souza. Histria e interpretao de Os sertes. 4.ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.
CAMBEIRO, D. A figura literria de soter e herege em Os sertes, de Euclides
da Cunha. In: MALEVAL, M. A. T. e PORTUGAL, ES. (orgs.) Estudos
galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicaes, 2003.
CUNHA, E. da. Os sertes. So Paulo: 1993, Cultrix.
CURTIUS, E. Literatura europia e Idade Mdia latina. So Paulo: Hucitecl
USP,1996.
NOGUEIRA, A. Antnio Conselheiro e Canudos. So Paulo: Editora Nacional,
1974.
VENTURA, R. Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs
monstruosa. In: B. A. Junior e I. M. Alexandre (orgs). Canudos: palavra de
Deus sonho da terra. SoPaulo: SENAClBoitempo, 1997.
VARGAS LLOSA, M. A guerra do fim do mundo. 16.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1987.
Motrioux pour une tude de lo rception
de lo littroture brsilienne en Fronce
1 Ce texte est la version
3ugmente d'une communi-
.:ation, Littrature brsilienne
en France : limites et fonde-
ments , au colloque de
i' Universit de Pau organis par
!e Centre de Recherches
Potiques et Histoire Iittraire :
Bourlinguer en criture. Les
:nfluences croises franco-
brsiliennes organis par Eden
vana Martin et Nadine Laporte,
(janvier 2006), indite,
paraitre. Ce texte s' adressait au
dpart un public franais non
spcialis. 11 reprend des
lments parus dans France-
Brsil (direct. Michel Riaudel,
ADPF, 2005), La rception de
la littrature brsilienne en
France , p.67-72. 11 integre
galement des lments de la
communication du colloque sur
La formation du roman au
Brsil . Pour Ie dtail des
ceuvres traduites, je renvoie la
Bibliographie franco-
brsilienne de Georges Raeders
(Rio de Janeiro, 1960) qu'on
compltera avec Estela dos
Santos Abreu: Brasil Frana,
ouvrages brsiliens traduits en
France (B.N., Rio, 2004).
Pour I'histoire de la traduction
et de la rception de cette
littrature,je renvoie mes deux
livres Encontro entre lite-
raturas .' Frana Portugal
Brasil (Hucitec, 1995) et
Dialogos interculturais
(Hucitec, 2005). On se reportera
aussi Mario Carelli, Cultures
croises, Nathan, 1993 et
Marie Hlene Catherine Torres :
Variations sur l' tranger dans
les lettres.' cent ans de
traductions franaises des
lettres brsiliennes (Artois
Presses, Universit 2004).
Pierre Rivas
(Sorbonne Nouvelle, Paris 111)
La littrature brsilienne se situe, dans le systeme de la
littrature mondiale, comme ultra-priphrique, au sens ou les
organismes intemationaux parlent de centre, priphrie, semi-
priphrie, priphrique longtemps par rapport au Portugal, lui-
mme priphrie de la Pninsule ibrique. La relation Centre-
Priphrie, thorise un temps, dans le sillage post Braudel de
I' conomie-monde a labor I' ide de dpendance culturelle:
une littrature du soupon, entre plagiat et pigonisme, voire
exotisme, la frappant d'illgitimit, car transposant des ides
intempestives hors de leur lieul
Pareillement priphrique, la place du portugais dans le
systeme mondial de la traduction, ses flux et refluxo Les
spcialistes ont montr que les langues du monde constituent un
systeme de communication hirarchis, qui se vrifie dans le flux
des traductions. 11 y a des langues dominantes et des langues
domines. L'anglais est aujourd'hui la langue hypercentrale :
50 % des traductions se font partir d'elle ; puis des langues
centrales : le franais (10 %) et I' allemand ; puis des langues semi-
priphriques : espagnol, italien ; les autres langues : arabe, russe,
chinois, portugais, se situent au-dessous de 1 % (on voit donc
que la hirarchie d'une langue est indpendante de son extension :
il y a des langues internationales et des langues rgionales, mme
avec des milliards de locuteurs). 11 y a une relation entre hirarchie
des langues et flux des traductions; si paradoxal que cela paraisse,
plus une langue est dominante et plus on traduit partir d' elle et
moins elle traduit vers elle. Le systeme anglo-saxon est tres auto-
129
130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
centr; la France s'est longtemps nourrie d'elle-mme ; elle
traduit aujourd'hui plus de littrature brsilienne que les USA2.
Le handicap brsilien est ici encore manifeste: position
priphrique ; une langue rare selon la terminologie officielle,
et Iongtemps non institutionnalise dans l'enseignement (et
I' avenir incertain et menac aujourd'hui).
Handicap encore: une insularit go-culturelle face aux vingt
Amriques hispaniques qui n'ont jamais perdu le contact avec
I' ancienne mtropole espagnole, laquelle leur a servi de relais et
de chambre d'chos dans le monde hispanique et le reste du mon-
de, en particulier grce aux maisons d'dition Barcelone, et au
rle d'agents littraires. Tel n'est pas le cas du Portugal, ex-
mtropole qui a vu sa colonie grandir et s' auto-centrer, ou les
relations littraires se sont distendues au point, parfois, de s' ignorer.
Handicap encore: I' crivain hispano-amricain crit pour un
immense public, vingt pays, une ex-mtropole attentive, dans une
langue intemationale. Cela explique le boom latino-amricain,
auquelle Brsil ne participe pas. L'crivain brsilien crit dans
une langue mconnue et sans chos autres, parfois, que son tat
rgionaI, hors de grands centres lgitimant (So Paulo, Rio). En
ce sens, la littrature brsilienne est une littrature mineure, au
sens de Deleuze, priphrique au sens no-marxiste. L'hritage
portugais Iui-mme, prestigieux et trop ignor, est une voix
solitaire, lgiaque et dsaccorde face I' ostentation espagnole.
Le Portugal salazariste a longtemps tenu I' cart cette littrature
d'un modemisme subversif et, malgr le Prix Cames, ces deu x
littratures se connaissent mal.
La littrature hispano-amricaine a su trouver depuis
longtemps sa conscration Paris, capitale de la Rpublique
Mondiale des lettres, qui a intemationalis ces littratures, imposant
Borges malgr la rticence de ses compatriotes, ou Paz. La prsence
d'crivains, diplomates ou en exil, d'universitaires, de colonies
importantes d'expatris ont t des relais fondamentaux, en
particulier dans l'universit. Tel n'est pas le cas pour les Brsiliens,
migrant peu, et I' enseignement de leur Iangue a t essentiellement
investie par des Portugais.
Se pose donc ici le problme central des intermdiaires et
des traducteurs. Ferdinand Denis a t au XIxe sicle le fondateur
des tudes brsiliennes (et, d'une certaine manire, l'aptre et le
2 HEILBRON, 1. et SAPIRO, G.
in Actes de la Recherche en
Sciences sociales, n144. Les
traductions reprsentaient en 2003,
2,8 % du total de la production
ditoriaIe
\'Iatriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France
.1 SurcesnoIm,cf.rresdeuxlivres
cits en note 12, et le colloque
Lisbonne atetier du lusitanisme
.tranais, tudes runies par 1.
PENJON et P. RIVAS, Paris,
Presses Sorbonne Nouvelle, 2005,
l04p.
" Voir V Latbaud, agent secret
des littratures luso-brsiliennes en
France et Demiere tentation de
V Latbaud,le Brsil", in Cahier
des Amis de V. Larbaud,
respectiverrent n 34, 1997,87 p.
et n 5, nouvelle srie, Edit des
Cendres, 2005, 157 p. (tudes
runies par P. RIVAS).
5 Je renvoie mon article <<Fortune
et infortunes de 1. Amado en
France, rception compare de
I'reuvreamadienne,inJ.Amado,
lectures et dialogues autour
d'une lEuvre, Paris, Presses de la
Sorbonne Nouvelle, 2005, p. 23
30. Sur le rgionalisrre,je rappelle
\estravauxd' Anne-MarieThiesse.
On sait que le rgionalisme n' est
qu' une variante de I' exotisme : le
paysan mrre Franais, est <<I1otre
frere farouche plus proche du
caboclo que du Parisien.
parrain d'une Iittrature brsilienne autonome). Ces mdiateurs
Iittraires indispensables ne sont pas toujours des traducteurs, IesqueIs
manquent OU de rigueur ou de gout, sans relle formation jusqu'
rcemment. Hommage ici des passeurs inspirs teIs Phileas
Lebesgue, Pierre Hourcade ou Armand Guibert
3
Roger Caillois a
jou un rle central avec La Croix du Sud, mais Ies trop rares titres
brsiliens se circonscrivent une veine essentiellement rgionale. V.
Larbaud a t 1' agent secret des Iittratures Iuso-brsiliennes ; Ie
Brsil fut sa demire tentation4 . C' tait un exceptionnel passeur,
mais isol, mal paul par des traducteurs peu inspirs ; et la maladie
a vite mis un terme cette trop brve saison.
II faut ici insister sur une question centrale s' agissant de la
rception de cette Iittrature. Le BrsiI est un pays-continent, qui,
l' inverse de I' Amrique hispanique, ne s' est pas balkanis. Mais
l'unit impriale n'a subsist qu'au prix des autonomies rgionales.
La littrature brsilienne est une, mais constitue de rgionalismes
Iittraires spcifiques, des comarcas (AngeI Rama). La
cartographie littraire du Brsil ne cOIncide pas avec sa rception
l' tranger. Une Iarge partie de cette littrature ne passe pas
l'tranger. L'horizon d'attente du lecteur franais (mais
gnralisable) ne s'intresse qu' une partie trs gographique et
circonscrite: la littrature du Nord-Est.
Donc, il faut analyser la rception de cette littrature dans
ses diversits rgionales : quelles rgions Iittraires retiennent
principalement, voire exclusivement, I' intrt franais? C' est une
question pineuse et qui gnre beaucoup de malentendus dans le
dialogue France-Brsil.
Depuis le Romantisme, avec F. Denis, l'intrt franais va
naturellement, vers la diffrence, de I'!ndien au XIXe sicle jusqu'
la reconnaissance du Noir au xxe sicle. Phileas Lebesgue adap-
te Iracema pour un public adolescent. Mais il faut surtout insister
sur l'importance de la littrature rgionaliste en France au dbut
du sicle. Les deu x principaux traducteurs franais, Lebesgue et
Gahisto, sont des militants rgionalistes, venus du Nord,
provinciaux hostiles la littrature parisienne, mondaine,
psychologique ou avant-gardiste, et sduits par I'ide de race, non
raciste mais enracine, celle d'un peuple, de I' intrieur5 . Cette
sduction ethnographique explique leur attention au courant
rgionaliste, en particulier Monteiro Lobato, l'Enfer et au
131
132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Paradis vert amazonien, mais aussi Alcides Maya, ou au caboclo
de C. Neto. Ce sera aussi le cas de I' autre important intermdiaire,
Jean Duriau. Les trois collaborent la Revue de ['Amrique [atine
qui est entre les deux guerres, la principale revue ouverte ces
pays. Ajoutons qu'ils sont pareillement hostiles aux avant-gardes
littraires tenues pour jeux gratuits du parisianisme. Or le Brsil
doit se librer de ces modeles. peine sacrifient-ils au roman
psychologique et mondain d' A. Peixoto.
Les fortunes contrastes de Machado de Assis et Graa
Aranha relevent pareillement de stratgies idologiques,
diplomatiques et mondaines. Le succes de ce dernier relevant de
I' antigermanisme alors frntique en France, de son nacionalis-
mo para barressiano (G. Freyre), et, accessoirement, du roman
philosophique ides mis la mo de par Paul Bourget. Bergson
le loue comme le reprsentant par excellence de la pense
brsilienne. Pour O. Lima, prsentant Machado en Sorbonne, le
plus grand loge est de le placer entre Mrime, Renan ou Daudet;
de le rduire, en fait, la tradition de la latinit quand Aranha
serait aux avant-postes du combat pour la civilisation. Canaan,
pour Jacques Bainville, est I' quivalent des Dracins de Barres.
Machado est un artiste, Aranha un penseur, trop peu Brsilien.
II faudra attendre Roger Bastide pour le restituer au lecteur franais
sa brsilianit intrieure fonciere dans sa prface la traduction
de Quincas Borba en 1955. La traduction de Dom Casmurro en
1936 avait quelque peu dplace les rfrences, d' Anatole France
vers Sterne (Ren Lalou dans les Nouvelles littraires) et voire
Dickens (Gahisto dans le Mercure de France en 1937). Tous ces
traducteurs sont plus sensibles au courant loca liste (ils traduisent
C.Neto, M. Lobato, A. Azevedo, etc.) qu'au versant cosmopolite
(ni Machado, ni les modernistes) ; la posie noparnassienne
(Bilac), pas la modernit potique - accessoirement Ribeiro
Couto, en poste en France.
Ces stratgies officielles de 1 'idologie de la latinit rendent
ainsi hommage, en Sorbonne, en 1909, Machado de Assis sans
lui rendre justice: honor, peine traduit et inaperu. On lui
prfrera Graa Aranha, plus idologue. Son statut rappellera assez
celui de Ea de Queirs qui on prfrera Teixeira de Pascoaes,
plus idiosyncrasique. Mais le roman raliste europen, Galdos,
Verga, Fontane, ne trouvera pas plus de curiosit en France,
\latriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France 133
attentive -Ia- seuIe- singularit- anglaise ou -russe: La politique-
officielle fait traduire Nabuco ou Rui Barbosa sans aucun cho.
Les relations mondaines, la comdie des gens de lettres faciliteront
les traductions de A. Celso ou A. Peixoto et plus encore celle de
Graa Aranha. Mais beaucoup de ces traductions sont compte
d'auteur (Eneas Ferraz, etc.).
L'absence de relais ditoriaux est ici manifeste malgr la
prsence de l'diteur Garnier, O Bom Ladro, dont Figueiredo
Pimentel disait que son reprsentant au Brsil ignorait tout de
cette littrature.
L' officialit incline une lecture sollicite de cette littrature.
Ainsi de I'Anthologie de Victor Orban publie en 1913, la de-
mande de O. Lima, et qui est bien contestable et trop officielle. Un
paradigme regne encore, celui, dysphorique, de I' anthropologie
des Lumieres, de De Paw Buffon et Hegel: continent de
l'immaturit physique et morale ... pays inachevs ... enfants
inconscients [simple] cho du vieux monde ... expression d'une
vie trangere, dit Hegel dans la Raison dans l'histoire.
La formation du roman brsilien, laborieuse et difficile
est le propos du livre en franais de B. Costa, le Roman au Brsil
(1918). Il cite peine Mmoires d'un sergent de la Milice, qui
n' aurait qu'une valeur documentaire. Ronald de Carvalho, dans la
Revue de Geneve d' avril 1921 sera moins fervent de Aranha, plus
ouvert Macedo, attentif Lima Barreto, un Sterne plus mu,
un Gorki moins rude. Les rfrences de B. Costa sont Ia haute
littrature franaise : Bourget, Hermant, MareeI Prevost, Anatole
France. Voulant analyser les moments mentaux du Brsil,
montrer I'closion du roman au Brsil, son dveloppement, il
retient quatre cri vains de rfrence: Machado de Assis, la colonne
ionienne, sobre et lgante; A. Azevedo, naturaliste dorique,
Coelho Neto, no romantique composite, et, culmination et
couronnement, Graa Aranha, colonne corinthienne ( I' exception
de Machado, tous ces crivains sont aujourd'hui absents des
librairies franaises, comme le sont Abel Hermant, MareeI Prevost.
Paul Bourget).
Graa Aranha et Coelho Neto seront les crivains les plus
traduits, ou les plus lous. lei se vrifie encore la gographie
littraire du Brsil franais: Alencar, Azevedo, etc., tous crivains
du Nord, du Nord Est, du Maranho, de Bahia, de l' Amazonie,
134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
attentifs une ligne d'expression sociale, romantique ou raliste,
aux scenes de la nature quasi ou franchement exotiques. Ce
sont des crivains bombsticos, boursoufls, qu' on qualifierait
de no-baroque, ou d' pais sensualisme.
Vn peu de cette constance pourrait se retrouver dans le
succes de J. Amado en France, qui fut considrable et qui, s' il doit
un peu au dpart, aux stratgies politiques, l'a incontestablement
transcend, en faisant l' crivain le plus lu et par un lectorat
largement ouvert. Mais son succes permet de revenir sur la lecture
idologique et tlologique de Costa, pour qui le roman brsilien
- I' image du franais - devrait passer du pur phnomnisme de
Macedo ou de Almeida, du grossier sensualisme de Azevedo (et
sans doute aurait-il pens ainsi de Amado), au grand roman
idologique de Aranha. On a juste titre soutenu que la matrice
du roman brsilien du XIXe siecle ne se trouve pas dans le roman
europen du XIXe siecle, mais dans celui du XVIIle siecle chez
Steme ou Diderot, et, au-del, chez Cervantes ou Rabelais, comme
le dit Milan Kundera. D'ou la modemit, aujourd'hui reconnue,
de Macedo ou de Manuel Antonio de Almeida.
Il faudra attendre, dans la lecture et la rception de la
littrature brsilienne en France, les travaux de Roger Bastide apres
la Seconde guerre, pour qu'un changement de paradigme, dcisif,
se produise et que la littrature brsilienne soit reconnue dans son
altrit et Machado dans sa radicale et universelle diffrence. Mais
le modemisme brsilien, la littrature du Sud, reste encore
largement trangere au lectorat franais. La dpendance parait
jouer en sa dfaveur. Simple cho du vieux monde? Le saut
qualitatif du modemisme brsilien par rapport aux avant-gardes
europennes chappe encore nos ethnocentrismes.
L'unit de la littrature brsilienne est faite de tension entre
deux ples, le cosmopolitisme et le localisme pour reprendre
I' opposition de Antonio Candido. Littrature double registre,
fatalit de I'hritage colonial - entre Mmoire europenne et
Fondation amricaine, entre tentation centrifuge et vocation
centripete, entre Machado de Assis, crivain de stature
intemationale la mesure d'un Flaubert, et Euclides da Cunha,
I' auteur de l' pope nationale des Sertes, entre Clarice Lispector
qui n'est pas indigne de V. Woolf et Jorge Amado, le chantre de
Bahia. S'il fallait rduire tres vite l'horizon d'attente du lecteur
~ fatriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France
Voir mon article <<Le Brsil
dans l'imaginaire franais:
tentation idologique et
rcurrences mythiques, in
Images rciproques du Brsil
etdelaFrance,IHEAL,1991.
franais face au Brsil, on hasarderait le fantasme duprimitivisme
sous ses deux formes, rpondant aux deux moments fondateurs
de son mergence ; celui de la Dcouverte, des descobridores
et, disait Borges, dans ce mot, il y a or: vision de l'Eldorado, du
Paradis Terrestre, le pays du dsir (Hegel), de lajouissance (Lacan)
et, I' oppos, celui des conquistadores colonisateurs cruels:
l'Enfer, la violence, l'esclavage, l'anthropophagie, marquant
ngativement conqurants et autochtones. Ce sont ces deux veines
qui traversent I' imaginaire franais de Montaigne et Jean de Lery
Cendrars et Lvi-Strauss.
Dans l'imaginaire franais, sur la longue priode, le Brsil
appara'it la fois comme remords (colonial) et dsir (fantasme)
d'une incompltude franaise. C'est la veine exotique et
primitiviste qui travaille nos fantasmes brsiliens. Elle constitue
l'horizon d'attente franais, la fois son fondement et ses limi-
tes. Limites quand la France rduit le Brsil sa latinit
priphrique pour des raisons go-politiques; cette littrature est
une copie du modele franais et Machado de Assis un Anatole
France des Tropiques. Les Modernistes de So Paulo, pour Blaise
Cendrars ne font que singer les modes parisiennes, tard et mal.
Cette littrature est donc, dans sa dimension universaliste ou ses
modalits modernistes, frappe d'illgitimit ou d'pigonisme.
C' est la veine rgionaliste, la plus idiosyncrasique pour les uns,
la plus exotique, se plaindront beaucoup de Brsiliens ouverts
la Modernit et en qute de reconnaissance internationale, qui
retiendra le lecteur franais - non plus le double de la France, sa
ple copie, mais sa contre-figure. L'horizon d'attente franais,
dans les annes 30, perd de sa superbe ethnocentrique et travaille
les trfonds archai'ques et primitivistes: crise de la raison
occidentale, mergence de I' ethnographie, du freudisme, du
marxisme, du Surralisme
6
Ces tropismes vont trouver dans la
veine rgionaliste enracine, archai'que, du Nord-Est leur
Supplment d'me: le roman social, surtout celui de Jorge
Amado, dont on ne saurait sans injustice rduire le succes
I' acti visme de I' internationale communiste, ni son seul exotisme,
ni, plus tard, son ct rotico-populiste.
Pourquoi cet intrt pour le roman rgionaliste-social
nordestin, cette ignorance des grands romans urbains de Macha-
do de Assis et ce constant dsintrt pour le Modernisme ? Blaise
135
136 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
Cendrars n' avait que sarcasmes pour ces modernistes de So Paulo
qui I' avaient accueilli si gnreusement, assurant qu' il ne resterait
d' eux que quelques romans illisibles et une pince de plaquettes
rares , leur prfrant Bahia et Pernambuco, les deux mamelles
des Belles Lettres et des Arts Brsiliens [ ... ] qui ont mis le Brsil
dans le grand courant de la littrature mondiale ct des USA
(prface I'Enfant de la plantation de Jose Lins do Rego, repris
dans Trop c' est trop). II y aurait dire et redire sur les propos et
sur la position de Cendrars dans le champ littraire franais d' alors.
II y a un double malentendu, de Cendrars, Robinson Suisse
s'ensauvageant dans le Brsil archa'ique et fuyant les milieux
littraires ( la maniere de Jean Jacques) et des modernistes tentant
de fonder une tradition nationale que le pirate du Lac Lman,
pourri de littrature dit Mario de Andrade pourrait compromettre
dans son utopie de la tabula rasa .7 II y a un double malentendu
entre Cendrars et les Modernistes propos de deux Brsils - des
deux Brsils. Mais les choses n' ont guere chang, mme apres
qu' on a traduit, dit, tudi, le Modernisme
8
Et le succes
d' Amado perdure.
Le Brsil est bien la contre-figure du modele franais. Face
une littrature du soupon, s' puisant en psychologisme,
minimalisme, noclassicisme, formalisme, narcissisme
autofictionnel, le roman nordestin affirme sa confiance dans le rcit,
son abandon au Iyrisme, sa force tellurique, sa dimension pique:
I' mergence de ce que Milan Kundera appelle le roman du Sud
et sa gnalogie : Rabelais, l' oralit, le crole, I' esthtique de
I' invraisemblance, Rushdie, Naipaul, Garcia Marquez,
Chamoiseau .
Face I'utopie de lamodernit I'heure de la mondialisation
arasante, le roman du Sud - y compris Faulkner et Glissant-
oppose, selon I'expression d'Homi Bhabha (O local da cultura)
des cultures de la contre modernit, rsistant leurs oppressives
technologies assimilationistes. Le Brsil est le pays de I' homem
cordial contre I' individu srialis.
Mais I' altrit brsilienne ne se rduit pas la nature tropicale,
la vitalit du Noir ou I'nigme de l'Indien. Le mystere des origines
et la fascination de la transe exportent beaucoup de strotypes et
de clichs alimentant en retour et multipliant les fantasmes franais
et leurs crits sur le Brsil, et pas seulement chez Cendrars.
7 l' ai esquiss ces poiots in
Ceodrars Homme Nouveau,
Nouveau Monde, in Europe,
spciaI Ceodrars, o o 566, juin
1976 ; dans B1aise Cendrars et
I' avant -garde in Blaise Cendrars
20 ans apres, Klincksieck, 1983,
et dans <<loge du dserteUD>, in
B. Cendrars, le bourlingueur des
deux rives, A. Colin, 1995 (sous
la direction de Qaude Leroy).
g Sur le Modernisrne brsilien, voir
Ie nurnro 599 d' Europe, mars
1979.
Matriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France
Cette rception - et cette veine franaise - dsesperent le
Brsil du Sud face la persistante mconnaissance de leur avant-
garde littraire et de leurs grands crivains classiques. Littrature
exotique d' exportation: putes aguichantes et voyous au grand creur.
Mais la France a export aussi nos paysans madrs de Maupassant
et les Marseillais de Pagnol. Et on a plus lu l' tranger Herv
Bazin que Julien Gracq.
11 faudrait ici distinguer entre auteurs lus - et trop lisibles
(Gide de Amado) et auteurs reconnus dans le canon littraire
I' tranger - cas des hispano-amricains Borges, Cortzar, Paz.
Machado de Assis est une rfrence pour Susan Sontag ou Carlos
Fuentes. Son reuvre, relue la lumiere, non plus de Anatole France,
mais de Steme, voire de Dostolevski ou de Pirandello, est un peu
mieux reconnue d'une lite restreinte et mrite de I' tre davantage.
Le seul auteur brsilien qui a trouv un certain statut littraire
est Clarice Lispector, travers Helene Cixous; le relais se fait
travers la littrature fministe qu'elle n'a jamais prtendu
reprsenter. Elle est une rfrence dans un certain systeme littraire
franais, mais en marge, que sa qualit littraire transcende
infiniment.
Entre le grand lectorat - Amado - et les instances de
lgitimation - Clarice - qu'y a-t-il ? Des noms, souvent phmeres.
Le modemisme pauliste n'a pas trouv son public, mme restreint
une lite et Graciliano Ramos pas beaucoup plus. La prgnance
en France du roman nordestin et amazonien est corrobore par les
tropismes des chercheurs franais. Lvi-Strauss, RogerBastide
enseignant So Paulo, mais travaillant sur 1'lndien et le Noir et
ignorant les travaux de leurs collegues du Sud (Sergio Buarque de
Holanda ne sera traduit - Racines du Brsil- que tres tardivement
alors que Gilberto Freyre est traduit et ft Cerisy-Ia-Salle). Les
manifestations de cette Anne du Brsil- de I' ouverture indienne
au Grand Palais aux musiques nordestines et aux expositions sur
l' Amazonie en sont encore la preuve.
La rception d 'une littrature trangere donne toujours lieu
des malentendus : la place de Poe en France, celle de Laforgue,
de Corbiere ou de Supervielle en Angleterre le montre assez. La
diffrence brsilienne est particulierement manifeste s' agissant de
la posie et sa rception spcifique. Vn lectorat partout rduit et
davantage en traduction ; la ncessit de traducteurs inspirs
137
138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
maitrisant la langue source et la langue cible ; des maisons d' dition
dvoues. Mais il faut dire encore que la trajectoire de la posie
brsilienne au XX
e
sicle est irrductible, elle ne recoupe pas les
grands courants potiques internationaux, le Surralisme par
exemple, l'cart des grandes tendances, y compris sud-
amricaines. Le Modernisme, dans sa radicalit, et le concrtisme,
dernire utopie de I' avant -garde, ont pu retenir I' intrt de quelques
revues, de quelques maisons d' dition et paraitre mme parfois
confisquer toute la parole potique brsilienne dans des chapelles
ou des ghettos de revues. Quelques grands ont t traduits (Carlos
Drummond de Andrade, Ferreira Gullar). Mais on ne trouve aucun
recueil de Bandeira, de Joo Cabral de Melo Neto. On peut se
fliciter de voir traduit quelques figures fminines exemplaires:
Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, etc. L encore, c' est la singularit
de cette posie, I' cart des grandes tendances, qui peut expliquer
leur isolement : un certain schmatisme formeI, une rticence
certaine aux images, un ostinato rigore dans la philosophie de la
composition, une radicalit extrme dans I' exprimentation, aucun
de ces grands potes qui aient connu la conscration d'un Neruda,
d'un Borges, d'un Paz, d'un LezamaLima. De grands potes exils
et ensevelis dans leur insularit.
La facile sduction brsilienne et son exotisme rducteur
cachent la difficile altrit brsilienne et son opacit. Le vertige de
I' altrit peut se tradu ire dans les piphanies de Clarice Lispector
mais plus difficilement dans I' ethos amazonien ou I' aridit du ser-
to. - qui est une image de I'me - chez Euclides da Cunha ou
Guimaraes Rosa: le paradis vert est surtout un enfer
9
La culture
orale, qui est la matrice de cette littrature, donne sa sduction
aux romans de J. Amado, et sa difficile apprhension ceux de G.
Rosa.
Pour Hegel, l'Europe dsormais, c'tait la Prose. L'pope,
la Posie, le Mythe taient le terrain et le terreau du Nouveau
Monde, pays ou I'on rencontre le Diable, les Esprits, la Mort, le
Double, le Merveilleux mdival ; pour la thorie post-coloniale,
les socits priphriques sont la mmoire et le laboratoire des
contre-cultures. Ceci se vrifie au Brsil plus qu'ailleurs. D'ou
peut-tre la difficult d'apprhender ces lectures sinon travers
strotypes et clichs? Mais est-ce une bonne approche que ce
rductionnisme socio-critique ou idologique ?
9 La veine nordestine a retenu
I' dition franaise. L' autre grande
fascination est I' Amazonie. Mais
le grand livre amazonien pour le
lecteur franais est F ort vierge,
l'reuvre du portugais Ferreira de
Castro <<tIaduit" par B. Cendrars.
Matriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France
10 On trouvera un tat de la
question dans le n 919/1920
d' Europe, Littrature du
nov.-dc. 2005, organisation
Michel RIAUDELet P. RIVAS
et dans France Brsil, ADPF,
2005, sous la direction de M.
RIAUDEL, qui releve I'tat
prsent des traductions
disponibles actuellernent dans la
librairie franaise. On trouvera
galementdans cetouvrage,sous
le titre La rception de la
littrature brsilienne en France,
une prernire bauche de ce texte
sur les Matriaux ici repris,
largi et augment.
Cetlcprsenlaliondel'1mpresem
de la littrature brsilienne en
France, sommaire, rapide,
panoramique, certainement
arbitraire, s' adresse des lecteurs
franais non avertis. On peut la
prendre, de mme que ces
Matriaux, comrne une vision
franaise qui, ce titre, avec ses
limites et ses limitations peut

comrne docwnent.
En conclusion, faisons le point sur I' tat prsent de cette
rception de la jeune littrature
lO

On peut la rsumer par ces deux ples constitutifs ds I' origine,
entre tradition naturaliste et rgionale et cosmopolitisme
international. La ligne no-naturaliste de la Gnration de 90
s'tablit pour nous dans la tradition fondatrice de notre imaginaire
comme terre de la sauvagerie, de la violence, de la cruaut. Les
Nouveaux Cannibales sont les jeunes des banlieues sensibles, les
sauvageons de la priphrie. Ce sont les romans de lafavela: ainsi
de la Cit de Dieu de Paulo Lins, de Tant et tant de chevaux de Luiz
Ruffato ou des romans de Patricia Melo. Trafiquants de drogue,
psychopathes, marginaux, romans de la violence urbaine, dont le
pre est Rubem Fonseca. Littrature la lisire du document, de
l'image, dans un no-naturalisme exacerb, un hyper ralisme bru-
tal, aliment par et alimentant les media, telenovelas ou films -
assurant ainsi continuit et rupture dans notre horizon d' attente et
nos premieres images : la Terre du Mal, de I' exces, de la dmesure.
L' image dnique, la nostalgie des origines, notre rverie
rcurrente, primitiviste et amazonienne s'inflchit en nostalgie non
plus de I' espace, mais du temps et de la mmoire chez Milton
Hatoum, auteur amazonien mais habit de sa mmoire libanaise et
orientale, tissant de songe une lgie mlancolique. Cette veine
orientale (Raduan Nassar) voire orientaliste (Alberto Mussa)
dessine, dans une littrature gnralement expressionniste, un filon
qui dralise le rel. Ce travail de dralisation est au centre de
romans de Chico Buarque (Budapest) et de Bernardo Carvalho,
plus maniriste et post modeme (Mongolia, Neuf nuits) traduisant
l'incertitude, la perplexit, l'instabilit d'un Brsil dracin de son
terreau rural et perdu dans ce Nouveau Brsil.
Vision dilacre de ces deux Brsils, entre enfer et paradis,
qui s'inscrit dans la ligne d'un imaginaire brsilien de Cendrars
Orsenna, de Peret Rufin, voire dans l'mergence d'un roman noir
franais chez Bernard Mathieu ou Mathieu Trence, entre euphorie
et dysphorie, enchantement et dsenchantement du monde. Le succes
intemational de Paulo Coelho, dans son formatage de best-sellers
dterritorialis, laisse peut-tre encore sourdre un peu de cette
prgnance d'une qute et d'une nostalgie d'un autre monde.
l39
I A pesquisa de que resulta este
texto s foi possvel graas a uma
temporada de estudos no Centre
de Recherche sur le Brsil
Contemporain da cole des
Hautes tudes en Science
Sociales, Paris, onde realizei, no
priIreim seJreStre do ano de 2005,
um estgio ps-doutoral. Para
tanto, contei com a orientao de
Jean Hbrard e obtive bolsa de
estudos da CAPES.
2 Sobre os dados biogrficos de
Amelie Schoppe, consultar
Brinker-Gabler (1986). Maria
Teresa Cortez (2003) apresenta
um estudo sobre a representao
do Brasil na novela alem Die
Auswanderer Nach Brasilien
Oder Die Htte Am
Gigitonhonha, de Amelie
Schoppe, no qual oferece
indicaes sobre o percurso
intelectual da autora
Lies de viagens, devoo religiosa e
sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no
romance juvenil francs oitocentista
1
Andra Borges Leo
(UFC)
Repblica mundial das letras juvenis
Amelie Weise Schoppe nasceu em Fehmarn, uma ilha ao
norte da Alemanha, no dia 09 de outubro de 1791. Com o pai, o
Dr. Friedrich, foi iniciada na arte de curar, e, aps a morte do
"mdico da cidade", em 1798, mudou-se para Hamburg. L, ins-
talou-se na casa de um tio acabando por abrir uma escola para
meninas, em 1823, com uma educadora chamada Fanny Tarnow.
Antes disso, Amelie cumpriu o destino das moas de seu tempo:
casou-se com um jurista, teve trs filhos e ficou viva. Seu casa-
mento no lhe trouxe muita felicidade. Aps a morte do marido,
passou a escrever livros com o objetivo de sustentar a famlia.
Publicou, ento, obras com lies de sabedoria e moral a fim de
guiar as crianas na vida prtica, alm de colaborar para muitas
revistas e editar jornais de moda na Alemanha e em Paris, dentre
os quais se destaca a Revista Para Jovens Iduna. Suas obras so-
mam mais de 200 ttulos e, alm do francs, algumas foram
traduzidas para o ingls, o holands e o tcheco. Em 1851, a es-
critora emigrou para os Estados Unidos onde faleceu no dia 25
de setembro de 1858
2

Julie Nicolase Delafaye-Brhier nasceu na cidade francesa
de Nantes, ento capital da Bretanha, no dia 15 de maro de 1785.
Seus pais eram um casal de burgueses comerciantes, Jean Julien
Marie Brhier e Marie Jeanne Pichon. Em 1793, Julie trocou a
Bretanha por Saintonge, a regio de sua me, abandonando o ca-
tolicismo e tornando-se protestante. Cresceu educada pelo tio,
Auguste, um cura constitucional e poeta a quem a escritora dedi-
141
142 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cou seu livro L'[ntrieur d'une Famille ou Le Rcit du Voyageur.
Com o pai, no menos afetuoso e severo que o tio, Julie definiu-se
escritora. No texto da dedicatria - la mmoire de mon pere -
do livro Le Robinsonfranais, publicado logo aps a morte de
Brhier, a autora traa o perfil de uma figura austera a qual nunca
teve coragem de glorificar em vida. A conduta do pai lhe servira
para a composio dos personagens. Em 1812, casou-se com o
mdico Gratien-Claude Delafaye. Julie cultivou uma longa rela-
o de amizade literria com seu primeiro editor, o livreiro espe-
cializado em colees juvenis Alexis Eymery, dedicando-lhe o li-
vro Le petit voyageur en Grce ou lettres du jeune Evariste et de
safamille. Julie Nicolase, ou Mme. Delafaye-Brhier, consagrou-
se escritora de sucesso de livros juvenis classificados como ro-
mance moral, gnero bastante popular. Faleceu em 1850, aps
concluir sua maior obra - o romance histrico Histoire de ducs de
Bretagne: racont par um pere ases enfants, publicado pela casa
Lehuby, herdeira dos Eymery, em 1851
3

O que h em comum entre as trajetrias individuais dessas
duas mulheres de letras? Se partirmos de suas origens sociais,
linhagem materna e paterna, e de suas estratgias de aliana no
universo letrado, suas inseres na Repblica das Letras, vere-
mos duas figuras femininas tpicas do perodo: familiarmente bem
dotadas por capitais escolar e cultural, os quais convertem em
educao e escrita. Essas mulheres constituem-se plo domina-
do no mundo da produo intelectual. s vezes, de to discre-
tos, seus trabalhos so, por longos anos, invisveis, o que, no
entanto, no as impede de cultivar a singularidade do prprio
nome, reivindicando publicamente suas autorias. Os exerccios
de cpia, o gosto pelas cartas e pelas narrativas dialogadas que
orientam os romances epistolares, a prtica dos deveres de esti-
lo, o cuidado com os usos das palavras, todas as experincias da
intimidade, levam as duas escritoras entrada num lento percur-
so de afirmao da individualidade, que tem corno conseqncia
imediata o investimento na carreira literria atravs da escrita de
livros para ajuventude. No por acaso as duas caprichavam nos
prefcios e dedicatrias que antecediam os textos de seus livros,
segredando detalhes de suas vidas domsticas, desenhando-se
como criadoras singulares e, claro, preparando elas mesmas a
recepo de seus romances.
3 Para os dados biogrficos de
Julie Nico1ase Delafaye-Brhier,
consultar D' Amat e Prevost
(1982). E os seguintes do-
cumentos: Catalogue Gnral
des Livres Imprims de la
Bibliotheque Nationale (s/d);
Catalogue Gnral de la
Librairie Franaise Pendant 25
ans (1840-1815).
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
Amelie Weise Schoppe e Julie Nicolase Delafaye-Brhier
tm em comum um lan criador e a paixo pela educao moral.
Partilham um universo de temas, preocupaes e referncias co-
muns que define suas autorias no gnero da literatura de forma-
o pedaggica. Como mulheres de letras cumprem seus papis
no longo processo de interiorizao das obrigaes sociais atra-
vs dos dispositivos de imposies e apropriaes das prticas de
leitura. Afinal, o leitor que aprende a lio, domina a emoo.
Amelie e Julie Nicolase ocupam lugar de honra nas experincias
que orientam o processo de civilizao (Elias, 1994), e, a uma
certa altura de suas carreiras, chamam a ateno dos livreiros-
editores. Da a convenincia em public-las e a aposta feliz no
sucesso comercial de suas obras.
Uma outra disposio bem mais desafiadora revela o trao
de unio entre as duas: uma rica imaginao literria, misto de
sensibilidade e razo, que as conduz ao exotismo tropical. Amelie
e Julie Nicolase elegem o Brasil e o sistema de relaes coloniais
como tema de um de seus romances juvenis. As duas escritoras
parecem contar com as mesmas fontes de inspirao e trabalho,
que orientam a trama dos enredos e a descrio de personagens
ndios e negros americanos, viajantes e emigrantes europeus, to
prximos e distantes. Lendo seus livros, chega-se concluso de
que as duas damas estavam muito bem informadas sobre a histria
do Brasil e de que seus conhecimentos no eram apenas docu-
mentais e livrescos.
De incio, suas obras destacam-se pela excelente aceitao
obtida daqueles que' referendam as leituras na Europa do sculo
XIX: os livreiros-editores e o pblico leitor. No ano de 1828,
publicado, em Berlim, um romance de Amelie Schoppe intitulado
Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha. Iluso, sa-
bedoria e moral para viver, que conta a histria da vinda de uma
famlia de emigrantes alemes para o Brasil. Esse livro conhece uma
longa vida na Frana. Inicialmente traduzido livremente do ale-
mo por Mlle. R. Du Puget para a Librairie de L'Association pour
la Propagation et la Publication de Bons Livres, tal era a recomen-
dao de suas lies de sabedoria e moral para viver.
Em 1839, a narrativa alem dos Emigrantes no Brasil inicia
sua longa carreira de imitaes francesas (adaptaes livres do
texto original) feitas por Louis Friedel para a Biblioteca da Juven-
143
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tude Crist dos impressores-livreiros catlicos Alfred Mame, de
Tours. A obra devidamente aprovada pelo Arcebispo daquela
provncia. Em 1842, alcana a 3 edio, em 1853, est na 7, e
em 1870 comemora uma 9 edio de puro sucesso pedaggico e
comercial. A partir de 1851, traduzida do alemo tambm em
sucessivas edies por F-C. Gerard, para a livraria-editora
Mgard, de Rouen. Na nova casa, compe a Biblioteca Moral da
Juventude e ganha, em 1862, o ttulo de Robinson Brasileiro. Suas
tiragens variam entre 3.000 a 4.000 exemplares, garantindo su-
cesso de vendas para os Mgard at 1866. A partir da, a obra
publicada at o ano de 1918 pela casa editora Eugene Ardant, de
Limoge, no mais como traduo, e sim como imitao de F. C.
Gerard, indicando a transao de compra e venda entre os livreiros.
O romance Os Portugueses da Amrica - lembranas his-
tricas da guerra do Brasil em 1635 (contendo um quadro inte-
ressante dos costumes e usos das tribos selvagens, e detalhes ins-
trutivos sobre a situao dos colonos nessa parte do Novo Mun-
do), de Julie Nicolase Delafaye-Brhier, tem sua trama ambienta-
da durante as batalhas da primeira fase da ocupao holandesa em
Pernambuco. Obtm aprovao do Arcebispo de Paris no dia 28
de outubro de 1846. Dois meses aps, em dezembro, obtm sua
inscrio na Bibliographie de la France - founal Gneral de
L'imprimerie et de la Librairie, para ser definitivamente publica-
do pela casa Lehuby, em 1847. Classificada como uma obra desti-
nada juventude, mais precisamente como uma "Americana ao
uso da juventude", chega a trs tiragens no ano de sua publicao.
A primeira, publicada em um volume in-8 ilustrado com 12
litogravuras em duas cores, preto e branco, pelos artistas Auguste
Lemoine, Janet-Lange e Giraud, vendida aos livreiros a 250 fran-
cos (o exemplar custa 6 francos). A segunda, oferece as mesmas
ilustraes, mas baixa de preo, custando 175 francos. J a tercei-
ra, vem nas cores ouro, vermelho, azul e violeta, num exemplar de
charmosa capa e apresenta nova queda de preo: toda a tiragem
custa apenas 100 francos.
Este artigo analisa o modo pelo qual os livros Os Emigran-
tes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha (na verso francesa de
P-C Girard), e Os Portugueses da Amrica colocam o problema
da colonizao, da nacionalidade, da instruo religiosa e da apli-
cao mOfal. O ponto de vista adotado o de uma sociologia
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
histrica das prticas culturais (Chartier, 1990). Associando a ca-
tegoria de representao do mundo social aos modos de produ-
o, difuso e apropriao dos objetos culturais, essa abordagem
privilegia, na anlise do trabalho de construo dos significados
das obras, o estudo dos processos a partir dos quais os textos
conhecem suas publicidades.
N as histrias imaginadas por Amelie e Julie Nicolase, os
povos selvagens adquirem o estatuto de modelos e contra-mo-
delos postos ao uso dos leitores e de seus pais em todas as eta-
pas da educao moral. A popularizao de suas obras, com su-
cessivas reedies e imitaes por todo o sculo XIX, produz
geraes de leitores europeus que, na onda da expanso do co-
mrcio de livraria para a Amrica Latina, acabam encontrando
os leitores de alm-mar, como as crianas e os jovens brasilei-
ros. Isto supe a existncia de um universo cultural comum en-
tre as duas comunidades de leitura, com os mesmos modos de
recepo das mensagens, os mesmos preconceitos e categorias
de percepo do mundo social da Amrica Portuguesa, configu-
rando uma repblica mundial das letras juvenis.
Em 1858, mais de dez anos aps a primeira edio parisiense,
Os Portugueses da Amrica entram para a biblioteca de obras ins-
trutivas e recreativas do catlogo de venda da Livraria de Baptiste-
Louis Garnier e passam a ser adquiridos na loja da Rua do Ouvidor.
O romance entra no Brasil como obra importada, jamais obtendo
traduo para o portugus. Os Emigrantes no Brasil igualmente
no foram traduzidos para o portugus e muito menos entraram
para as colees de livros importados da livraria francesa.
Lies de viagens: o romance moral sobre o Brasil
No sculo XIX, a formalizao do Brasil como nao no
recurso exclusivo da historiografia ou das narrativas ficcionais de
escritores brasileiros. Antnio Candido (1959) nos chama a aten-
o para a importncia do pensamento crtico do francs Ferdinand
Denis, que, pioneiramente, no livro Rsum de I 'histoire littraire
du Portugal suivi du rsum de l'histoire littraire du Brsil (1826),
reconhece e confere tratamento literrio aos temas nativistas,
natureza e ao ndio brasileiro. A conscincia de autonomia e inde-
pendncia da literatura brasileira em relao a Portugal formulada
145
146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
por Denis, que viveu alguns anos no Brasil, acaba por contagiar
um grupo de jovens escritores que, entre os anos de 1832 e 1838,
morava em Paris. Dentre eles, estava Jos Gonalves de Maga-
lhes e Manuel de Arajo Porto-Alegre. Em 1836, Magalhes
publica um ensaio sobre a histria da literatura brasileira na revis-
ta do grupo denominada Niteri, no qual traa seu programa de
renovao esttica fincando os marcos do incio francs do ro-
mantismo brasileiro.
Ao lado dos homens de letras e de cincias que se forma-
vam em viagens pedaggicas a Paris, os livreiros estrangeiros es-
tabelecidos no Rio de Janeiro so personagens decisivos para a
criao do mito nacional. O projeto intelectual que orienta suas
partidas para a Amrica Latina e, uma vez firmado o negcio da
livraria, as trocas internacionais possibilitadas pela circulao dos
textos, a importao e traduo de obras clssicas, sua distribui-
o em funo de categorias especficas - como as idades - para
posterior organizao em colees temticas - como as Bibliote-
cas Juvenis -, assinalam prticas que vo muito alm da pura e
simples relao comercial com os clientes ou da imposio de
modelos culturais.
A categoria de "brasileiro", com a correlata inveno das
tradies nacionais, no se define apenas pelo trabalho estilstico
da escrita. A rede de edio sobre a Amrica e, como parte dela,
sobre o Brasil, formada em pases como a Frana e a Alemanha,
tambm contribui para a inveno nacional. Essa produo toma
por base tanto registros descritivos, dos quais os livros de viagens
e os compndios de histria natural so bons exemplos, como
romances destinados ao pblico juvenil, os quais elegem a vida e
a natureza tropical - as florestas com histrias recheadas de
herosmos e barbries dos ndios, a escravido negra e a vinda dos
emigrantes -, como temas e guias para desenvolver o senso moral
dos jovens leitores. A prtica da venda de livros tambm a disse-
minao de idias e modelos de escrita.
A voga do exotismo tropical na produo literria para a
juventude mostra que a conjuntura que antecede a especializa-
o e industrializao do mercado editorial francs marcada
por um sistema esttico produtor de singularidades, com amplo
espao para os pases americanos, e para o Brasil em particular,
ao mesmo tempo em que se desenvolvem as apostas do comr-
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
cio de livraria na expanso internacional. Enquanto a livraria
francesa se instala no Brasil, a partir de meados do sculo XIX,
ou mais exatamente, enquanto os livreiros Garnier desenvolvem
o livro na Corte do Rio de Janeiro, o Brasil produzido literari-
amente na Frana.
No Rio de Janeiro oitol;entista, j podemos vislumbrar um
princpio de diferenciao do incipiente pblico leitor. Haja vista a
variedade temtica das colees classificadas nos catlogos, por
exemplo, de venda da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para os
anos de 1857-1858, que vo desde as obras importadas de recre-
ao juvenil, as novelas e romances ilustrados franceses, os livros
de artes militares, de histria natural e religio, dos dicionrios e
compndios escolares em vrias lnguas, at as obras de legisla-
o, comrcio ou economia poltica. Esses livros, sados dos pre-
los franceses e belgas, podiam ser lidos ou tomados de emprsti-
mo nos clubes e gabinetes de leituras de obras estrangeiras. Al-
guns anos antes, havia um, de propriedade do francs Cremieux,
situado na Rua da Alfndega, que tinha como scio e freqentador
assduo o jovem Jos de Alencar. Foi l que o futuro escritor co-
nheceu os romances "martimos" de Walter Scott e Cooper, assim
como os clssicos de Alexandre Dumas e Balzac, Arlincourt,
Frederico Souli e Eugene Sue (Alencar 1998: 54-55).
Ademais, sabemos, por intermdio de Mrcia Abreu (2003:
118-131), que de h muito os cariocas apreciavam as leituras de
livros importados. Com a abertura dos portos, levas de estrangei-
ros, adultos e crianas, passaram a residir no Brasil e, certamente,
a se constituir pblico leitor para os clssicos ingleses, franceses e
espanhis. Alguns jovens conheciam autores como Berquin,
Fnelon ou Mme. Leprince de Beaumont. Mesmo com a fiscaliza-
o exercida pelo Desembargo do Passo, entre os anos de 1808 e
1826, aponta ainda Abreu (2003: 124), era expressiva a presena
de livros juvenis importados no Rio de Janeiro. Exemplo do ttulo
Les escoliers en Vacance, de Mme. Delafaye-Brhier, que teve
autorizada sua entrada e permanncia no Brasil. Destaca-se, no
perodo, a presena das governantas estrangeiras nos espaos
europeizados das famlias - as senhoras professoras. Essas damas
tinham como funo a educao sentimental de crianas e jovens
(Leite, 1997). Elas modelavam, assim, de acordo com suas refe-
rncias culturais e lingsticas, o gosto de seus discpulos.
147
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Por isso mesmo, Baptiste-Louis Garnier mantm, num de
seus catlogos (1857-1858), quase duzentos ttulos em francs
classificados como lembranas, crnicas, anedotas, geografias,
viagens e descries. Em muitos deles, o Brasil figura como tema.
A literatura de viagem atrai a curiosidade pelo pitoresco da aven-
tura, realando a coragem dos marinheiros diante das intempries
na travessia, narrando histrias de naufrgios e fazendo descri-
es romanceadas dos modos de vida e crenas de povos desco-
nhecidos, quase sempre os ndios americanos. Na Frana, as bibli-
otecas de educao moral e formao religiosa passam a incluir
ttulos que se destacam pelas interpretaes das comunidades di-
tas selvagens (indgenas e africanas) oferecendo uma forma de
instruo que no representa perigo para a f porque fundada nos
ritos da converso, do batismo e do matrimnio.
Alm dos romances, as descries metdicas das cinco par-
tes do mundo, Europa, sia, frica, Amrica e Oceania, os ma-
pas, tratados de geografia, pequenos fragmentos do universo, es-
timulam o interesse pela cincia natural, pelas visitas aos museus
e o convite aos gabinetes. Mas, aos olhos desembaraados de uma
criana, as serpentes, monstros e festins antropofgicos devem
em muito mais aguar os medos e satisfazer a curiosidade. Nesse
momento, o descobridor Cristvo Colombo entra para o panteo
dos heris da juventude e sua histria passa a constar nas biogra-
fias de crianas clebres, servindo como modelo cultural. Tanto
que o famoso escritor Julio Veme acaba romanceando sua biografia.
Com relao aos escritos sobre o Novo Mundo, principal-
mente sobre a vida do ndio brasileiro que recai o novo projeto de
aplicao das regras morais. Seus costumes, a alegria emanada
dos cantos, danas e festins, as caadas e lendas apaixonadas so-
bres suas origens, tomam-se motivos para reflexes sobre os ex-
cessos provocados pela barbrie, como a condenvel prtica da
antropofagia, que at os podia excluir dos domnios da civilidade,
mas, ao contrrio do esperado, os elege como preferidos dos lei-
tores. A Europa testemunha o nascimento de uma paixo romn-
tica e juvenil pelo exotismo tropical.
Esses temas constam nas colees de livros juvenis da livra-
ria parisiense dos irmos Garnier e, uma vez firmado o gosto do
pblico francs pela literatura de viagem, so exportados para o
Brasil. Para os leitores europeus, representam o conhecimento da
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
4 No se pode desconhecer que o
sculo XIX foi marcado pela
leitura como competncia
universal dos franceses e que a
extenso da familiaridade com o
objetos escrito, impresso e
manuscrito, s tenha sido possvel
tardiamente aos brasileiros. Mas,
estudando os catlogos de venda
parna juventude da livraria carioca
Garnier, tive a dimenso do
leitorado juvenil diretamente
educado em francs, que era
numeroso o suficiente para
justificar a oferta dos quase
duzentos ttulos de livros
importados. A respeito da leitura
no sculo XIX naFrnna, consultei
Crubellier (1990) e Hbrard
(\990).
diferena, mas para os leitores brasileiros, as descries funcio-
nam acima de tudo como espelho e memria. Um universo cultu-
ral comum liga, por laos de afinidade na leitura, uma elite inte-
lectual e juvenil do.Yelho e do Novo Mund0
4
E para os produto-
res de textos, "a descoberta da Amrica e os fracionamentos da
cristandade tornam-se instrumentos de um duplo trabalho de clas-
sificao e conhecimento: a relao com o homem selvagem e
com a tradio religiosa" (Certeau 2000: 213). nesse domnio
que uma cultura encontra-se com a outra.
O gnero classificado como viagem, ainda que composto
de textos heterogneos entre si, acaba por fazer parte de um
outro gnero de perfil mais ficcional - o romance de formao
moral. As descries so apropriadas pelo novo regime literrio
e passam a intervir como referncias e contra-referncias nas
etapas previstas para a educao. Preferencialmente, o romance
moral destina-se aos adolescentes. Seus objetivos so confessos
- a aplicao dos princpios cristos atravs das aes modelares
dos personagens. Define-se como literatura espiritual, divertida
e instrutiva. Seus livros visam a produzir uma sensibilidade
engajada na crena e antes de serem publicados necessitam pas-
sar pelos comits eclesisticos de leitura, que funcionam como
primeiros censores, anteriores mesmo aos livreiros e aos pais.
Esses comits inauguram um sistema jurdico-religioso de con-
trole dos textos. Os editores Mgard, de Rouen, grandes distri-
buidores de livros de colees infantis por toda a Frana e, atra-
vs dos Garnier, difusores da literatura francesa para o Brasil,
no dispensam o exame prvio das autoridades responsveis pela
educao religiosa. Essa prtica assinala uma submisso ao que
Jean-Yves Mollier (2000) chama de "lgica da demanda social"
- no caso, atendendo aos objetivos da Igreja Catlica -, caracte-
rstica do antigo regime da produo editorial.
Se a observao dos sentimentos de homens primitivos,
quase prximos aos animais, e o estabelecimento de comparaes
com os homens civilizados, nutre uma imaginao literria, acaba
tambm por suprir necessidades de ordem pedaggica. Uma via-
gem para o Brasil mobiliza sentimentos de medo e fascnio, ao
mesmo tempo que nutre sonhos de fortuna alimentados pelas no-
tcias das terras frteis e das minas de pedras preciosas. o que
prope a saga dos Emigrantes no Brasil. Amelie Schoppe, sua
149
150 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 8.9,2006
autora, tira todos os proveitos das situaes de incerteza e perigo,
caminhando na tradio pedaggica dos contos de advertncia,
prevenindo os jovens europeus contra o fascnio e a cegueira da
iluses. Fazer a Amrica era o mesmo que escolher o abandono -
a orfandade.
A literatura "novomundista" de aplicao moral compara a
escravido branca, a qual se vem submetidos os emigrantes no
Brasil, com o sistema da escravido negra, levando os leitores a
incorporar, ou a manter bem slido, o valor moderno da liberdade
do indivduo - principal conquista da Revoluo Francesa.
Note-se que o mbito de circulao do romance moral o
universo cultural juvenil, no contando ainda essa classe de tex-
tos com o estabelecimento da Sociologia como cincia explicativa
do comportamento. Os modelos e contra-modelos oferecidos
pelos ndios e negros escravos americanos, a antropofagia, as
fugas e insurreies, a constituio de uma estrarlha Repblica
dos Palmares, entre uns, e os maus hbitos da nudez, entre ou-
tros, ambos relacionados heresia, perda do decoro da civili-
dade e aos perigos de embrutecimento dos comportamentos, ou,
tudo posto ao contrrio, as virtudes da vida natural, deveriam
levar a mocidade a voltar-se para o seu interior e, partindo da
intimidade, compreender os motivos da ao e fortalecer suas
relaes com a crena.
O bom e o mau selvagem, figuras do pensamento romntico
europeus, entram no projeto moral pedaggico na condio de
parmetros de comparao frente s desvantagens e mculas da
civilizao. Por isso mesmo, o romance moral pode igualmente
surtir efeitos contrrios, uma vez que as prticas e significaes
produzidas pela leitura nem sempre correspondem aos anseios e
imposies dos autores e livreiros-editores. E, se o novo leitor se
identificasse com a vida nas florestas tropicais, livre de bssolas,
mapas ou quaisquer constrangimentos morais? Acima de tudo,
qual o efeito disso para os leitores brasileiros?
Para colocar a moralidade em ao faz-se necessria, acima
de tudo, a pronta adeso das mulheres de letras, como Amelie e
Julie Nicolase, aproximando-as dos eclesisticos. Observa-se um
processo de transferncia de sacralidade dos padres para as escri-
toras, nesse momento particular da disputa pela posse do poder
legtimo sobre a aplicao da moral, travada entre o conhecimen-
5H uma vasta linhagem do
pensamento intelectual europeu
sobre o fudio americano, e, por
conseguinte, sobre os brasileiros.
Destaco as fontes clssicas dos
sculos XVI e XVIII; Montaigne
eRousseau. UmafillVedeconsulta
muito iIqxxtante o livro pioneiro
de Afonso Arinos de Melo Franco
(2005).
Ues de viagens. devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
to cientifico, que j se esboa, e a tradio da velha Igreja Cat-
lica, detentora da legitimidade intelectual. Deste modo, as fun-
es femininas mais se adequam posio eclesistica. A posi-
o dos arcebispos que cumpriam a funo de revisores de tex-
tos. Ora, uma autora deveria se situar no curso do processo de
civilizao, cabendo-lhe articular da melhor forma possvel um
discurso sobre as diferenas. A vida dos habitantes dos trpicos
- sempre relacionada a um sistema regulador de censuras e proi-
bies - se tornaria mais compreensvel, e, at, mais suportvel,
se posta em uma operao escriturria.
Lies de sobrevivncia nos trpicos: os emigrantes no
Brasil
Antes do aparecimento das verses francesas da novela de
Amelie Schoppe, a narrativa de viagem pedaggica baseada na
imaginao do mundo colonial como mundo naturalizado (selva-
gem e preguioso), que, de acordo com Francis Marcoin (1999),
experimenta as delcias da geografia atravs da errncia romanes-
ca, j havia mostrado toda sua fora aos jovens leitores europeus.
Em 1839, Alexis Eymery escreve e publica uma coleo de livros
- de pequeno formato e com muitas pginas - sobre aventuras de
viagens a vrias partes do mundo, incluindo o continente america-
no e, ao sul dele, o Brasil- Universo em miniatura ou as viagens
do pequeno Andr sem sair de seu quarto. Utilizando a tcnica do
dilogo entre pai e filho, mais que adequada ao estilo confessional
do romance de formao, esses livros apresentam quadros instru-
tivos e divertidos para guiar a infncia no conhecimento das qua-
tro partes do mundo: frica, sia, Amrica e Oceania.
A passagem pelo Brasil inicia-se com o elogio ao jovem
prncipe, herdeiro da Casa de Bragana. Em seguida, passeia-se
pelo enorme bazar no qual se transformara o comrcio do Rio de
Janeiro realado pela descrio de ruas estreitas por onde desfi-
Iam escravos carregando damas indolentes nas liteiras. Sobressa-
em as perucas e bijuterias. Mas o Brasil imaginado por Andr ,
antes de tudo, um reino de pedras preciosas, rubis. diamantes e
com muitos papagaios, situado entre a floresta da Tijuca e o dis-
trito de Diamants. ento, o vale do rio Gigitonhonha
(Jequitinhonha), metfora de mais uma ilha deserta. No romance
151
152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
de Amelie, o vale porto de salvao para uma famlia de
Robinsons oitocentistas perdida no Brasil tropical. As margens
frteis do rio Gigitonhonha palco da trama imaginada no livro
Os Emigrantes no Brasil.
Com uma srie de advertncias aos jovens europeus sobre
as ameaas e os perigos da partida para os pases da Amrica do
Sul, a narradora tem como objetivo denunciar a experincia das
vrias famlias de colonos alemes em princpios do sculo XIX,
oferecendo pistas das armadilhas nas quais se viam envolvidas
logo no embarque. No porto de Amsterd, de onde partiam os
navios para o Rio de Janeiro, capites inescrupulosos propunham
a assinatura de contratos de compra e venda da fora de trabalho
dos emigrantes, em troca do pagamento da viagem. Entra em cena
o drama da escravido branca. Nesse romance, a nfase das via-
gens recai sobre a aplicao de uma moral religiosa entre crist e
moderna, combinando os desgnios de Deus preservao dos
direitos individuais do cidado. Por isso mesmo, a narradora ao
tirar o mximo de proveito das advertncias e conselhos acaba
por instaurar uma pedagogia do medo.
Na tradio dos Robinsons que partem em famlia (Soriano,
1982), Riemann um fazendeiro vivo e arruinado pela seca que
assola seu pas. Um dia, ouve trechos de uma cano que diz: o
Brasil no longe daqui. Toma, ento, a deciso de partir da Ale-
manha em direo ao Brasil, levando sues filhos: Conrad, o mais
velho, Anna, Marguerite e Wilhelm. Um deles, entretanto, deveria
sacrificar-se pelos outros. Tamanha provao s poderia recair
sobre Conrad, o primognito, que vende-se ao capito do navio.
A travessia marcada por infortnios, fome e sede, algumas tem-
pestades, alm de doenas como o mal do mar .
Ao chegar no Rio de Janeiro, uma cidade de ruas estreitas,
cheia de Igrejas e magnficas casas (cenrio semelhante ao descri-
to por Eymery), o proprietrio do jovem alemo leva-o ao merca-
do de escravos negros. A famlia resta petrificada diante de tantos
horrores. No mercado, a liberdade de Conrad novamente vendi-
da. Desta vez, o comprador o inspetor do jardim imperial, um
homem bastante rico. Conrad desaparece das vistas de seu pai e
de seus irmos.
Enquanto isso, Riemann segue para o Palcio do Governa-
dor, a fim de obter os papis que o tomam proprietrio de um
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
terreno no vale de Gigitonhonha, a maior mina de diamantes do
Brasil. Antes da viagem, ouve as advertncias de um secretrio
alemo do Palcio: no comprar jamais diamantes dos negros
que trabalham nas minas, so todos roubados e as penas para
esse delito so bastante severas. Esses conselhos, fala a narra-
dora, devem servir de regras de conduta, porque as lies de
moral prprias ao gnero no qual foi classificado a novela de
Amelie devem agir atravs dos personagens. A essa altura, o pai
Riemann j se deu conta de que as promessas feitas aos emi-
grantes jamais se cumpriam.
Ao chegar em Gigitonhonha, a familia de heris descreve a
mesma trajetria de Robinson Cruso, o personagem de Daniel
Defoe. Riemann e seus filhos so europeus civilizados postos di-
ante das aventuras da natureza: alimentam-se de legumes e frutas
frescas oferecidas pela terra frtil, e de peixe do rio. Constrem
uma cabana, fabricam os utenslios domsticos com a argila do
lugar, modelam toscos instrumentos de trabalho necessrios ao
cultivo da terra e ousam at reunir troncos de rvores para fabri-
car uma canoa. Afinal, como os leitores poderiam se apropriar dos
(des )caminhos postos fanu1ia Riemann? Responde a narradora:
aprendendo com a experincia e com as situaes de necessidade.
Bem adiantada a narrativa, a famlia conhece Claus, um sol-
dado alemo que servia no exrcito brasileiro. O novo amigo com-
pra, por uma bagatela, o diamante de um negro a quem protegia.
O escravo escondera (na verdade, roubara) a pedra de seus feito-
res num dia de trabalho nas minas. Claus, ento, oferece o dia-
mante a Riemann, que com ele poderia reaver a liberdade do filho.
Apresenta-se famlia um dilema moral, ao mesmo tempo que
jogo educativo para o leitor: como aceitar a oferta de um roubo?
Riemann, ento, parte para o Rio de Janeiro. Chegando l,
reencontra o funcionrio alemo, M. Albrecht, que conhecera no
Palcio do Governo. Aps narrar suas hericas robinsonadas, o
emigrante pede ajuda ao amigo a fim de restituir o diamante
Coroa. No foi difcil. Nessa poca, o Brasil possua uma jovem
imperatriz da ustria que gostava de proteger os alemes. Triunfa
o caminho do bem. Comovida com a histria da escravido bran-
ca, a Princesa D. Maria Leopoldina, esposa do Imperador D. Pedro
I, restitui a liberdade a Conrad. feita a vontade de Deus e a
famlia Riemann funda uma colnia alem no Brasil.
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154 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n.9. 2006
Lies de devoo religiosa: Os portugueses da
Amrica
Para alimentar a produo do sistema literrio do qual tra-
tamos, havia uma vasta bibliografia sobre o Brasil em disponibili-
dade no mercado do livro europeu, que ia desde as sucessivas
edies dos relatos dos viajantes do sculo XVI - as experincias
de Jean de Lry e Andr Tevet na Frana Antrtica -, passando
pelas fontes documentais do sculo XVIII, como o estudo de
Rocha Pitta, at chegar s viagens de explorao e misses dos
naturalistas contemporneos, como Henry Koster, Spix e Martius
e Auguste de Saint-Hilaire, boa acolhida da sociologia dos cos-
tumes brasileiros do prprio Ferdinand Denis, ou o clebre com-
pndio de histria ptria Histoire du Brsil depuis sa dcouverte
en 1500 jusqu' en 1810, de Alphonse de Beauchamp, publicado,
em trs tomos no ano de 1815 pela casa de Alexis Eymery.
Em Os Portugueses da Amrica, Julie Nicolase Delafaye-
Brhier tece uma histria situada em terras do Nordeste brasilei-
ro, na cidade de Olinda, e em tempos coloniais, 1635, perodo da
ocupao holandesa. Os personagens so colonos portugueses,
do sangue azul da casa de Bragana, ndios tapuias, de feroz ori-
gem tupinamb, e negros sublevados na Repblica de Palmares. O
texto narra a execuo de um plano de vingana - seqestro se-
guido de cativeiro na floresta tropical - imaginado pelos ndios
contra seus senhores e algozes, os colonos portugueses. Duas
damas, lvire e Hlna, so raptadas pelas suas escravas domsti-
cas, a velha Mocap - mentora do plano -, e ajovem mestia Yassi-
Miri, ama de leite do pequeno Sebastio, filho de lvire. Amiip,
escravo pessoal de Dom Aleixo, marido de lvire, tambm adere
ao plano. Aproveitando-se da confuso causada no dia da ocupa-
o da cidade pelos holandeses, Mocap foge com as duas mulhe-
res, Yassi-Miri e Sebastio, tomando o rumo da tribo dos tapuias.
S ela, a velha tupinamb, conhece os desvos da floresta e seu
retomo para sua tribo acompanhada de duas senhoras cativas era
prova maior de triunfo e conquista.
Enquanto ocorre o rapto das senhoras brancas, Dom Aleixo
segue, com ArraYp, para o forte de Matias de Albuquerque. De-
pois de travar longos debates teolgicos com seu escravo - todas
as criaturas no so filhas de um mesmo Deus, ento, o que justi-
Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
"Em vrias passagens, encon-
tramos as famosas descries de
Jean deLl)' e Andra 1bevet
fica a captura e os maus tratos aos ndios?, quer saber Arralp -, o
nobre portugus toma-se prisioneiro dos negros-cidados suble-
vados da Repblica de Palmares. Testemunha a organizao de
uma Repblica tropical, com deveres e direitos, mas, horroriza-se
ante as bebedeiras nas festas da colheita do milho, que levavam a
excessos. A escravido, para os povos selvagens, brutalmente li-
vres, se bem conduzida e cristianizada, poderia ser uma etapa da
civilizao, defende a narradora.
A imaginao europia do mundo colonial naturalizada, e o
desafio maior para a trama do romance moral a cristianizao da raa.
Dom Aleixo consegue libertar-se, mas, andando alguns pas-
sos, encontra um grupo de ndios ferozes, que o fazem refm. Desta
vez, o nobre portugus presa de um festim canibal. Prestes a ser
devorado - chega at a jogar pedras nos executores, segundo o
costume narrado pelos viajantes do sculo XVI6 - salvo por um
missionrio inaciano. Reencontra Arralp e descobre a traio.
Abre-se uma via para a inverso de papis entre dominan-
tes e dominados - e se os senhores se tomassem escravos e os
escravos,senhores?
O pano de fundo da narrativa, a ocupao holandesa da ci-
dade de Olinda serve apenas como cenrio para o desenvolvimen-
to da trama. Todos os personagens se encontram na floresta. Du-
rante uma longa jornada pela mata tropical, enfrentando serpen-
tes, monstros e rios, as duas damas vo confrontando seus valores
aos dos tapuias, afirmando os preceitos da religio catlica, a f
nos sacramentos e a inexorvel converso dos brbaros america-
nos. Ignoram seus destinos. Ao fim, correm o risco de serem de-
voradas. Nesse momento, ameaas e preces no surtem mais o
menor efeito, lembram "o vento que sopra em uma plancie deser-
ta". As duas escravas fugitivas regozijam-se com a nova situao,
movidas por um forte sentimento - selvagem, civilizado ou cris-
to? - de vingana, definido pela narradora como "compromisso
com a dignidade", perdida nos maus tratos da escravido, o que
abre uma discusso sobre a fidelidade e o medo da traio raa.
Desenrola-se novo debate teolgico sobre a humanidade dos
ndios, suas virtudes e vcios, a condenvel prtica da antropofa-
gia, o ressentimento, tanto dos ndios brasileiros em relao aos
portugueses, quanto destes em relao aos holandeses, a quem
reputavam de povos herticos. Afinal, Deus no se manifesta em
155
156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
todas as coisas? Mas seria preciso cristianizar a barbrie, civiliz-
la, ainda que a civilidade fosse representada tambm como
corrupo da natureza e frivolidade artificial cortes, revelando a
narrativa, a essa altura, um confronto de inspirao tipicamente
roussseauniana. Na composio dos personagens esto as propri-
edades que definem as figuras do bom e do mau selvagem.
Em OI inda, Hlna levava a vida lasciva dos colonos portu-
gueses. Nascida no Brasil, filha de um senhor de engenho arruina-
do, Dom lvaro Rodriguez, inclemente no castigo aos escra-
vos. J lvire, nascida em Portugal, modelo de boa crist. Aos
selvagens que a seqestraram, aplica a virtude do perdo. Para
embaralhar um pouco esse jogo colonial e colocar o problema da
mestiagem, a autora faz os personagens indgenas descenderem
de uma pequena tribo que fora governada pelo portugus Diogo
lvares Correia, o Caramuru. Eles tambm demonstram, a seus
modos, alguma polidez e desvelo para com o sofrimento das cati-
vas. Essas senhoras jamais se habituaram aos rigores do trabalho.
Entremeando fico e episdios da histria, Mme. Delafaye-
Brhier no demonstra medo de se ferir ou perder nessa estrada.
As florestas, animais,jibias, festins, caadas e a poligamia selva-
gem, bizarros costumes dos ndios brasileiros, so realisticamente
narrados aos jovens europeus.
No cativeiro das duas damas portuguesas, feitas escravas
de suas escravas tapuias, colocam-se dois graves problemas de
ordem moral e religiosa. O primeiro diz respeito educao do
pequeno Sebastio, que deveria, pelos novos costumes, furar seu
lbio inferior e orn-lo com uma pedra azul. Aos olhos de sua
me, isto parece uma mutilao. O chefe tapuia, verdadeiro sulto
selvagem, apaixona-se pela portuguesa Hlna, desejando-a para
sua stima esposa. Como poderia uma crist casar-se com um
homem j por seis vezes casado? Na ocasio em que Hlna sai
para buscar gua no rio, as outras esposas do chefe, descontentes
com a iminncia da perda de posio para uma estrangeira, rap-
tam-na, torturam-na, arrastando-a pelos cabelos, para finalmente
amarr-la ao tronco de uma rvore perto da qual passa um rio
habitado por serpentes venenosas. Hlna desaparece, e o chefe,
colrico, expulsa Mocap e sua derradeira cativa, lvire, da tribo.
Os personagens seguem mais uma rota de aventuras pelo deserto,
desta vez, de volta cidade de Olinda. Mocap morre de sede du-
Lies de viagens. devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista
rante a travessia, no sem antes ser batizada por lvire, que junto
com Yassi-Miri e o pequeno Sebastio, acaba sendo encontrada
por Dom Aleixo. Anos aps, Hlna tambm reencontrada, vi-
vendo no deserto com uma farru1ia holandesa, demente. O cristia-
nismo triunfa sobre os vcios e poucas virtudes da vida selvagem.
A escravido, de acordo com a moral da histria, , de fato, etapa
necessria para o longo e tumultuado processo de civilizao e da
converso ao cristianismo.
Na composio de seu romance moral, Mme. Delafaye-
Brhier se baseia claramente nos clssicos relatos de viagens do
sculo XVI - nos textos de Jean de Lry, Viagem terra do
Brasil, e de Andr Thevet, As singularidades da Frana Antrti-
ca. No consta que ela mesma tivesse feito viagem ao Brasil. Se,
como diz Michel de Certeau (2000), os itinerrios dos viajantes
so previamente esboados nas operaes da escrita, mesmo em
configuraes histricas diferenciadas, Mme. Brhier, Jean de
Lry e Andr Thevet acabam compondo um mesmo texto. Por-
que os trs tomam posse de um mesmo objeto literrio, a descri-
o do ndio brasileiro.
A histria dos Portugueses da Amrica conduz seus leitores
ao questionamento dos papis sociais, que, mesmo na rigidez
emanada pela ordem das coisas do sculo XIX, no esto para
sempre fixados. A histria colonial tambm pode ser escrita ao
contrrio. As regras de dependncia e assimilao dos coloniza-
dos em relao aos colonizadores podem ser deslocadas. A narra-
tiva do cativeiro tapuia de senhores portugueses acaba por tecer
um sistema de contradies que culmina com uma desmontagem
do mundo de certezas da colnia portuguesa no Brasil, ainda que
essa desmontagem esteja limitada pelo final triunfante do cristia-
nismo. Afinal, a literatura de Julie Nicolase Delafaye-Brhier no
poderia contradiz-la.
O mais sedutor que toda essa histria foi composta muitos
anos antes de Jos de Alencar imaginar O Guarani, com o herosmo
do ndio brasileiro e toda nossa mitologia de fundao. Sendo
assim, s nos resta imaginar o escritor cearense saindo da Livraria
Gamier, ou antes do gabinete de leitura do francs Cremieux, com
Os Portugueses da Amrica nas mos.
157
158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Consideraoes finais
o modo como se organizava a escrita sobre o Brasil na Fran-
a oitocentista deixa evidente uma rede de relaes de
interdependncia funcional entre as mulheres de letras, seus tra-
dutores e os livreiros-editores responsveis pela classificao e
organizao dos livros nas colees juvenis. A novidade pedag-
gica representada pelo Brasil como tema do romance moral unia-
se ao empreendimento comercial da difuso internacional dos li-
vros franceses.
Nesse sentido, o empreendimento comercial dos irmos
Garnier na Amrica Latina desempenhou papel decisivo. Com a
livraria francesa no Brasil intensificava-se o movimento das tro-
cas culturais entre o Velho e o Novo Mundo. Enquanto Baptiste-
Louis Garnier instalava-se na corte do Rio de Janeiro, em 1844, o
Brasil era produzido literariamente na Frana. Os livros analisa-
dos demonstram verdadeiro sistema produtor de singularidades
que, seguindo a tradio das narrativas de viagem do sc. XVI,
alimentava um grosso filo do mercado editorial europeu - as
bibliotecas crists e morais dajuventude -, ao mesmo tempo em
que dava os rumos da inveno literria do Brasil.
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Os cadernos de campo de Roger
Bastide: entrecruzamentos mltiplos
Maria de Lourdes Patrini-Charlon
(UFRN)
Este trabalho de anlise dos cadernos de campo de Roger
Bastide inscreve-se na dupla dimenso da antropologia e da hist-
ria cultural. Os cadernos de campo do antroplogo representam
um conjunto notvel de escritura autogrfica preparatria no seio
dos quais encontram-se expostos os passos de uma produo e do
itinerrio de sua viagem frica do Oeste, em 1958. Neste artigo,
proponho-me a examinar a variedade e o contedo do material
manuscrito e dos suportes sobre os quais repousa a escritura do
pesquisador francs. As diferentes aes de escritura, assim como
a variedade de suportes e de contedos, sero apresentados atra-
vs da "mise en relation", realizada pela interlocuo observada
nos manuscritos encontrados nos arquivos do "fundo Bastide".
Essa "mise en relation" est presente entre a escritura e o suporte,
entre as prticas de escritura, entre os suportes, entre os dados e,
igualmente, entre as vozes de pesquisadores que, de uma forma
ou de outra, so sujeitos participantes da pesquisa do estudioso.
Estarei privilegiando a escritura de campo e, enquanto suporte, os
cadernos, porque eles esto em relao direta com o meu real
objeto de pesquisa. O material selecionado e os contedos privile-
giados pela minha pesquisa encontram-se classificados na cate-
goria NOTES, na rubrica Notes de lecture et de voyages.
do inventrio elaborado pelo Institut Mmoires de L' dition
Contemporaine (IMEC), na Frana.
161
162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A escritura de campo de Bastide: o pesquisador -
escritor
Se Gustave Flaubert deu incio a uma nova gerao, a dos
"escritores - pesquisadores"!, podemos dizer que Roger Bastide
pertence a uma gerao de "pesquisadores - escritores". Seus
manuscritos constituem uma quantidade considervel de notas
autogrficas e de notas de trabalho que do a dimenso da fora
de investigao e de verificao do antroplogo que, alm de uma
curiosidade cientfica sempre presente, fez de seu objeto de estu-
do a causa de seu percurso. Segundo suas prprias palavras, "es-
crever" sempre retirar das profundezas do "eu" todos os tesou-
ros escondidos, todas as flores noturnas do subconsciente, e
tambm, por conseqncia, despertar todos os demnios e os deu-
ses escondidos, liberar os antepassados". (Bey lier, 1944a: 3-4) 2.
Bastide concebe uma problemtica central sobre os conta-
tos culturais e sistemas simblicos em um campo bem preciso e
que ele jamais abandonar. Seu campo de observao ser a Fran-
a, a frica do Oeste e o Brasil. Sua escritura de campo revela sua
escolha e confirma seu engajamento e busca constante concernentes
a essas questes:
Lundi J 8 aotu -lettre n. J 5, Bastide anota em seu Cahier -
Mon Journal 3 : COl1versation avec V. sur la comparaisoll entre
Eguns Bahia et ici 4
Se em suas pesquisas Bastide privilegia a comparao, ele
confere ao mesmo tempo uma importncia considerwl s trocas
assimilveis, ao modo assimtrico sobre a forma na qual as coisas
se passam, sabendo como levar em conta o resultado de um pro-
duto hbrido. Desde o incio de sua produo sobre o Brasil, Bastide
procurou conhecer bem as relaes ntimas existentes entre os
negros e brancos na sociedade brasileira, marcadas por
distanciamentos e reaproximaes mltiplas. Ele se perguntava
freqentemente: "Comment penser le contradictoire?" (Beylier,
1978: 221). Para ele o Brasil um exemplo da interpenetrao de
civilizaes e o lugar onde se realiza o cruzamento de tradies
intelectuais distintas. Segundo o pesquisador, esse cruzamento lhe
permitia compreender as especificidades do pas e de seu povo e
tambm de onde ele extrairia os instrumentos conceituais neces-
srios para a anlise de seu objeto de estudo. Para Roger Bastide
I Ver artigo de BIASI, Pierre
Marc de. "Notion de carne! de
travail : le cas F1aubert". In:
Carnets d'crivai/ls. Paris,
ditions du Centre National de
la recherche scientifique
(CNRS), 1990, pp. 23-56.
1 BEYLIER, Charles. "Le sujet
et l'objet". In: BASTIDE,
Roger. Images du /lordes te
mystique e/l no ir et bla/lc.
Pandora/Des Socits, Paris,
1978. p. 222. (Bey1ier cite
Bastide). (traduo nossa).
3 MO/l ]our/1al estar no texto
sempre em itlico, pois esta
denominao foi dada por
Bastide ao ca/lier I.
4 Neste texto todas as citaes
de Bastidc estaro em itlico.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
, Todos os documentos
manuscritos de Roger Bastide
sobre sua viagem de estudos
frica so inditos.
6 Sobre esta experincia,
Bastide escreveu um artigo que
foi publicado com fotos de
Pierre Verger na revista
Etnografia, n.18, Museu
Nacional de Etnografia e
Histria. Junta Distrital do
Porto, 1968. (N. O.) e em
Verger-Bastide: dimen,w"jes de
uma amizade, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2002. No
entanto, o texto manuscrito
encontrado no caderno de
campo ainda indito.
7 VERGER, Pierre. "Roger
Bastide". In: LUHNING,
Angela (org) Verger-Bastide:
dimens(jes de uma amizade,
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2002, pp.255-257.
, LUHNING, Angela (org)
Verger-Bastide : dimens(jes de
uma amizade, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2002, pp. 39-
54.
'Conforme conceito desen-
volvido por Paul Ricoeur em
Temps et Rcits. Paris, Seuil,
3v. 1985.
era necessrio ir ainda mais longe em sua compreenso, por isso
quis conhecer as fontes, ver, entender, enfim estar no campo. As-
sim, ele parte em viagem para a frica do Oeste (Benin e Nigria)
em 1958, por setenta e dois dias. Durante sua permanncia nessa
regio africana, ele recolhe um corpus que rene mitos, narrati-
vas, rituais, canes, provrbios, danas, expresses tpicas e fa-
tos folclricos
5
Ele compartilhou esta experincia com seu ami-
go, o antroplogo Pierre Verger
6
, pois, o prprio Verger quem
nos informa dizendo que, infelizmente, Bastide no redigiu o livro
que queria ter preparado a partir das notas obtidas na frica - e
complementa: "Fato lamentvel, pois no h dvida de que ele
teria sabido nos transmitir tudo o que havia visto, com aquela
mistura de poesia e humor que ele sabia incluir na sua obra de
socilogo"7. Em "As mltiplas atividades de Roger Bastide na
frica (1958)" 8 , Pierre Verger reafirma ainda: "Bastide, infeliz-
mente, no publicou um livro apresentando o conjunto de impres-
ses e experincias vividas por ele durante sua estada no Golfo de
Benin ( ... )". Alm das articulaes mencionadas, nessa matria
manuscrita e indita h outras presentes entre a escritura de cam-
po e as notas de leitura, os desenhos, as fotos e os mapas de itine-
rrios. Trata-se de uma escritura que acolhe ainda: seleo mais
ou menos voluntria dos fatos, deslocamentos, organizaes cro-
nolgicas e diacrnicas de acontecimentos que, elaborados den-
tro de uma dinmica, sero os responsveis pela construo de
uma trama
9
entre os documentos manuscritos. Assim, jogos de
interaes constantes so estabelecidos, revelando as interfern-
cias entre o "eu" e o "grupo", um "eu" que no sai jamais impune
da experincia, pois com Bastide no h de um lado o observador
e do outro a realidade que ele estuda.
Os manuscritos: articulaes em vrios sentidos
1 - Dos manuscritos com o inventrio
Entre os documentos e o inventrio h uma dinmica que
absolutamente estabelecida no momento da organizao e da dis-
tribuio dos documentos. Isso requer do pesquisador muita aten-
o, pois ele deve estar sempre pronto a usar sua experincia para
perceber exatamente onde se encontram os pontos nevrlgicos
163
164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
das relaes entre os manuscritos: Como foram estabelecidos?
Quais os critrios e caminhos escolhidos pelos tcnicos que os
manusearam ordenando-os, com o objetivo de dar-lhes coern-
cia? Definir o lugar mais adequado para cada um dos documentos
, sem dvida, o primeiro desafio para quem vai realizar este tra-
balho, chegar a um conjunto no qual cada pea deve estar em
relao corri as outras, respeitando sempre o tempo, o espao, o
contexto, a histria dos documentos e a tradio terminolgica, o
que no to evidente como pode parecer primeira vista. Nos
arquivos do "fundo Bastide" no temos documentos classificados
sob a categoria "cadernos de campo" e nem "cadernos de traba-
lho", por exemplo. Esses so alguns dados que indicam que o
pesquisador tem que construir suas prprias trilhas no inventrio,
para isso ele tem que conhecer minimamente o objeto de estudo e
a obra do estudioso. Por exemplo: o primeiro ttulo consultado
[LE CANDOMBL DE BAHIA ET LA CRMONIE DE aNDO (KOBE)] per-
tence "categoria" NOTES, logo "rubrica" Notes de lecture et
des voyages. A descrio dos documentos contidos nesse ttulo
anuncia, entre outros documentos: Mss - cahier de notes avec
quelques dessins. Na realidade, o que havia era um caderno do
tipo brochura (50 pginas), com um ttulo sobre a capa da frente:
Le candombl de Bahia, escrito por Bastide. Na quarta capa (ver-
so), Bastide anotou: Crmonie de Ondo, Kobe, 22 juillet, (fte
des Ignames Neuves). O ttulo do inventrio anuncia, mas no
explica nem especifica seu contedo. Em um mesmo conjunto
(pasta) esto reunidos o candombl da Bahia e a cerimnia de
ando. Isso vai exigir explicaes mais precisas, principalmente se
considerarmos que nesse caderno h duas prticas de escritura
diferentes: uma de trabalho e a outra de campo. Qual percurso
dever percorrer o pesquisador para concluir que o caderno em
que o antroplogo registrou suas notas de campo da cerimnia de
ando corresponde estada de Bastide na frica, em 1958? Sabe-
mos muito bem que Bastide esteve na frica diversas vezes. Se as
notas de campo correspondem apenas a um dia de observao, o
dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente? A data
colocada na capa do caderno no traz o ano. Como precisar as
datas com tais incertezas se o pesquisador est com esses docu-
mentos pela primeira vez nas mos? O ttulo o primeiro entre
mais de sessenta existentes nessa categoria do inventrio
lO
Na
10 Entretanto, a pesquisa que eu
estava realizando na categoria
Notes, na rubrica Notes de
lecture et de voyages,
mostrava-me a cada dia que, se
os cadernos de campo
realmente existissem, havia
uma grande chance de eles
estarem classificados naquela
rubrica.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
rubrica Notes de lecture et de voyages encontramos dois
subconjuntos: notas de leituras e de viagens. O caderno em ques-
to no se insere nem em notas de viagens nem to pouco em
notas de leitura. Ele foi denominado simplesmente caderno de
notas, sem qualquer outra especificao. Isso me levou a pensar
que havia uma grande possibilidade de o contedo ter sido
priorizado na classificao dos documentos, sem levar em conta
os suportes e to pouco as prticas de escritura, a no ser aquelas
j consagradas, como a correspondncia. Para mim algo estava
claro: a nomenclatura 'caderno de campo' estava excluda dessa
classificao, at porque o interesse por essa prtica de escritura
autogrfica bem recente. Na realidade, Bastide dividiu material-
mente esse caderno em duas partes, utilizando aes de escritura
diferentes. Na frente, trata-se de um caderno de trabalho e no
verso de um caderno de campo. Na frente temos a correo por
pgina do livro Le Candombl da Bahia-Brsil: evidentemente
no se trata de notas de leitura, nem de viagem, nem de campo,
pois estas notas estariam mais prximas de notas de trabalho, ao
invs disso, trata-se de correes das provas preparatrias da edi-
o do livro. No verso, temos as notas que Bastide tomou durante
uma cerimnia de Ondo, a que assitiu em Kobe, frica do Oeste,
em 1958, mas isso eu s pude descobrir e confirmar depois de ter
avanado bastante na leitura dos documentos. Primeiramente, foi
necessrio encontrar o Cahier I - Mon ]ounal e depois de muito
trabalho de anlise consegui estabelecer as relaes. Em seu di-
rio de campo, no dia 22 de agosto, ele registra o acontecimento,
apenas anunciando o fato' e dizendo: voir autre cahier. Essa
bipartio da classificao em lecture / voyage assim como a de
caderno de notas no foi feita por Bastide. No conjunto em que
foi colocado este caderno de "notas", como foi denominado, h,
igualmente, um texto manuscrito de Roger Bastide sobre o xta-
se. Esse texto se refere provavelmente ao captulo V: "La structure
de l'extase", de seu livro Le Candombl de Bahia-Brsil. Nesse
sentido, constatamos que essa classificao no satisfatria, nem
globalmente do ponto de vista dos ttulos, nem localmente do ponto
de vista dos documentos e muito menos do ponto de vista dos
suportes. Ressaltamos que se os cadernos de campo encontrados
fazem parte da "rubrica" notes de leitura e de voyages, essa "ru-
brica" abriga uma vasta nomenclatura: caderno de notas, caderno
165
166 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
de viagem, dirio de viagem, carn de viagem, notas de viagem,
notas de visitas e carn de notas. Essas so todas as denomina-
es que foram dadas ao suporte cadernos. Nesse caso, percebe-
se muito bem que a noo de "caderno" e de "viagem" um tanto
quanto ambgua. Inicialmente, preciso esclarecer que ns no
podemos misturar caderno de campo, caderno de trabalho, cader-
no de viagem se quisermos respeitar a tradio terminolgica. Para
o tcnico que elabora o inventrio , sem dvida, difcil reconhe-
cer a importncia de certos elementos que caracterizam os ma-
nuscritos e as prticas de escritura. Entretanto, para o pesquisa-
dor se dar conta, num primeiro contato, de que um caderno utili-
zado frente e verso, sem data completa, contendo prticas de es-
critura e contedos diferentes possa ser identificado, ao menos
em uma de suas partes como um caderno de campo e que possua
relao estreita com as anotaes dirias feitas por Bastide no
Cahier 1- Mon Journal durante sua estada em 1958, na frica,
no tambm nada simples. Um documento s vezes colocado
em um ttulo que, de incio, pode parecer revelador, mas que es-
conde elementos e, em alguns casos, os mais importantes. A escri-
tura de campo desse caderno foi organizada de forma particular, o
antroplogo elaborou seu texto respeitando as partes da cerim-
nia assistida. ele no se serviu de uma escritura diria. A
especificao f suporte. contedo, escritura) dos cadernos est
longe de ser estabelecida segundo uma terminologia mais adequa-
da e a escolha do ttulo notes de lecture et de voyage no d
seno uma indicao muito geral do contedo da rubrica. Assim,
um documento manuscrito (reunido em um ttulo especfico) pode
pertencer a um "ttulo", que normalmente indica seu contedo,
mas ele pode estar, s vezes, em relao mais estreita com outros
documentos, ou seja, fazendo parte de outros conjuntos. em ttu-
los diferentes. Dessa forma, a leitura de outros documentos colo-
cados em ttulos ou at mesmo de rubricas diferentes necessria
para se encontrar o fio orientador. Os outros documentos do mes-
mo conjunto no so sempre esclarecedores, eles exigem tambm
outros percursos mais elaborados da parte do pesquisador. Enfim,
o corpus extremamente diverso e heterogneo, por isso traba-
lhoso, exigindo conhecimentos especficos sobre os seus conte-
dos. Apesar de todos os esforos para se dar certa clareza, um
inventrio merece ser sempre retrabalhado, pois h continuamen-
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
te a necessidade de novos ajustes. Com as evidncias que ternos,
cabe ao pesquisador descobrir os caminhos nos quais o inventrio
foi construdo para poder reorganizar sua busca. Mesmo se a cons-
truo do inventrio obedeceu a tcnicas propagadas, preciso
saber que as evidncias seqenciais no so sempre credveis,
porque as verdadeiras chaves no so encontradas seno aps
muito trabalho. Com isso, quero dizer que as rotas apresentadas
pelo inventrio so preciosas para que o pesquisador possa come-
ar seu trabalho, mas cabe a ele assumir a tarefa de restabelecer
um novo caminho onde os documentos manuscritos sero deslo-
cados de um lado a outro, para serem recolocados em contato
com os seus pares, formando um conjunto coerente.
2 - Dos suportes com a escritura de campo
Para Roger Bastide a escolha do suporte urna questo de
menor importncia. Folhas avulsas de todos os tamanhos e cores,
diversos tipos de papis assim corno materiais destinados a um
uso bem preciso, tais corno os envelopes, os calendrios ou as
cartas de visita podem ser suportes para os seus registros. Da
mesma forma que nos cadernos convivem prticas de escritura
diferentes, encontramos a prtica de escritura de campo em urna
variedade de suportes. Essa diversidade vai exigir urna disposio
considervel para a leitura de documentos que, se primeira vista
no se assemelham aos materiais que esto sendo buscados, po-
dem, no entanto, conter a chave para certos mistrios. A prtica
tem nos mostrado que as classificaes dos manuscritos e seus
suportes jamais podem nos dar urna garantia e que os desvios
merecem, algumas vezes, mais ateno que a rota bem traada.
Deixando de examinar um documento, estaremos arriscando dei-
xar para trs algo precioso. Corno selecionar toda essa matria?
Talvez seja menos complicado quando se procura o manuscrito
de urna obra especfica, mas quando se trata de escrituras prepa-
ratrias corno os registros de campo, o pesquisador deve absolu-
tamente esmiuar todo o inventrio, pois a ausncia de urna no-
menclatura que defina suporte e contedo exige urna busca que
v alm da questo da terminologia utilizada e que ultrapasse a
questo das evidncias. Exemplo: as folhas azuis avulsas classifi-
cadas e descritas no inventrio corno 'algumas notas de leitura' no
167
168 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ttulo [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I] contm, alm
das notas de leitura e referncias bibliogrficas, uma classificao
e uma descrio com algumas indicaes das pginas dos conte-
dos de cada um dos cadernos de campo elaborados por Bastide
durante sua permanncia na frica em 1958. A leitura minuciosa
dessas folhas levou-me a descobertas preciosas, que significaram
um ponto de chegada e ao mesmo tempo um ponto de partida.
Nessas folhas, Bastide elabora ndices sobre alguns contedos de
seus cadernos, mas onde estariam os suportes com tais conte-
dos? Assim uma lista de assuntos com as pginas numeradas do
Cahier I continua at a pgina 188, onde ele anota: Yhovisme
(sublinhado por Bastide). Nesse Cahier I, o pesquisador ressalta
as pginas que abrigam suas notas de leitura. No entanto, quem
conhece bem esse caderno sabe que as notas de leitura esto na
mesma seqncia em que se encontram a escritura profissional,
diria, com dados obtidos no campo e tambm algumas extradas
de arquivos documentais, alm da escritura pessoal. Na prtica de
escritura de campo no vamos encontrar sempre a linearidade e a
seqncia habitual to desejada. No caso de Bastide, podemos
dizer que tanto para a classificao dos cadernos quanto para as
aes de escritura e para os suportes, as tnicas so a variedade e
a diversidade.
Seguindo a classificao do antroplogo (na folhas l,4 azuis)
saltamos do caderno I ao caderno 111 e mais tarde, ele retorna ao
caderno 11.
Cahier des Baptmes Agoue 1846 - 1880 n. lll"
+ [esses sinais esto no manuscrito]
p.l - Bres. cath.
Bres. Et arm de Franais
p. 15 - Bres. cath. (1956)
p. 17 - Bres. cath. Histoire + p.l8 (Ftichisme)
p. 19 - Les maisons brsiliennes Lagos (articIe)
A lista vai at a pgina 29 - cimetieres, inscriptions '2 .
Ao lado das pginas acima citadas, Bastide anota entre colche-
tes : [Papiers part Brsiliens Porto Novo, liste, mariages
etc.]
Em seguida e aps o trao de separao habitual h a lista
de pginas do caderno 11.
"Indicao e descrio do
contedo de algumas pginas
do caderno UI.
12 Esses contedos das pginas
fazem referncias aos dados
oriundos de documentos.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
"Indicao e descrio do
contedo de algumas pginas
do caderno 11.
p. 1 - Visite Negres Chacha
Mais adiante, ao lado das pginas, ele anota: n.lI 13
p. 13 - Port des esc1aves Ouidah
p. 15 - Baptmes Ouidah. 1876 - 1881 / 1866 - 1873
Bastide anota ao lado da p. 15 : Suite carnet ;aune -1880 e
embaixo dessa informao:
+ cahier bleu c1air - 1875.
interessante observar que, diferente do Cahier I, os con-
tedos das pginas no se referem somente s notas de leitura no
Cahier 11 e no Cahier 111, ou seja, encontramos exemplos extra-
dos do campo nesses cahiers, por exemplo: p.lO - Visite d'
Almeida; e igualmente anotaes oriundas de fonte documental,
por exemplo: p.15 - Baptmes Ouidah et p. 87 - Rle Bres.
Guerre 1914.
Assim, num mesmo caderno convivem notas de trabalho,
de campo e anotaes pessoais. Talvez a necessidade de traar
um percurso, organizando seus instrumentos de trabalho e seus
dados em relao ao seu objeto de estudo que motivou Bastide
a elaborar esses ndices dos cadernos. De qualquer forma, para
mim, esta classificao foi extremamente til. A partir dessas in-
formaes, pude identificar e selecionar alguns dos cadernos exis-
tentes no inventrio. Entre os meus achados, eu sabia faltava ain-
da encontrar outros cadernos. A variedade de documentos uma
constatao, seja do ponto de vista do material, seja em relao
ao contedo e ao suporte. No entanto, isso no me impediu de
penetrar nesses conjuntos e, assim, tentar analisar a escritura do
antroplogo, conhecendo mais de perto suas experincias de tra-
balho de campo. Normalmente, a escritura de campo e seus su-
portes (cadernos, carns) constituem-se em tomo de uma exign-
cia material, da continuidade textual e por isso o pesquisador ten-
ta evitar a priori o uso de folhas avulsas, mas isso est claro que
para Bastide uma norma que se transgride. Escrever, anotar,
registrar so as aes que orientam a conduta do estudioso e isso
ocorre sempre dentro de uma dinmica. Freqentemente, ele in-
terrompe seus registros para anotar uma questo que ser refleti-
da e discutida mais tarde, faz desenhos, esboos diversos, faz re-
ferncias a ttulos de obras, menciona trabalhos de outros pes-
quisadores, enfim, sua escritura profissional revela um dilogo
permanente entre o "aqui" e o "agora", momento performtico da
169
170 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ao do pesquisador e sua experincia acumulada. Bastide elabo-
ra inventrios para tudo: sobre seus artigos, leituras, livros, publi-
caes, listas de obras lidas ou para serem lidas, correspondnci-
as, nomes de pessoas e de amigos e isso tudo pode estar em meio
s notas de campo. Apesar de muitas vezes constatarmos a sua
falta de interesse por um suporte mais adequado ao exerccio de
seu ofcio, ele demonstra, de uma maneira particular, muito rigor
nas suas aes de escritura. No entanto possvel que, para esta
viagem de pesquisa, ele tenha escolhido alguns cadernos como
suporte, pois ele chegou mesmo a elaborar durante a viagem de
1958 um dirio de campo14 - Mon Jounal, como ele mesmo
denominou. Eu diria que Roger Bastide, alm do pouco interesse
que demonstra pelo suporte, parece preferir os suportes mais sim-
ples e os mais acessveis. Prova disso que, entre os cadernos de
campo de Bastide examinados, o Mon Journal um simples ca-
derno do tipo escolar, dois outros trazem sobre a capa a denomi-
nao de caderno de "rascunho" e um outro um caderno de
publicidade (Air France). Enfim, todos os cadernos se asseme-
lham a cadernos escolares.
3 - Entre as prticas de escritura do Mon Journal
Para tratar dessa articulao interna, ou seja, da "mise en
relation" que observamos nas aes escriturais de Roger Bastide
no interior de um mesmo caderno - o Cahier I - Mon Journal,
podemos comear dizendo que ele contm a escritura nmade e a
sedentria que pode se efetuar atravs de duas aes e em dois
momentos distintos. O antroplogo serve-se desse caderno, en-
quanto suporte, tambm em dois momentos distintos e com fun-
es distintas: suporte nmade e suporte sedentrio. Entretanto,
no que se refere s prticas de escritura, as fronteiras no so
assim to delimitadas. Em cada um desses momentos, podemos
ter a presena da escritura profissional e a pessoal. Assim, num
mesmo dia ou numa mesma pgina, podemos encontrar notas com
descries dos dados obtidos no campo, notas de leitura, refern-
cias bibliogrficas, registros de comentrios posteriores, resumos
de observaes, algumas notas margem e anotaes pessoais.
Em meio a esta variedade observei ainda a presena de anotaes
feitas aps a observao, frases conclusivas que resumem reflexes,
14Entre os cadernos encon-
trados, este o nico que foi
construdo com a escritura
diria, dia-a-dia, durante os 72
dias que passou na frica, em
1958.
Os cadernos de campo de Roger Bas\ide: entrecruzamentos mltiplos
15 Conforme a classificao
feita por Bastide, h duas
denominaes: Journal ou
cahier.
novas hipteses, diferentes problemas, lembretes (Ver V. photos),
enfim, nada parece escapar da pena do pesquisador que mantm
tudo sob controle. Importante ressaltar que, ao lado da escrita di-
ria obtida no trabalho de campo, h ainda a presena de outros
dados, mas dessa vez oriundos de arquivos (fonte documental)
O Cahier I - Mon Journal do tipo quadriculado, brochu-
ra, 192 pginas, capa cartonada de cor cinza, formato 22cmx 16,
Sem, tipo escolar. As pginas do caderno foram numeradas, elas
comportam somente a escritura manuscrita, desenhos e esboos
tambm de autoria do antroplogo. Ele preencheu todas as pgi-
nas com uma caneta do tipo esferogrfica azul com uma escrita
minscula, de leitura difcil. Como j foi dito anteriormente, esto
presentes nesse caderno a escritura profissional e a pessoal, distri-
budas da seguinte maneira por Bastide
15
: da pgina 1 pgina
182 - escritura de campo - Mon Journal- e as 10 pginas finais
foram consagradas quase que exclusivamente escritura pessoal.
No entanto, a parte destinada escritura profissional, como j foi
bem evidenciado, no contm somente a escritura de campo:
Mercredi 27 aout lettre n022
( ... ) Visite du tombeau du roi Glebe. Enorme mausole,
avec son lit au centre et moustiquaire, pour que son me puisse
se reposer. ( ... ) Apres visite au cartier des forgerons - bijoutiers.
Essas pginas esto entremeadas por notas de pesquisa do-
cumental, de leitura e tambm pela escritura pessoal :
Puis lu un peu. L'apres-midi ai pris documents potitiques sur
Brsiliens la commission des Affaires Politiques du
Gouvernement. Pass I' apres-midi et la soire les tire et
prendre des notes.
s vezes estas interferncias se do de forma ainda mais
surpreendentes. Nesse caso, a escritura profissional se justape
com a pessoal, intensificando-se mutuamente:
Samedi 16 aout lettre n013
Aujourd'hui fait un peu de correspondance. Je ne suis pas sor-
ti. V. est un peu fatigu. V. me parle malgr son mal de tte
nouveau de Ondo. Lui se demande, tant donn que le rituel. ..
171
172 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
( ... )
Mercredi 27 aout lettre N22
Dpart 11 h30 de Ouidah. Nous passons para Allada, Agun,
Bohian. Arrive Abomey, prs de 14h. l'avais mang
quelques bananes en route ( ... ).
Algumas vezes, quando a escritura pessoal ganha espao,
ela sempre entremeada por uma escritura de memria, de agen-
da que acaba por remeter de forma mais ou menos direta ao
trabalho de pesquisa:
Lundi 15 septembre lettre 37
Ce matin course et promenades dans Porto Novo
Vendredi - 29 aot - crire Christiane (fille de R.Bastide)
Lundi 1 septembre
Le soir Cotonou. Diner chez Platonoff. Rentr vers 11h Y2.
Bavard avec V. presque vers 1 heure.
Dimanche 14 septembre
Ce matin rest la maison p. travailler. Un peu de fievre
No entanto, a partir da pgina 183, ele anota:
Appendices
l6
(pginas no numeradas). Desta vez a escritura
profissional est menos presente, trata-se sobretudo de uma escri-
tura pessoal: contabilidade, listas de compras e de presentes para
a famlia. Temos aqui a presena do Bastide organizador de listas
interminveis. Entretanto, a escritura profissional entra sorratei-
ramente e se mistura escritura pessoal de uma forma menos acen-
tuada, mas suficientemente verificvel.
4 - Da escritura profissional com a correspondncia e a
fotografia
Na obra autogrfica de Roger Bastide h uma forte presen-
a de colaboradores, como se houvesse uma sociabilidade de cri-
ao. Nos traos da sua escritura autogrfica o coletivo junta-se
ao individual. A importncia da correspondncia se faz num dilo-
go a quatro mos e confirma uma vez mais o atributo coletivo
bem marcado na sua escritura. Em seu dirio de campo - Mon
lournal, ao lado da data ele registra o nmero da carta que escre-
veu assim como o nmero da foto que certamente est relaciona-
16 Como j explicamos, trata-se
apenas de uma diviso material
do suporte, pois em matria de
aes de escrituras, elas
continuam a transgredir as
fronteiras das partes material-
mente estabelecidas.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
da com as notas ali registradas. Exemplo:
p. 25, ele anota: Lundi 28 - Lettre nO 1.
p. 27 : Mardi 29 -lettre n02
Vendredi 5 Septembre. Lettre nO 28 (photo 3)
Fizemos a leitura de grande parte da correspondncia de
Roger Bastide. No que concerne aos destinatrios sei que uma
grande parte era de amigos e colegas de profisso; representantes
de rgos pblicos interessados em pesquisas cientficas, repre-
sentantes de editoras e revistas especializadas. Bastide sempre
trocou cartas (profissionais e pessoais) com seus alunos, seus ex-
alunos e colegas de profisso. O Cahier I, Mon Journal informa-
nos que, alm das cartas destinadas aos amigos e colegas, esto
tambm registradas as que ele enviava sua famlia.
A carta por definio algo que se compartilha. Ela tem
muitos aspectos: enquanto prtica de escritura, um objeto que
se troca, um ato no qual esto em cena "eu, ele e os outros". A
carta, um texto autogrfico, distanciado de seus atores toma-se
documento. Assim, enquanto documento a correspondncia vai,
como outros documentos, estabelecer uma rede de relaes,
possibilitando interlocues com os destinrios/remetentes, mas
igualmente com os dados de campo registrados por Bastide em
seus cadernos e seu objeto de estudo.
Na frica, em 1958, em Mon Journal, Bastide conserva
ainda viva a questo do "desafio popular", discusso mantida com
intelectuais brasileiros durante dcadas:
Mercredi 27 aout - lettre n.22
Visite du Palais des Rois ( ... ) lmportance du symbolisme. Le
symbolisme dict par les proverbes. Ce qui fait que I' objet a
la fois 1 sens concret et 1 sens abstrait. II y a l 1 trait de
mentalit africaine que je retrouve dans le desafio: la mentalit
rbus.
A leitura da correspondncia que tomou possvel, primei-
ramente, a compreenso mais aprofundada deste registro de cam-
po e ainda me deu a oportunidade de acompanhar o debate sobre
o "desafio" que durante dcadas Bastide, pacientemente, mante-
ve com escritores, poetas e intelectuais brasileiros.
l73
174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Uma quantidade considervel de cartas endereadas a
Bastide consta do arquivo (de Mrio de Andrade, Cmara Cascudo,
Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, entre outros). Algumas delas
tratam de assuntos bem precisos, discutem conceitos e produes
cientficas (17 cartas de Lvis-Strauss
11
), outras abordam direta-
mente a pesquisa, algumas tratam diretamente de questes pesso-
ais e h aquelas em que a escritura profissional e a pessoal convi-
vem no texto em perfeita harmonia. Nesse sentido, citaramos as
cartas de Pierre Verger
18
Das 44 cartas classificadas no ttulo
[Bibliographie (Voyage Afrique)], algumas delas tratam especifi-
camente da viagem frica, em 1958. Nelas o antroplogo P.
Verger coloca-se disposio para receber e acompanhar o ami-
go e colega no seu itinerrio de pesquisa. Envia tambm informa-
es detalhadas sobre a viagem e a chegada. Sobre a confirmao
destas trocas preliminares que antecederam a viagem de Bastide,
podemos encontrar algo similar na primeira pgina do M on
Joumal, de Roger Bastide.
No que se refere s fotografias ali anotadas, elas so na
maioria de autoria de Pierre Verger. Isso vai possibilitar, sem d-
vida, a produo de uma iconografia das idias, mas tambm dos
documentos manuscritos e inditos de Roger Bastide.
Uma folha branca avulsa (A4) traz uma lista feita por Bastide
sobre sua produo de artigos, os que ele tinha a inteno de escre-
ver e publicar. Esta lista nos informa o interesse do pesquisador em
divulgar os resultados de seu trabalho realizado durante sua estada
na frica com Pierre Verger. Aqui tambm o material fotogrfico,
principalmente o de Pierre Verger, integrado a sua produo.
1- Livre? - Remonte aux Sources R.B - Photos V. (10 14)
2- Bulletin Etudes Dahomennes - (pour Lombard) - P.V et
R.B Description d'une crmonie religieux -
Photos V.
3- Pour Monod - Bulletin IFAN ? - (simple article sur Ies
aspects) R.B Une tude sur les Brsiliens
4- Peut tre ultrieurement livre les plus dvelopp sur les
Brsiliens d' Afrique qui a dj un diteur si Monod ne Ie prend
pas, la VI Secteur va Ie demander
5- Pour le Congres : Rapport Gnral sur Ies Marchs -
P.VetR.B
6- Pour Annales de L.Febvre Iong article sur les Marchs -
17 A autorizao para a leitura
das cartas foi concedida por
Claude Lvi-Strauss atravs de
carta manuscrita.
18 Recebi, igualmente, autoriza-
o da Fundao Piem: Verger
(Salvador/BA) para ler as
cartas de P. Verger.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos
19 Temos neste caso mais uma
prova que a classificao do
inventrio considerou mais a
pertinncia entre os contedos.
P. V. et R.B 2 4 Photos V.
7- Articles Revue de Paris: Ftes d'Oxum ? ou autre
ermonie ? R.B
5 - Das viagens com os temas
As viagens de trabalho se sucedem na vida de Bastide. Em
cada uma delas, o pesquisador carrega consigo os seus temas de
estudo, bagagem cara ao estudioso que segue sempre acompa-
nhado de suas problemticas e hipteses. E, assim, fazendo parte
da mesma trama, os fios se multiplicam (dados), fortificando os
laos (relaes e concluses) que a experincia outorga ao estudi-
0so. Os documentos reunidos no ttulo [CAHIER DE VOYAGES :
DAHOMEY ET NIGERIA I], especificamente uma folha branca avulsa
que traz um texto de Bastide sobre o Bumba-meu-boi (Burrinha),
ilustra de forma exemplar o que acabo de afirmar. Este texto faz
parte do mesmo conjunto do Mon Joumal, dirio de campo de
1958
19
, e est datado: (Dimanche 27 mars 1 9 ~ 6 - Ouidah.
Association Francisco da Rocha).
Ainda no encontrei mais informaes sobre esta viagem
frica feita por Bastide em 1966. Entretanto, os dados de campo
obtidos por Bastide confirmam que a viagem de 1966 aconteceu,
pois identifiquei em sua escritura de campo uma comparao en-
tre os dados obtidos nessa viagem e na viagem anterior, realizada
em 1958. A escritura contida na folha avulsa interage com a escri-
tura diria, Bastide estabelece relaes entre as viagens, entre os
dados, fazendo mais uma vez circular no tempo, no espao e no
contexto o seu objeto de estudo:
Aujourd'hui dans la mme ville de Ouidah, variation par rapport
ee qui j' avais vu la demiere fois = il semble done bien que si
mme strueture ou sehma, grand rle de spontanit cratrice
des animateurs.
( ... ) Noter aussi variation des masques vu encore mme type,
mais le Water mamy, malgr ses 2 serpents, avec sa figure
blanche, ses lunettes = 1 vieille danse crole davantage que
mythique). Par les bouviers avec son grand chapeau de paille
etc. (ver p.2 do dirio de campo, de 1958).
O confronto de relaes que assinalamos durante esse tra-
175
176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
balho est mais uma vez presente na variedade das prticas de
escritura assumidas pelo estudioso. Para ilustrar o que acabo de
afirmar, podemos citar o artigo sobre a "Burrinha" publicado em
2002. Ao l-lo, sentimos a presena da escritura preparatria rea-
lizada no campo, fonte imprescindvel para que uma outra ao de
escritura desse a luz ao artigo, tornando pblica uma experincia
nica e pessoal. Da mesma forma, pude perceber numa leitura em
seqncia as relaes estreitas existentes entre as duas produes
escriturais, apesar de cada uma estar escrita em uma lngua dife-
rente, pois o artigo foi publicado em portugus, e parece dar con-
tinuidade ao primeiro, estabelecendo uma relao circular entre a
escritura de campo e escritura da obra.
No artigo "A Burrinha de Uid", (texte de Roger Bastide et
photos de Pierre Verger), publicado no livro VERGERlBASTIDE
- Dimenses de uma amizade, temos a revelao de um desejo
que ser responsvel por mais uma viagem, e a confirmao da
busca permanente de temas que lhe so caros e que circulam nos
interstcios da terras do Brasil e da frica. Assim escreveu Bastide:
"Foi essa vontade de rever o. Brasil que me levou, nestas frias, a
ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os brasileiros de
Uid, de Porto Novo e de Lagos, que ele conhece to bem. E o
Brasil- esse Brasil importado para a terra africana pelos descen-
dentes dos antigos escravos que voltaram para l com a religio, a
lngua e os costumes do Brasil - mais uma vez realizou meus de-
sejos: no prprio dia em que desembarquei do avio, sem ter tido
tempo de desfazer a mala, de me instalar, Verger me arrastou a
Ui d para assistir a uma "Burrinha" deliciosamente brasileira."
(Bastide, 2002: 77)
Primeira pgina do dirio de campo:
13 juillet
Arrive Kotonou - Verger m'attend avec camionnette IFAN
20 Beau temps, mais nuages vers le soir. Dpart pour Ouidah
21
(40 Km environ) un dtner chez M. Bisson, ma ire. La maison
me rappelle trangement le Brsil " on mange dehors, en se
servant soi-mme, parmi les fleurs, les arbres, sous un
manguier. Paysage un peu rcifien
22
un peu Apipucos.
Plusieurs membres de la colonie franaise , blancs ou
Martiniquais, Guyanais - Le matin, visite du march - L' apres-
midi, visite du quartier Brsil . Rptition de la
20 IFAN: Institut franais de
I' Afrique noire
21 Ouidah = Uid.
22 Os dicionrios Larousse
(2002) e Le PerU Roberr (CD
2001-2003) trazem o subs-
tantivo rcif e o adjetivo
rcital - e - aux. A forma
utilizada por Bastide no consta
nesses dicionrios. A palavra
recifien talvez faa parte das
conhecidas adaptaes (francs
e portugus) criadas e utilizadas
por Bastide.
23 "Burrinha" o nome que
recebe em Dahomey a festa
popular do "Bumba-meu-boi".
Os cadernos de campo de Roger 8astide: entrecruzamentos mltiplos
24 A palavra fazendaire pode
ser o mesmo caso da palavra
recifien: adaptaes lings-
ticas.
25 Escolhi esse sinal (=)
para representar as palavras no
legveis.
26 Escolhi esse sinal (l1I1I1I/) para
representar as rasuras do texto.
Burrinha
23
. 2 pandeiros, 2 tambours (plusieurs noms
donns, marcha = marcha militaire) - Danses de 2 mas-
ques (masques achets chez commerants) ,- apparition de
cheval marin , tres bien - La desse des eaux avec son
allure de dame fazendaire2
4
, avec ses lunettes, etc., et ses
serpents caraibes (quelle peut bien tre l' origine de ce mas-
que ?) avec ses 2 dames d'honneur, 1 plus brsilienne
d' allure et I' autre plus africaine, avec coiffure africaine, toute
jeune est tres jolie, dignit de reine, orgueil. Rptition des
sambas. Loi de la mmoire collective .- fragments de phrases
brsiliennes et tn::n:::n:(25 phrases dtaches, remplissage ave c
de phrases africaines (syncrtisme linguistique), mais intrt I
11111j26 Verger leur copie les chants plus nettement brsiliens
de Porto-Novo - La f te tait tombe en dsutude, le nouveau
maire qui veut redonner vie Ouidah (peu I' gal Kotonou)
IIIII demande de la reprendre.
As viagens, os temas, as aes de escrituras, os autores e as
experincias colocam-se em relao dinmica onde tambm vo-
zes se cruzam. O exemplo mostra como surge da escritura de
Verger a escritura de Bastide, desta vez vinda da experincia do
campo que ambos compartilharam. Deixando para trs o contato
dirio com o campo de pesquisa, muda a ao da escritura, pre-
serva-se a experincia vivida, muda-se a ao do olhar, d-se con-
tinuidade trama, fios interminveis, "mise en relation" de uma
prtica, de uma obra, de uma vida e assim a viagem continua e
Bastide quem diz:"Mas outros deveres me esperam em Paris, e eu
no verei outra vez as 'ias' de Xang, que me fizeram sonhar em
pleno corao de frica, e as suas irms que esto do outro lado
do oceano"(Verger:2003, p.SO).
177
178 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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IMALRAUX, Andr. Satume;
le destin, I' art et Goya. Paris:
Gallimard, 1978. Doravante, S,
seguido do nmero da pgina.
2 Longe de qualquer interpre-
tao romntica da arte como
meio de salvao do artista,
importa perguntanno-nos em
que sentido a arte pode real-
mente ser um anti destino. Se
no pode constituir um
instrumento eficaz no combate
contra a violncia e a morte,
pode ao menos, como diria
Malraux no prefcio de Le
Temps du mpris ''tentar dar
aos homens conscincia da
grandeza que ignoram em si
mesmos" (Le temps du mpris.
Paris, Gallimard, 1935, p. 9).
Ou, se pensarmos na questo da
metamorfose atravs dos
tempos, havemos de entender
que o antidestino da arte - ou
seja: o fato de sempre escapar
fixao das formas e do
sentido - a bem dizer seu
primeiro destino enquanto obra
de arte.
Da representao do horror ao vazio
da representao
Edson Rosa da Silva
(UFRJ / CNPq)
L'horreur, en effet, ne s' annule que par un exces d'horreur.
Georges Bataille. L'rotisme*
o livro que Andr Malraux escreveu sobre o pintor espa-
nhol Goya em 1950, intitulado Satume', sempre me pareceu
revelador de sua relao com a idia de sagrado e a idia de mor-
te. No com a idia de religio, mas com uma dimenso sagrada
. que ultrapassa qualquer crena ou ritualizao dogmtica. a partir
desse sagrado que, segundo Malraux, obseda Goya e que nos
a..tinge por seu carter negativo (S, 156) que ele analisa a obra
~ t r o z do pintor espanhol. Mas como se manifesta esse sagrado?
No seria certamente por uma invisvel presena sugerida pelos
mitos ou por uma luz que para ele apontasse, diz Malraux, que
acrescenta a seguir: O nico meio que possui a arte de tentar a
expresso [de tal sagrado] o de restabelecer o contato com tudo
aquilo que transforma o artista apenas num momento de passa-
gem: o sangue, o mistrio, a morte (S, 157).
Duas idias esto embutidas a: a de que o artista no pode
resgatar de forma romntica e nostlgica o que a morte destruiu
(o que me leva a contestar uma compreenso ingnua da famosa
afirmao de Malraux: A arte um antidestino2 , que no cabe
aqui discutir); e a outra idia que afirma que s pelo contato
com a morte que o artista conseguir exprimir o sagrado,
claro que este sagrado a que me refiro no o sagrado
dicotmico do cristianismo: o sagrado pleno, aquele que,
etimologicamente, rene puro e impuro, aquele que, no rastro da
reflexo de Nietzsche, poderamos chamar de sagrado dionisaco,
181
182 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
em que no h dualismos nem separaes, em que se encontram
criao e destruio, prazer e dor. Ao tratar do tema da violncia
e do sagrado, Georges Bataille, no sem sugerir a filiao
nietzschiana, insiste ao longo de sua obra na ntima relao entre
o homem e a animalidade, e acentua a tenso que o abjeto, a
souillure, introduz no humano, estabelecendo assim um vazio-
fora-da-humano onde as antinomias se esvanecem, onde a expe-
rincia (que Bataile chama sempre de experincia interior) con-
fronta o que se pensa e o que se vive. nesse timbre que busca
conjugar todas as formas do aparentemente humano com as inevi-
tveis conseqncias do inumano que diz, em O erotismo, que o
horror da morte no se acha unicamente ligado ao aniquilamento
do ser, mas ao apodrecimento que lana as carnes mortas na fer-
mentao da vida 3
Tento construir, assim, um instrumental conceitual que me
permita tratar o abjeto como um cruzamento de sentidos, em
que se encena um paradoxo: o do abjeto (ab-jectum) rejeitado
pelo humano, mas que do humano provm. O abjeto uma me-
tfora da repulsa / atrao da morte. Eis por que a representa-
o do horror sempre choca e, ao mesmo tempo, fascina o hu-
mano. Eis porque o mal, muitas vezes temido e rechaado, ,
por vezes, necessrio e desejado.
sobre esse jogo antittico - extremamente baudelairiano
- que gostaria de discorrer, comparando alguns episdios que
me parecem altamente significativos dentro dos romances de
Andr Malraux nos quais podemos contemplar a beleza terrvel
e sagrada da morte, a fascinao do mal e os processos da abje-
o: o primeiro trata do momento em que Claude e Perken, per-
sonagens do romance La Vaie royale [A Estrada real, 1930] que
se passa na floresta do Camboja, reencontram Grabot, persona-
gem prisioneiro de uma tribo selvagem local; e o outro aquele
em que Garine e o narrador do romance Les Conqurants [Os
Conquistadores, 1928], que trata da guerra de Canto, em 1925,
na China, encontram o corpo de um combatente alemo terri-
velmente torturado.
3 BATAILLE, Georges, op. cit.,
p.63.
Da representao do horror ao vazio da representao
4 L'hautontimoroumnos ,
in : Oeuvres completes, t. I.
Paris: Gallimard, 1975,78.
5 Todas as citaes dos
romances remetem
edio coletiva da Pliade:
MALRAUX, Andr. Romans.
Paris: Gallimard, 1976. A
pgina ser indicada entre
parnteses, precedida da sigla
do romance em questo: VR
(La Voie Royale), C (Les
Conqurants), CH (La
Condition Humaine). As
tradues so de minha
responsabilidade.
*
Je suis la plaie et le couteau !
Je suis le soufflet et la joue !
Je suis les membres et la roue,
Et la victime et le bourreau !
Charles Baudelaire 4
As primeiras aluses vida de Grabot o fazem mergulhar
numa atmosfera de lenda e de mistrio. Enquanto buscamos com
Claude, um arquelogo, e Perken, um aventureiro conhecedor da
regio, os templos khmers perdidos na floresta asitica, participa-
mos ao mesmo tempo da ansiedade de Perken medida que nos
aproximamos da regio onde se encontra aquele personagem. A
partir da terceira parte do romance, a busca arqueolgica deixa de
constituir o centro de interesse da expedio, cedendo o lugar
luta do Perken pela libertao de Grabot.
Ao partir para a regio dos conflitos na sia, esse persona-
gem no o fizera to simplesmente por interesses econmicos ou
polticos; buscava, sobretudo, responder a uma necessidade im-
periosa de acertar as contas consigo mesmo5 (VR, 219). Volta-
se para sua prpria solido. Algo o separa dos outros e o torna
diferente: a sua coragem. Esse o germe do conflito que tam-
bm vai dominar Tchen, o famoso terrorista da Condio Huma-
na. Para esses dois personagens, arriscar a vida um prazer, j
que a morte no lhes causa medo; ao contrrio, ela os fascina.
Gtabot capaz de ultrapassar todos os limites para expor-se e
perder-se, para gozar de um prazer terrvel: o prazer de sua pr-
pria dor. nesse sentido que, segundo Bataille, a perda se instala
como um meio de aquisio de um poder sobre si mesmo e uma
nova fora sobre o mundo. nesse sentido que ultrapassa a di-
menso humana para alcanar uma dimenso sagrada, na qual o
gesto da morte e o ato do sofrimento participam da fora de um
sacrifcio ritual.
assim que a mutilao, que Grabot se impe causando a
destruio do prprio olho com pus blenorrgico, permite-lhe, na
experincia da dor, a vitria da coragem sobre o medo. Diante de
um escorpio que lhe causa forte repulsa, sua atitude a mesma:
ao invs de fugir, expe-se e deixa-se picar de propsito (VR,
183
184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
245-246). Toma-se assim um agente do mal, um transgressor.
Como os reis das comunidades primitivas que, no momento de
sua entronizao, transgrediam as leis mais sagradas e eram agre-
didos pelos sditos que os sujavam de sangue e excrementos para,
assumindo o abjeto, conquistarem o poder de exorcizar a prpria
abjeo: contaminando-se com o impuro, absorviam o veneno do
mal. A singularidade do gesto de Grabot confirma seu isolamento.
Com efeito, no o ato de violncia que lhe impe a
marginalizao. Pelo contrrio, sua excluso precede o ato e exi-
ge o sacrifcio, pois a excluso a marca da eleio. Enquanto
pharmakos, espcie de vtima sacrificial, ele encerra a ambigida-
de caracterstica do sagrado: etimologicamente a palavra latina
sacer, sacra, sacrum possui dois sentidos que se excluem: sagra-
do e maldito, aquilo que no se pode tocar sem sujar e o que no
se pode tocar sem se sujar. Carregando no seu prprio corpo o
bem e o mal, Grabot se distingue fisicamente do homem comum,
tomando-se dessa forma o ponto de convergncia das diferenas,
o objeto multiforme, o homem-animal, humano-inumano, resolu-
o das antteses.
Prisioneiro dos selvagens, Grabot condenado a empurrar
a m de um moinho, como num crculo infernal absurdo. Quando
Claude e Perken penetram na palhoa sem janelas para libert-lo,
eles o reencontram como um objeto aterrorizador, um rosto
aviltado (VR, 260), cujos olhos no vem, um corpo brutalizado
(por ele mesmo e pelos outros). A reao dos dois traduz o emba-
rao angustiante diante do desconhecido que o corpo do escravo
ainda misterioso lhes impe. A impossibilidade de aproximar-se
dele reside no fato de que suas plpebras esticadas coladas em
um osso ausente davam a esse rosto o aspecto de uma degrada-
o terrvel. Grabot parecia um cadver, imagem da decadncia
humana.
Exorcizar o mal , para ele, antes de tudo, encarn-lo, assu-
mindo assim uma forma inumana. Assustadora ilustrao do para-
doxo da paixo de viver e da intimidade com a morte, contra cujo
absurdo luta sem trguas. E o melhor meio de faz-lo antecipar
sua forma abjeta, incorpor-la com toda a conscincia, consci-
ncia semelhante do Ssifo de Camus, opondo-se dessa forma ao
jogo do destino, atacando-o com as mesmas armas.
Nesse sentido, o rosto de Grabot que tentei esboar, evoca,
Da representao do horror ao vazio da representao
. Les Aveugles ,
BAUDELAIRE, Charles, op.
cit,92.
a meu ver, a figura do homem em uma espcie de nudez fora do
tempo. Sem voz e sem viso, esse corpo assusta e fascina, como
se alcanasse o silncio mais eloqente e a viso mais ilimitada.
Se aludi anlise que faz Malraux dos desenhos de Goya, que
vejo ali, sob a forma de um ensaio, a mesma imaginao que ge-
rou os personagens romanescos. Falando dos torturados dos De-
sastres da guerra, Malraux afirma: "Quando o que ele pinta tem
relao com o atroz - que o tenha visto, que lhe tenham contado
ou que ele mesmo imagine - Goya mantm sua ligao com o
intemporal. O supliciado, o homem de braos cortados suspensos
nos galhos, que evocam a tortura milenar [ ... ] esto nus - fora do
tempo." (S, 115). Ora no poderamos evocar aqui Grabot, que
acabamos de ver?
*
Leurs yeux, dont la divine tincelle est partie,
Comme s'ils regardaient au loin, restent levs
Au ciel ; on ne les voitjamais vers les pavs
Pencher rveusement leur tte appesantie.
Ils traversent ainsi le noir illimit,
Ce frere du silence temel.
Charles Baudelaire
6
Garine e o narrador de Les Conqurants encontram em uma
sala o corpo do combatente alemo Klein terrivelmente tortura-
do, ao lado de trs refns chineses.
Diante desses corpos mortos e degradados, os personagens
se sentem confusos, como se se encontrassem subitamente face a
face com algo misterioso e incompreensvel. Com efeito, a sensa-
o de estranhamento que os invade a sbita revelao de um
outro mundo. Eis o que diz o narrador: esses corpos de p tm
algo, no de fantstico, mas de surreal nessa luz e nesse silncio.
Consigo respirar de novo agora, e, com o ar que aspiro, invade-
me um odor que a nada se assemelha, animal, forte e inspido ao
mesmo tempo: o odor dos cadveres (C, 129).
A presena dos mortos transforma inteiramente o espao
em que se encontram. A posio ereta dos corpos contra a parede
185
186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
d uma dimenso diferente a esses cadveres que no tm a pos-
tura habitual dos mortos, mas que parecem invadir, de certa for-
ma, o mundo dos vivos. Donde a reao do narrador que, pene-
trando na luz radiante e no silncio, v a algo que ultrapassa os
limites do real. Tudo se transformou, como o ar, dominado por
um odor animal mais forte do que a presena dos homens.
um momento ao mesmo tempo de ruptura e de reencon-
tro: ruptura com a vida e reencontro do humano com o inumano.
E desse encontro nasce, como uma fora estranha e dominadora,
a fascinao. Os corpos torturados de Klein e dos trs chineses
projetam na atmosfera silenciosa da sala uma aura sagrada. E,
diante dessas vtimas, Garine e o narrador so submetidos a uma
experincia mstica: aproximam-se da morte e estabelecem com
ela laos de intimidade.
Aos olhos do narrador, o corpo de Klein impe-se como a
imagem concreta da tortura. E descrio inicial do romance,
quando o texto apresenta o militante como um homem grande e
forte, vem sobrepor-se a de um corpo mutilado, com uma enor-
me mancha no meio do rosto: a boca rasgada com uma navalha)),
diante do qual o narrador desvia os olhos: feridas abertas, gran-
des manchas escuras de sangue coalhado, olhos revirados, todos
os corpos se parecem. Foram torturados ... (C, 130). imposs-
vel no se pensar em Goya diante deste quadro! Como Goya,
Malraux rompe com a tradio do belo, do real agradvel vista,
e descobre em um percurso por outros j trilhado a beleza do mal.
Por isso, sua obra pontilhada de quadros atrozes que, como o de
Klein e como a produo do pintor espanhol, trazem a revelao
ou a seduo do horrvel: A terrvel forma da seduo chama-se
fascinao7. Ora, diante de Klein e dos Chineses, achamo-nos
diante desse in temporal de que fala Malraux a propsito de Goya
- a tortura milenar - que nos transporta para fora do tempo.
A chegada da mulher de Klein introduz nesse quadro j to
denso e sobrenatural um personagem novo. Imvel diante daque-
le corpo, sem chorar, ela o contempla. De sbito, cai de joelhos.
No reza. Parece atrada pelas marcas das atrocidades, como se,
por elas, e apenas por elas, se lhe revelasse naquele momento a
significao mais profunda do sangue: a eterna questo da morte
dos homens. E num gesto de amor, essa mulher-sem-nome, essa
mulher-sofrimento, toma nos braos o corpo do marido (C, 131),
7 \1ALRAUX, Andr. Dessins
de Goya au Muse du Prado.
Genve : Skira, 1947, p. XIII.
Da representao do horror ao vazio da representao
recuperando, assim, no romance (e na obra, onde a presena fe-
minina to reduzida) a imagem terna da Piet. A figura da me
no incompatvel com o universo cruel e violento que a vive-
mos e ainda menos com a mulher do militante alemo. Alis, a
Piet ela prpria uma figura plena de contrastes, pois rene para
sempre (como um destino petrificado!) a dor e o amor. Ela abraa
a morte com um gesto convulsivo: sacode a cabea com um
movimento incrivelmente doloroso de todo o busto .... . Esfre-
gando-se contra o sangue derramado, maculando o prprio corpo
com os restos do humano, essa pobre mulher acentua o carter
absurdo da morte: com uma terrvel ternura, esfrega seu rosto,
de forma selvagem, sem um soluo, no lenol ensangentado, nas
chagas (C, 131).
Esse quadro to expressivo que Malraux nos apresenta re-
ne tambm - e de forma magistral- pela presena da mulher ama-
da ao lado do cadver do marido as figuras de Eros e de Tnatos.
Em outras palavras, funde numa mesma imagem dois gestos que
se assemelham fundamentalmente: o do amor e o do sacrifcio. E
com seu gesto de amor, a mulher confunde-se com a morte, em
uma comunho fascinante e terrvel, em um dilogo que, embora
mudo, diz muito mais do que qualquer tratado sobre a morte.
*
Os exemplos que apresentei como formas de pensar e de
representar o abjeto so apenas dois momentos dos inmeros que
encontramos nas literaturas e nas artes. Nada de novo. A primeira
questo que me movia nessa reflexo era delimitar um espao de
significao do abjeto que , ainda, a meu ver, e continuar sendo,
muito amplo, pois envolve manifestaes diversas de um gesto
que lana longe (ab-jecta) aquilo que nos repulsa, mas que, por
outro lado, no se pode inteiramente separar do ser humano. A
segunda questo referia-se aura sagrada que esse abjeto instau-
ra. O terrorista um sacrificador: o homem-bomba imola e Se
imola. Por isso, emaranhando vozes como Bataille. Kriste\"3..
Nietzsche, mesmo se nem sempre mencionados. circunscreYi esse
abjeto em torno da morte e de seus avatares.
A terceira questo pensar a representao do abjeto e in-
dagar sobre sua eficcia. inegvel que a arte constitui para o
187
188 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
artista um manancial de vida, um espao de ressurreio onde,
apesar da violncia e da morte, reencontra ou tenta reencontrar
ainda o equilbrio das coisas. O artista cria, instaura novas rela-
es, um novo mundo (mesmo que imaginrio). Seu gesto tem
fora demirgica, tem poder contra a violncia. Mas at que pon-
to?
Em Notas de literatura, onde Adorno discute a funo da
obra engajada, essa pergunta assume um lugar de destaque. Refe-
rindo-se pea de Sartre, quando algum pergunta em Morts sans
spulture se h sentido em viver enquanto existem homens que
batem em outros at que os ossos se quebrem, diz que uma per-
gunta se impe ao mesmo tempo: a arte ainda pode existir? Em
um dilogo com o espanhol Alvear, professor de Histria da Arte,
Scali, intrprete de Masaccio e de Piero della Francesca, profes-
sor da Universidade de Florena, diz no romance A Esperana,
que relata a guerra civil espanhola de 1936: Nas Igrejas do sul,
onde combatemos, vi diante de quadros enormes manchas de san-
gue. As telas perdem sua fora (E, 835). Ao que responde Alvear:
Seriam necessrias outras telas, s isso.
O que Alvear queria dizer com isso no fica claro. Creio
que cada tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas re-
presentaes. Que escritores e artistas venham apresentando cons-
tantes protestos contra a violncia que grassa ao nosso redor, no
h a menor dvida. O que eu queria arriscar como reflexo ob-
servar que, ao lado de inmeras formas concretas de representa-
o, a representao do vazio tem cada vez mais lugar e plena
de sentido.
Temos assistido na literatura e nas artes a uma reflexo cons-
tante sobre a ausncia, o vazio, o silncio. A linguagem perfeita
do silncio escaparia a toda e qualquer materialidade fsica que a
pudesse macular. A ausncia do livro, para Blanchot, parece no
querer corporificar a obra, mas alimentar o processo, como se,
pela no existncia, nada se pudesse corromper.
Penso que h uma migrao da representao concreta para
uma representao pela ausncia. Dois exemplos me vm lem-
brana. Visitei em julho de 2004 o Judisches M useum em Berlim,
construdo pelo arquiteto Daniel Liebeskind. O museu organi-
zado a partir de trs eixos que se entrecortam: o da continuidade,
o do exlio e o do holocausto. So salas altas, grandes, corredores
Da representao do horror ao vazio da representao
imensos e tudo quase vazio. H salas com quadros de artistas
judeus e outras salas vazias, numa ausncia eloqente de quadros
que sumiram, foram destrudos, ou nunca existiram. Talvez se
pudesse chamar isso de uma instalao do Vazio da Morte. A sala
das mscaras humanas, de ao, sobre as quais somos convidados
a caminhar, causando um barulho metlico, agressivo, hostil -
barulho abjeto - do humano desumanizado algo que causa dor e
repulsa.
O segundo exemplo o monumento que, naquele julho, ainda
estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de
Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg.
Tmulos vazios, plenos de lembranas. Era o centro do III Reich.
Parece um cemitrio. Mas no h corpos. S pedras. o monu-
mento da ausncia.
Creio que possvel pensar essa ausncia-plena. Plena de
memria, vazia de forma humana. Ainda no sei bem como elabo-
rar essa reflexo. Mas parece-me que a forma vazia, tal qual a
linguagem do silncio, uma forma de proteger o j desumanizado,
ou pelo menos de impedir a sua nova desumanizao. Forma pre-
cria, talvez, de preencher o vazio com a memria que no se
apagou. Parece um simples jogo de palavras, mas no . Pelo menos
para mim no . Cria-se o espao da morte, onde no h morte,
porque a morte nada pode contra a morte.
Fiquei perplexo como diante do sagrado. Recolhido. Emo-
cionado. Muito mais do que diante da exibio abjeta dos cabelos,
das malas e dos sapatos de Auschwitz.
Estou convencido de que a ausncia uma nova forma de
reflexo e de representao da catstrofe e do horror.
189
'Lady Makby, marido Ideal
(1895), in Beckson, Karl (Org).
O melhor de Oscar Wilde.
Traduo Dau Bastos. Rio de
Janeiro: Garamond, 2000.
'Ulman, Ellen. Perto da
mquina. Traduo Mrcio
Grillo. So Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 200 I, p. 123.
lKolata, Gina. Clone: os
caminhos para Dolly e as
implicaes ticas, espirituais e
cientficas. Traduo Ronaldo
Srgio De Biasi. Rio de Janeiro:
Campus, 1998, p. 21.
4Perrone-Moiss, Leyla.
Derrida no Rio. Folha de So
Paulo, Caderno Mais! So
Paulo, 8 de julho de 2001.
'Huxley, Aldous. Admirvel
mundo /lOvo. Traduo Vidal
de Oliveira e Lino Vallandro.
26a. edio - So Paulo:
Editora Globo, 2000, p. 9-10.
'Kolata, Gina. Clone: os
caminhos para Dolly e as
implicaes ticas, espirituais e
cientficas. Traduo Ronaldo
Srgio De Biasi. Rio de Janeiro:
Campus, 1998, p. 7.
A literatura e a virtualizao do texto
literrio
Rogrio Limo
(UnB)
Nada mais perigoso do que ser demasiado moderno: corre-se o risco
de sair de moda muito rapidamente.
Oscar Wilde I
Viver virtualmente uma arte. Como qualquer arte, a virtual idade no
nem estvel nem segura.
Ellen Ullman
2
o ps-moderno e a literatura Frankenstein
Chamamos ateno para a seguinte questo: talvez se deva
pensar a questo do virtual, ou de sua invaso do territrio liter-
rio, enlaando, pelo menos para comear, trs referncias inevit-
veis: complexidade, velocidade, interdisciplinaridade. Elas nos
proporcionaro, combinadamente, outras possibilidades de refle-
xo. E neste momento, diante da polimorfia do virtual, da lenti-
do da letra e da velocidade da imagem, a sada jamais ter de ser
a clonagem da literatura.
Segundo Gina Kolata a clonagem uma metfora e um es-
pelho. "Ela nos fora a contemplar a ns mesmos e os nossos
valores e a decidir o que importante para ns e por qu."3 Para
Jacques Derrida a clonagem se configura como uma repetio
calculada da identidade gentica de um indivduo
4
, da mesma for-
ma como Huxley denuncia o fato em seu Admirvel Mundo Novo
ao descrever a fria racionalidade do Processo Bokanovisky5. A
bokanovskizao a metfora de Huxley para a aplicao da li-
nha de montagem fordiana reproduo humana. A clonagem
implica na produo e no na gerao de um ser
6
; essa afirmao
coloca a literatura em um impasse entre a criao e a produo.
191
192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A clonagem da literatura deve ser interpretada como uma
repetio em srie daquilo que j est posto pela prpria literatu-
ra. O ps-modernismo opera justamente no sentido contrrio ao
da clonagem, que entendemos estar muito mais afeita ao cnone
ou prximo do que Barthes chama de texto legveU Os textos
legveis "So produtos (e no produes) que constituem a enor-
me massa de nossa literatura".
8
Esses so textos da esfera do pos-
svel e no do virtual.
O ps-moderno trabalha com os signos cristalizados da cul-
tura e tem por finalidade questionar valores estabelecidos e elabo-
rar um novo objeto artstico, utilizando como material de sua com-
posio elementos da prpria cultura.
9
possvel que com esse
tipo de ao vissemos a ter uma literatura Frankenstein
JO
, mas
no uma literatura clonada. "A literatura sempre antecipa a vida
nunca a copia: ela a molda segundo seus prprios objetivos".!! Os
corpos textuais, legveis, produzido pela literatura ps-moderna
so corpos fraturados, dotados de virtualidades e virtualizaes
(problematizaes) internas ao texto e externas ao seu funciona-
mento, enquanto artefato tcnico de comunicao de uma forma
de arte em transformao.
A literatura e a mdia digital
O advento da mdia digital de massa e das recentes
tecnologias de informao/comunicao colocou em xeque o pa-
pel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadean-
do um movimento de autoquestionamento a partir de seus prpri-
os fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos
aspectos, dentre os quais podemos citar: a noo e concepo de
autoria, a fragmentao da narrativa, as novas relaes textuais
- criadas a partir do conceito de hipertexto (matriz de textos
potenciais), da relao textolimagem, da interatividade, da
virtualizao do texto literrio e da introduo do conceito de
ciberliteratura.
Diante deste quadro, comea a ser esboada uma potica da
literatura ps-moderna e de suas relaes com o mundo virtual,
atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir
e ampliar o estatuto do literrio seja pelo dilogo intersemitico
7Barthes, Roland. SfZ: uma
anlise da novela Sarrasine de
Honor de Balzac. Traduo
Lea Novaes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992, p.38.
'Ibidem, p. 39.
9Lima, Rogrio. O dado e o
bvio: o sentido do romance na
ps-modernidade. Braslia:
Editora da Universidade de
Braslia/Editora Uni versa,
1998.
10 termo Frankenstein ou
Frankensteinizao tem sido
usado por diversos segmentos da
crtica e autores como Nzia
Villaa e Rosa Maria Rodrguez
Magda para desig-nar o texto
literrio ps-moderno em suas
diversas formas de realizao e
elementos textuais integrados
por ele. Nzia Villaa com o
apelo metfora do termo alude
"ao fato de que o texto
eletrnico, no complexo infor-
mtico/com unicacional,
participa de um imaginrio
maqunico que, visto a partir de
um horizonte do corpo enquanto
dado natural, considerado
agente de desumanizao,
robotizao, controle tecnol-
gico." VJllaa, Nzia. "Robinson
Cruso, Babel, Prankenstein e
outros mitos: corpo e tecno-
logia. In Villaa, Nzia.Ges,
Fred e Kosovski, Ester (Orgs.).
Que corpo esse? Novas
perspectivas. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
Para Rosa Mara Ro-drigues
Magda, "Nos encontramos en
el seno de la frankensteinizaon
de la cultura, de la sociedade y
de lavida. Mientras las
sociedades avanzadas nos
ofrecem un modelo holo-
gramtico, retroviral, de redes
informticas, de fusin cyborg
entre la biologa y la tcnica, el
mundo en su conjunto nos
retroatrae al territorio preindus-
trial do monstruoso, fragmentos
distorsionados e irrecic1ables de
un sigl0 que se acaba, deformes
presencias milenaristas, la
A literatura e a virtualizao do texto literrio
multiplicidad heterogenia de
nuestros fantasmas recientes
engarzados en una fisiologa
excrescente, descomunal y atroz.
Sntesi imposible, monstruosa
por tanto, de la historia en
nuestro presente, y presencia
acechante dei monstruo de lo
otro que en vano pretendemos
recluir ms ali de nuestros
limites de seguridad.
Con la denominacin "modelo
Frankenstein" pretendo meta-
forizarestas dos vertientes: porun
lado, la pervivencia de los restos
cadavricos de nuestro pasado:
teoas, estticas, religiones ...
que retornan en una
contemporaneidad convulsa,
que no compone sin ms un
mosaico de datacin diversa sino
que lo integra en un dinamismo
redivivo y mutante; y, por otro
lado, plasmar la presencia y eI
horror de lo monstruoso en los
limites de nuestra conciencia y
nuestrageografa: el extranjero,
el fantico, el violento, el
marginal, las minoas diferentes
y ladiferenciaen suma." Magda,
Rosa Mara Rodrguez. El
modelo frankenstein: de la
diferencia a la cultura post.
Madrid: Editorial Tecnos, 1997.
11 Vivian, em "A decadncia da
mentira", 1891. In Beckson,
Karl (Org). O melhor de Oscar
Wilde. Traduo Dau Bastos.
Rio de Janeiro: Garamond,
2000.
12 Guattari, Flix. Da Produo
da Subjetividade. In Imagem
mquina. So Paulo: Editora
34, 1993.
13 Kubrick, Stanley. 2001 Uma
Odissia no Espao. MGMI
UA HOME VIDEO, VDEO
ARTE DO BRASIL, 1968.
63Deleuze, Gilles e Guattari.
Mil plats: capitalismo e esqui-
zofrenia. Vol. I. Traduo
Aurlio Guerra Neto e Clia
Pinto Costa. So Paulo: Editora
34, la Reimpresso, 1996, p.
16.
do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo
questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e
representao. No bojo de todas as discusses surgidas em torno
da literatura neste final de sculo e que, atualmente, tm merecido
lugar de destaque no campo das cincias humanas est, sem dvi-
da, a questo relativa ao pensamento e produo literria na era
do digital. Diante deste fato, buscamos com este trabalho refletir
sobre as seguintes questes: at que ponto, e de que maneira, se
diferenciam a forma e a sensibilidade literria da modernidade e
da ps-modernidade frente ao avano da tecnologia digital e como
se processar a relao leitor/texto diante do novo quadro que se
estrutura? Para responder a essas questes trabalharemos com a
crtica da cultura que ir nos fornecer instrumental terico-
investigativo para que tornemos possvel a formulao de alguns
pressupostos tericos acerca de uma nova lgica existencial para
o sentido da literatura, num mundo dominado por imagens, velo-
cidade, informao em tempo real.
Definitivamente, - como diz Flix Guattari 12 - entramos
na era da subjetividade maqunica, no de uma subjetividade
reterritorializada, mas de uma subjetividade controlada pelas m-
quinas: mdias, bancos de dados, a temporalidade dos computa-
dores (tempo real), telecomunicaes. No se trata aqui de dizer
que as mquinas tomaro o poder e dominaro o homem % a
fico cientfica j fez essa previso e ela no se concretizou, no
da forma como foi profetizada ou como o computador HAL 9000,
de 2001 Uma odissia no espaol3, tentou impor a sua lgica
coisificada de mquina. Mas de apenas constatar o fato de que,
cada vez mais, e com maior intensidade, a nossa subjetividade
est entrando em mquina: esta a era que Guattari classifica
como era da idade da informtica planetria. Segundo Freeman
Dyson, no h nenhum perigo concreto de que a inteligncia hu-
mana venha a ser superada pela artificial, pois est continuar a
ser uma ferramenta sob controle humano.
14
O perigo real reside
no uso e na conformao que pode ser dada s mquinas abstratas
(polticas, econmicas, cientficas, e outros)15 que podem agenci-
ar a nossa conscincia e sensibilidade de forma danosa.
193
194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o virtual como problema
Segundo Jean Baudrillard, hoje no pensamos o virtual; so-
mos pensados por ele. Baudrillard aborda a questo do virtual de
forma bastante negativa. Segundo ele, no possvel imaginar-
mos o quanto o virtual j transformou todas as representaes
que temos do mundo. O virtual, na sua opinio, caracteriza-se
pela eliminao da realidade, mas no s, pois tambm inclui o
apagamento da imaginao do real, do poltico, do social "- no
somente a realidade do tempo, mas a imaginao do passado e do
futuro (a isso chamamos, em funo de uma espcie de humor
negro, de "tempo real")."16
O virtual apresenta-se como uma iluso que perpassada e
dominada pela entrada em cena da informao, pelo fim do pensa-
mento com o surgimento da inteligncia artificial. Para esclarecer
o seu pensamento, Baudrillard usa um exemplo bastante delicado,
devido ao fato de estar situado ao longo do acontecimento mais
assustador e mais incompreensvel de nossa histria moderna: a
exterminao dos judeus nos campos de concentrao nazistas e
os que negam a sua ocorrncia histrica, os chamados
negacionistas. A postura negacionista absurda e aberrante, pois
vai contra a realidade histrica e objetiva da exterminao. No
tempo histrico os fatos aconteceram e as provas esto ao alcan-
ce de qualquer um, que as queira investigar. Mas Baudrillard cha-
ma a ateno para o fato de no estarmos mais no tempo histri-
co; de agora em diante estamos no tempo real. No tempo real no
h mais prova de nada. impossvel verificar a exterminao no
tempo real. O negacionismo visto como um absurdo na sua pr-
pria lgica, mas ajuda a esclarecer por meio do prprio absurdo o
surgimento de uma outra dimenso:
% paradoxalmente chamada tempo real, mas onde precisamen-
te a realidade objetiva desaparece, no somente a do aconteci-
mento presente, mas tambm a do acontecimento passado e a
do futuro. Tudo se esgotando numa total simultaneidade que os
atos a no acham sentidos, os efeitos no acham suas causas e
a histria no pode mais a se refletir. 17
O tempo real visto por Baudrillard como um gnero de
14 Dyson, Freeman./nfinito em
todas as direes. Traduo
Laura Teixeira Motta. So
Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 342.
15 Deleuze, GiIles e Guattari,
Flix. Mil Plats: capitalismo
e esquizofrenia. Vol. 5.
Traduo Peter P! Pelbart e
Janice Caiafa. So Paulo:
Editora 34, p. 227.
16 Baudrillard, Jean. Tela Total.
Porto Alegre: Sulina, 1997, p.
73.
17 Ibidem, p. 73.
A literatura e a virtualizao do texto literrio
" Lvy, Pierre. O que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 18.
buraco negro, onde nada penetra sem sofrer um esvaziamento de
sua substncia. Os campos de exterminao - argumenta o fil-
sofo- tornam-se virtuais e s tm existncia na tela do virtual.
Todos os horrores decorrentes do Holocausto e os testemunhos
da sua ocorrncia so lanados, apesar dos negativistas, apesar de
ns, no que ele chama de abismo do virtual onde os acontecimen-
tos ou os fatos s existem o tempo que existem e nada mais.
A viso de Baudrillard em relao ao virtual altamente
ctica e desencantada. Ele pressente no virtual a desestabilizao
da verdade e a derrota do pensamento histrico e crtico. Com
isso ele quer dizer, na verdade, que h o triunfo do tempo real
sobre o presente, sobre o passado, sobre toda e qualquer forma de
articulao lgica da realidade.
O mesmo no pode ser dito de Pierre Lvy que busca nos
seus trabalhos uma compreenso diferenciada do virtual. Lvy
apresenta uma viso mais positiva, pois v no virtual a sua opo-
sio ao atual. Fugindo ao senso comum o autor retira o concei-
to de virtual da ordem da iluso, da ausncia de existncia. Des-
ta forma, ele passa a ser entendido no como oposio ao real,
mas ao atual. Vrtuahdade e atualidade so apenas duas manei-
ras de ser diferente. A atualizao pertence esfera da soluo
de um problema, inveno de uma soluo para um complexo
problemtico; enquanto que a virtualizao pode ser entendida
como o movimento inverso da atualizao, ou seja, ela est situ-
ada no contexto da problematizao. Porm, no deve ser en-
tendida como uma desrealizao (transformao de uma reali-
dade num conjunto de possveis), mas como uma transformao
de uma identidade, um deslocamento do "centro de gravidade
ontolgico" do objeto considerado que, ao invs de se orientar
para uma soluo (atualizao), "a entidade passa a encontrar
sua consistncia essencial num campo problemtico". Virtualizar
uma entidade qualquer deve ser entendido como encontrar uma
questo geral qual ela se relaciona: consiste em fazer mover a
entidade em direo a essa interrogao e em reorientar a atua-
lidade de partida como resposta a uma questo particular.
18
Par-
tindo desta conceituao, buscamos virtualizar a construo do
sentido na narrativa da chamada ps-modernidade, pois enten-
demos que o texto do romance no seu percurso do moderno
para o ps-moderno se desterritorializou rumando na sua
195
196 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
virtualizao (problematizao) para uma ressurgncia da cultu-
ra do texto.
o virtual e suas relaes
Devemos fazer aqui algumas observaes acerca de alguns
conceitos como real e virtual, possvel e atual, atualizao e
virtualizao. Considerando, inicialmente, a oposio entre real e
virtual, no seu uso ordinrio, a palavra virtual utilizada para
indicar ausncia de existncia, a no-materialidade de uma "reali-
dade" tangvel. O real pertence ordem do tenho, o virtual est
situado na ordem do ters, estando, dessa forma, circunscrito ao
campo semntico da ordem da iluso (ideal, ilusrio, imaginado,
imaginrio, irreal, quimrico, utpico, possvel). Esta compreen-
so do virtual, produzida no mbito do senso comum, tem como
maior conseqncia - advinda da ironia fcil desse pensamento
- a produo de um entendimento enganoso e grosseiro da rela-
o real-virtual e, conseqentemente, das diversas formas de
virtualizao. Ainda que demasiado grosseiro para constituir uma
teoria geral, essa maneira de enfocar a questo tem um fundo de
verdade que se revelar bastante til, conforme poder ser cons-
tatado mais adiante.
A respeito das novas relaes pessoais e comerciais
estabelecidas ou impostas pelas novas formas de vida mediada
pela tecnologia digital e do virtual, Ellen Ullman escreve:
Houve um tempo (ainda vivo na memria) em que "virtual"
era uma palavra livre no idioma. Significava "quase verdadei-
ro" ou "para todos os efeitos, mas no por completo. No de
fato". A pessoa podia dizer: "Eu estava virtualmente feliz".
Encontrava-se feliz de fato? No, porque junto com o "virtual-
mente" havia um qu de falsidade, alguma coisa ausente, um
estado inefvel de que a felicidade no era tanta assim. Ento,
dizer "tenho uma empresa virtual" deveria significar que tenho
uma empresa que no to real assim, algo prximo da reali-
dade de uma empresa, mas sem algum elemento essencial.
Outras pessoas, por exemplo.
Entretanto, a palavra "virtual" j no vaga livre no idioma. Foi
aprisionada pelas mquinas. Hoje "virtual" significa viver nesse
lugar - que no to aqui assim - do computador e do
A literatura e a virtualizao do texto literrio
19 Ulman, ElIen. Perto da
mquina. Traduo Mrcio
Grillo. So Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2001, p. 120.
20 Hollanda, Aurlio Buarque
de. Novo Aurlio Sculo XXI:
Dicionrio da Lngua Portu-
guesa - Dicionrio Eletrnico.
Rio de Janeiro: Editora Nova
FronteiralLexikon Informtica,
2000.
21 Lvy, Pierre. O que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p.IS.
22 Deleuze, Gilles. Diferena e
repetio. Traduo Luiz
Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p.33S.
23lbdem, p. 339-340.
software. A palavra conserva um qu de ausncia, daquilo que
no real. Mas, de alguma forma, essa negao virou uma
coisa boa. Ter vida efmera e vagar nesse lugar indefinvel que
agora conhecemos como ciberespao considerado excelente.
Os semideuses vivem ali. "Tenho uma empresa virtual" - ti-
mo, maravilha, formidvel.
19
o vocbulo virtual na sua origem do latim escolstico
virtuale significa aquilo que existe como faculdade, porm sem
exerccio ou efeito atual. Suscetvel de se realizar; potencial. Diz-
se do que est predeterminado e contm todas as condies es-
senciais sua realizao. Ope-se, nesta acepo, idia de po-
tencial e atuaPO . "O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado,
no entanto, concretizao efetiva ou formal". 21 Exemplificando,
a semente contm virtualmente a rvore. Em termos filosficos, e
como vimos na acepo da palavra elencada acima, o virtual no
se ope ao real, porm se coloca em total oposio ao atuaF2 . As
categorias virtualidade e atualidade se configuram somente como
dois modos de ser diferente.
Conforme escreve Deleuze:
o virtual possui uma plena realidade. Do virtual, preciso
dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonn-
cia: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos", e
simblicos sem serem fictcios. O virtual deve ser mesmo defi-
nido como uma estrita parte do objeto real- como se o objeto
tivesse uma de suas partes no virtual e a mergulhasse como
numa dimenso objetiva.
23
Deleuze traz luz a distino entre possvel e virtual, cha-
mando a ateno para o perigo de se confundir o virtual com o
possvel:
Com efeito, o possvel ope-se ao real; o processo do possvel
, pois, uma "realizao". O virtual, ao contrrio, no se ope
ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu pro-
cesso a atualizao. um erro ver nisso apenas uma disputa
de palavras: trata-se da prpria existncia. Cada vez que colo-
camos o problema em termos de possvel e de real somos for-
ados a conceber a existncia como um surgimento bruto, ato
puro, salto que se opera sempre atrs de nossas costas, subme-
197
198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tido lei do tudo ou nada. Que diferena pode haver entre o
existente e o no existente, se o no existente j possvel,
recolhido no conceito, tendo todas as caractersticas que o con-
ceito lhe confere como possibilidade? A existncia a mesma
que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a
existncia no espao e no tempo, mas como meios indiferentes,
sem que a produo da existncia se faa num espao e num
tempo caractersticos. A diferena s pode ser ento o negativo
determinado pelo conceito: seja a limitao dos possveis entre
si para se realizarem, seja a oposio entre o possvel e a reali-
dade do real. O virtual, ao contrrio, a caracterstica da Idia;
a partir de sua realidade que a existncia produzida, e pro-
duzida em conformidade com um tempo e um espao imanentes
Idia.
24
Em segundo lugar, o possvel e o virtual se distinguem ainda
porque um remete forma de identidade no conceito, ao passo
que o outro designa uma multiplicidade pura na Idia, que ex-
clui radicalmente o idntico como condio prvia. Enfim, na
medida em que o possvel se prope "realizao", ele prprio
concebido como a imagem do real, e o real como a semelhan-
a do possvel,25
o possvel, como coloca Deleuze, exatamente igual ao
real, j constitudo, porm caracteriza-se como um real
fantasmtico, desrealizado, desprovido de existncia, que congrega
um conjunto de possveis. Segundo a leitura que Lvy faz de
Deleuze, "A realizao de um possvel no uma criao, no sen-
tido pleno do termo, pois a criao implica tambm a produo
inovadora de uma idia ou de uma forma".26 Sendo a diferena
entre possvel e real puramente lgica. Para o narrador deA bibli-
oteca de Babel, de Jorge Luis Borges, - em sua busca pelo livro
que contivesse todos os livros - o possvel na sua relao com o
real a prpria garantia de existncia de um objeto. "No me
parece inverossmil que nalguma diviso do universo haja um li-
vro total". Em nota a esta especulao ele afirma:
Repito-o: basta que um livro seja possvel para que exista. So-
mente est excludo o impossvel. Por exemplo: nenhum livro
ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dvida, haja livros
que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e ou-
tros cuja estrutura corresponde de uma escada. 27
24 Ibdem, p. 335-336.
25 Ibid, p. 340.
26 Lvy, Pierre. o que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 16
27 Borges, Jorge Lus. "A
biblioteca de Babel" In
Fices. 6 edio. Traduo
Carlos Nejar. So Paulo:
Globo, 1995, p. 90.
A literatura e a virtualizao do texto literrio
28 Ibidem. p.16.
Na relao das oposies estabelecidas o virtual no se ope
ao real, mas sim ao atual. O virtual se configura como um comple-
xo problemtico: um n de tendncias ou foras que segue uma
situao, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qual-
quer, e que aponta para um processo de resoluo que se materi-
aliza na atualizao. Desta forma, a virtualidade pode ser entendi-
da como uma problemtica inerente a um ser, j a atualizao se
caracteriza como a soluo, que no estava previamente enuncia-
da, de um problema. Segundo Lvy a atualizao criao, "in-
veno de uma forma a partir de uma configurao de foras e de
finalidades".28 possvel apontar uma relao entre o ps-mo-
derno e atualizao devido s caractersticas desta nova forma de
sensibilidade e da atualizao? A resposta a esta pergunta afirma-
tiva. Lido pela tica do virtual, o ps-moderno contm em si a
virtualizao, que se presentifica sob a forma de problematizao
- caracterstica que lhe imanente - e a atualizao, que se esta-
belece como resposta s questes impostas pelo ps-moderno.
Na relao entre possvel e real, vimos que o possvel o
real desrealizado espera de uma dotao de realidade que o re-
tire do limbo. O que toma o real semelhante ao possvel. Na cor-
relao de foras entre virtual e atual no h nenhuma relao de
similaridade, pois se o real anlogo ao possvel, o atual no guarda
nenhuma relao de semelhana com o virtual, pois a sua funo
responder a ele. A relao entre virtual e atual se configura da
seguinte forma: o virtual se apresenta como problema e o atual
como soluo para esse problema, resultando da a atualizao.
Lvyescreve:
Se a execuo de um programa informtico, puramente lgica,
tem a ver com o par possvel/real, a interao entre humanos e
sistemas informticos tem a ver com a dialtica do virtual e do
atual.
A montante, a redao de um programa, por exemplo, trata um
problema de modo original. Cada equipe de programadores
redefine e resolve diferentemente o problema ao qual con-
frontada. A jusante, a atualizao do programa em situao de
utilizao, por exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica
certas competncias, faz emergir outros funcionamentos, de-
sencadeia conflitos, desbloqueia situaes, instaura uma nova
dinmica de colaborao ... O programa contm uma
199
200 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
virtualidade de mudana que o grupo - movido ele tambm
por uma configurao dinmica de tropismos e coeres -
atualiza de maneira mais ou menos inventiva.
29
29 Ibid, p.l7.
o processo da virtualizao
o processo da virtualizao se constri e pode ser definido
justamente como um movimento na contramo da relao e do
movimento que vai do virtual ao atual: atualizao. Pois, na eco-
nomia da virtualizao a ordem dos fatores invertida, alterando
substancialmente o produto. O ponto de partida agora a atuali-
zao (uma "soluo") na direo de um problema, ou seja, cons-
titui-se como uma passagem do atual em direo ao virtual, ge-
rando dessa forma a virtualizao. Ao contrrio do possvel (rea-
lizao, ocorrncia de um estado pr-definido) a virtualizao no
uma desrealizao (a transformao de uma realidade num con-
junto de possveis), mas uma mudana de identidade, "um deslo-
camento do centro gravitacional ontolgico do objeto considera-
do".30 Em lugar de deixar-se conhecer de maneira exata, de ex-
por-se com preciso por meio de sua atualidade, ou seja, pelo vis
da soluo, a entidade transita para um campo problemtico, onde
descobre sua consistncia essencial. 31 Retomando, a virtualizao
de uma entidade qualquer se funda no movimento de inveno de
um problema geral qual ela esteja relacionada, em fazer transitar
o objeto em direo a essa questo e redefinir a atualidade de
partida como resposta a uma questo particular. O virtual tem
para si a "realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a
realidade de um problema a ser resolvido; o problema que orien-
ta, condiciona, engendra as solues, mas estas no se asseme-
lham s condies do problema". 32
Para exemplificar o processo da virtualizao Lvy utiliza a
transformao do espao de trabalho na era digital:
Tomemos o caso, muito contemporneo, da "virtualizao" de
uma empresa. A organizao clssica rene seus empregados
no mesmo prdio ou num conjunto de departamentos. Cada
empregado ocupa um posto de trabalho, precisamente situado
e seu livro de ponto especifica os horrios de trabalho. Uma
empresa virtual, em troca, serve-se principalmente de
teletrabalho; tende a substituir a presena fsica de seus empre-
30 Ibid, p.l7.
31 Ibid, p.18.
32 Deleuze, Gilles. Diferena e
repetio. Traduo Luiz
Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p.341.
A literatura e a virtualizao do texto literrio 201
JJ Lvy, Pierre. O que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 18.
gados nos mesmos locais pela participao numa rede de co-
municao eletrnica e pelo uso de recursos e programas que
favorecem a cooperao. Assim, a virtualizao da empresa
consiste, sobretudo, em fazer das coordenadas espao-tempo-
rais do trabalho um problema sempre repensado e no uma
soluo estvel. O centro de gravidade da organizao no
mais um conjunto de departamentos, de postos de trabalho e
livros de ponto, mais um processo de coordenao que
redistribui sempre diferentemente as coordenadas espao-tem-
porais da coletividade de trabalho e de cada um dos seus mem-
bros em funo de diversas exigncias.
33
Constatamos a a ocorrncia da desterritorializao do traba-
lho, fato este que tem gerado diversas controvrsias no que diz
respeito s rpidas transformaes tecnolgicas que os setores pro-
dutivos tm sofrido e as interferncias e mudanas que estas trans-
formaes impem organizao do trabalho e aos trabalhadores.
A autora e engenheira de software norte-americana Ellen
Ullman descreve com perfeio, em seu ensaio autobiogrfico, o
que viver essa deriva da empresa virtual e o quanto ela pode
gerar de assombro:
Mas a vida virtual das empresas tecnolgicas exige algo alm
da inspirao. O que se mostra indispensvel passar para o
resto do mundo uma idia de existncia real. Devemos parecer
uma empresa no sentido habitual da palavra, com a sala cheia
daquele zumbido empreendedor. No h nada mais estranho do
que estar de cala moletom suja e atender ao telefone dizendo
"Ellen Ullman aqui" com voz madura e eficiente. como pro-
jetar-me (sic) num outro universo, onde visto um terninho e
meu c a ~ e l o est limpo, algum lugar que no tem nada a ver
com o mundo que habito de moletom. Enquanto falo ao telefo-
ne - com um cliente ou diretor -, tenho a conscincia de que
coloquei a voz de maneira correta e de que vem como desejei
ser vista: uma mulher inteligente e empreendedora num aparta-
mento requintado de paredes de tijolo. Desligar ento quase
doloroso. Clique. Volto a mim mesma: criatura a nadar sozi-
nha no mar do tempo.
Alm de certa entonao de voz, a fachada da realidade
construda totalmente eletrnica - e, portanto, virtualizada
mais uma vez. Endereo na internet com nome da empresa; fax
com nome da empresa saindo do outro lado; secretria eletr-
202 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
nica que atende com voz de recepcionista, no a nossa; nmero
de telefone terminado em zero alguma coisa, para pensarem
que telefonaram para nossa linha privada, e no para a nica
que temos; timbres feitos por impressora a laser; recibos pro-
duzidos em Excel, Quattro Pro ou QuickBooks - tudo isso e
mais alguma coisa para criar a iluso necessria e inequvoca
de existncia padro. meio assustador pensar na facilidade
que fazer tudo isso.
34
A desmaterializao dos espaos tradicionais se corporifica
sob uma nova forma de localizao no ciberespao: o endereo
eletrnico, virtual. A desterritorializao total ocorre com a con-
figurao do pontocom:
Agora at Wall Street quer deixar Wall Street. Alguns meses
depois voltei de Nova York, li um artigo no Wall Street Joumal:
a Bolsa de Valores de Nova York precisa de mais espao para
equipamentos eletrnicos e j fala em sair da cidade. Sero
mais lojas fechadas em Wall Street, na verdadeira Wall Street,
o lugar que um dia foi o sustentculo da cidade. Imaginei como
se chamaria depois da mudana: www.wallstreet.com?
Mas por que a bolsa no deveria se mudar? Por que os profis-
sionais da rea no deveriam viver como os diretores, fazendo
telecomutao de suas lindas casas em Connecticut? A Nasdaq
apenas um grande sistema de informaes.
35
Ento, por que
no a Bolsa de Valores de Nova York? O prdio na Wall com a
Broad, na esquina do nosso, poderia talvez se transformar em
atrao para turistas. Talvez alguns corretores de carne e osso,
pudessem ficar ali com suas camisas de corretor e gritar pelo
microfone para transmisso de identificao de voz no siste-
ma. Por que no? As cidades parecem ter se transformado em
franquias de parque de diverses .36 As grandes lojas da Times
Square so exatamente as mesmas Virgin, Gap, e Disney da
Union Square, em So Francisco, da Praa Catalunha, em
Barcelona, ou do Champs lyses. Os mesmos Mickey Mouses,
Levis e hamburguesas. Ento, por que no grandes lojas da
Bolsa de Nova York?37
A percepo da invaso do campo do real pelo virtual um
sentimento que paira sobre todos os que se dispem a uma olhada
rpida aos acontecimentos a sua volta. Em meio a tanta velocida-
H Ulman, Ellen. Perto da
mquina. Traduo Mrcio
Grillo. So Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2001, p. 123.
" Grifo nosso
'" Grifo nosso.
37 Ulman, Ellen. Perto da
mquina. Traduo Mrcio
Grillo. So Paulo: Conrad
Editorado Brasil; 2001, p. 71.
A literatura e a virtualizao do texto literrio
38 Auster, Paul e Wang, Wayne.
Sem Flego. Produo: Peter
Newman/lnteral Production em
associao com NDFIEURO
SPACE "BLUE IN THE
FACE" com Harvey Keitel -
Madona - Michel J. Fox - Jim
Jarmusch - Lou Reed - Roseanne
- Mira Sorvino - Lily Tomlin .
Elenco: Heidi Levitt, figurino:
Claudia Brown, Di-retor de
Fotografia: Adam Holender .
A.S.C, editor: Christopher
Tellefsen. 1995, tempo
aproximado 89 minutos, EUA.
39 Jean-Claude Carriere em
entrevista a Catherine David in
David, Catherine et al.
Entrevistas sobre () fim dos
tempos. Traduo de Jos
Laurenio de Melo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.
de preciso diminuir a marcha e andar mais devagar. Assim como
o personagem criado por Paul Auster para o filme Sem Flego
38
,
Auggie Wren. Wren, ao mostrar um lbum de fotografias para
Paul Benjamin, e logo aps este reclamar que eram sempre as
mesmas fotos tiradas de um nico ngulo e de um mesmo lugar,
responde para Benjamin "V mais devagar ou voc no entender
nada". Guardadas as devidas propores, esta a mesma postura
adotada por Jean-Claude Carriere em seu elogio da lentido: "O
principal talvez no ter um relgio digital, domar cada dia, to-
mar o seu tempo em vez de ser tomado por ele". 39
Baudrillard, tomado pela sensao de canibalismo do real
pelo virtual, alerta para a disneylandizao dos espaos comerci-
ais e industriais produtivos invadidos pelo virtual apontada por
Ulman:
No comeo dos anos 80, quando a metalrgica Lorena entrou
em crise definitiva, os poderes pblicos tiveram a idia de ate-
nuar esse desabamento criando um parque europeu do lazer,
parque de temtica "inteligente", destinado a dar flego re-
gio: foi chamado de SchtroumpfIand. O diretor da siderurgia
defunta tornou-se diretor do parque de atraes, e os
metalrgicos desempregados foram recontratados como
"Schtroumpfmen" no quadro desse novo SchtroumpfIand. In-
felizmente, quando o parque teve, por razes diversas, de fe-
char as portas, os ex-metalrgicos convertidos em
"Schtroumpfmen" acharam-se desempregados. Destino Som-
brio que, depois de ter feito as vtimas reais do trabalho gerou
os fantasmas do lazer, e finalmente os desempregados de am-
bos.
Mas SchtroumpfIand era apenas uma miniatura. O empreendi-
mento Disney tem outra dimenso. Para se ter uma idia,
preciso saber que Disney "Illimited", depois de ter anexado
uma das maiores redes de televiso americana, est prestes a
comprar a rua 42, em Nova York, a parte "quente" da rua 42,
para fazer uma zona de atrao ertica, sem mexer em nada,
ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um
palco sagrado da pornografia em sucursal da Disneyworld.
Transformar os empresrios da pornografia, as prostitutas,
como os metalrgicos de SchtroumpfIand, em figurantes de seu
prprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados.
Como foi que o general Schwarzkopf, estrategista da guerra
203
204 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do Golfo, comemorou a sua "vitria"? Com uma gigantesca
party na Disneyworld. Digna concluso, com essa alegria co-
letiva no templo do imaginrio para uma guerra virtua1.
4o
Desterritorializao e identidade
A questo da desterritorializao do trabalho e a perda da
identidade so os temas principais do filme A rede
41
, filme que
segue a tradio das produes de entretenimento no sistema dos
grandes estdios hollywoodianos. Em A rede a personagem prin-
cipal, ngela Bennett - uma experta em encontrar defeitos (bugs)
em programas de computadores, que tem o seu escritrio de tra-
balho em sua residncia - aps receber de um colega de trabalho
um arquivo contendo um programa de computador se v no meio
de uma conspirao. A conspirao envolve a segurana de siste-
mas de informao do governo americano e uma grande
corporao que pretender monopolizar o mercado de programas
de segurana informatizada do pas.
Como Bennett tem acesso ao plano da conspirao, por meio
de um disquete de computador, que supostamente conteria um
programa defeituoso enviado por seu amigo, a corporao busca
elimin-la substituindo a sua identidade pela identidade de uma
criminosa perigosa, procurada pela polcia. Devido ao fato de
ngela Bennett viver totalmente em funo de seu trabalho -
sempre em casa conectada Internet -, desterritorializada e
virtualizada, apenas mantendo vnculos mnimos com o mundo
real e sem existncia exterior at mesmo para a vizinhana, no
consegue provar a ningum, quando confrontada pela polcia, que
ela quem diz ser. Isto ocorre devido ao fato de nem mesmo os
seus vizinhos mais prximos nunca a terem visto, ou de a terem
visto muito poucas vezes para que pudessem fixar uma identifica-
o segura da personagem. A nica pessoa que poderia provar
que ela quem diz ser sua me. Porm, essa sofre do mal de
Alzheimer, ou seja, no tem memria (funo cognitiva), melhor
dizendo portadora de uma memria em runa, num processo
crescente de "desconexo cortical"42. A me de Bennett no
capaz de estabelecer a relao dialtica entre recordao e esque-
cimento, principal caracterstica da memria
43
e, dessa forma,
garantir o reconhecimento e a confirmao da identidade da per-
'" Baudrillard, Jean. "Disneyworld
Company" in Tela Total. Traduo
Juremir Machado da Silva Porto
Alegre: Sulina, 1997,p.l22.
41 Winkler, Irwin. A rede (The
Net). Sandra B ullock, Jeremy
Northam, Denis Miller Rot,
John Brancato e Michael Ferris.
Produzido por Irwin Winkler e
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105
minutos. Aventura. Copyright
1995 Columbia Pictures
Industries Inc. Distribuio
Columbia Tristar Home Vdeo,
LK-TEL Vdeo. Sony Music
Enterteinement (Brasil) Ind. e
Com. Ltda (Distribuio
Exclusiva).
4'Leibing, Annette. "O homem
sozinho numa estao: a
doena de Alzheimer e as
prticas do esquecimento no
Brasil". In Leibing, Annettee
Benninghoff-LhI, Sibylle
(Orgs.). Devorando o tempo:
Brasil, o pas sem memria.
So Paulo: Editora Mandarim,
2001.
43 Humberto Eco em entrevista
a Catherine David in David,
Catherine et a!. Entrevistas
sobre o fim dos tempos.
Traduo de Jos Laurenio de
Melo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
A literatura e a virtualizao do texto literrio 205
44 Winkler, Irwin. A rede (The
Net). Sandra Bullock, Jeremy
Northam, Denis Miller Rot,
John Brancato e Michael Ferris.
Produzido por Irwin Winkler e
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105
minutos. Aventura. Copyright
1995 Columbia Pictures
Industries Inc. Distribuio
Columbia Tristar Home Vdeo,
LK-TEL Vdeo. Sony Music
Enterteinement (Brasil) Ind. e
Com. Ltda (Distribuio
Exclusiva).
45 Lvy, Pierre. O que ()
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 25.
46 Integrante da Escola de
Crtica Alem juntamente com
Erich Auerbach, Leo Spitzer e
Frederic Gundolf. A crtica
alem, inicialmente em 1915,
no interior da universidade,
depois em processo de
imigrao sob o regime nazista,
produziu trabalhos fundamen-
tais que, por seu mtodo e
esprito de sntese - herdeiros
de vasta tradio - renovaram
o panorama dos estudos
literrios.
sonagem. No filme, identidade est diretamente ligada memria,
que estacionada em bancos de dados oficiais tornou-se um objeto
frgil e passvel de todo o tipo de ataque digital, podendo, por
essa via, vir a ser alterada a qualquer momento conforme adverte
ngela Bennett:
Pense. O mundo todo est dentro de um computador ... Tudo. A
sua carteira de motorista, registro da Previdncia ... Carto de
crdito, histrico mdico, est tudo l ... Tudo est l ... Tudo
est guardado numa sombra eletrnica que todos temos ... Im-
plorando para ser alterada. Eles fizeram isso comigo e faro
com voc tambm.
44
Ao longo de toda a trama da narrativa de A Rede a persona-
gem busca recuperar a sua identidade roubada e provar a sua ino-
cncia em crimes que no havia cometido. A questo da identida-
de um dos temas que passou a dominar a cena das discusses
crticas no final do sculo XX, impulsionada pelo avano das no-
vas tecnologias de comunicao e conseqente desenvolvimento
do ciberespao, lugar onde as identidades se diluem e se transfor-
mam de maneira vertiginosa.
Pierre Lvy escreve:
As coisas s tm limites claros no real. A virtualizao, passa-
gem problemtica, deslocamento do ser para a questo, algo
que necessariamente pe em causa a identidade clssica, pensa-
mento apoiado em definies, determinaes, excluses, inclu-
ses e terceiros excludos. Por isso a virtualizao sempre
heterognese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade.
Convm evidentemente no confundir a heterognese com seu
contrrio prximo e ameaador, sua inimiga, a alienao, que eu
caracterizaria como reificao, reduo coisa, ao "real". 45
No mbito da crtica literria, entre tantas, h algumas ques-
tes que apontamos como exemplos de processos de virtualizao
do entendimento da literatura: a primeira delas se refere ao crtico
Ernst-Robert Curtius
46
e a sua proposio de procedimento crti-
co de apagamento de todas as fronteiras temporais e espaciais,
que configuram o impedimento da proliferao de uma viso
universalista no estudo crtico-literrio. Ainda que Curtius tenha
206 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
elaborado as bases do seu procedimento crtico tendo em mente a
preservao e guarda da literatura europia, numa clara manifes-
tao do mais puro eurocentrismo, ignorando at mesmo a litera-
tura norte-americana, no momento em que o mundo j havia se
fragmentado por causa do avano totalitarista do nacional socia-
lismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial.
47
Ao propor a
eliminao das fronteiras temporais e espaciais, Curtius virtualizou
a questo da crtica e da teoria literria, em sua poca, assim como
Albert Bguin
48
que via com grande desconfiana as categorias li-
terrias' os estilos, as zonas geogrficas: "A fixao da vida do es-
prito em categorias estveis no benfica inteligncia dessa vida".
A segunda questo diz respeito ao romance Iracema, de
Jos de Alencar. O romance de Alencar considerado uma das
obras mais importantes da literatura brasileira, e responde pela
representao da construo da nacionalidade brasileira em sua
narrativa. Esta uma questo que coloca o romance numa posi-
o de acomodao na srie literria brasileira, representada pelo
Romantismo e sua realizao no Brasil. Analisado pelo vis da
virtualizao possvel reinvestir o romance de uma
problematizao que o recoloca na cena da crtica no como obra
cannica da literatura brasileira, mas como obra que carrega con-
sigo questes que no foram tocadas, e por isso mesmo, no fo-
ram resolvidas ao longo da narrativa, devido ao fato de no se
configurarem como preocupao do autor, poca em que foi
escrito o romance, ou de a figura feminina e os problemas que
suscita no encontrar ecos substanciais, no crculo de leitores e
intelectuais do sculo XIX, relativos sua condio perante a
crtica. Uma das questes em Iracema que validam uma leitura
pelo processo de anlise da virtualizao refere-se identidade da
personagem situada no mbito da expresso objetiva da natureza.
Como conseqncia desta opo na elaborao das caractersti-
cas da personagem se cria condies para a sua dominao pelo
colonizador branco e sua conseqente perda de identidade. Desta
forma, teremos a sua destruio em favor da manuteno do status
quo do branco dominador que, para a personagem, no seu primei-
ro encontro, aparece como sedutor e depois como "marido".
O processo de esvaziamento, perda e destruio da identi-
dade de Iracema, levam-na a romper com as leis de seu povo, da
prpria natureza, e instaura uma desordem absoluta, restando
47 Tadi, Jean-Yves. A crtica
literria no sculo XX.
Traduo Wilma Freitas Ronald
de Carvalho. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992, p. 53
48 Albert Bguin (1901-1957)
integrante da escola de
Genebra juntamente com
Marcel Raymond, George
Poulet. Jean Rousset e Jean
Starobinski; fazia a chamada
crtica da conscincia cujas
bases de trabalho critico seguiam
o itinerrio do sentido e
buscavam dar, com esse mesmo
movimento, sentido literatura,
ao mundo e a ns mesmos.
A literatura e a virtualizao do texto literrio
49Balandier, Georges. A
desordem: elogio do movi
menta. Traduo de Susana
Martins. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
50Lvy, Pierre. O que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 25
51 Silva, Anazildo Vasconcelos
da. Semiotizao literria do
discurso. Rio de Janeiro: Elo,
1984.
52Maranho,Haroldo. Memorial
do fim: a morte de machado de
Assis. So Paulo: Marco Zero,
1991.
53 Deleuze, GilIes e Guattari.
Mil plats: capitalismo e
esquizofrenia. VaI. 1. Traduo
Aurlio Guerra Neto e Clia
Pinto Costa. So Paulo: Editora
34, la Reimpresso, 1996, p.
25.
personagem a fuga. A fuga o movimento49 que encaminha a
personagem para a recomposio da ordem, ainda que ela mesma
no saiba disso. Quanto mais Iracema se afasta de seu povo mais
se aproxima do abismo no qual ir cair. Com a quebra dos laos
tribais e familiares, a personagem lanada em um no-lugar, um
territrio vazio. Desterritorializada resta personagem apenas o
sofrimento e a morte. Iracema passa a ter uma existncia
virtualizada (problematizada e no-presencial), pois a sucesso
de seus atos a transforma em um problema para a sua tribo; pesa
sobre a personagem uma fatalidade: "O guerreiro que possusse a
virgem de Tup morreria", e, conseqentemente, a sacerdotisa,
pela quebra de seus votos.
A virtualizao se configura na passagem do ser para a ques-
to que pe em demanda a identidade clssica, idia baseada em
definies, determinaes, excluses, incluses e terceiros exclu-
dos.
50
A questo do no-lugar se adequa muito bem ao caso de
Iracema, pois diferentemente do limbo que a colocaria no reino
do possvel-j que limbo significa esquecimento, e o que es-
quecido est desrealizado e, a qualquer momento, pode ser lem-
brado - garantindo, desta forma, a sua possibilidade de sobrevi-
vncia. O no-lugar no oferece condies de sobrevivncia ao
personagem, pois este se encontra em total desconformidade com
o seu mundo. A perda da identidade ser cobrada pelo espao e
todas as suas convenes sociais, no momento de imposio da
sua lgica narrativa; como conseqncia da imposio da lgica
do espao, a nica sada para o personagem est na sua morte.
51
O conceito de no-lugar est relacionado a outro conceito que o
de no-presena. Com o exemplo de Iracema, inserimos a ques-
to do no estar presente ou da virtualizao como xodo.
Outra obra na qual podemos exemplificar a ocorrncia da
virtualizao como forma problematizadora Memorial do fim: a
morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranho
52
Memorial
do fim integra a categoria de escritura que pode ser classificada
como rizomorfa
53
e hipertextual. O hipertexto que a obra traz
consigo construdo por fragmentos da fico machadiana e por
elementos culturais e histricos do mundo no qual essa obra este-
ve e est imersa. Memorial do fim virtualiza pontos importantes
da literatura machadiana e da leitura da obra machadiana, do pr-
prio fazer literrio e das relaes do autor com as figuras histri-
207
208 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cas do seu tempo, atualizando-as. Tomando a atualizao como
criao e inveno de uma forma, partindo de uma estruturao
dinmica de foras e de finalidades, possvel afirmar que o ro-
mance na ps-modernidade produz e introduz qualidades novas
na narrativa, produz uma transformao das idias, um verdadei-
ro devir que realimenta o virtual, enquanto fora
problematizadora.
54
Questes da mesma ordem aparecem no ro-
mance A laranjeira, de Carlos Fuentes.
A Laranjeira formada por cinco novelas, frutos de uma
mesma rvore, que simbolicamente significa a fecundidade para
vrios povos e est intimamente ligada histria da conquista do
continente americano e formao do imaginrio dos espanhis
conquistadores e dos povos conquistados.
A narrativa de A Laranjeira bastante sedutora, apesar de
carregar consigo o tema da morte como fio condutor de suas cin-
co novelas. As duas margens o ttulo da primeira das cinco no-
velas que narrada por Jernimo de Aguilar, espanhol que parti-
cipou da Conquista da Amrica como lngua (intrprete castelhano/
nhuatle) de Hernn Corts. Jernimo de Aguilar,
machadianamente, faz um balano amargo da grande empresa
martima espanhola e das traies dos conquistadores e dos con-
quistados. O narrador de As duas Margens, a mais importante das
cinco novelas, ao longo de sua narrativa toca em questes funda-
mentais da cultura.
Com a sua autoridade de morto ele passeia pela crnica his-
trica, por uma discusso sobre o uso da lngua como instrumento
de dominao e traio, levantando questes acerca da validade da
narrativa e sobre a moralidade do conquistador e do conquistado.
Histria e fico se misturam ao longo das cinco novelas,
sempre mediadas por um narrador morto, ou que logo estar morto,
como ocorre ao personagem Vince Valera, narrador de Apolo e as
putas. As putas so sete ans que trabalham para uma cafetina
conhecida como Branca de Neve, que no sabem o que fazer com
seu cliente morto em pleno mar, durante uma orgia sexual, num
caque que no sabem conduzir e sem comida. Em meio a essa
situao tragicmica, s o que lhes resta, para resolver o proble-
ma de comida, usar o pnis de Vince Valera como isca para
pescar. Enquanto se deteriora, Valera pode perceber a verdadeira
,. Lima, Rogrio. O dado e o
bvio: a significao no
romance da ps-modernidade.
Braslia: Editora Universidade
de BraslialUniversa, 1998.
A literatura e a virtualizao do texto literrio
alma dessas mulheres do Mxico, mas no a si prprio. Ele no sabe
o que representa, e nem pode saber verdadeiramente quem , pois
como morto est impedido de olhar-se no espelho.
Em Os filhos do Conquistador h um embate cido entre os
dois filhos de Corts: Martin I, filho do conquistador com espa-
nhola Juana de Zfiga, e Martin 11, com a ndia Malinche. Num
dilogo longo, provocativo e cheio de rancor aparecem as contra-
dies da Conquista, as traies da Coroa a Corts e o menospre-
zo pelos filhos de espanhis nascidos na Amrica. A morte apare-
ce como espetculo e o sentimento dominante o de nostalgia de
" Numncia, antiga cidade da um pas que no chegou a nascer.
Espanha (a modema Sria). Em As duas Numncias
55
o tema da narrativa e da verdade
da histria aflora, a dualidade surge como problema, o duplo se
apresenta como uma questo que atormenta filosoficamente o
narrador. A narrativa discutida como uma inveno que satisfaz
a curiosidade daquele que no consegue saber o que se passa alm
dos muros da cidade sitiada. O espelhamento e o estilhaamento
do eu e da narrativa so temas caros em As duas Numncias.
A ltima novelaAs duas Amricas fala de um paraso des-
coberto por Colombo, que nele permaneceu e se estabeleceu,
lanando apenas uma garrafa ao mar com a sua descrio e loca-
lizao, com a finalidade de dar conta da sua descoberta Coroa
espanhola. Colombo permanece no seu paraso durante anos,
at que finalmente chegam os japoneses e suas grandes
corporaes e globalizam a Amrica, transformando-a em um
no-lugar, num grande parque de diverses do turismo interna-
cional, tendo Colombo como seu testa-de-ferro e gerente. O
destino da Amrica na viso de Carlos Fuentes extremamente
irnico e trgico, pois na busca de sua identidade no h espelho
que lhe sirva para lhe mostrar quem ela verdadeiramente.
Fuentes se comporta como o personagem Polbio, narrador de
As duas Numncias, que imagina o que se passa dentro da cida-
de cercada para, perversamente, diz-lo ao general romano con-
quistado. Imaginar e narrar a Amrica fundamental. Esse ges-
to perverso, mas tambm caridoso, pois sem a fico no
saberamos o que aconteceu Amrica.
Lvy chama ateno para o fato de que:
Fazer de uma coero pesadamente atual (a da hora e da geo-
209
210 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
grafia, no caso) uma varivel contingente tem a ver claramen-
te com remontar o inventivo de uma "soluo" efetiva em di-
reo a uma problemtica, e, portanto, com a virtualizao ( ... ).
Era, portanto, previsvel encontrar a desterritorializao, a sa-
da da "presena", do "agora" e do "isto" como uma das vias
rgias da virtualizao.
56
Assim como Albert Bguin via com grande desconfiana a
fixao de categorias literrias, estilos ou zonas geogrficas como
ao no benfica inteligncia dessa vida, e por este motivo pro-
punha a eliminao destes entraves conceituais, o ps-moderno
impe s categorias histria e fico o mesmo que o virtual opera
em relao a espao e tempo, ou seja, transforma-as em um vari-
vel contingente que remonta uma "soluo", que remete a uma
problematizao da forma de narrar na ps-modernidade e dos
elementos que so motivadores da fico ps-moderna, sendo,
por esse motivo, uma virtualizao, rigorosamente nos padres
que foram definidos anteriormente.
Vetores de virtualizao
A literatura o campo do virtual e da virtualizao por ex-
celncia e so os seus representantes modernos, entre tantos, Jor-
ge Lus Borges, com seu Pierre Menard autor do Quixote, Tlon
Uqbar Orbius Tertius, Franz Kafka, com a sua Metamoifose, James
Joyce, com o Ulisses. O virtual irrompe na cena literria por con-
ta do no-lugar da literatura, do nomadismo que ela incorpora ao
migrar de um leitor para outro, de uma poca para outra, de um
significado para outro. Por mais que parea estranho fazermos tal
afirmativa a literatura, a nosso ver, no tem a existncia fsica que
o objeto livro tenta lhe conferir. Enquanto livro, a literatura no
tem existncia, pois o livro no passa de um objeto, "um amonto-
ado mudo de palavras estreis, o que h de mais insignificante no
mundo", conforme avalia Maurice Blanchot57 ,jazendo, s vezes,
empoeirado em alguma prateleira de alguma biblioteca.
A realizao da literatura s concretizada por intermdio
da leitura, que, por sua vez, se processa num no-lugar - lugar
virtual, problematizador. Referimo-nos aqui no a um espao fsi-
co e material determinado onde possvel localizar o ato da leitu-
56 Lvy, Pierre. o que o
virtual. Traduo Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleo Trans) p. 21
57 B lancho!, Maurice. O espao
literrio. Traduo de lvaro
Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,
1987, p. 13.
A literatura e a virtualizao do texto literrio 211
58 Banhes, Roland. "Escrever a
leitura" in O Rumor da lngua.
Traduo Mario Laranjeira. So
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.
'9 Mcluhan, Marshall. A
galxia de Gutenberg: a
formao do homem tipo-
grfico. Traduo de Lenidas
Gontijo e Ansio Teixeira. So
Paulo: Cia. Editora Nacional,
Editora da USP, 1972.
00 Barthes, Roland. "Escrever a
leitura" in O Rumor da lngua.
Traduo Mario Laranjeira. So
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.
61 Wachowski,Andye WacIDwski,
Larry . Matrix. Cor. EUA.
Elenco: Keanu Reeves, Laurence
Fishbume, Carrie-Anne Moss,
Hugo Weaving, Joe Pantoliano,
1999. 136 minutos.
ra. Esse espao pode conter o corpo do leitor, mas no garante
que o leitor, propriamente dito, esteja contido nele. Pois, de modo
algum, possvel afirmar que esse espao contenha o leitor, a
literatura e sua virtualidade (a leitura enquanto ato
problematizador). A questo : em que ponto da conexo leitor-
obra ocorre a realizao da leitura e da literatura? Barthes - ques-
tionando a localizao da letra - afirma que a leitura resulta de
formas transindividuais: as combinaes produzidas pela letra do
texto nunca so - no importando a atitude que seja tomada-
anrquicas; "elas so sempre tomadas (extradas e inseridas) den-
tro de certos cdigos, certas lnguas, certas listas de estereti-
pOS".58 possvel afirmar que a realizao de um autor se d em
sua obra, mas permanece a questo onde se dar a realizao da
obra? Na sua virtualidade e na virtualidade da sua leitura.
A reproduo tcnica do livro proporcionada pela Galxia
de Gutemberg
59
permitiu a disseminao da obra de arte literria
e do objeto livro mundo a fora, mas no garantiu a realizao da
leitura e, conseqentemente, da literatura. Pois, como vimos ante-
riormente, a literatura s se realiza no ato da leitura, o que exige
contato fsico com o objeto livro. No ocorrendo esse contato
no h literatura, somente a persistncia do objeto.
Barthes escreve:
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, no apenas
pedir e mostrar que podemos interpret-lo livremente; princi-
palmente, e muito mais radicalmente, levar a conhecer que no
h verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verda-
de ldica; e ainda mais, o jogo no deve ser entendido como
uma distrao, mas como um trabalho - do qual, entretanto,
se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler trabalhar o
nosso corpo (sabe-se desde a psicanlise que o corpo excede
em muito nossa memria e nossa conscincia) para o apelo dos
signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que
formam como que a profundeza achamaltada das frases.
60
o livro somente o meio, a porta de entrada para a
virtualidade da literatura. Funciona como as plulas vermelha e
azul ofertada por Morpheus ao personagem Neo no filme MatriX'1 ,
que colocam para o personagem o problema da escolha. Uma vez
aberto o livro possvel ter acesso a uma "verdade ficcional" que,
212 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
no retorno da leitura, faz com que lidemos com a realidade de
maneira alterada, assim como a personagem Clair Torneur, em
At o fim do mundo
62
, aps ser curada do vcio das imagens. Aqui
introduzimos a seguinte questo: existe a possibilidade da fundao
de uma pertinncia da leitura? Qual a funo do desejo no
estabelecimento dos protocolos de leitura? possvel uma rela-
o recalcada entre o leitor e o livro? Qual o lugar do sujeito na
cena da leitura na era do virtual? O seu lugar so todos os lugares
escrevveis: a deriva, as multiplicidades rizomticas
63
, o virtual.
62 Wenders, Wim. At o fim do
mundo. Majestic Films.
Produo: Jonathan Taplin e
Anatole Dauman. Distribuidor:
Top Tap Horne Vdeo. Willian
Hurt - Solveig Dommartin -
Sam Neill - Max Von Sydow -
Rdiger Vogler - Emie Dingo -
Jean Moreau - Fotografia:
Robby Mller. Msica: Graerne
Revell. Edio: Peter Przygodda.
1990.
6' Deleuze, Gilles e Guattari.
Mil plats: capitalismo e
esquizofrenia. Vol. I. Traduo
Aurlio Guerra Neto e Clia
Pinto Costa. So Paulo: Editora
34, la Reimpresso, 1996, p.
16.
A fico brasileira contempornea e as redes
hipertextuais
Ana Cludia Viegas
(UERJ / PU C-Rio)
213
As interseces entre literatura e informtica suscitam di-
versas questes tericas, no necessariamente inditas, mas
redimensionadas pela reconfigurao do circuito de produo,
circulao e consumo da escrita pela internet: intercruzamento
das figuras do leitor e do autor, atravs do modo de leitura
hipertextual e das prticas de criao coletiva de textos; discusso
das noes de autor e obra, a partir da disseminao da colagem,
montagem, apropriao e recriao como processos de criao
artstica, dando-se mais um passo no deslocamento da aura da
obra de arte; delicadas questes sobre a autoria e seus direitos
jurdicos de propriedade sobre o texto, cuja legislao necessita
revises e atualizaes, de acordo com esse novo modo de circu-
lao do texto literrio; redefinio dos critrios de atribuio de
valor ao texto literrio, dada a sua circulao em meio a uma
multiplicidade de tipos de textos, imagens e sons.
Pensar as mudanas sociais trazidas pelos novos meios im-
plica no pens-los como fontes de inovaes em si, mas, sim, a
interao entre essas novas prticas de comunicao e as transfor-
maes sociais. Ou seja: deslocar a anlise dos meios at as medi-
aes sociais (Martn-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em
seu clssico texto sobre a "reprodutibilidade tcnica", aponta para
a historicidade tanto dos valores estticos como da percepo
humana, indicando que novos meios significam transformaes
nos corpos, conscincia e aes humanas, e no somente novas
formas de expresso.
Na virada do sculo XX para o XXI, a articulao dos cir-
214 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cuitos de produo, transmisso e recepo da literatura com ou-
tras esferas da mdia e a apropriao de recursos expressivos des-
tas pelos textos literrios lanam novos desafios para essa prtica
tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje
hibridizada com gneros no-literrios e meios de comunicao
audiovisuais. Afinal, a difuso desses meios, sobretudo a televiso
a partir dos anos 1950, e, j no final da dcada de 1970, os com-
putadores, marcaria um novo limite nas transformaes das re-
presentaes e dos saberes. Para autores como Pierre Lvy, vive-
ramos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova
configurao tcnica, "um novo estilo de humanidade inventa-
do" (Lvy 1993: 17).
Uma concepo dinmica de leitura embaralha as funes
de leitor e autor, na medida em que aquele, na posio de navega-
dor, edita o texto que l, participando da estruturao do hipertexto,
criando novas ligaes. O questionamento da noo de identida-
de autoral vista como uma subjetividade integrada, responsvel
pela doao de sentido ao texto, tambm encontra eco na leitura-
escrita hipertextual, na qual a condio do texto singular, propri-
edade de um autor nico, cede lugar ao texto em constante trans-
formao pela participao das mltiplas vozes autorais.
A conexo em rede permite ao internauta navegar atravs
de sites e links diversos, fazendo da leitura da tela um deslizamento
entre superfcies, acompanhado da montagem fragmentria de
novos textos, num processo semelhante ao ato de "zapear" entre
imagens de diferentes canais de tev. Trata-se de duas experinci-
as cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimenso
corprea, sensorial identificada como tpica da modernidade por
autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, ao tratarem, res-
pectivamente, da caracterizao do homem da metrpole e da
"experincia do choque".
A base psicolgica do tipo metropolitano de individualida-
de consiste, segundo Simmel, na intensificao dos estmulos ner-
vosos, resultante da alterao brusca e ininterrupta entre estmu-
los exteriores e interiores. Esses estmulos contrastantes, rpidos,
concentrados e em constante mudana levam atitude blas, cuja
essncia consiste no embotamento do poder de discriminar. "O
significado e valores diferenciais das coisas, e da as prprias coi-
sas, so experimentados como destitudos de substncia. Elas apa-
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais
recem pessoa blas num tom uniformemente plano e fosco; ob-
jeto algum merece preferncia sobre outro." (Simmel 1979: 16).
As diferenas qualitativas se traduzem pela quantidade, dentro da
"filosofia do dinheiro" (Simmel 1978), o maior dos niveladores,
pois expressa todas as diferenas qualitativas das coisas em ter-
mos de "quanto?".
Ao analisar o tema da multido em Baudelaire, Benjamin
define como "se conquista a sensao da modernidade: a dissolu-
o da aura atravs da 'experincia' do choque" (Benjamin 1975:
70). A morte da aura na obra de arte nos fala, mais do que da arte,
dessa nova percepo, dessa nova sensibilidade das massas, a da
aproximao, mesmo das coisas mais longnquas e sagradas, com
a ajuda das tcnicas. Quando Benjamin elege o cinema como o
cenrio privilegiado da ateno distrada e fragmentada, sintoma
de transformaes profundas nas estruturas perceptivas, no se
trata de um otimismo tecnolgico ou da crena no progresso, mas
de um modo de pensar as transformaes da experincia que o
tornam um pioneiro, ao "vislumbrar a mediao fundamental que
permite pensar historicamente a relao da transformao nas
condies de produo com as mudanas no espao da cultura,
isto , as transformaes do sensorium dos modos de percepo,
da experincia social" (Martn-Barbero 2001: 84).
A indiferenciao e a mudana na percepo, caracterizada
pela "ateno distrada" solicitada por meios de massa como o
cinema e a televiso, nos parecem ferramentas teis para se pen-
sar o modo de leitura hipertextual. A leitura em computador pode
ser definida como uma edio, uma montagem singular, atravs
da qual uma reserva de informao possvel se realiza para um
leitor particular. Pierre Lvy distingue os pares real/possvel e atual!
virtual, de modo que o virtual no se ope ao real, mas ao atual. O
possvel se define por ser como o real, apenas sem existncia,
latente. Estando j todo constitudo, ao se realizar, no implica
criao. A atualizao do virtual, ao contrrio, constitui a inven-
o de uma soluo exigida por um complexo problemtico. No
se trata de ocorrncia de um estado predefinido ou escolha entre
um conjunto predeterminado, mas de produo de qualidades
novas, inveno de uma forma a partir de uma configurao din-
mica de foras e finalidades. Seguindo estas concepes filosfi-
cas, as imagens digitais no so virtuais, mas imagens possveis
215
216 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sendo exibidas. A dialtica virtual/atual s se d com a interao
entre os sistemas informticos e as subjetividades humanas, "quan-
do num mesmo movimento surgem a indeterminao do sentido e
a propenso do texto a significar, tenso que uma atualizao, ou
seja, uma interpretao, resolver na leitura" (Lvy 1996: 40).
O ato de leitura se define, assim, como uma atualizao das
significaes de um texto, sendo o hipertexto uma virtualizao
dos processos de leitura. A organizao do texto escrito em par-
grafos, captulos, sumrios, ndices, notas, remisses contribui para
sua articulao alm da leitura linear, fazendo do ato de ler um
processo de seleo, esquematizao, construo de uma rede
intertextual. A estruturao do hipertexto em uma rede formada
por ns e pelas ligaes entre esses ns no o restringe ao suporte
digital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo j
pressupem o texto como tecido de mltiplas textualidades, as-
sim como a leitura de uma enciclopdia j do tipo hipertextual.
O que se apresentaria como novo na digitalizao seria a rapidez
da passagem de um n a outro e a associao, no mesmo media,
de textos, sons e imagens em movimento.
Pierre Lvy, em suas reflexes sobre o que o virtual, afir-
ma que "o texto continua subsistindo, mas a pgina furtou-se"
(Lvy 1996: 48), apagando-se esta sob a inundao informacional,
indo seus signos, no mais cercados pelas margens, juntar-se
torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamor-
fose constantes, apresenta-se nas telas como a atualizao de um
hipertexto de suporte informtico.
Os textos literrios brasileiros produzidos nos anos 90 do
sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XXj foram estu-
dados a partir de sua interao com as invenes modernas: o
bonde eltrico, o aeroplano, o automvel, a fotografia, o telefone,
o fongrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a mquina de
escrever. Escapando das frgeis e oscilantes classificaes em pr,
ps ou neo alguma coisa, Flora Sssekind aborda, na fico brasi-
leira desse perodo, "um trao que lhe ser bastante caractersti-
co: o dilogo entre forma literria e imagens tcnicas, registros
sonoros, movimentos mecnicos, novos processos de impresso"
(Sssekind 1987: 18). Partindo da representao desses artefatos
industriais na literatura da poca, a autora analisa como o contato
com essas inovaes deixa de ser apenas objeto de descrio ou
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais
discusso, para enformar a tcnica de certos autores.
Interessa-nos agora pensar como essa interao literatura-
tecnologia vem se dando nas ltimas dcadas, na passagem do
sculo XX para o XXI. Se a mquina de escrever foi a imagem
privilegiada pela autora de Cinematgrafo de Letras para pensar
esse dilogo na virada do sculo XIX para o XX, quais as marcas
deixadas pelo computador na escrita das ltimas geraes? As
chamadas "novas tecnologias", digitais e virtuais, compem o
cenrio contemporneo, participando tanto do cotidiano quanto
do imaginrio atual. Se esses novos meios caracterizam novos
modos de pensar, sentir e perceber, como sua presena se faria
notar nos textos contemporneos?
Esse dilogo, assim como no caso dos autores que antece-
deram a Semana de Arte Moderna em 1922, se d de diversas
formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como ob-
jeto de representao quanto como influncia sobre as estratgias
retricas utilizadas na escrita atual. No primeiro caso, temos a
paisagem urbana repleta de telas, imagens, celulares, computado-
res e toda uma parafernlia tecnolgica utilizada por personagens
e narradores das fices contemporneas. Quanto a marcas dei-
xadas no fazer literrio, podemos citar a fragmentao, a forte
visualidade, a utilizao de mltiplos recursos grfico-visuais, os
microrrelatos. Sem falar, claro, em toda a produo de textos
no impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo
meio de circulao, caractersticas especficas, constituindo, tal-
vez, uma retrica prpria.
Ao pensarmos a literatura brasileira contempornea em di-
logo com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado,
de que modo o uso destas se traduz em inovaes estticas nas
narrativas atuais, ou seja, como se d o trnsito entre pgina e
tela, de que modo a primeira, tendo-se "furtado", se recompe
para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como o novo
suporte enforma os textos produzidos para nele circularem.
217
Ao longo da histria da literatura, tem havido propostas
inovadoras de narrativas no lineares, assim como a imprensa vem
criando diversos mecanismos opostos ao poder da linha. Tais de-
safios, contudo, ganham nova dimenso ao disporem de uma nova
tecnologia textual que no tem por base a linearidade. Tambm
ns, leitores, ao lermos um livro de forma no seqencial, pulan-
218 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do captulos, buscando a informao desejada atravs de ndices
remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados
de obras diversas, desafiamos a linearidade do texto impresso,
lendo-o como um hipertexto. Colocamos em prtica, na produ-
o ou recepo de textos, uma das trs linhas evolutivas
identificadas por Benjamin nas interseces entre arte e tcnica:
"em certos estgios do seu desenvolvimento as formas artsticas
tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tar-
de sero obtidos sem qualquer esforo pelas novas formas de arte"
(Benjamin s/d: 185).
Narrativas literrias contemporneas fazem uso de procedi-
mentos e tcnicas que parecem provir de gneros no-literrios e
meios de comunicao audiovisuais e digitais. So exemplo das
estratgias retricas utilizadas por essa gerao de escritores que
troca a mquina de escrever pelo computador as obras eles eram
muitos cavalos (2001), Mamma, son tantofelice (2005) e O mun-
do inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano,
a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve o cotidiano de
So Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem
nenhuma espcie de continuidade, nenhum enredo como fio con-
dutor, apenas a "montagem efervescente"l de doses que se
entrecortam e justapem. Trata-se de um mosaico de diversos ti-
pos de textos - um cabealho, previses meteorolgicas, anncios
classificados, oraes, cartas, cardpios, conselhos astrolgicos,
simpatias, lista de livros, recados de secretria eletrnica, duas
pginas com um retngulo preto - dispostos com diferentes
diagramaes, formatos de letras, sinais tipogrficos. Traduz-se,
de certa forma, na pgina impressa, a diversidade textual das p-
ginas da web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto,
tambm circula.
A leitura pode comear em qualquer ponto e seguir qual-
quer direo, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tro-
pea e se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espa-
os virtuais, "em vez de seguirmos linhas de errncia e de migra-
o dentro de uma extenso dada, saltamos de uma rede a outra,
de um sistema de proximidade ao seguinte" (Lvy 1996: 96). As
vrias pistas intertextuais tambm nos levam a uma leitura
labirntica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Memri-
as sentimentais de Joo Miramar, e Ceclia Meireles, Romanceiro
'Nstor Garca Canclini define
a cidade contempornea "como
um videoclipe: montagem
efervescente de imagens
descontnuas" (Canclini 1995).
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais 219
'Sergei Eisenstein (1990) a
define como o "fato de que dois
pedaos de filme de qualquer
tipo, colocados juntos, inevi-
tavelmente criam um novo
conceito, uma nova qualidade,
que surge da justaposio". O
cineasta russo reitera, ainda, a
importncia do "princpio
unificador", isto , do princpio
que deve "determinar tanto o
contedo do plano quanto o
contedo revelado por uma
determinada justaposio
desses planos". Nos atos de
"zapear" e navegar na internet,
no entanto, a montagem ganha
um novo perfil: revogando o
princpio unificador, que
predetermina a escolha e
combinao das cenas mon-
tadas, e a hierarquia de planos
(cf. Eisenstein 1990), jus-
tapem-se, ao acaso, imagens
de diferentes origens. O excesso
de imagens de baixa densidade
semntica e sua repetio em
srie permitem cortes e colagens
em qualquer ponto, pois todos
se equivalem. Este novo tipo de
montagem aproxima-se, por-
tanto, da conceituao de
Simmel para a atitude b!as:
dificuldade de discriminar
devido ao excesso de infor-
mao.
da Inconfidncia, esto virtualmente presentes no hipertexto de
Ruffato, podendo ser atualizados pelo leitor.
O ttulo, reiterado pela epgrafe ("Eles eram muitos cava-
los, / mas ningum mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua
origem ... " - Ceclia Meireles) e pela dedicatria ("Para Ceclia"),
nos remete obra de Ceclia Meireles, Romanceiro da Inconfi-
dncia, abrindo tambm um link no texto de Ceclia, que pode
nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano
no tm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vo - s
captamos, no ritmo vertiginoso da narrativa, pedaos de cenas -,
tambm as palavras, "testemunhas sem depoimento, / diante de
equvocos enormes" (Meireles 1983: 228), galopam em torveli-
nho, sem origem, reapropriadas, ressemantizadas.
Impossvel no ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos.
Os fragmentos tambm numerados e intitulados de Memrias sen-
timentais de Joo Miramar, nos quais se misturam vrios gneros
textuais e se ressalta a materialidade grfica, esto virtualmente
presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor.
Parece, no entanto, que os cortes cinematogrficos e a escrita
telegrfica de Oswald de Andrade se aceleraram ainda mais, des-
fazendo-se at mesmo a tnue trajetria da personagem que per-
passa aquelas memrias descontnuas. O ritmo do texto de Ruffato
acompanha a acelerao da vida urbana desde o incio da industri-
alizao de So Paulo, objeto da obra modernista de 1924. A
montagem cinematogrfica
2
cede lugar ao zapping, imagens que
surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle
remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente da linguagem
televisiva, nem as imagens tm baixo teor semntico, nem os cor-
tes so aleatrios. A pgina, ao assimilar um trao caracterstico
da esttica televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ter-
nura, a violncia, a ingenuidade, a esperana, a decepo, expe
feridas, tenses, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante
da cidade contempornea, expresso num texto em permanente
movimento, leva a urna "ateno distrada", esta, ao focalizar-se
instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.
Pierre Lvy identifica, na passagem de tcnicas anteriores
de leitura em rede (ndices, sumrios, notas remissivas)
digitalizao, urna "pequena revoluo copernicana", na qual no
mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso
220 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do livro de Ruffato, o leitor ainda se movimente fisicamente no
hipertexto, virando pginas, buscando os livros de Ceclia Meireles,
Oswald de Andrade ou outros na estante, tambm o texto gira,
dobra-se e desdobra-se, caleidoscpico, diante do leitor. Nele, a
interpretao no remete mais exclusivamente a uma inteno
autoral. "O sentido emerge de efeitos de pertinncia locais, surge
na interseco de um plano semitico desterritorializado e de uma
trajetria de eficcia ou prazer." (Lvy 1996: 49).
Os dois outros livros de Ruffato, Mamma, son tanto felice e
O mundo inimigo, fazem parte do projeto de uma srie de cinco
volumes com o ttulo de Inferno provisrio. Atravs de textos
fragmentados, passveis de serem lidos separadamente, mas, ao
mesmo tempo, complementares, ambos narram a desestruturao
da vida rural frente modernizao. Seus personagens, pequenos
agricultores, imigrantes italianos pobres, sofrem as conseqnci-
as sociais e emocionais do processo de industrializao ocorrido
no Brasil a partir dos anos 1950. As histrias de um e de outro
volume retomam e entrelaam personagens e situaes, fazendo
da leitura e da construo de sentido um efeito da interseo de
planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de mem-
ria, encaixando peas de um "quase-romance desestruturado"
(Nina 2005). Mudanas tipogrficas chamam a ateno do leitor
para os diferentes tempos e vozes presentes nos textos.
Nota-se no segundo volume, no qual alguns personagens
comeam a migrar para as cidades grandes, uma acelerao do
ritmo da linguagem, que, assim como em eles eram muitos cava-
los, acompanha o aumento da velocidade e da intensidade de est-
mulos, caracterstico da formao das metrpoles. Podemos ima-
ginar nos prximos livros da srie a continuidade desse processo,
como se o cotidiano de So Paulo, descrito nos fragmentos do
livro publicado em 2001, fosse o destino desses personagens.
Uma nota ao fim de cada volume adverte que alguma passa-
gem pode ser reconhecida, j que a se encontram histrias narra-
das em outros livros do autor, "reembaralhadas". Assume-se a
criao pela repetio, anunciada pelo enfraquecimento das no-
es de autntico e original na era da reprodutibilidade tcnica.
Observamos, assim, nas obras de Luiz Ruffato, uma das
vertentes das relaes entre a cibercultura e a fico brasileira
publicada a partir da dcada de 1990. Utilizando-se de estratgias
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais 221
retricas dos meios digitais, sua pgina se faz tela. Discutiremos,
a seguir, de que modo algumas tendncias dessa fico podem
estar relacionadas ao uso por escritores deste novssimo sculo da
internet como importante estratgia de insero no circuito arts-
tico-literrio.
***
Se, na virada do sculo XIX para o XX, o jornal reconhe-
cido como o caminho mais curto para chegar-se ao editor, atual-
mente, a internet tem sido usada como uma espcie de vitrine do
texto para o pblico em geral e/ou os editores. Estes, quando de-
sejam apostar em novos autores ou organizar antologias que bus-
cam mapear um perfil da fico contempornea, tm essa ferra-
menta como fonte. o caso de Paulo Roberto Pires, diretor da
Editora Planeta, e das obras Paralelos: 17 contos da nova litera-
tura brasileira, Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de
Janeiro e das antologias de textos escritos por mulheres organiza-
das por Luiz Ruffato. Di versos jovens autores tambm utilizam os
blogs como oficina criativa para seus primeiros romances. Pode-
mos citar, a ttulo de exemplo, os livros de Clarah Averbuck
www.brazileirapreta.blogspot.cOITI Mquina de pinball, Das coi-
sas esquecidas atrs da estante e Vida de gato; e Corpo presente,de
Joo Paulo Cuenca.www.carmencarmen.blogger.com.br. Se os
livros de Averbuck so montados a partir de fragmentos selecio-
nados em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line
uma espcie de making of de seu livro, depois de receber a pro-
posta da editora Planeta para public-lo, afirmando em seu blog
que seu livro no um exemplo de blog que vira livro, mas exata-
mente o inverso: seu blog que sobre o livro e seus processos.
Em Das coisas esquecidas atrs da estante, Clarah Averbuck
discute o papel e o valor da literatura hoje e sua relao com os
blogs. A autora, entretanto, discorda da idia de que os blogs cons-
tituam um gnero especfico:
10/9/2003
Coletnea de um bloooog? Sim, amiguinhos, coletnea de um
blog . Existem livros de contos. De poesia. De crnicas. Por
que no uma coletnea de textos publicados em um blog? Afi-
nal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo
222 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
porque nunca param de perguntar, blog apenas um meio de
publicao para o que quer que o autor, dono e soberano do
blog, queira escrever. www.brazileirapreta.blogspot.com
o uso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto:
Vocs notaram que eu desencanei completamente de usar par-
grafos neste post? Parei. Parei de usar pargrafos na minha
cabea tambm. Notaram tambm que estou perdendo meu so-
taque e falando coisas completamente paulistas como
desencanar? Tambm tenho falado me amarro e demor, por
causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sota-
Que pelo ICQ. (Averbuck 2003: 46)
A interao com o pblico leitor e a influncia deste sobre o
texto escrito, caractersticas dos blogs, so tensionadas pela auto-
ra, que afirma, em alguns momentos, sua voz como nica e a po-
sio do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve
aceitar o pacto que lhe proposto.
2/9/2003
A internet no como uma televiso aberta, onde voc zapeia e
passa por canais indesejados e v coisas que no queria. Para
entrar aqui, no meu blog, preciso digitar o endereo no
browser, ou entrar em algum link, ou seguir seu prprio
bookmark. Ou seja, tem que Querer entrar aqui. uma escolha.
E por isso que eu no entendo esses leitores Mark Chapman
que vm aqui s pra torrar minha pequena e delicada pacincia
e encher minha caixa postal com suas opinies no solicitadas.
www.brazileirapreta.blogspot.com> )
No livro Das coisas esquecidas atrs da estante, a primeira
orientao ao leitor a epgrafe de Charles Bukowski, uma das
referncias constantes da escritora. "se voc for tentar, v at o 1
fim. 1 seno, nem comece." Aceite o pacto, leitor. As citaes (Paulo
Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragdias etc.)
compem a rede hipertextual, afirmando, tambm no texto im-
presso, a multiplicidade do sujeito que escreve:
"Eu estou de frias. Agora s vou falar pelas palavras dos
outros at recuperar as minhas prprias, que aspirei nariz aden-
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais
tro em uma nota de um dlar. Vou me internar dentro de mim
mesma at saber quem quem. Esse negcio de ser duas ainda
vai me matar." (Averbuck 2003: 108).
Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que "o meio a
mensagem", podemos afirmar que esse novo modo de circulao
do literrio faz surgir um novo tipo de escrita? A constituio do
termo "blog" j traz em si idias contraditrias: web (pgina na
internet) + log (dirio de bordo) = "dirio ntimo na internet".
Como um dirio "ntimo" pode ser exposto na rede para quem qui-
ser acessar e, alm de ler, comentar, rasurar, participando do pro-
cesso de criao? Se os dirios sempre trouxeram em si um
interlocutor, ~ que toda escrita se dirige a algum, agora esse ou-
tro, ainda que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza o pro-
cesso ativo de toda leitura. Os papis do autor e do leitor so, assim,
compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve.
223
O "pacto autobiogrfico" realizado entre quem escreve e
quem l "escritas ntimas" se fundamenta, segundo o clssico es-
tudo de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identidade se-
lado pelo nome prprio, que resume a existncia do autor, pois
aquele seria a nica marca no texto de um fora-do-texto, remeten-
do a uma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciao
do texto escrito. No caso dos blogs, essa identidade se fraciona
tanto pela parceria com os leitores como pela pluralidade de no-
mes assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas
opinies, no h no texto, necessariamente, essa marca que "re-
mete pessoa real", podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter
vrios blogs, identificados por diferentes apelidos.
Ao caracterizar o narrador ps-moderno, em contraponto
aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter
Benjamin, Silviano Santiago questiona: "S autntico o que eu
narro a partir do que experimento, ou pode ser autntico o que eu
narro e conheo por ter observado?" (2002: 44). Mais adiante,
conclui: "O narrador ps-moderno sabe que o "real" e o "autnti-
co" so construes de linguagem." (idem: 46-7). Nesse contex-
to, a noo de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas
telas se relativiza: "a intimidade era teatro", como disse a poeta
dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50).
O segredo uma das questes fundamentais para os dirios
224 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ntimos, redimensionada quando esses dirios se voltam para o
pblico numa pgina da web. Ainda que expostos na internet, os
blogs no excluem o segredo. H diversos nveis de segredos:
aqueles que se contam aos amigos mais prximos, famlia, ape-
nas a algum muito ntimo ou que no se revelam a ningum, nem
a si mesmo. Essas diferenas se mantm nos dirios virtuais.
Ao contrrio do que se pensa, a exposio na internet no anu-
la a possibilidade de se criar um segredo, mas estabelece novas
formas de compartilh-lo. ( ... ) O diarista virtual determina quem
pode se aproximar de seus segredos mais ntimos e quem no
deve suspeitar deles atravs de senhas, do texto cifrado e do
acesso restrito ao blog. ele que estabelece o c.uanto o leitor
comum deve saber de sua vida particular e o que deve ser man-
tido em sigilo. (Schittine 2004: 19-21).
o "contrato de cumplicidade" com o leitor se modifica, po-
dendo a confiana ser reforada pela distncia e o desconheci-
mento quanto aos leitores ou ser questionada, j que essa mesma
distncia facilita o uso de mscaras, fantasias, mentiras. Formam-
se "redes de segredos": pequenos grupos que dividem segredos
entre si, com alguns ns em comum.
A sinceridade da enunciao "torna-se um falso problema",
como j anunciara Barthes em relao ao "autor de papel": "a sua
vida j no a origem das suas fbulas, mas uma fbula concor-
rente com a sua obra" (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua
autobiografia:
Este livro no um livro de "confisses"; no porque ele seja
insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de on-
tem, esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim
nunca a ltima palavra: quanto mais sou "sincero", mais sou
interpretvel, sob o olhar de instncias diferentes das dos anti-
gos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma nica
lei: a autenticidade. (Barthes 1977: 130).
Se o que escrevo sobre mim pode mudar de um dia para o
outro, os blogs podem registrar essas mudanas a qualquer
momento, sendo o intervalo de tempo da escrita menor que um
dia. Os dirios nas telas permitem que, a cada releitura, o texto
seja alterado ou as "falhas da memria" preenchidas, sem dei-
A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais
xar marcas dessas rasuras. Ao contrrio dos dirios de papel,
que guardam a caligrafia individual e diferentes materialidades
da memria - ptalas, papis de bombom, recortes etc. -, a
tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, soma-
dos possibilidade de falha dos dispositivos de memria das
novas tecnologias, levam a um registro imperfeito da memria
pessoal, apesar da sua imensa capacidade de armazenamento
de uma memria artificial. (Schittine 2004: 117-8).
Na "escrita de si" via internet, o trnsito entre documento e
fico, vida real e virtual, constri uma intimidade meio encena-
da, meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual da literatu-
ra, vida e obra tornam-se difceis de distinguir. A figura do autor
aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num
confessional fingido.
Tanto nos blogs como nos livros, podemos constatar uma
tendncia para o uso da primeira pessoa em textos que no so
autobiogrficos, mas que apresentam pistas da identidade autoral.
No ltimo romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, o
personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros e
desencontros com Joana, uma leitora com quem mantm inicial-
mente contato via internet at se conhecerem pessoalmente num
hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. V -
rios traos biogrficos de Mirisola presentes na narrativa - as ini-
ciais M. M., a publicao de crnicas via internet, os livros Azul
do filho morto e Heri devolvido, a transformao de escritores
seus amigos em personagens e at o nmero da conta no Ita -
tornam indecidveis as fronteiras entre autor e narrador, vida e
fico. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma
autoexposio, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos nar-
rados tm uma referncia real ou so completamente ficcionais:
"No se tratava apenas de fico" (Mirisola 2005: 10), "Fui eu
quem a inventei" (idem: 14), "Ningum vai saber que voc,
Natrcia." (idem: 48).
A criao de diferentes identidades, caracterstica das pgi-
nas virtuais, extrapola seu suporte tcnico, apontando um trao
da subjetividade contempornea: plural, ambgua, ficcionalizada.
Sabemos que em qualquer relato autobiogrfico o compromisso
com a verdade sempre relativizado pelas falhas da memria e a
225
226 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
contaminao desta pela imaginao. Parece-nos, no entanto, que,
num tempo em que a realidade se define como um cruzamento de
imagens e no como dados objetivos representados por elas, es-
ses textos contemporneos investem na inveno biogrfica, for-
mulando "autofices".
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227
o hipotexto de NolI
Luiz Gonzaga Marchezan
(UNESP-Araraquara)
Uma reflexo no mbito das prticas que vivenciamos des-
de o final do sculo passado leva-nos a pensar em novas configu-
raes literrias do sculo XXI, uma vez que, de maneira mpar
no tempo, tais prticas apresentam-nos resolues para o texto
verbal que superam medidas e limites lineares, possibilitando-nos,
por isso, imaginar, at, outras concepes para o literrio. Ricardo
Piglia (1990, p.3), ainda no sculo XX e mais voltado para a fun-
o representativa do texto literrio, a mimtica, notou, de forma
paradoxal:
[ ... ] os espaos ficcionais invadem a vida cotidiana e a socieda-
de moderna. Essa distino muito definitiva da esttica tradici-
onal, "qual o campo da fico, qual o campo do real?", se
dissolveu. Vai da que, para mim, esse o tema que est inscri-
to na relao entre a literatura e a realidade.
Observou ainda:
Essa relao [literatura/realidade/verdade] seria para mim o
ponto a partir do qual surgem as histrias, as tramas, as ques-
tes que devem ser narradas.
As consideraes de Piglia so instigantes e recuperam tam-
bm para a demanda da narrativa a idia de destino: fatos sucessi-
vos ocorrem na vida dos homens e constituem a sua vida, inde-
pendentemente da sua vontade. Dessa maneira, observaremos,
em tais narrativas, modos de vida em formas literrias que nos
apontaro uma cifra a desdobrar-se tanto na direo dos enigmas
229
230 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do comportamento da vida contempornea representada, como
em desafios de leitura dessa literatura contempornea.
Percebemos, no momento, pela mdia ou internet, uma oferta
diversificada de textos, que notamos, divisamos e pouco sabemos
diante do tanto que vemos. Vivemos num mundo no qual nosso
olhar encontra-se refm do espetculo miditico. A leitura uma
atividade da vida civilizada, da vida social, coletiva, processada
diariamente no mbito dos conhecimentos individuais e coletiva-
mente preparados. Diante disso, e da pletora de textos que nos
envolve no dia-a-dia, a pergunta que nos fazemos pela situao,
condio, categoria ou natureza do texto literrio, aquele que, de
forma linear, rene uma situao discursiva, no caso, operada pela
obra literria, para o leitor de uma realidade textual, que, para
ns, constitui-se naquele que l o verbal de maneira singular, na e
com a singularidade do texto literrio. Trata-se do leitor de um
gesto rapidamente esgotado, sem reiteraes, sem os mltiplos
suportes: visuais, eletrnicos; sem vnculos, links, portanto, com
um hipertexto; trata-se de um leitor voltado para o texto literrio,
que volta a sua intencionalidade para a realizao da arte literria,
prtica contemplada, inclusive, dentro das ousadias das configu-
raes do texto literrio contemporneo, pelo hipotexto. Ajuste-
mos, assim, nossa discusso, a mais este contraste.
Compreendemos que os tempos atuais, os que esto em atos,
transfiguram-se, tanto em narrativas compostas em hipertextos
sustentados pela intertextualidade, por mltiplos textos, como em
narrativas compostas por hipotextos, sedimentados pela
interdiscursividade, que incorpora percursos temticos e ou figu-
rativos, valores, de um discurso em outro. Estas ltimas, em espe-
cial, explicam-se nas observaes novamente de Ricardo Piglia
(2000, p.123), agora, de outra fonte: "La inspiracin se construye
a partir de lo que se h escrito antes, cada vez se inscribe com
toda la literatura".
O leitor do hipotexto, do nosso ponto de vista, constitui-se
no leitor que l o literrio, o singular, como salientamos acima;
esse leitor consiste naquele que no sustenta a sua leitura no po-
tencial, no virtual, no desmesurado, caractersticas do hipertexto.
O hipotexto volta-se para o pontual, para o momentneo, a medi-
da de uma hesitao, momento em que "os espaos ficcionais in-
vadem a vida cotidiana e a sociedade moderna", conforme Piglia
o hipotexto de NoU
I Analisaremos, da coletnea,
o conto Bispo da madrugada,
que, ao lado dos outros,
constitui-se no que o seu autor
nomeou como instantes
ficcionais: uma srie de contos
ultracurtos publicados na
Folha de S. Paulo, numa
pequena coluna, Relmpagos,
mantida pelo autor de agosto de
1998 a dezembro de 2001.
Analisaremos aqui o conto
Bispo da madrugada,
publicado em 20/12198, que,
depois, ao lado de todos os
outros, foi reunido pela Editora
Francis, em 2003, em livro
intitulado Mnimos, mltiplos,
comuns, numa edio que
recebeu o Prmio Jabuti de
melhor capa e o segundo lugar
para livro de contos, alm do
Prmio ABL de Fico 2004.
231
(1990, p.3), caractersticas, convenhamos, que sempre demarca-
ram a demanda das narrativas literrias.
O que lemos, ento, em um hipotexto? Observamos uma
histria por meio de um discurso, de um cdigo, o literrio, elabo-
rado por uma organizao e configurao particulares da lingua-
gem.
O nosso objetivo, agora, o de explorar o literrio num
conto de Joo Gilberto NolI, Bispo da madrugada, um hipotexto,
escrito, inicialmente, para um projeto editorial da Folha de S. Pau-
lo, conforme as rpidas intenes da reportagem da poca: "A
Ilustrada passa a publicar, a partir de hoje, uma coluna literria
diria, na pgina 2, ao lado de Horscopo". (ILUSTRADA, 1997,
p.l) Nesta reportagem, a F olha anunciou tambm os titulares da
coluna: Heloisa Seixas, Voltaire de Souza e Fernando Bonassi.
Joo Gilberto NolI substituiu Heloisa Seixas, em agosto de 1998.
Patrcia Decia (1998, p.l), reprter da Folha, noticiou o ingresso
do ficcionista na coluna literria do jornal, ocasio em que comen-
tou com mais nfase o projeto da Ilustrada, referendando-o com
Walt Whitman: "quanto mais leitores tocando no tecido do texto,
mais prazeroso e completo o ato literrio". A reprter tambm
entrevistou NolI (1998, p.l), que exps, literariamente, suas in-
tenes:
Eu quero ter o direito tambm de fazer pequenas liturgias, pe-
quenos momentos de. elevao a partir do barro da histria.
No acho que homem seja anjo, mas bom a gente exercitar
esse desejo de superao, de transcendncia.
A palavra liturgia, no grego, significa funo pblica. E isso
mesmo. Noll (1998, p.l) acredita na funo pblica da sua fico,
textos com "coisas que dizem respeito vida cotidiana da grande
maioria das pessoas". Essa funo pblica na fico de Joo Gilber-
to Noll est nos valores que o escritor reitera, presentes, visveis,
agora, no projeto grfico de Mnimos, Mltiplos, Comuns
l
, na
interdiscursividade, valores com a equivalncia de denominadores
comuns, que perpassam seus 338 hipotextos orientados por uma
lgica editorial. Segundo o autor, poderemos ler narrativas que tri-
lham valores bblicos, "divididos em cinco grandes conjuntos que
pressupem uma cronologia da Criao: Gnese, Os Elementos, As
Criaturas, O Mundo e O Retomo". (NOLL, 2003, p.23). Bispo da
232 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
madrugada compe As Criaturas, que, segundo o contista, consti-
tui, ao lado dos cento e setenta do mesmo segmento, o
[ ... ] mais complexo entre os conjuntos. Parte da uma definio
dos Corpos, que se mostram Despidos; depois unidos carnal-
mente como Amantes; unidos perante a lei e a sociedade em
Casamento; constitudos em Famlias; gerando Crianas; re-
partindo espao e destino com os Animais; vagando e povoan-
do o mundo como Andarilhos; penando de escapar fria dos
vencedores como Fugitivos. Os corpos so Feridos e cobrem-
se de cicatrizes; recuperam-se ou no como Convalescentes; e
colocam-se parte do mundo e das coisas, viventes do outro
plano, como Artistas. (NOLL, 2003, p.23)
Como se l, o corpo mostra-se como o lugar de resistncia
do sujeito, que no cede e defende sua emoo. O corpo, na fic-
o de Noll, constitui-se numa macrofigura - a figura maior que
se envolve com um conjunto de situaes que motivam a narrati-
va. Ele constitui-se num motivo que se combina com outros e que
do apoio temtico ao conto, no caso: o corpo como o lugar de
vigor fsico, que se esvai; o corpo como o lugar da ira, que se
anuncia; o corpo como o lugar que aproxima, de forma grotesca,
o homem do comportamento animal. Joo Gilberto Nolljoga ima-
gens contra imagens, numa situao em que elas substituem o
contato do homem com o outro, Com uma narrativa ultracurta, o
ficcionista quer um clmax e procura, para isso, moviment-la com
situaes de vigor fsico e emocional, o que reverbera na metfo-
ra do corpo, o lugar, a figura dessas manifestaes. Abaixo, o
conto anunciado para anlise:
De madrugada me ajoelhei na beira do rio. Sentia-me sangrar.
Procurei pelas pernas, peito, barriga, pescoo, cabea: nada.
Pensei: " hoje ou nunca, vou sim, eu vou matar". Voltei para
casa e a primeira coisa que fiz foi no acender a luz. Peguei as
cobertas, de p me enrolei nelas. Eu era um bispo, um rei, um
indigente em trapos. Havia outra alma ali, meu filho pequeno.
Ele ressonava. Em minutos amanheceria e eu faria caf. Passei
as unhas pela parede fria, como se querendo me testar. Ao acor-
dar, a criana me contava sempre o mesmo sonho: cobria com
uma toalha de mesa o amigo albino sob o sol do meio dia.
(NOLL, 2003, p.216).
:' hipotexto de Noll
A palavra configurao, que desde o incio nos orienta nos
fundamentos desse artigo, chama-nos ateno para dois aspectos:
o primeiro, atinente ao aspecto visual do texto, sua mancha; o
segundo, o propsito do texto, sua forma, que ele sustenta, pre-
ponderantemente, com figuras. A configurao, quer de um hiper
ou de um hipotexto, est, de maneira nodular, na idia de texto:
uma seqncia de enunciados encadeada e tramada. Texto trama,
como nos lembrou Ricardo Piglia. A partir dessa condio fundante
do texto, poderemos divisar, ento, suas diferenas nos registros da
sua comunicao, no seu suporte, na configurao do suporte.
Um hipotexto um texto muito curto. A brevidade, quer
para a prosa ou para a poesia, provoca numa narrativa uma forte
tenso interna. A brevidade intensifica, no caso de uma narrativa
em prosa, uma coero interna para o estabelecimento da sua tra-
ma. Bispo da madrugada tem, como vimos, 112 palavras, que nos
envolvem numa circunstncia emblemtica que invade o destino
de uma personagem frentica, sem identidade, perdida na sua in-
dividualidade, sem que o seu pensamento delirante esteja voltado
para um acontecimento. No houve, para a narrativa, um aconte-
cimento; no h sequer a pressuposio de um acontecimento. O
conto narra uma situao, algo localizado.
Bispo da madrugada um conto de situao; elptico,
multiforme, polissmico. A elipse, que omite as seqncias do
acontecimento, instala o enigma, sua atmosfera. Exige a partici-
pao do leitor, que, em rpidas cenas, l o enfraquecimento de
um sujeito: de um pai, esgotado, exausto. O filho, a segunda per-
sonagem, encontra-se em situao oposta: tranqilo, desperto de
um sono. O pai um errante, irado; o filho, fixo num nico sonho,
um solidrio. Deparamo-nos com uma tenso que condensa, da
parte do pai, vazio, fracasso e, da do filho, redeno, salvao,
plenitude. Defrontamo-nos, sempre, com condensaes e elipses;
indefinies, como a figura do tempo: madrugada, momento en-
tre a meia noite e as seis horas da manh; tempo fluido: corrente,
espontneo. Ou como na figura espacial do rio que flui e de forma
semelhante como o sangue que a personagem sente correr em
profuso, pelas pernas, peito, barriga, pescoo, cabea. As figuras
espaciais mostram-se externas e internas. Externas quando beira
do rio e internas, quando focam o interior da casa. A casa encon-
tra-se fechada. Pai e filho encontram-se com a proteo das co-
233
23-f Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
bertas e da casa. O pai, de esgotado, irado, beira do rio, agora,
no interior da casa, dividido - um bispo, um rei, um indigente. O
filho, enquanto dorme e sonha no seu quarto, uno - um princpio
de vida unificado, de individualidade, de personalidade, de cons-
cincia, de solidariedade. O filho encontra-se tranqilo e ressona
numa cama. Inspira no pai, que far caf ao amanhecer, um alen-
to. O pai crava as unhas na parede: certifica-se. O sonho do filho
ser sua certeza sob a luz do sol do meio-dia; num gesto de soli-
dariedade para o desamparo de seu pai. Nesse sonho, o filho co-
bre um albino com uma toalha, como o pai, dentro da casa, cobre-
se com uma coberta. Na elipse, na condensao, uma oposio
possvel - o desamparo de um diante do amparo do outro. O pai
encontra-se em desamparo, na beira do rio ou em casa; o filho, em
casa, enquanto dorme e sonha, ampara, ajuda, auxilia, socorre.
A leitura de um hipotexto intrincada e intensa. Ler (do
latim legere ou do grego analegein) significa escolher. Ler, nesses
sentidos, interpretar, atribuir sentido, sentir alguma coisa que
reconhecida pela leitura: algo singular e que exige, do leitor, uma
descrio da ao lingstica que produz o texto, numa determi-
nada situao que pressupe um gnero, um tipo de discurso me-
diador da construo de um tipo de conhecimento. O leitor preci-
sa entender o texto, saber o que est lendo e compreender algo
importante e atinente demanda de uma narrativa: ela no tem
tamanho, constitui-se de um enunciado total.
Do enunciado total que uma narrativa, o conto, do latim
computu, uma conta, um cmputo, um nmero (uma represen-
tao de cada um dos quadros ou cenas de uma narrativa, de um
espetculo; representao de uma grandeza mensurvel; repre-
sentao de um conjunto dado), preciso, harmnico, regular na
cadncia e disposio de suas palavras. Nesse sentido, conto tem
o significado semelhante a canto. H, em ambas as composies,
a modulao de uma voz que, no caso do conto, narra, mas tam-
bm, como no canto, entoa, dentro de um tom (contnuo ou
descontnuo), com escalas (consonantes ou dissonantes).
A comparao que fazemos entre as manifestaes do can-
to e do conto tem uma sintonia com a potica de Joo Gilberto
Noll. A natureza da forma da sua narrativa em prosa, conforme
entrevista que concedeu a Miguel do Rosrio, passa pela
musicalidade, apreendida, desde a sua infncia, tanto na audio
o hipotexto de NolJ 235
da composio musical, como na leitura da poesia. NoU, nessa
entrevista, revela-nos que mais leitor da poesia do que da prosa
e que, ao. escrever, v-se "arrastado por ritmos, realmente por
ritmos, por voltagens musicais ... ". (NOLL, 2004, pA) Dessa
maneira, Gilberto Noll (2004, p.5) definir, nessa mesma entre-
vista, a sua prosa como "uma prosa potica" e que est
"radicalizando cada vez mais isso". Acreditamos que a edio de
Mnimos, mltiplos, comuns, de 2003, contempla aquela
radicalizao referendada na entrevista concedida para Miguel do
Rosrio em 2004 e sinaliza para os anos em que o autor exerci-
tou-a na Folha de S. Paulo.
Desse modo, uma prosa com o ritmo da poesia, em primeira
pessoa, diante de um temrio que celebra situaes convulsivas
vividas pelas suas personagens, possibilita a Joo Gilberto NoU
construir uma atmosfera em que o,potico aproxima-se do mtico
e permite que a narrativa represente, conforme o autor, "uma
certa pulso por um ethos". (2004, p.8)
Juntamos s consideraes uma reflexo sobre o conceito
de conto, o de enredo tambm nos ser interessante. Pode-se
ressaltar do conceto de enredo uma diferena entre uma situa-
o inicial e uma final da narrativa. O conto de enredo modu-
lado numa escala dissonante, a fim de que seu enunciador cons-
trua um tom descontnuo entre comeo, meio e fim, uma relao
de causa e efeito, um princpio de causalidade. J o conto de
atmosfera modulado dentro de uma escala consoante, num tom
contnuo, a fim de que sua enunciao elabore uma consonncia
entre o seu incio e o seu final. Um enredo mostra-nos
descontinuidade; uma atmosfera, continuidade, circularidade. No
enredo a nfase transita entre seqncias (e entre elas um epis-
dio ser fundamental, ter seu desenlace). O conto de atmosfera
fixa-se num estado, numa situao em que temos a atmosfera, o
ambiente, a situao de uma ao.
O conto que lemos configura-se como um conto de atmos-
fera, distante da estrutura do conto de desenlace; trabalha a narra-
tiva de forma vaga, diluda, indefinida; as seqncias da sua narra-
tiva no se opem, elas se neutralizam. O procedimento de
neutralizao sustenta o conto de atmosfera, numa relao de agre-
gao entre seqncias; a proximidade entre seqncias imedia-
ta, sem mediao. Essa a relao nica de aproximao entre
236 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
suas situaes; o seu objetivo diluir contrastes e evitar um desen-
lace. O conto de atmosfera tende a narrar, mais e precisamente, um
estado mental, um estado de esprito, do que uma ao genrica.
Esse conto, como um enunciado total e no modo de tensionar essa
totalidade, qualifica sua narrativa de maneira catica, heterc1ita;
faz paralelos, coordenaes; intercalaes, transies, regresses,
seguindo o fio da narrativa e os perfis das personagens.
Voltemos agora a nossa ateno funo do narrador de
Bispo da madrugada. O narrador o organizador da ao narra-
tiva; a voz que narra. Nesse conto, temos um narrador e perso-
nagem que organizam, com palavras e imagens, a verdade textual;
como se sua presena afastasse a do sujeito da enunciao, sem-
pre implcita, mas, muitas vezes, forte, mais organizadora, mais
racional. O narrador do conto semi-onisciente: no invade a mente
da personagem, com quem contracena, na busca de explicaes
para os acontecimentos. No temos, como vimos, um aconteci-
mento. O que que aconteceu? Esse narrador capta emoes,
sensaes simultneas.
Bispo da madrugada, como lemos, constitui-se num conto
estranho. Trata-se de uma narrativa sem heri e sem adjuvante,
em torno de algo que ocorre, de maneira nica e persiste. O
continuum do mundo, do ponto de vista do protagonista, no se
deixa recortar. A percepo das coisas do mundo, pelo sujeito, no
conto de atmosfera, contnua. O sujeito, assim, no chega, com
o que percebe, a uma concepo do mundo. Como exprimir as
reas do inconsciente num conto ultracurto? A construo de uma
inconscincia no admite uma expresso verbal direta e, assim, de
maneira indireta, dedutiva, leremos, em Bispo da madrugada,
como que dados do inconsciente expressos, com elipses,
condensaes, como ndices de uma sintaxe do inconsciente, por
meio do solilquio.
O solilquio procura exprimir emoes, sensaes - a vida
interior da personagem fundida exterior. Ele conforma interpe-
laes deliberativas (um jogo, no necessariamente explcito, en-
tre perguntas e respostas). A palavra base que nomeia solilquio
colquio. Colquio define-se como a fala entre dois. Solilquio
uma palavra derivada de colquio; significa fala de um s, fala de
algum consigo mesmo, monlogo. Na verdade, no monlogo,
algum interlocutor da prpria fala - um arranjo literrio, uma
o hipotexto de Noll
figura, algo sem lgica - traduz, representa, uma condio do
homem, de solido. Situa-se num nvel menos profundo da cons-
cincia. Pode aparecer combinado com o monlogo interior. O
solilquio, por sua vez, procura exprimir emoes, sensaes - a
vida interior relacionando-se com a exterior. Bispo da madruga-
da configura-se com o veio do solipsismo, na movimentao de
um eu em nica realidade do mundo; de um eu que tem nas suas
condies subjetivas a nica forma da realidade; de um narrador
sem interlocutor. As aes estranhas no se justificam do ponto
de vista do reconhecimento; no as reconhecemos pela nossa
memria de leitura, nem as reconhecemos pelos antecedentes da
narrativa, derivados da prpria intriga. Nos acontecimentos ve-
rossmeis e necessrios, o contexto exerce um controle na coe-
rncia do texto. Pode ser uma coerncia de temas e figuras, em
que o tema suporta a rede de figuras; o que prprio de um texto
que trama, tece relaes. Em um texto tramado por meio de aes
estranhas, a continuidade fica merc de si mesma e formula a
sua prpria condio paradoxal. Em uma narrativa estranha, a
personagem no sabe compreender o que ocorre e nem alterar tal
situao. O seu adversrio no conhecido e, portanto, no pode
ser reconhecido. O estranho algo que ocorre "fora da ao", da
ao verossmil, sem necessidade. O necessrio consiste no que
inevitvel, requerido, foroso; o que no pode deixar de ser; uma
condio imposta, normativa, que impede escolhas; a necessidade
fundamental. O necessrio o oposto do voluntrio, daquilo
que procede livremente.
O jornalista Jos Castello (2003a, p.74), em dois momen-
tos, observa a chamada nova gerao de escritores brasileiros,
que Joo Gilberto NoU integra. No primeiro momento, nas pgi-
nas da revista Bravo, e no incio de suas observaes, enfatiza:
As melhores fices so aquelas que parecem desprovidas de
laos com o seu tempo e com o seu meio, provocando o des-
conforto de destoarem tanto dos hbitos dos intelectuais ilus-
trados como das expectativas amestradas do leitor comum.
Jos Castello, nesse artigo, comenta a maneira como, entre
os novos ficcionistas, h aqueles que no se reconhecem como
parte de uma "nova gerao" que no fazem manifestos ou
experimentalismos. Apresentam-se, antes, como uma gerao sem
237
238 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tendncia e que, simplesmente, elaboram uma narrativa tensa e
tendente para o inesperado, o novo, uma nova realidade, uma su-
pra-realidade. O segundo momento das observaes de Jos
Castello (2003b, p.l0-13) ocorreu onze meses depois, no jornal
Valor, em que ele retoma o mesmo vis da questo acerca da lite-
ratura contempornea. Notamos que essa ltima discusso mais
densa, e alinha-se s ponderaes j destacadas de Ricardo Piglia.
Para o jornalista, o "novo realismo" domina a produo da prosa
brasileira atual, e, sobre ele, observa:
Lidar com a realidade no tarefa fcil para ningum, no
s para os escritores. At porque a realidade muito mais com-
plexa e enigmtica do que supem essas paisagens simplificadas e
superficiais mostradas pelo "novo realismo".
Nas circunstncias dessa afirmao, Castello considera Joo
Gilberto Noll um escritor:
[ ... ] interessado nesse abismo que separa o sujeito da realida-
de, [e que] prefere, ao contrrio [daqueles "de paisagens
simplificadas"], agarrar-se potncia dos sentimentos e ener-
gia dos estados primitivos. (Castello, 2003b, p.l 0-13)
Com Jos Castello depreendemos que Joo Gilberto Noll
produz uma fico a partir da realidade, delimitando suas perso-
nagens no campo do imaginrio humano, ocasio em que as ence-
na em situaes de crua realidade.
Divisamos, assim, nesses dois artigos de Jos Castello, com
base em seu ponto de vista sobre o literrio e em sua impresso
sobre o texto de Joo Gilberto Noll, que a nova narrativa no copia
objetos, mas substitui a referencialidade ordinria por outra, extra-
ordinria, por um novo conjunto de significantes. Ou, conforme o
ficcionista, Joo Gilberto N 011 (1999, p.l 00) j observara:
Eu gosto de ver a matria objetiva, de um corpo determinado.
Eu preciso ver um personagem, um corpo com nimo. Esses
personagens esto um pouco desvinculados de uma instituio
que possa centr-los. So muito perdidos. Por isso, eles preci-
sam andar cata dessa coisa que no os faa pura evaso ( ... )
O que me encanta na existncia a forma. Isso no desgua no
o hipotexto de Noll
formalismo, na palavra como artefato. O que gera a palavra,
potica ou no, o drama, a incapacidade do homem de dar um
sentido mais vertical existncia.
o prprio autor, posteriormente, manifestou-se contrrio
tendncia realista: "Eu no sou um escritor realista. Eu sou um
escritor de linguagem, a linguagem que move os contedos, que
estrutura os contedos". (NOLL, 2004, p.6) O realismo de Joo
Gilberto NoU est na modulao da sua narrativa, no seu tom que
sustenta uma situao em movimento. A narrativa de NoU tende,
assim, a partir do papel do indivduo na fico, a redirecionar o
quadro da referencialidade, alterando a maneira usual da repre-
sentao, mudando o carter da composio da subjetividade,
maneira de abordagem da subjetividade. O imaginado ajusta-se
forma em que imaginado, na disposio em que imaginado,
para ficarmos com Gianotti (2005, p.3):
o referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, s ve-
zes, trabalha com semelhanas, mas cujo valor esttico no
depende delas.
Segundo Gianotti (2005, p.3), desde a Antigidade, "a ima-
gem tem sido posta como aquela faculdade de ter presente uma
coisa ausente", uma figura procura da referncia. Algo que te-
mos bem distante da estratgia ficcional de Noll (1999, p.lOl):
No tenho pendor para as grandes narrativas. Gosto do mist-
rio. O mistrio humaniza. No uma perdio para as foras
sociais, as foras da luz. Eu quero luz, tambm, como todo
indivduo. O meu movimento no antiiluminista.
NoU, entre os novos ficcionistas, no se afasta da compre-
enso da realidade, da tentativa de apreend-la; busca, porm.
visualiz-Ia, incorpor-la realidade humana, labirntica, visceral
e tal estratgia passa pelo perfil do intelecto da personagem. pelo
seu nvel de percepo da existncia e pela representao da sua
conscincia, da sua subjetividade. A diegsis, assim, mais que a
mimese, d a direo da trama.
No conto de Noll em questo, mostram-se os
assombramentos de uma personagem diante da serenidade da ou-
239
240 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tra. Sombra e luz - figuras alegricas da verdade; nelas, o mundo
sensvel aparece como alegoria de um contedo espiritual "imper-
ceptvel". Conforme afianou Jos CastelIo, nessa alegoria, Joo
Gilberto NoU mostra o "abismo que separa o sujeito da realida-
de", prxima da "potncia dos sentimentos e energia dos esta-
dos primitivos" e distante de "paisagens simplificadas e superfici-
ais". (2003, p.lO-13)
Percebemos, dessa maneira, pela fico de NoU, que qua-
dros novos do mundo so pensados e nos ampliam as imagens que
temos do mundo. A mmesis, como vemos, no mais se realiza
como a expresso que presentifica, representa, algo que est au-
sente, reconhecido pelo processo da leitura. Essa fico de Joo
Gilberto NoU elimina a revelao e afirma a percepo. Na narra-
tiva, parece-nos, a memria nada revela. o casual que desenca-
deia os processos de conscincia e constitui-se na forma de apro-
ximao do texto com a realidade imediata, a maneira como o
mundo interior da personagem transparece no mundo exterior.
H um veio, um caminho, mostrado no engendramento do
conto que, ao nosso ver, passa sim por um novo realismo, ao lado
de um novo naturalismo. O naturalismo est na transcrio de
uma realidade imediata, no imediatismo, no instintivo, na deter-
minao do imediatismo, que propicia, no texto em anlise, o apa-
recimento, por exemplo, da ira, dos estados primitivos. A rea-
lidade, assim, sonho, esquizofrenia, vises, o objeto misterioso
da fico. O realismo de Joo Gilberto NolI realiza-se com o ob-
jetivo de vasculhar o obscuro. E, assim, o tempo faz-se perptuo,
contnuo, tenso, como na lrica.
O conto analisado e os demais de Mnimos, mltiplos, co-
muns, mostram construes, configuraes que buscam novas
referncias, novas figuras, um novo "imageado", como quer
Gianotti. Os hipotextos de NoU expressam situaes mltiplas,
dispostas em unidades temticas, por meio de uma ao intensa
da interdiscursividade e num estilo vigoroso, excessivo, elabora-
do. Dessa maneira, com imagens tensas, ambguas, narram-se si-
tuaes transcendentes que aproximam os momentos da histria
aos momentos do discurso. A prpria obra como medida e pro-
cura de um leitor? Borges, Cortazar, Bioy Casares fizeram contos
curtos com esses parmetros. Joo Gilberto NoU no o primeiro
na ousadia. Aqui tambm, conforme observa Joo Alexandre Bar-
o hipotexto de NoU
bosa (2003, p.17): "a experincia que se representa tambm, ou
sobretudo, uma experincia de leitura". Essa referncia, dedicada
crtica da literatura atual, ajuda-nos a explicar a narrativa de
Noll- a teatralizao de gestos, o momento do impulso biolgico
do corpo, os movimentos entre o homem e o mundo - como a
representao dos:
[ ... ] os movimentos de inadequao atravs dos quais o potico
se expande na criao de um espao e de um tempo capazes de
romper com os estreitos limites de uma diacronia evolutiva de
causa e efeito. (2003, p.15)
A originalidade na construo dos textos de Joo Gilberto
N 011 est na busca de um efeito casual, com intensidade e brevida-
de; sua originalidade est, enfim, em tensionar a narrativa para o
imprevisto. Vm-nos lembrana, como numa situao
diametralmente oposta s de No11, as intenes literrias de Edgar
A11an Poe. O tom potico procurado por NoU no o da melanco-
lia, preferido por Poe. Alm disso, o estranho, nas narrativas de
NoU, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. Poe, que
tudo prev, constri a estranheza de uma dada situao dentro de
uma combinada unidade de efeito, para a impresso do seu leitor.
O estranho, nas narrativas de No11, habita o sujeito e permanece
fora do seu alcance. A originalidade de Joo Gilberto No11 est em
elaborar o imprevisto, com imagens diludas que traz do mundo,
apagadas da sua referencialidade. Desse modo, NoU afasta-se do
mimtico. A representao do mundo no seu texto faz-se pela
sobreposio de observaes sobre o observado, porm, por meio
de imagens imprevisveis, constitudas por metforas sem
previsibilidade, que elidem a cadeia do sentido para o seu reco-
nhecimento, distanciando-se da retrica de "atualizao de uma
diferena" (COSTA LIMA, 2000, p.303), a que reconhece, para o
leitor, aquela diferena.
As imagens que Joo Gilberto NoU traz do mundo para a
literatura so verdadeiramente singulares e no procuram "a equi-
valncia subjetiva de uma cena externa e objetiva" (COSTA LIMA,
2000, p.24), ou conforme as intenes do autor: "O que me inte-
ressa o gesto, a projeo de coisas sobre as quais no tenho
tanto controle assim" (NOLL, 1998, p.102).
241
242 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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PIGLIA, Ricardo. Crtica Y jiccin. Buenos Aires: Editorial Planeta Argentina,
2000.
Outras Palavras:o Catatau de Paulo
Leminski em trs tempos
Marlia Librandi Rocha
(UESB)
Este texto versa sobre o romance Catatau (1975), de Paulo
Leminski (1944-1989), tendo em vista discorrer sobre o modo
como o experimentalismo de vanguarda insere-se e, simultanea-
mente, desloca a tradio do narrador de prosa de fico no Brasil
desde sua constituio no sculo XIX. Busca-se saber de que modo
um romance como Catatau liga-se tradio do narrador
oitocentista corrompendo-a por dentro, minando seus pressupos-
tos, ao mesmo tempo em que os re-atualiza. Um desses pressu-
postos, talvez o principal, respondia pela adequao de uma fic-
o atrelada documentao e que se legitimava por sua mestra,
a Histria, pelo desejo de fundar um pas, a busca da cor local e a
descrio da paisagem baseada nos relatos dos viajantes estran-
geiros (cf. SUSSEKIND, 1990). O mesmo viajante, que constitui
a imagem do narrador de romance no Brasil oitocentista como
paradigma do conhecimento e descrio do pas, tambm se en-
contra aqui s que posto do avesso. "No Catatau", diz Leminski,
"quase nada acontece. No sentido da narrativa do sculo XIX,
claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece quase
tudo" (Leminski, 1975, p.11). No livro, Leminski ficcionaliza Ren
Descartes, que foi oficial da Guarda de Maurcio de Nassau e
poderia ter integrado, juntamente com naturalistas como Marcgravf
e pintores como Franz Post e Albert Eckhout, a comitiva que acom-
panhou o Prncipe em sua vinda ao pas na poca do domnio
holands no Nordeste (1630-1654).
Como uma floresta tropical de palavras que no compe
proposio vlida segundo o critrio de Verdadeiro ou Falsa, mas
uma simultaneidade de frases que se autodesfazem, unidas emjus
243
244 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
taposio mais do que na subordinao de sintagmas como "Pen-
so, logo existo", no h, em Catatau, o "logo", pois nele o lagos
cartesiano delira e ensandece: "muito baralhado esse negcio
braslico!" (LEMINSKI, 1975, p.63), o que, de outro modo, man-
tm a figurao de um Novo Mundo em oposio ao Velho. As-
sim, o livro abre com o famoso ergo sum, imediatamente corrigi-
do para "alis, Ego sum Renatus Cartesius, c perdido, aqui presen-
te, neste labirinto de enganos deleitveis" (LEMINSKI, 1975, p.13).
Em um livro que se quer todo espacial, este estudo, como
abordagem inicial de pesquisa, tem o intuito de mostrar que em
Catatau se cruzam trs temporalidades distintas: 1) a do sculo
XX, em um livro escrito entre 1966 e 1975, no Brasil, segundo
os parmetros da vanguarda do Concretismo, filiado s experi-
mentaes de James Joyce, Guimares Rosa, Haroldo de Cam-
pos, e retomando a linha do projeto modernistaJantropofgico
de Oswald de Andrade; 2) a do sculo XVII, com o tema da
presena fictcia de Descartes em Pernambuco, o texto parodia
o pensamento clssico, sua ordem geral dos signos, sua mathesis
e taxinomia, para defender a idia de sua impossibilidade em
terras locais; 3) entre esses dois tempos - os sculos XX e o
XVII - queremos mostrar que o livro de Leminski desfaz em
negativa as bases que constituram o narrador de fico no Bra-
sil no sculo XIX, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente,
mantm, com outra palavras, os mesmos pressupostos romnti-
cos de um pas ednico, lugar incomum, terra "em branco"; ques-
tes essas que discutiremos a partir dos estudos de Flora
Sussekind, O Brasil no longe daqui (1990), e de Roberto
Ventura, Estilo Tropical (1991). De modo que, no livro, as di-
versas temporalidades no apenas se cruzam, mas coincidem:
"Se nossas pocas coincidirem, nossas conversas sero contnu-
as" (LEMINSKI, 1975, p.l11), o que conduz indagao: "A
que poca atribuir nossos tempos" (LEMINSKI, 1975, p.38).
Podemos tambm dizer que em Catatau ocorre o confron-
to de duas epistemes que o romance encenaria: a episteme do
sculo XVII europeu, que tem Descartes como pilar e que se
caracteriza pela confiana na representao e no cogito, e a
episteme que na passagem do XVIII para o XIX inaugura a "cri-
se da representao", segundo M.Foucault (1966), e que se es-
tenderia at uma obra de vanguarda e experimentalismo dos anos
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
de 1970 no Brasil, a qual acentua ou desloca a crise da represen-
tao numa incurso pela linguaviagem.
o viajante em trnsito, pensamento em transe
Renatus Cartesius, personagem, encontra-se sentado som-
bra de uma rvore do horto de Maurcio de N assau no palcio de
Vrijburg (1642): "a cidade livre, a Olinda batava, onde em
Pernambuco (paranimabuca, em tupi), Nassau organizou o pri-
meiro zo e horto botnico s com plantas e animais tropicais"
(Leminski, 1975, p.13). Fumando uma "erva de negros" e com
uma luneta a seu lado, o pensamento claro e distinto do filsofo
perturba-se, dissolve-se e aquece-se sob o sol dos trpicos. A ra-
zo dorme ou sonha e o que ele v so monstros, como diz paro-
diandoPascal, "O silncioetemo desses seres tortoseloucos me
apavora" (LEMINSKI, 1975, p. 15).
Comer esses animais h de perturbar singularmente as coisas
do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus
sonhos se populam da estranha fauna e fIora: o estalo de coi-
sas, o estalido dos bichos, o estar interessante (LEMINSKI,
1975, p. 15)
Descartes aguarda Artyczewski (1592-1656), general da
Companhia das ndias Ocidentais, que s aparece ao final do li-
vro, embriagado.
o ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartsio o
fiel retrato, em termos de realismo, do estado de esprito do
colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, at-
nito: alienado (Leminski, 1989b, p.212)
Descartes perde a razo e se metamorfoseia nos animais
que observa. Assim, se "A bicharada, com que comea o Catatau,
emblematiza o pasmo do Europeu (esse desbestializado)"
(LEMINSKI, 1989b, p.212) , no livro o personagem se toma
literalmente besta:
Sinto em mim as foras e formas deste mundo, crescem-me
hastes sobre os olhos, o plo se multiplica, garras ganham a
245
246 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de
fera, renato fui. Se papai me visse agora, se mame olhar para
c!" (LEMINSKI, 1975, p.36)
Assim, se para o Descartes real o que diferencia os homens
dos animais serem aqueles "capazes de arranjar em conjunto
diversas palavras, e de comp-las num discurso pelo qual faam
entender seus pensamentos; e que, ao contrrio, no existe outro
animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser,
que faa o mesmo" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.61), Leminski
faz entrar em curto-circuito essa capacidade: vingana contra o
cartesianismo, sua lgica e a da colonizao. Assim tambm, se
para Descartes "a razo um instrumento universal, que pode ser-
vir em todas as espcies de circunstncias" (DESCARTES, 1637,
Livro 5, p.60), para Leminski trata-se de defender a tese contrria.
Uma frase de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropfa-
go: " ... nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns", pare-
ce estar na base de Catatau. A inteno do livro, nas palavras do
autor, : "mostrar como, no interior da lgica todo poderosa,
esconde-se uma inautenticidade: a lgica no limpa, como pre-
tende a Europa, desde Aristteles. A lgica deles, aqui, uma
farsa, uma impostura. O Catatau quer lanar bases de lgica nova".
(LEMINSKI, 1989b, p.211).
Segundo a Grammaire gnerale et raisonne (1660) e La
logique ou l'art de penser de Port-Royal (1662), como aplicaes
do pensamento cartesiano, toda proposio representa o pensamento
que j representao da apreenso do mundo, portanto, represen-
tao da representao, que caracteriza a idade clssica e sua con-
fiana no cogito. Em oposio a essa concepo de transparncia
da linguagem em relao a um pensamento que a lngua deve ape-
nas traduzir sem interferir nem perturbar, Leminski compe um li-
vro no qual a proposio, ao invs de representar o pensamento, o
dilui, o desfaz, o liquefaz. Cada frase um desmentido da anterior.
No h o desenvolvimento de uma idia em uma cadeia de proposi-
es compondo pargrafos, mas uma sucesso de provrbios, fra-
ses-feitas desfeitas, citaes, pardias, idiotismos, estrangeirismos.
::\o h sequer uma lngua nica no livro, mas uma mescla:
Seu polilingismo o reflexo do polilingismo do Brasil de
ento onde se praticavam as lnguas mais desencontradas: o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
tupinamb da Costa e centenas de idiomas gs/tapuias, diale-
tos afros, portugus, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita,
holands, alemo, flamengo, francs, idisch e at hebraico
(LEMINSKI, 1989, p. 212)
Tudo no livro colabora para a confuso bablica em oposi-
o clareza. Nesse sentido, Leminski compe um no-livro, como
uma coleo de frases que pode ser lida em qualquer seqncia,
texto ciberntico ou hipertexto.
o no-livro para no leitores
o livro se abre com uma inverso: ao invs da tradicional
"Captatio Benevolentiae", o autor repele os leitores com uma
"Repugnatio Benevolentiae": "Me nego a ministrar clareiras para a
inteligncia deste catatau que, por oito anos agora, passou muito
bem sem mapas. Virem-se". Prope-se, assim, como o oposto da
clareza e do bom senso, recusando o leitor comum visado por Des-
cartes em seu Discours de la mthode pour bien conduire sa raison,
et chercher la verit dans les sciences, escrito em francs para po-
pularizar o mtodo em 1637. Esse propsito manifesto de repelir os
leitores insere-se n.o projeto do livro escrito para poucos, no dilema
de leitores recusados-e-buscados, "ego-trip" como qualificado,
no qual a comunicao com o outro (quer este outro seja o estran-
geiro, o nativo, o "civilizado", o "brbaro" ou o prprio leitor) atin-
ge um estado de entropia: "Mensagem afetada de elevado coefici-
ente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau est distribu-
da de maneira irregular" (LEMINSKI, 1989b, p.213). Como diz
ainda o prprio autor, a informao absoluta, sempre nova, acaba
por produzir redundncia, logo, informao nula, da "que a expec-
tativa permanente no Catatau acaba por se tornar um estado 'mo-
ntono' (cageno)" (LEMINSKI, 1989b, p.210).
No Catatau, a expectativa sempre frustrada. O leitor jamais
sabe o que deve esperar: rompe-se a lgica e as passagens de frase
para frase so regidas por leis outras que no as normas da sintaxe
discursiva 'normal' . Existe literalmente um abismo de frase para
frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como
na TV, entre ponto e ponto) (LEMINSKI, 1989b, p.21O).
247
248 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Na segunda edio de Catatau, em 1989, Leminski classifi-
ca seu livro como um "romance-idia" aproximando-o, assim po-
demos entender, de um tratado filosfico. Como efeito de leitura,
diria que o livro parece ser mais interessante para estudar como
"idia" do que para ler como "romance". Mesmo assim, est mais
prximo de um "projeto de prosa" do que da forma de um "poe-
ma em prosa", como define Haroldo de Campos: "Uma prosa que
pende mais para o significante do que para o significado, mas que
regurgita de vontade fabuladora, de apetncia pica, de estratage-
mas retricos de dilao narrativa" (CAMPOS, 1989, p.217,18),
e completa: "de um comedimento neobarroco, de um ensaio de
liquefao do mtodo e de proliferao das formas em enormida-
des de palavra, que se trata" (CAMPOS, 1989, p.214).
Trata-se, diz Leminski, "de um caso textual de 'possesso
diablica': um texto 'clssico' possudo por um monstro 'de
vanguarda'" (LEMINSKI, 1975, p.211), chamado Occam (Ogum,
Oxum, Egum, Ogam). Quando ele aparece no texto, as letras das
palavras se alteram, mudam de lugar, "aconstrece": "Occam, aca-
ba l com isso, no consigo entender o que digo, por mais que
persigo". (LEMINSKI, 1975, p. 18)
Fico/histria
Foi como professor de Histria do Brasil, durante uma de
suas aulas, que Leminski teve a idia que orienta o livro.
Referi que, na Europa, o Prncipe Maurcio cercava-se de um
sqito de ilustres. O filsofo francs Ren Descartes (que,
moda do tempo, latinizava o nome para Renatus Cartesius) era
fidalgo da guarda pessoal de Maurcio. De repente, o estalo: E
SE DESCARTES TIVESSE VINDO PARA O BRASIL COM
NASSAU, para a Recife/Olinda/Vrijburg/Freiburg/
Mauritzstadt, ele, Descartes, fundador e patrono do pensamento
analtico, apopltico nas entrpicas exuberncias cipoais do
trpico? (LEMINSKI, 1975, p. 207)
Catatau compe-se assim como uma fico que refaz a his-
tria dos holandeses no Brasil e sua interpretao incorpora na
materialidade da escrita o fracasso desse empreendimento, pois
a fala dissonante do personagem que faz desabar a razo cartesiana,
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
assim como desabou o projeto batavo nos trpicos.
Deste modo, os Estados Gerais tinham planejado fazer do Bra-
sil uma repblica muito rica, bela e poderosa, sem as lutas que
ali se verificam presentemente. Pretendiam tomar-se o povo
mais florescente e estimvel do mundo ( ... )". "( ... ) por fim,
pensando ter tudo ganho, tinham perdido tudo. (MOREAU,
1651, p.88).
249
governo de Maurcio de Nassau no Recife (1637-1644)
tido como a Idade de Ouro do domnio holands, correspondendo
aos seis anos de paz relativa (1641-1645) dentre os vinte e quatro
anos da guerra do acar (cf. MELLO, 1975, p.13). Por qu esse
episdio histrico, o poder holands que se estende do Cear ao
So Francisco durante vinte e quatro anos se reveste de importn-
cia e interesse para o caso que aqui nos interessa, o de sua incorpo-
rao pela fico? Destacamos dois aspectos. Primeiro, a questo
do "nativismo". Segundo a historiografia, o domnio holands e os
problemas envolvidos na guerra do acar favorecem uma primeira
organizao especificamente brasileira, manifesta numa guerra de
guerrilha que termina por expulsar os recentes invasores. O epis-
dio estaria assim na origem de um sentimento nativista posterior,
pois que s tomar corpo a partir de 1710 com a guerra dos masca-
tes, como analisa estudo de Evaldo Cabral de Mello (1975). Assim,
se a resistncia inicial aos holandeses marcadamente europia,
com tropas portuguesas, castelhanas e italianas, a guerra de restau-
rao assumir caractersticas brasileiras, com 2/3 de ndios e ne-
gros como parte do efetivo luso-brasileiro, sendo financiada pela
sociedade colonial do Nordeste. Como diz Jos Guilherme Merquior
comentando o estudo de Evaldo Cabral de Mello:
tanto o custeio da guerra quanto o recrutamento e abastecer
das tropas, o seu comando e a sua estratgia se tomaro
crescentemente locais e nativos. Exibindo com plena mincia
fundamentos materiais, econmicos, logsticos e tecnolgicos,
desse abrasileiramento da campanha contra o invasor, EeM
realiza uma autntica sociologizao do nexo, que a
historiografia precedente apontara sem demonstrar, entre o
domnio holands e o sentimento nativista. (MERQUIOR apud
MELLO, 1975).
250 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Podemos dizer que ao ficcionalizar Descartes nos trpicos
como emblema da colonizao batava, Leminski opera, no tex-
to, uma "guerra de guerrilha" contra o pensamento cartesiano,
minando-o na estrutura de sua fala ininterrupta, e a questo do
nativismo, importante para a prosa de fico que se fixa no s-
culo XIX, acaba por ser incorporada, pelo avesso, com outras
palavras, no Catatau, como discutiremos adiante.
De outro lado, trata-se de um episdio histrico que se
caracteriza como uma possibilidade no realizada: e se os holan-
deses tivessem sido vitoriosos e permanecido no Brasil? Nesse
sentido, arriscamos dizer que o romance de Leminski d corpo
ficcional anlise de Srgio Buarque de Holanda, em Razes do
Brasil (1936), em relao ao fracasso do projeto da Nova
Holanda, ("Seu empenho em fazer do Brasil uma extenso tro-
pical da ptria europia sucumbiu desastrosamente ( ... )",
HOLANDA, 1936,p.34). Dentre os motivos elencados por Sr-
gio Buarque para esse fracasso estariam o pouco "contato nti-
mo e freqente com a populao de cor" (HOLANDA, 1936,
p.34), as dificuldades fonticas dos idiomas nrdicos para os
ndios e negros e a pouca aceitao do protestantismo:
o insucesso da experincia holandesa no Brasil , em verdade,
mais uma justificativa para a opinio, hoje corrente entre al-
guns antropologistas, de que os europeus do Norte so incompa-
tveis com as regies tropicais (HOLANDA, 1936, p.34).
Assim tambm se manifesta Leminski em relao ao pro-
jeto de seu livro: "O Catatau o fracasso da lgica cartesiana
branca no calor, o fracasso do leitor em entend-lo, emblema do
fracasso do projeto batavo, branco, no trpico". (LEMINSKI,
1989b, p.216). Como disse Antonio Risrio: "Fracassou, por
motivos vrios, a colonizao holandesa, o projeto-Nassau.
Leminski d conta de um outro fracasso: pensar o Brasil em
pensamento europeu" (RISRIO, p.220, 1976).
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
A "Sensao de no estar de todo" e o "Estilo tropical"
A partir dos estudos de Flora Sussekind e de Roberto Ven-
tura desenvolveremos algumas hipteses na leitura de Catatau.
Em seu estudo O Brasil no longe daqui (1990), Flora Sussekind
assinala os "retornos em diferena da imagem do viajante na pro-
sa brasileira" (SUSSEKIND, 1990, p. 155). Seu estudo parte dos
anos de 1830 e 1840, mostrando como o narrador de fico no
Brasil se institui como um narrador-viajante, um narrador-
cartgrafo, baseado em dois gneros no ficcionais: o relato de
viagens e o paisagismo ("sobretudo o que tematiza vistas e exube-
rncias tropicais", SUSSEKIND, 1990, p.20). Esse narrador, li-
gado ao anseio de fundar uma literatura nacional diversa da euro-
pia, tem como modelo e "certido de verdade" o olhar do via-
jante estrangeiro, o do naturalista que classifica o que v e o do
paisagista que desenha e mapeia. Como ela demonstra, esses nar-
radores-cartgrafos sofrem uma primeira transformao entre 1869
e 1880, "em direo s mscaras do historiador e do cronista de
costumes" (SUSSEKIND, 1990, p. 155), e seu estudo conclui-se
com a anlise da viagem auto-reflexiva dos narradores de Macha-
do de Assis, que desarmam as idias fixas de natureza e cor local.
Encerrando-se aqui, no deixa, contudo, de apontar para outras
transformaes histricas desse narrador ligado viagem:
E, na prosa modernista dos anos 20 deste sculo - vide
Macunama, Memrias sentimentais de Joo Miramar, Serafim
Ponte Grande, Path Baby - se reinterpretariam viagens e nar-
radores-em-trnsito. Assim como fariam em fins dos anos 60
textos to diversos como Quarup, de Antnio Callado, e
Panamrica, de Jos Agrippino de Paulo; na dcada de 70, o
"Descartes com lentes" perdido no Brasil holands do Catatau,
de Paulo Leminski, ( ... ) e um livro que se autodefine como
uma "ao lu viagem" como Galxias, de Haroldo de Campos
( ... ) (SUSSEKIND, 1990, p. 154,155).
251
o livro de Leminski apresenta uma ego-trip, o pensamento-
fala de Descartes ininterrupto; um viajante estrangeiro em terra
recm-conquistada e que tenta descrev-lo e compreend-lo; a
descrio da fauna local compondo um bestirio. No entanto, o
que ocorre uma inverso: o novo mundo impede as construes
252 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do velho mundo, sendo necessrio um outro pensar-dizer, de modo
que o autor desconstri os pressupostos que orientaram a consti-
tuio do narrador de fico no Brasil oitocentista a partir mesmo
de suas bases.
Ao chegar ao Novo mundo cabe ao sujeito nome-lo,
descrev-lo mape-Io, transformar a natureza em "civilizao",
desenhar, pintar, escrever sobre essa terra em branco (cf.
SUSSEKIND, 1990, p. 13). Trata-se do papel do conquistador
nos livros de viagem, modelos da prosa de fico que "passa a se
oferecer no propriamente como literatura, mas como mapa
unificador, tratado descritivo, paisagem til" (SUSSEKIND, 1990,
p.22). Nessa prosa de fico estar sempre presente, a partir do
pensamento de Ferdinand Denis, "a crena na fora selvagem da
natureza nos trpicos" (SUSSEKIND, 1990, p.27). Assim, mais
do que relato, tem-se o inventrio, a classificao naturalista, a
expedio cientfica, a paisagem pitoresca a ser estudada: "Se ao
viajante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista
caberia classificar, ordenar, organizar em mapas e colees o que
se encontra pelo caminho" (SUSSEKIND, 1990, p.45).
Como vimos, Leminski define seu livro como "sem mapas",
opondo-se, portanto, imagem do narrador-cartgrafo-e-paisagis-
ta, assim como ridiculariza o "desejo de ao mesmo tempo represen-
tar e colecionar a paisagem" (SUSSEKIND, 1990, p. 119), quan-
do, por exemplo, citando Marcgravf e Spix, faz Descartes dizer:
Por eles, as rvores j nasciam com o nome em latim na casca,
os animais com o nome na testa ( ... ), cada homem j nascia
escrito em peito o epitfio, os frutos brotariam com o receitu-
rio de suas propriedades, virtudes e contraindicaes.
(LEMINSKI, 1975, p. 34)
o instrumento ptico, a luneta, que acompanha o persona-
gem Cartsio em Catatau, tambm figura nos relatos analisados
por Flora: "essa verdadeira representao hiperblica do olhar
armado do viajante naturalista que o telescpio. Como se v em
Spix e Martius. Ou luneta, como se v na tela O morro de Santo
Antnio no Rio de Janeiro (1816), de Nicolau Antnio Taunay"
(SUSSEKIND, 1990, p. 126). No caso de Catatau, a luneta est
presente quando faz aumentar as prprias letras do texto em mai-
sculas, no entanto, mais cega o personagem do que o esclarece:
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos 253
"E os aparelhos ticos, aparatos para meus disparates?"; "Esta
lente me veda vendo, me vela, me desvenda, me venda, me revela.
Ver uma fbula - para no ver que estou vendo"; "A figura
figurada. Desvidro-me. No representa o que apresenta. Em ou-
tras palavras, so outra coisa." (LEMINSKI, 1975, p. 16, 17,19).
Para opor-se racionalidade matemtico-cartesiana,
Leminski cria, assim, um personagem que como um viajante que
perde totalmente os parmetros de sua cultura de origem, sofren-
do uma espcie de "bloqueio" e "trauma". Ao identificar o que ela
chama de a "sensao de no estar de todo", Flora cita dois exem-
plos que encontram paralelo no livro de Leminski: o livro de Jlio
Veme, O eterno Ado, no qual os nufragos sobreviventes che-
gam em um continente desconhecido, mas, ao invs de civiliz-lo,
"no so os 'nufragos' que conquistam o continente descoberto;
este que parece lentamente devor-los" (SUSSEKIND, 1990, p.
14). Assim tambm em Quarup, de Antonio Callado, o persona-
gem que finca a bandeira nacional no centro do pas coberto por
milhes de savas, imagem esta retomada ao final de Catatau: "e
as formigas me comendo e me levando em partculas para suas
monarquias soterradas" (LEMINSKI, 1975, p.205).
"Livro-limite", na expresso de Haroldo de Campos, a hi-
ptese que lanamos a de que Catatau seria o ponto extremo
desse modelo analisado por Flora, seguindo uma linha que se ini-
cia nos decnios de 1830 e 1840. Transgresso mxima desse
modelo, o livro ainda se encontra dentro do mesmo paradigma,
como se o rompimento total no deixasse de ser tambm o ponto
de chegada dessa tradio. Dubiedade que faz o sucesso/fracasso
do livro. Nesse sentido, o fracasso programtico coerente, pois
trata de desfazer pelo avesso os postulados que orientaram a fic-
o no Brasil. Dbio, porque, ao negar com tanta radical idade
essa tradio, acaba, de outro modo, por afirmar o que nega, ou
seja, apesar de sua fora contestadora, o livro mantm em outras
bases noes como a de "natureza exuberante", territrio parte
no domesticvel, e, inclusive, a idia de um "estilo tropical".
Como mostra o estudo de Roberto Ventura (1991), alis contem-
porneo do de Flora, "A crtica e a histria literrias brasileiras
foram marcadas, at 1910, pelas noes de raa e natureza. As
origens do 'estilo' literrio eram atribudas ao diferenciadora
do meio ambiente ou da mistura tnica" (VENTURA, 1991, p.18).
254 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Assim Araripe Jnior, em 1888, escreve sobre o estilo tropical, a
partir da adaptao do naturalismo no Brasil, dizendo:
Emigrando para o Brasil, o naturalismo no podia deixar de
passar por uma migrao profunda. Zola, neste clima, diante
desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para
adaptar-se ao sentimento do real aqui. (JNIOR, 1888, apud
VENTURA, 1991, p. 17, 18)
No poderamos traduzir essa mesma frase para o caso de
Catatau, alterando apenas os nomes?
Emigrando para o Brasil, o cartesianismo no podia deixar
de passar por uma migrao profunda. Descartes, neste clima,
diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos
para adaptar-se ao sentimento do real aqui.
Ou seja, no se trata da mesma idia com outra roupagem?
E ainda diz Araripe: "A nova escola, portanto, tem de entrar pelo
Trpico de Capricrnio, participando de todas as alucinaes que
existem no fermento do sangue domstico, de todo o sensualismo
que queima os nervos do crioulo" (JNIOR, 1888, apud VEN-
TURA, 1991 ,p.I8). Tambm no de alucinao e delrio que se
trata no caso da ficcionalizao de Descartes, sofrendo a influn-
cia do meio no corpo de seu pensar, como revelam as poucas
frases pinadas a seguir? "Este mundo o lugar do desvario, a
justa razo aqui delira"; "Este calor acalma o silncio onde o
pensamento no entra, ingressa e integra-se na massa" ; "Nestes
climas onde o bicho come os livros e o ar de mamo caruncha os
pensamentos" (LEMINSKI, 1975, p.17, 28), dentre muitas ou-
tras que poderiam ser citadas.
Ainda seguindo o pensamento de Araripe Jnior, ele assim
define a tropicalidade do estilo: "h estilo que resista, h correo
que se mantenha? O [estilo] tropical no pode ser correto. A cor-
reo o fruto da pacincia e dos pases frios; nos pases quentes,
a ateno intermitente" (JNIOR, 1888, apudVENTURA, 1991,
p. 18). Assim tambm intermitente a fala de Descartes em
Catatau: "Pensamento, aqui, susto";"Tudo o mais que sei no
cabe no que digo, j no h mais o que eu havia dito, j h s o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
que nunca se soube. Os sintomas. Os sintomas de tudo, os siste-
mas totais." (LEMINSKI, 1975, p.19).
Retomando a hiptese levantada: com toda a inverso
demolidora que faz Leminski, no se trata, mesmo que do avesso,
de propor a mesma coisa? A idia de uma radical diferena dos
trpicos em relao Europa? O verso e reverso de uma mesma
moeda-idia? No se trata ainda de uma obsesso pela natureza
exuberante? A mesma que est na "constituio do narrador de
fico na prosa romntica brasileira e de algumas de suas trans-
formaes histricas" (SUSSEKIND, 1990, p.19)? Portanto, o li-
vro de Leminski insere-se como transformao histrica desse
mesmo modelo inicial, s que problematizando-o em negativa.
Se prosa de fico romntica cabia o desejo de mapear o Brasil,
o que faz Leminski apagar as linhas do mapa, buscando no um
comeo histrico, mas a origem entendida como originalidade
absoluta, apagando todas as escritas calcadas na lgica e no modo
europeu de apreenso do Novo Mundo. Espcie tambm ele de
Marco Zero.
Assim, no haveria tambm em Catatau a afirmao de uma
"essncia original", no da nacionalidade, mas de uma noo de
territrio parte, trpicos indomveis, no domesticveis, regio
inconsciente na qual conscincia alguma pode dar conta, como
um resto, um resqucio a perturbar a razo? Espcie de pensa-
mento selvagem versus o cogito cartesiano, ou o cogito cartesiano
confrontado com o pensamento selvagem, bricoleur, a destruir a
lgica dos viajantes invasores. Ao mesmo tempo, o livro foi es-
crito entre 1966 e 1975, em pleno perodo de ditadura, nesse caso,
seu desejo de falncia manifesta, seu afastamento voluntrio dos
leitores, sua ilegibilidade programada, no se ligariam tambm a
um projeto de contestao poltica? Espcie da autofagia da lite-
ratura que se devora a si mesma at desaparecer do mapa ou fazer
desaparecer qualquer mapa. Se, antes, busca-se a nacionalidade,
aqui parece haver o desejo voluntrio de perder-se, sumir do mapa,
tornar-se inencontrvel.
Busca-se apagar os rastros do j dito, re-fundar uma terra
em branco, justamente o inverso do desejo que movimentava os
narradores de fico nos decnio de 30 e 40 do sculo XIX, como
a imagem em negativa desse anseio fundador, cartogrfico, des-
critivo, de expedio cientfica. Tudo vai abaixo em Catatau
255
256 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9. 2006
(onomatopia tambm para queda). Mesmo assim, com todo
esse grau de negativas, ainda se trata de uma transformao
desse mesmo narrador-viajante, situando-se nesse paradigma,
apesar de apontar pra um ponto de no-retomo: o que escre-
ver depois disso?
A falncia programtica do livro, a nosso ver, viria de um
dilema no resolvido em uma tenso que permanece: a de um
livro de vanguarda que repete com diferena as bases da prosa de
fico no Brasil e que prope um rompimento radical com a re-
presentao de moldes romnticos, realistas, naturalistas, mas que,
paradoxalmente, mantm seus pressupostos, tais como a natureza
exuberante ou a influncia do clima. O dilema no resolvido viria
da juno ou justaposio de desconstruo formal unida a uma
ideologia conservadora de um mesmo ideal romntico. Por no
poder mant-las juntas - a rebeldia, a pardia, a descontruo e a
manuteno de um mesmo ideal do avesso - sem gerar um choque
auto-contraditrio, coerente tambm ele com a proposta do livro,
o fracasso faz-se inevitvel, podendo ento ser lido como um caso-
limite, de fato, da fico do estilo tropical chegada a um ponto de
no-retomo.
A par do atrativo pela idia-mor do livro: a dissoluo do
pensar cartesiano em solo e selva tropical e do cmico da situao
em que coloca Descartes, a par desse interesse e amor que o livro
desperta em ns, leitores, digamos assim, nativos, como uma vin-
gana tropical-concretista-antropofgica, ele se manteria ainda nas
categorias do pensamento romntico. Quer dizer, h um efeito
misto na leitura de Catatau, ou naquilo que no livro podemos
tentar ler j que ele mesmo se apresenta sem mapas nem coorde-
nadas, de atrao e recusa. Aqui tambm "a sensao de no estar
de todo" atinge a leitura e este texto.
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos
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I FUENTES, 2000, p.7
Narrar ou perecer: Srgio Sanfanna e
Ricardo Piglia, sobreviventes
ngela Maria Dias
(UFF)
A tradio inaugurada na literatura brasileira por Machado
de Assis, nas memrias de Brs Cubas, o seu "defunto autor",
dramatiza a escrita como leitura mesclada e desrespeitosa de vari-
ado repertrio, bem distante falacioso horizonte de objetividade
do preceiturio realista. Desde o Pentateuco, passando por Xavier
de Maistre at, muito particularmente, "a forma livre de um Sterne",
este primeiro romance moderno da literatura brasileira, como
divisor de guas entre o romance oitocentista anterior e a descen-
dncia que, ento, funda, proclama a "loucura da leitura" como a
maior evidncia de nossa radical impossibilidade de ser realistas e ou
professar a crena num mundo objetivo acima de qualquer suspeita ..
"Autor incerto de incerto romance"! ,Brs Cubas funda uma
realidade trpega e deslizante, na qual a "louca leitura" da vida
pelo privilgio da morte, como ponto de vista, transforma-a num
espetculo desmesurado, arbitrrio e absurdo. Tal "ambivalncia
na relao entre a verdade e a fico", radicalizada pela sndrome
da condio colonizada de nossa cultura, permanece, desde en-
to, no horizonte do romance hispano-americano, como a mais
radical estratgia de modernidade: o exerccio autoconsciente da
forma como inveno tcnica capaz de problematizar a realidade
e desestabilizar o dogmatismo do que .
Hoje, no incio do sculo XXI, a invaso do real pelas ima-
gens da ltima revoluo tecnocientfica renova e aprofunda a
persistente pergunta ibero-americana sobre quem somos ns.
que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente cole-
tivo pela Histria, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma
um outro:
259
260 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
O bovarismo uma chave do mundo moderno: a fonna em
que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma me-
mria impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de
massas uma mquina de produzir lembranas e experincias
2
2 PIGLIA, 1980, p.48
Partindo da borgiana concepo da memria como citao
mltipla e renovvel, numa infinita espiral de tradues, Piglia
concebe sua literatura tambm na contracena entre a
heterogeneidade de uma herana hbrida e o vazio de uma tradi-
o amnsica e falhada. A cidade ausente
3
, a este respeito, ab- 3 Idem, 1997
solutamente modelar. Na contrapartida mquina da cultura de
massas em sua aliana s fices do imaginrio do Estado, o es-
critor concebe uma espcie de poderosa alegoria da narrativa como
espao de resistncia e de desrealizao das trampas do poder.
Numa homenagem Macedonio Fernndez - "el escritor
de la nada" - precursor de Borges, Piglia fabula o universo de
uma estranha Buenos Aires conflagrada pelos "efeitos ilusrios"4 4 Ibidem, p.80.
de uma mquina replicante, capaz de "tornar viva a memria" e a
lembrana da mulher amada, atravs da produo de um relato
desdobrvel e infindo, "que retoma eterno como o ri0
5
". A at- 'Ibidem,p.126.
mosfera onrica e fantasmagrica do implausvel confronto entre
a mquina de Macedonio e as "fices eletrnicas
6
" do Estado fi Ibidem, p.117.
dissemina um clima irrespirvel, numa cidade em que "os contro-
les (so) contnuos", "a ltima palavra () sempre da polcia" e,
estranhamente, "todo mundo concorda em sonhar o mesmo so-
nho", vivendo "confinado numa realidade diferente"7 . 7 Ibidem, p.73.
Assim, a narrao em 3
a
pessoa do priplo de Jnior oferece
uma estranha sucesso de enredos nos quais o jornalista itinerante,
obsedado por enfrentar-se com o passado, entra e sai dos relatos
e em que tambm o leitor submerge, em meio inconsistncia
geral dos enredos e dos personagens. A incerteza da seqncia
narrativa, plena de intersees e recorrncias, reitera-se pela pr-
pria incerteza do narrador impessoal que, provavelmente, ser a
prpria mquina desarranjada, com a palavra na ltima etapa do
relato: "Eu sei que me abandonaram aqui, surda e cega e meio
imortal, se pudesse apenas morrer ( ... ) deixar de ser esta memria
alheia, interminvel, construo a lembrana e SS". 8Ibidem,p.137.
Enquanto resposta poltica e televiso, espelhos em que
Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes
caras e mais caras aparecem e se olham e se perdem, a mquina
concebida pelo seu criador, segundo o "princpio construtivo" me-
9 Ibidem,p.116. diante o qual, "tudo possvel, basta encontrar as palavras"9 .
A busca do passado para preencher o vazio do prprio nome,
faz de Jnior uma espcie de detetive, to perdido e atnito quan-
to o leitor, e transforma a narrativa numa investigao, j que
10 Ibidem,p.129. "todo relato policiapo" e tudo aquilo que escapa "tendncia
II Idem, 1980,p.54. generalizada de uniformizar a experincia 11" merece ser
criminalizado. Justamente esta ntima conexo entre narrativa e
poder se explicita na ltima parte do romance, quando a mquina
interditada reconhece:
A narrao ( ... ) uma arte de vigias, sempre esto querendo
que as pessoas contem seus segredos, dedurem os suspeitos,
falem dos seus amigos, dos seus irmos. Ento, ( ... ) a polcia e
a assim chamada justia fizeram mais pelo avano da arte do
12 Ibidem,p.129. relato que todos os escritores ao longo da histria
12

A despossesso pela linguagem ou a linguagem como m-
quina de despossesso, alm de atualizar nossa histria autorit-
ria, enseja a reflexo sobre a porosidade das mentes e coraes s
mquinas, na medida em que o espelho miditico invade e formata
todas as cenas. Entretanto, se "a rvore do bem e do mal a rvo-
re da linguagem", tal ambiguidade fundamental, ao manifestar "a
13 Ibidem,p.l04. forma incerta da realidade"13 ,pode confundir fico e confisso
ou ainda embaralhar os limites entre narrar e ser narrado.
No outro o motivo do peculiarssimo romance de Srgio
14SANT'ANNA, 1997. Sant' Anna, Um crime delicado 14 .. Sua trama de "escorpio
encalacrado", fazendo deslizar as fronteiras entre arte e vida, re-
presentao e experincia, crtica, criao ou mistificao, bem po-
deria merecer como epgrafe mais uma das falas da Mquina de
Macedonio sobre o vnculo entre narrativa, identidade, e investiga-
o: "Todo relato policial ( ... ) S os assassinos tm alguma coisa
15 PIGLlA, 1997, p.130. para contar, a histria pessoal sempre a histria de um crime"15 .
A intrigante histria do crtico de teatro Antonio Martins
16SANT'ANNA,1997,p.22. escrita por ele como "pea de natureza quase processuaJl6" para
defender-se da acusao de estupro, e entender-se "intelectual,
afetiva e criticamente" constitui, sem dvida, um eloqente teste-
munho da ambigidade entre confisso, culpa e encenao.
261
262 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Seu envolvimento com Ins, mulher estranha e manca, mo-
delo de um artista plstico de meia idade, desencadeia uma "nar-
rativa autobiogrfica 17" que, apesar de invocar para si "a meticu- l7lbidem, p.85.
losidade e os rigores da escrita
I8
", termina por reconhecer a ver- 1" Ibidem, p.l04.
dade como "ideal fugitivo e inalcanvel"19 . 19 Ibidem, p.l26.
Qual um detetive, o narrador dispe-se ao relato, na "busca
apaixonada .( ... ) da verdade
20
", atravs de uma auto-investigao 20 Ibidem, p.30.
fluida e escorregadia, vazada numa espcie de estilstica da inde-
ciso. Primeiro porque sua prpria experincia com Ins comea
sob a aura do esquecimento e da privao de sentidos: "Sofro de
amnsia parcial, s vezes quase total, depois que bebo em exces-
so, e era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus
temores eram mais justificados do que a euforia
21
". Depois pela 21 Ibidem, p.22.
relao indefinida e ambivalente entre Vitrio Brancatti e sua
modelo, projetada numa obra, espcie de instalao performtica,
que constitui um absorvente work in progress, capaz de engolfar
Ins, e o prprio narrador-crtico com ela envolvido.
Apaixonado pela "modelo e personagem da pintura
22
", An- 22 Ibidem, p.103
tonio Martins, aps envolver-se em nebulosos eventos que termi-
nam por lev-lo a julgamento pela acusao de estupro, resolve
dedicar-se "narrativa autobiogrfica", conduzida como "uma
investigao interrra
23
", em que, segundo ele, "mais do que 23 Ibidem, p.27.
(se)defender de acusaes controvertidas e tortuosas, tent(a) ex-
plicar-(se) e entender-(se), intelectual, afetiva e criticamente
24
". 24 Ibidem, p.102.
Acontece que, conforme a todo o momento o reconhece o crtico,
sua "escrita minuciosa
25
"jamais consegue matizar sentimentos 15 Ibidem, p.97.
contraditrios , ou o ntimo "caos de emoes
26
". O poo sem 26 Ibidem, p.95.
fundo da prpria subjetividade segundo ele, "uma caixa ilimita-
da
27
" ou ainda o "palco interior", de um teatro onde culpas reais "Ibidem, p.20.
OU imaginrias e afetos dspares podem duelar sem trgua, numa
proliferao incessante de hipteses e possibilidades.
Nesta intrincada correlao, um "texto cheio de curvas",
"pleno de interrogaes
28
" encena a mstica da subjetividade como 28 Ibidem, p.50.
fingimento, na prpria medida em que, a cada passo, se debrua
sobre a reversibilidade entre experincia e representao, ou ain-
da entre memria e imaginao. Assim o biombo da tela-instala-
o de Vitrio Brancatti , de certa forma, a metfora deste relato
que, como ele, constitui um anteparo, mais capaz de velar do que
esclarecer a experincia atravs da escrita. Como bem o reconhe-
Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes
29 Idem.
I A leitura que aqui desenvolvo
baseia-se livremente nas
interpretaes de Antonio
Quinet, em seu livro citado na
bibliografia, e no clebre
Foucault de As palavras e as
coisas.
ce O crtico-narrador, no seu infindvel "mise en abime":
Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, das coisas
reais, se que existe uma realidade humana que no seja a sua
representao, ainda quando apenas pelo pensamento, como
numa pea teatral a que no se deu a devida ordem, alis
inexistente na realidade
29

o carter ambguo e construdo da confisso como fico
comea sugerido desde as composies das capas, concebidas por
Joo Baptista da Costa Aguiar, como uma montagem de dois qua-
dros. Na primeira capa, o "Pigmaleo e Galatia" de Jean-Lon
Grme, contornado por grossa moldura de um dourado
acobreado, contm, substituindo o adorno cnico do fundo, o
emblemtico "As Meninas" de Velsquez. A quarta capa reproduz
este ltimo quadro, tambm contornado por moldura idntica
da primeira capa, e contendo ao fundo, no lugar da imagem refle-
tida do casal real espanhol, o quadro de Grme.
A mtua implicao entre essas duas clebres pinturas cons-
titui o cerne do universo ficcional desta novela, habilmente
conduzida para diluir fronteiras e desterritorializar premissas so-
bre a suposta distncia entre arte como inveno e vida como
experincia concreta. A obra de Grme trata do mito sobre a
paixo do criador por sua criatura, a esttua da bela mulher, ento
animizada por artes da deusa Afrodite. Por sua vez, o quadro de
Velsquez constitui um clssico metacrtico
l
, espcie de "tuming
paint" em que o barroco pensa a perspectiva clssica e representa
a representao, na medida em que encena a diviso do sujeito e a
disperso da interioridade atravs da duplicao do pintor. Assim,
o pintor-sujeito, em seu auto-retrato, no nvel do quadro desdo-
bra-se explicitamente como um duplo: o pintor diante de sua tela,
olhando em frente, a observar seus modelos, o casal real do lado
de fora da tela; e no ponto de fuga, ao fundo do quadro, seu pri-
mo, Don Jos Nieto Velsquez,. Mas, alm disso, o pintor tam-
bm se projeta para fora do quadro, situando-se no ponto infinito,
direita do espectador, numa diagonal com o pintor que visto
na tela, como o pintor-sujeito que a olha. A dramatizao abissal,
j que o sujeito dividido comparece vendo o quadro, sendo visto
vendo o quadro ou ainda, numa infinita seqncia, vendo-se ser
visto vendo o quadro e por a sucessivamente.
263
264 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Por outro lado, a cena pictrica desborda-se num outro que
simultaneamente modelo e espectador imaginrio. Trata-se do
casal real, includo no quadro como imagem difusa, refletida no
espelho ao fundo, para quem, supe-se, toda a cena est montada.
O entrecruzamento de olhares e pontos de vista - do pintor que
olha de fora a prpria tela, dos reis, ao mesmo tempo modelos e
espectadores e, portanto, lugar-tenente de quem contempla a obra
- figura, numa leitura psicanaltica, o inapreensvel do sujeito no
campo escpico, dividido entre o ver e o olhar, o pensar e o ser,
como significante sempre elidido e continuamente diferido.
A importncia da montagem dessas telas, nas duas capas do
livro reside na figurao que oferecem do jogo impalpvel opera-
do pela narrao entre verdade biogrfica, memria e fico, num
constante deslizamento indecidvel entre arte e vida. Da mesma
forma que as telas deslizam de seu suporte, invadindo o mundo do
espectador, e transtornando os limites entre construo pictrica
e existncia, no enredo do romance, a obra de Brancatti confun-
de-se com a vida do pintor e sua figurante, absorvendo o crtico,
com ela envolvido e por fim includo na obra.
Nesse sentido, o momento em que Antonio Martins, o crti-
co-narrador, se depara, pela primeira vez, com o quadro de
Brancatti emblemtico .
... mostrava Ins, sentada num tamborete, atrs do biombo ne-
gro, capturada no ato de vestir ou despir um penhoar ou
quimono, de modo que se via um de seus seios - um belo, firme
e pequeno seio - enquanto sua perna rija se descobria inteira-
mente, por estar naturalmente esticada, deixando que se entre-
visse, mais acima, a penugem de seu sexo. Sobre a borda do
biombo, num naturalismo ostensivo, estavam jogadas uma
calcinha e um suti. Tive um choque, porque era exatamente a
materializao da minha fantasia na manh posterior bebe-
deira, e que, portanto, deixava o terreno da fantasia para entrar
no da realidade
30

A viso da tela pelo narrador-personagem, no s relativiza
as fronteiras entre o impreciso da recordao e a suposta nitidez
da vivncia, mas, sobretudo, concretiza a idia da fantasia como
um quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do dese-
jo do Outro
2
No momento em questo, o quadro pintado de
30 Ibidem, p.55.
2 Leia-se a respeito do valor cnico
da fantasia o captulo "Quadro da
fantasia" de Um olhar a mais ver
e ser visto na psicanlise de
Antonio Quinet
Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes 265
31 Ibidem, p.119.
Brancatti revela-se inteiramente confundido ao quadro mental
composto pelo crtico, na nvoa da noite anterior, em profundo
xtase desejante por Ins.
Nesse sentido, o carter cnico da fantasia, tomado como
endereamento ao Outro, fundamenta a narrao do crtico tanto
em sua constante ftica de apelo ao leitor, quanto na prpria con-
cepo do narrador sobre o carter teatral da subjetividade como
"palco interior", ou ainda na inter-relao estreita atravs da qual
conjuga e compreende as linguagens artsticas, como a literatura
que produz, o teatro e a pintura.
Assim a natureza hbrida da obra de Brancatti, entre a pin-
tura, a representao teatral ou perforrntica, bem como a ambi-
gidade de que se reveste como produto das relaes particulares
vividas entre a modelo e o artista, amplia-se pela incluso, em seu
mbito, do prprio relato de Antonio Martins, conforme ele mes-
mo o reconhece:
E se eu pretendia - embora meus atos e atitudes perante a jus-
tia no pudessem assegurar-me disso - ser absolvido, era em
meus termos, que incluam essa posse conquistada de Ins, ele-
vando-me da mera condio de fantoche manipulado pelo pin-
tor e sua modelo de ator consciente dentro da obra, apesar de
eu no ter uma certeza cabal disso, procurando ilumin-lo um
pouco melhor em minha prpria obra: este relato3l
Por sua vez, o prprio relato, no espelhamento que promo-
ve entre suas mltiplas dimenses - a crtica, autobiogrfica e a
ficcional - pode tornar-se, da mesma forma que a obra do pintor
que o inspirou, passvel de desconfiana, como uma espcie de
engenhosa mistificao. ainda a loquacidade do prprio narrador
que o reconhece:
... no poder uma obra ser ao mesmo tempo pssima e
provocativa, vulgar e estimulante, tomando relativo, para no
dizer intil, todo juzo de valor? O que, por sua vez, remetia e
remete a uma outra pergunta: no poder uma pea crtica tor-
nar-se uma obra de criao to suspeita e arbitrria quanto A
modelo de Vitrio Brancatti?
O paradoxo da arte diante do ecletismo ps-moderno, em
266 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sua fome de celebridades instantneas e descartveis em que lixo
e purpurina se misturam, aqui vem sintetizado pelo histrionismo
do crtico-narrador, hbil em efeitos especiais e labirintos retricos.
A m-conscincia dos torneios e o brilho da argumentao, afiada
em jogos antitticos e afeita ao absurdo, na cooptao do leitor,
escora-se no reconhecimento de que, neste final de sculo, "as
fronteiras dos valores acabaram por se diluir
32
", e os parmetros 32 Ibidem, p.90.
escasseiam.
Da, a radical estetizao da vida cotidiana e a escorregadia
confuso entre as construes artsticas ou miditicas e o efeito
de realidade que produzem. Quando a vida invadida pelo simu-
lacro, o cho da experincia falseia e o desejo passa a ser siderado
pela imagem, desrealizando o mundo sua volta .. Como na inusi-
tada des-experincia de Antonio Martins:
... eu verificava magnetizado, que, com o deslocamento da luz,
a tela, o estudo, a instalao, a pea, enfim, de Brancatti, com
a muleta, ia adquirindo, independentemente do valor que se lhe
pudesse atribuir, cor, vida, movimento, sob a luminosidade do
dia agonizante ( ... ) que, aos poucos, em seus estertores, aca-
bou por incidir tambm em ns, em Ins, como se a modelo e
personagem da pintura que eu vira na exposio houvesse salta-
do da obra para estar em meus braos, naquele cenrio com seus
mveis e adereos, fazendo de ns imagens de um quadro em
movimento, uma cena para dentro da qual eu fora tragado ...
33
33 Ibidem, p.103.
Aqui, ao invs do nascimento de Galatia da tela para a
vida, tem-se, ao contrrio, a absoro de seu amante, um Pigmaleo
rebaixado, ao quadro da fantasia que os engolfa e desmaterializa.
O narrador, feito imagem de si mesmo, acolhe nos braos a Galatia
que no criou e, por isso mesmo - "tanto autor quanto mero
ator"34 - passa a considerar o processo criminal a que subme- 34 Ibidem, p.106.
tido como "um processo esttico, um jogo de xadrez
35
", entre ele 35 Ibidem, p.121.
e o pintor. Por sua vez, Brancatti, porque "dera luz um enigma
plstico e pictrico, ao colocar o real sob suspeita num tipo de
obra total", termina por desrealizar a vida como "teatro", afinal,
to bem consumado com a interlocuo do narrador-rival.
Piglia, ao palmilhar teoricamente o caminho ficcionalizado
por Sant' Anna, reconhece que "em mais de um sentido o crtico
Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes
o investigador e o escritor o criminoso", o que o leva a pensar o
romance policial como "a grande forma ficcional da crtica liter-
36 PIGLIA, 1994, p.72. ria"36 Neste "crime delicado", a prpria identidade indecisa do
narrador-crtico, manifestada em sua escrita confessional e sinuo-
sa, coleciona os atributos. Ele ser tanto o detetive que investiga,
quanto o criminoso que escreve.
No por outro motivo que, apesar da absolvio judicial,
37SANT'ANNA,1997,p.27. na "investigao interna"3? que se auto-impe, Antonio Martins
conclui pela prpria culpa, "uma culpa visceral e atvica, um ver-
]R Ibidem, p.118. dadeiro pecado originaPS ". Com mal disfarado prazer, o narrador
assume, no s a imputao de "estuprador da arte", como tam-
39Ibidem,p.l31. bm ajornalstica caricatura de "vampiro" que lhe fazem
39
.
E mais, como bom personagem de romance noir, ainda se-
4PIGLIA, 1994, p 78. gundo a lgica apontada por Piglia
40
, o narrador-detetive, quanto
mais investiga, mais crimes produz. assim que, despedindo-se
dos leitores, no se peja em confessar a ativa participao que
passa a ter na instalao itinerante e ento, internacionalmente
famosa de Brancatti, considerada pelo prprio crtico como "vul-
41 SANT'ANNA,1997,p.1l8 garidade \'oyeurstica"41 .
Aos desavisados informo que entrada da instalao itinerante
de Vitrio nunca se deixa da afixar cpias do material de im-
prensa sobre o caso Ins, com tradues para o alemo, o in-
gls e o francs. Desses recortes, naturalmente, alm dos retra-
tos do artista e sua modelo, constam alguns deste crtico, inclu-
sive a foto que o capturou no instante em que contemplava a
pintura de Brancatti em Os Divergentes. E tambm a caricatu-
42 Ibidem. ra do crtico enquanto vampiro
42

43 PIGLIA, 1997, p.l14.
De um lado, ambivalente e sinuosa, a mquina de Antonio
Martins, ao contrrio da de Macednio, no romance de Piglia,
procura esquecer o desalento diante da constatao de que:
Um relato no outra coisa seno a reproduo da ordem do
mundo numa escala puramente verbal. Uma rplica da vida,
caso a vida fosse s feita de palavras. Mas a vida no feita s
de palavras, infelizmente tambm feita de corpos, ou seja,
dizia, Macedonio, de doena, de dor e de morte
43
.
De outro, pelo brilho retrico, ou ainda pelo verniz de cinis-
267
268 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
mo que a envolve, a mquina crtica de Antonio Martins mobiliza
o arsenal da mistificao ps-moderna, e em sua ftil tagarelice,
termina por mimetizar o bovarismo das fices eletrnicas, infenso
ao penoso reconhecimento da finitude que, certamente daria s
palavras um outro peso, bem diferente do que hoje tm.
Referncias
FUENTES, Carlos. "O milagre de Machado de Assis". Folha de So Paulo,
So Paulo, 01 out 2, p78.000. Mais, p.4-11.
PIGLIA, Ricardo. (1980) "Fico e Teoria: O escritor enquanto crtico". In:
Travessia 33 Revista de Literatura A esttica do fragmento. Curso de Ps-
Graduao em Literatura, Ed. da UFSC, nOI, pp.47-59.
--o A Leitura da Fico. In: -. O laboratrio do escritor. Trad. Josely
Vianna Baptista. So Paulo: Iluminuras, 1994. p.67-76.
--o Sobre o Gnero Policial. In: -. O laboratrio do escritor. Trad. Josely
Vianna Baptista. So Paulo: Iluminuras, 1994. p.77-80.
--o A cidade ausente. Trad. Srgio Molina. 2
a
edio. So Paulo: Iluminuras,
1997.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais ver e ser visto na psicanlise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
SANT' ANNA, Srgio. Um crime delicado. So Paulo: Companhia das Letras,
1997.
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos
"cinco sentidos" de Haroldo de Campos a
Giuseppe Ungaretti
Maria Luiza Berwanger da Silva
(UFRGS)
Iluminadas iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p.81).
Esta a imagem lapidar com que Haroldo de Campos, poeta,
crtico, tradutor e terico da traduo configura a potica de
Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanncia no Brasil, de
1936-1942, revitalizou o imaginrio nacional.
Sob esta sntese lcida de Haroldo, dois caminhos cruzam-se
que encontram na traduo o lugar da memria residual de duas ln-
guas, duas estticas, duas culturas. Desdobr-las, distendendo-Ihes as
fronteiras geogrficas, textuais e simblicas, em gesto que, ao traduzir,
reinventa e transcria, eis o que guarda intacto o fundo do olhar do
tradutor brasileiro Haroldo de Campos e de que a recente publicao:
Ungaretti - Daquela Estrela Outra faz-se amostragem exemplar.
"Si l' amiti projette son espoir au-del de la vie, un espoir
absolu, un espoir incommensurable, c'est par ce que l'ami est [ ... ]
son double idal, son autre soi-mme, le mme que soi en mieux",
diz Jacques Derrida em Politiques de ['Amiti (1999, p.20), fi-
xando na amizade literria o arquivo inapagvel dos fios e das
imagens a retecer, das afinidades desenhadas entre os dois
poetas-tradutores. Aproxima-os a visualidade, o efeito da luz
como "paisagem primordial" do mundo a ser decifrado; como se
a produtividade do ato tradutrio restitusse poeticidade do ver
a emergncia da palavra potica, ampliada e ressimbolizada. As-
sim, "Iluminadas iluminuras ungarettianas" tanto remetem ao re-
gistro de uma amizade memorvel, quanto traam o caminho a
269
270 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006
ser percorrido por Haroldo de Campos na retraduo de Ungaretti
para o contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a pr-
pria dedicatria em italiano a Haroldo como epgrafe Daquela
Estrela Outra: "AI caro Haroldo de Campos / per ricordo di /
qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre
/ nuova e sempre / poesia" (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/
1967), j demarca para Haroldo o conceito da poesia
auto-referencial que tenta nomear o indizvel, pela luminosidade
do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo da letra
sobre o branco da pgina, da poesia, em uma palavra, que impri-
me no ato de transladar o de transcriar. "Faz, na area paisagem
com que eu possa / Ressilabar as ingnuas palavras" (WATAGHIN,
2003, p.l59), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a
fora potica da reconfigurao.
Em espaos rompidos, em distncias redimensionadas, em
novas cartografias redesenhadas pelo brilho das estrelas, disper-
sas em novas constelaes, nesta difrao luminosa captada do
poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do "Odi
Melisso" de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla
poeticidade da luz a do escutar, mesclas e ressonncias de som e
de cor que evidenciam para o tradutor a musicalidade do exerc-
cio de "ressilabar", na base do projeto potico nomeado de
Ungaretti: marcas aproximam-se mas no se diluem no trnsito de
alteridades revisitadas. "A alteridade , antes de mais nada, um
necessrio exerccio de autocrtica" (CAMPOS, 1983, p.125),
afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produtivi-
dade do Outro para o Mesmo como decifrador de lnguas, lingua-
gens e imaginrios vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a
prpria intimidade. Singular este retorno do sujeito sobre si mes-
mo do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os gros semi-
nais com que reescrever e ampliar o significado original.
Leitor-crtico maior dos poetas modernistas representati-
vos do Movimento Antropofgico, compreendera o tradutor bra-
sileiro que a travessia da leitura articulada pela devorao do Outro
mostra ao Mesmo, (ao tradutor visto como Mesmo), o ajuste e a
aclimatao de imaginrios como marca primeira da subjetividade
que v e que se v concentrando na paisagem uma das figuraes
exemplares da intimidade lrica. (Exemplar, na medida em que a
paisagem se faz solo comum, territrio sensvel onde o texto tra-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
I Refiro-me, especialmente, ao
legado do pensamento francs
sobre o ato tradutrio
sintetizado pelo desejo de
distanciamento e pela recusa da
"fidelidade" em traduo.
Poetas-tradutores e tradutores
franceses, como Paul Valry no
ensaio Traduction en vers des
Bucoliques de Virgile (1944),
a prpria obra Sous
l'invocation de Saint Jrme
de Valry Larboud (1946), a
reflexo luminosa de Maurice
Blanchot em L'amiti (1971),
Henri Meschonnic com a
Potique du tradu ire (1999),
sntese dos demais percursos
tradutrios deste autor, do
mesmo modo La Communaut
des traducteurs de Yves
Bonnefoy (2000), paralelas
contribuio definitiva de
lacques Derrida para a
traduo de textos e de imagens
nas Tours de Babel celebrada
em "Ni passeurs ... ni passants",
esta amostragem exemplar
constitui marcas evidentes do
ncleo duro da reflexo
haroldiana sobre o exerccio
tradutrio como transcriao.
2 "Teremos [ ... ] em outra lngua,
uma outra informao esttica,
autnoma, mas ambas estaro
ligadas entre si por uma relao
de isomorfia: sero idnticas
enquanto linguagem, mas,
como os corpos isomorfos,
cristalizar-se-o dentro de um
mesmo sistema" (Apud
CAMPOS, Haroldo de (1992).
Da traduo como criao e
como crtica. In:
Metalinguagem e Outras
Metas. So Paulo: Perspectiva.
p.31-32).
duzido, tradutor e discurso tradu trio harmonizam-se em vozes
que se consolidam na recepo crtica da traduo, hoje ).1
Em Haroldo, a busca obstinada do visual, manifestando-se
no desejo de "ir ms all", incide na prpria necessidade de
dessimbolizar ou desconstruir para ressimbolizar ou reconstruir o
novo, o diverso, o mltiplo captados do movimento da travessia,
no caso em questo, da Itlia-brasileira de Ungaretti. Se o atra-
vessar recompensa a prtica do olhar com o desenho de "para-
gens" (DERRIDA, 1999), estes espaos sulcados no s
rememoram a territorialidade do Mesmo (do texto na lngua ma-
terna do tradutor), mas tambm relocalizam e o fazem gravitar em
configuraes, lnguas e imaginrios outros.
Transblanco intitula-se o poema de homenagem de Haroldo
de Campos a Octavio Paz, em jogo intertextual que estabelece
com o poema Blanco do poeta mexicano, mediante este fio do
atravessar, "transluminao", denomina Haroldo a esta operao
que prolonga e difrata o poema Blanco:
Numa traduo como esta, que se passa entre lnguas to pr-
ximas e aparentemente solidrias como o espanhol e o portu-
gus os avatares obsessivos do mesmo se deixam, no obstante,
assaltar pelos azares pervasivos da diferena [ ... ] que pulsa,
passional, para alm da resignada traduo servil [ ... ], a voca-
o dialgico-transgressora de toda traduo que se proponha
responder a um texto radical entrando no seu jogo tambm pela
raiz: arraigando-se nele e desarraigando-se num mesmo movi-
mento de amorosa duplicidade (PAZ; CAMPOS, 1994,
p.185-186).
Assim, Transblanco legitima o conceito da traduo
transcriadora como ato crtico (ou transcrtico), posio que rei-
tera ao longo de sua produo, entretanto j presente na reflexo
inaugural de Metalinguagem e Outras Metas (de 1967), mas que
reescrever ao longo de sua produo terico-crtica.
2
Dito de
outro modo: traduo e transcriao constituem duas atividades
convergentes na produo haroldiana, "[nela] a intertextualidade
se converte em intervivencialidade", diz Emir Rodrguez ~ l o n e g a l
(1986), para assinalar em Haroldo a produtividade do eixo tradu-
o / intertextualidade / crtica para o transcriar. Mas na tradu-
o dos versos A Alegria (1914-1919) de Giuseppe Ungaretti,
271
272 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
nico conjunto, dentre os demais apresentados, que se faz acom-
panhar de notas crticas, nas quais Haroldo sistematiza as
reconfiguraes transcriativas por ele efetivadas. Substituies
lexicais, de rimas e ampliaes do significado constituem a base
das operaes assinaladas para acentuar o efeito musical; como se
a musicalidade modulasse, retraduzindo, o visual insupervel. Neste
sentido, uma figura desta prtica tradutria se desenha em A Ale-
gria, a qual, tomando como ponto de partida a brevidade e o
despojamento dos versos de Mattina, "M'illumino d'immenso",
figuram a inundao do sujeito lrico pela luz que o difrata sob
forma de movimentos intermitentes.
Luz voltada sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, luz de
forte irradiao, Haroldo percebeu com uma clareza surpreen-
dente esta dupla figurao do visual em Ungaretti, expressando a
busca do sentimento de fraternidade: "De que regimento / irmos?
/ Palavra que treme / na noite / Folha neonata / No ar de espasmo
/ involuntria revolta / do homem presente sua / fragilidade /
Fraternidade" (WATAGHIN, 2003, p.47). justamente esta per-
cepo dilatada do luminoso que evidencia para Haroldo a substi-
tuio de "m'illumino" no poema Mattina, "m'illumino d'immenso"
por "Deslumbro-me de imenso" (WATAGHIN, 2003, p.57),
deslumbrar-se como condensao e expanso ilimitadas da luz e
da clarividncia no espao da subjetividade.
Com igual lucidez o tradutor-brasileiro tambm percebeu
que a celebrao do fraterno, no poeta italiano, deixa-se articular
pelo desejo de compor uma comunidade simblica de forte resis-
tncia potica melancolia existencial. "Balaustrada de brisa / para
apoiar noite adentro / a minha melancolia" (WATAGHIN, 2003,
p.4I). Concebido por esta poeticidade da luz prismtica, o "recueil"
intitulado A Alegria representa o arquivo do lirismo ungarettiano,
tal como uma voz seminal soprando ao tradutor Haroldo o poder
de escuta do Outro, filtrando-lhe ressonncias e ecos do imagin-
rio estrangeiro. Assim, os demais livros de Ungaretti, traduzidos e
apresentados nesta ltima publicao de Haroldo de Campos, tais
como Sentimento do Tempo, O Caderno do Velho e ltimos Dias,
configuram-se propagao luminosa que encontra, em A Ale-
gria, a matriz potica do ato tradutrio. Nela, a angstia de expri-
mir o inexprimvel, atenuada pela prpria nomeao deste confli-
to do dizer pelo recurso transcriao, garante a retrao do
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
3 CAMPOS, Haroldo de;
CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Dcio (1987).
Teoria da Poesia Concreta:
Textos Crticos e Manifestos
1950-1960. So Paulo: Brasi-
liense.
intraduzvel do texto original. Agregar, substituir e deslocar sinte-
tizam o esforo da voz tradutora do Mesmo para diminuir o efeito
de estranhamento provocado pelo imaginrio do Outro; como se
a iluso de decifrar uma lngua distante devolvesse ao tradutor o
prazer do eterno retorno ao texto primeiro, mas retorno
revitalizado. Restituir ao Mesmo a certeza crescente e ininterrupta
de avanar e de penetrar na paisagem cifrada de Ungaretti atravs
do efeito do visual, eis, em uma palavra, a prpria "alegria" da
operao tradutria como transcriao experimentada por Haroldo
de Campos. Vista deste ngulo, a traduo do poema Perfections
du Nair, escrito em francs por Ungaretti, permite ao leitor evi-
denciar uma reconfigurao singular da transcriao.
Se imagem desdobrada da Alteridade a reinventar, Perfei-
es do Negro aproxima-se do projeto visual da poesia concreta
brasileira
3
por marcas tipogrficas mltiplas, se rumor ou
musicalidade quase inaudvel prope ao leitor-tradutor o desafio
de tornar convergente a disperso grfica sobre a pgina, median-
te a escuta de uma paisagem matricial articuladora do dilogo
tecido e retecido com A Alegria, ento este poema sinaliza para a
transcriao o itinerrio de uma sublimao captada da poeticidade
da ausncia: certas representaes visuais permitiro ao tradutor
brasileiro a retraduo dos bastidores desta visualidade. Conheci-
dos e desconstrudos os mecanismos de fabricao das imagens
deste poema como lugar disseminador do nascimento do potico
em Ungaretti, Peifections duNoirentrecruza o trao da visualidade
ao da negatividade:
ecos
rudos
nos chegam
s vezes
estamos to longe
de tudo
(WATAGHIN, 2003, p.IOS)
273
274 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sem morada
sem famlia
sem famlia
sem amores
sem amigos
sem lembranas
sem esperana
o que vem fazer aqui
(WATAGHIN, 2003, p.113)
Reduz o espao a uma pedra, a apenas uma pedra da qual o
impacto sobre o sujeito, gerado pelo ato de ser lanada no rio,
provoca o movimento de mergulho na interioridade. Mas nos
versos de concluso, na identificao do sujeito a pedra deixada
margem do rio e recuperada por algum, que a transpoetizao
efetuada por Haroldo de Campos, manifesta-se:
il est nu
comme la nuit
comme une plerre
au/it d'unfleuve
polie
comme une pierre
de volcan
ronge
quelqu'un l'a cuellie
dans sa fronde
ou suis-je tomb
mettez I doncl de ct
cet objet
perdu
(WATAGHIN, 2003, p.114)
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
nu
como a noite
como uma pedra
no leito de um rio
polida
como uma pedra
de vulco
roda
onde fui eu tombar
algum a colheu
em suafunda pe de lado
este objeto
perdido
(WATAGHIN, 2003, p.115)
Nestes versos, a supresso do articulador "donc", na passa-
gem do francs para o portugus, reconfigura o texto de Ungaretti:
a presena do "donc" no texto original, significando a tomada de
deciso de no mais recuperar o objeto perdido, uma vez o sujeito
transmutado em pedra e jogado ao rio, esta deciso subvertida
pela ausncia do "donc" no texto traduzido, imprimindo no sim-
bolismo da pedra o trao de objeto de memria que remete ao
lugar de nascimento do poema. Peifeies do Negro, deste modo,
concede ao leitor um certo efeito de continuidade do momento
liberado da ordem do tempo e do espao: redesenha a fisionomia
do sujeito-pedra, transformando-o em gro textual e forma dan-
ante captados da visualidade. Decifra, de certo modo, o enigma
da paisagem lrica ao mostrar o dentro exterioridade, respon-
dendo ao conflito da expresso potica figurada por Eterno, pri-
meiro poema de A Alegria: "Entre uma flor colhida e o dom de
outra o nada inexprimvel" (WATAGHIN, 2003, p.23). Embora
breves, estes versos permitem vislumbrar o grau zero do dizer o
indizvel, cifrando-se no prazer de resgatar, pela traduo, a
potencialidade da palavra potica de ressignificao inesgotvel.
A suavidade, contudo, modula o processo tradu trio da poesia
ungarettiana por Haroldo: compreende o tradutor, que toda prti-
ca do transcriar inicia pela percepo e pelo exame dos eixos arti-
275
276 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
culares do texto a traduzir. Deste modo, princpios como o da
indeterminao como trao do inexprimvel, o do "efeito de fratu-
ra abissal", assim denominado pelo prprio Ungaretti, para mar-
car tonalidade ou mudana de intensidade agregada a uma palavra
em determinada linguagem e, sobretudo, a configurao do frag-
mento como gnero e como imagem da significao potica ml-
tipla, estes traos da poeticidade ungarettiana encontram a resso-
nncia perfeita na pgina retraduzida por Haroldo, traos que do
a ver, na prtica, a composio de "formas significantes em um
horizonte mvel, num virtual ponto de fuga" no rastro da
"dispersion volatile de Mallarm" (CAMPOS, 1987, p.60); como
se a leitura simblica do fazer potico demarcasse para Haroldo o
caminho do transimaginar, ou, como o dir em uma nota
introdutria a uma obra compartilhada com seu irmo Augusto de
Campos: "Traduzir e trovar so dois aspectos da mesma realida-
de. Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir
reinventar [ ... ] O carter concluso da obra feita fica provisoria-
mente suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na di-
menso nova da lngua do tradutor" (CAMPOS, 1987, p.56).
Trata-se de visualizar a operao transcriativa como uma
das formas de retrair, relativizando, o efeito de estranhamento
experimentado pelo tradutor. Assim, resistir ao impacto da dis-
tncia a ser atravessada entre duas lnguas, dois imaginrios e duas
subjetividades de sentidos apenas insinuados no texto a ser traduzi-
do, eis o primeiro gesto que o ato de transcriar concede ao Mesmo
e ao Outro. Se desbabelizado e transgredido, todo texto estrangei-
ro provoca a iluso da completude, difratado e ampliado restitui ao
texto original aquele efeito de sublimao de que se reveste toda
cumplicidade, no fundo inapagvel de duas memrias aproximadas.
Mais ainda, entrela-las, tomando-as "metfora viva" da potica
do dom e da doao mtua, eis o segundo gesto a que remete o
exerccio da transcriao de Ungaretti por Haroldo de Campos.
Plenitude tradutria ou novos itinerrios que o prazer do
texto ressimbolizado vislumbra para o leitor-tradutor? Amostragem
exemplar de uma paisagem transcriada, Daquela Estrela Outra,
como ltima publicao de Haroldo de Campos, no s transparece
este "bonheur du traducteur", mas tambm tece, a seu modo, um
dilogo singular com a produo potica e crtica haroldiana. Vis-
ta deste ngulo, a interseco de La Educacin de los Cinco Sen-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
4 Ver referncia e citaes em
SANTAELLA, Lcia. Trans-
criar, Transluzir, Translu-
ciferar: a teoria da traduo em
Haroldo de Campos. In:
MOTTA, Leda Tenrio da
(Org.) (2005). Cu acima: para
um "tombeau" de Haroldo de
Campos. So Paulo: Pers-
pectiva I FAPESP. (Coleo
Signos, 45). p.221-232.
tidos (traduo, 1990), imagem-sntese da potica de Haroldo com
artigos periodsticos (Para alm do princpio da saudade, Folha
de So Paulo, 1984, e A transcriao do Fausto, Folha de So
Paulo, 1981, entre outroS)4 j traz em grmen o projeto da pro-
funda ressonncia onde partes e fragmentos reflexivos
harmonizam-se transiluminando-se reciprocamente_ E, em voz que
nomeia, mostrando, os lugares tericos, crticos e poticos por
que faz transitar seu processo de transimaginao, a matriz
haroldiana rememora a presena francesa, por vezes inconfessa;
convoca-a por constituir a constelao de marcas, traos e sinais
colhidos da traduo/retraduo do Coup de ds de Mallarm, ver-
dadeira arte tradutria com que Haroldo brinda a poesia brasileira:
recorta da lembrana francesa o prprio dom da visualidade
transgredida pela potica da escuta, dos modos de escuta a que a
escritura da Educacin de los Cinco Sentidos lhe permitiu ascender.
Visto sob a transparncia francesa, se a recente publicao
de Paul Ricoeur, intitulada Sur la traduction (2004), sublinha a
superao do sentimento do "deuil" pelo tradutor, inserindo-se,
pois, este intelectual na comunidade de pensadores-transcriadores
franceses, considerados como "relles prsences" da reflexo de
Haroldo de Campos j evocadas, , contudo, na leitura simblica
e cristalina de Paul Ricoeur pela crtica uruguaia Lisa Block de
Behar (2005) que a operao tradutria de Ungaretti por Haroldo
encontra a luz e a legitimao definitivas:
Si uma obra puede cambiar el curso deI mundo, tal vez no seria
demasiado exagerado afirmar que tambin una palabra puede
cambiar el discurso deI mundo o el discurso, tout court. Y, en
esta situacin de hoy, esa palabra sera travesa o los
movimientos que su accin implica. Ambivalente o
contradictorio, el trmino no puede sustraerse a ciertas
duplicidades lexicolgicas que no eluden los pliegues, que no
ocultan una significacin excntrica - o varias - que se presta
a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la
pluralidad deI diccionario avaIa (BEHAR, 2005, p.99-1 00).
Por sua vez, esta imagem do "atravessar" como figura do
transcriar guarda, retida, em seu ncleo, um outro gro do pensa-
mento (sempre iluminado e iluminador) de Lisa Block de Behar,
expresso ao longo de sua produo terico-crtica e sintetizado
277
278 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
na obra sobre Haroldo de Campos, Don de poesa (2004), sob sua
organizao, quando diz na Introduo:
Sus escritos tericos afines a su obra potica, las convergencias
de sus transcreaciones, la caligrafa ideogramatical que confi-
gura la visualidad y verbalidad en una misma emergencia relevan
la previsin proftica que Haroldo, el poeta que sabe,
emblematiza en escritura en un verso que se ve: "escrever
uma forma de 'ver'" (BEHAR, 2004, p.20).
Dom do visual, pois, como dom da traduo potica, em
Mestre Haroldo, o incessante desejo de legar ao nacional e ao
transnacional este "don du poeme" faz retornar a La Educacin
de los cinco sentidos, onde Le don du poeme, ao evocar um poe-
ma de Mallarm, configura a seduo de abrir o prprio ouvido
deixando-se invadir pelo ouvido do Outro:
un poema comienza
all donde termina:
el margen de la duda
sbito inciso de geranios
ordena su destino
[ ... ]
domo de signos: y el poema comienza
mansa locura cancergena
que exige estas Ineas aI blanco
(all donde termina)
(CAMPOS, 1990, p.73)
Se o dilogo estabelecido com Mallarm constitui o solo
comum da atividade tradutria tanto de Giuseppe UngarettP quan-
to de Haroldo de Campos, a travessia do texto ungarettiano pelo
poeta-tradutor brasileiro e a conseqente confluncia na pgina
mallarmaica desenham um espao outro, alm dos laos de ami-
zade, um territrio do imaginrio em que duas poticas
revitalizam-se pela certeza do texto do Outro transcriado. No fundo
das "Iluminadas iluminuras ungarettianas", a luz concentrada como
5 Ver: Conferncias e ensaios
crticos de Giuseppe Ungaremi,
compilados por: WATAGHIN,
Lucia. Raz[jes de uma poesia.
So Paulo: EDUSP, [s.d.].
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
medida da distncia entre estrelas, expressa a singularidade do
gesto de transubstanciar como homenagem maior que Haroldo de
Campos doa ao poeta italiano, a quem dedica o poema
Transiderao:
Transideraco
Ungaretti conversa com Leopardi
1984
Um leo: ruivando arde -
na voz do leo - Leopardi
(cu noturno em Recanati)
virando constelao:
Odi, Melisso ... E o leo
resgata a um fausto de estrelas
cadas, a lua jamais cadente
e a Ursa, magas centelhas.
Depois, o leo (a Leopardi
tendo dado o que lhe cabe)
passa a medir o infinito
ou desmedi-Io: do longe
daquela estrela (to longe)
ao longe daquela estrela.
(CAMPOS, 2003, p.194).
Neste poema, a evocao de Leopardi tanto celebra o fio
memorial da paisagem ungarettiana, quanto a transgride. No ver-
so final, o gesto de "medir o infinito" significando a passagem de
constelaes nomeadas e conhecidas (asa, Ursa Maior) a desco-
nhecidas retoma ao Don du Poeme da Educacin de los Cinco
Sentidos. Em Transideracin, Haroldo investe no gesto de "atra-
vessar" o ato de transcriar para "medir el infinito", representando,
atravs deste ato, no s a figura do tradutor-ressimbolizador ou
"le maitre secret de la diffrence des langues" como o vira Maurice
Blanchot (1971), mas, sobretudo, como aquele que, ao emprestar
seus "cinco sentidos" visualidade da paisagem transiderada pela
dana de estrelas como dana de palavras: "O tradutor de poesia
um coregrafo da dana interna das lnguas tendo o sentido [ ... ]
no como meta linear de uma corrida termo-a-termo, [ ... ], mas
279
280 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
como um bastidor semntico ou cenrio pluridesdobrvel dessa
coreografia mvel" (p.230), d a ver, alm da homenagem, no
texto transcriado ou transubstanciado, o lugar de transferncias
estticas e culturais.
Cu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos
(2005) como a mais recente publicao no Brasil, composta por
uma constelao de vozes nacionais e transnacionais, restitui ao
transcriador Haroldo a prpria homenagem que este tradutor bra-
sileiro prestara a Ungaretti. O prefixo "trans" de "transcriao",
simbolizado pelo ttulo "Cu acima", recolhe o poema que lhe
dedica o poeta paulista Horcio Costa, discpulo dileto de Haroldo
de Campos, a continuidade da "transideracin" inapagvel:
- Conecta com isso.
E uma pedra.
- Conecta com isso.
terra.
- Conecta com isso.
nuvem. Tem a forma do drago.
- Conecta com isso.
onda. Tem a forma da onda.
- Conecta com isso.
chip. Parece Shangri-Iah.
No slica. Nem silncio. Nem palavra.
Conecta com isso"
(COSTA, 2005: 307).
Iluminadas iluminuras horacianas.
Transcriar. transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
Referncias
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre: Abralic, n.7, 2005,
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CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provvel. So Paulo:
Perspectiva, 1977.
--o Da razo antropofgica: dilogo e diferena na cultura brasileira. Boletim
Bibliogrfico, v.44, n.14, 1983, p.107-125, jan.-fev.
--o Da traduo como criao e como crtica. In: --o Metalinguagem' e
Outras Metas. So Paulo: Perspectiva, 1992.
--o Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora. In:
SANTAELLA, Lcia; OLIVEIRA, Ana Cludia. Semitica da Literatura.
So Paulo: EDUC, 1987. (Srie Cadernos PUC, 28). p.53-74.
--o La educacin de los cinco sentidos. Trad. de Andrs Snchez Robayna.
Barcelona: Ambit Serveis Editorial, 1990.
--o Ungaretti: O Efeito de Fratura Abissal. In: WATAGHIN, Lucia (Org.)
Ungaretti - Daquela estrela outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F.
Bernardini. Cotia: Ateli Editorial, 2003. p.187-195.
CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Dcio. Teoria
da Poesia Concreta: Textos Crticos e Manifestos 1950-1960. So Paulo:
Brasiliense, 1987.
COSTA, Horcio. A fronteira do dizer. In: MOTTA, Leda Tenrio da (Org.).
Cu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. So Paulo: Perspectiva
/ FAPESP, 2005. (Coleo Signos, 45) p.306-307.
DERRIDA, Jacques. Politiques de l'Amiti. Paris: Seuil, 1999.
MOTTA, Leda Tenrio da (Org.). Cu acima: para um "tombeau" de Haroldo
de Campos. So Paulo: Perspectiva / FAPESP, 2005. (Coleo Signos, 45).
PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco. So Paulo: Siciliano, 1994.
SANTAELLA, Lcia. Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria da
traduo em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenrio da (Org.) Cu
acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. So Paulo: Perspectiva /
FAPESP, 2005. (Coleo Signos, 45) p.221-232.
281
282 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
WATAGHIN, Lucia COrg.). Ungaretti - Daquela estrela outra. Trad. de
Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateli Editorial, 2003.
--o Razes de uma poesia. So Paulo: EDUSp, [s.d.].
As ironias da ordem em Carlos Drummond
de Andrade e Fernando Pessoa
Maria Esther Maciel
(UFMG)
o que no est ordenado de um modo definitivamente
provisrio o est de modo provisoriamente definitivo.
(Georges Perec)
A palavra inventrio designa, como se sabe, a "rela-
o dos bens deixados por algum que morreu", "o documento
ou papel em que se acham relacionados tais bens", "lista discrimi-
nada, registro, relao, rol de mercadorias, bens, etc.", e, em sen-
tido lato, "descrio ou enumerao minuciosa de coisas". Para
alm das demarcaes do dicionrio, possvel ainda identificar
uma afinidade explcita do termo com as palavras "inventolinven-
o" (coisa imaginada, criada, feita, engendrada), o que o levaria
a se aproximar - por vias oblquas - tambm dos campos do fazer
potico e ficcional.
precisamente enquanto combinatria desses senti-
dos possveis da palavra que se pode falar de uma "potica do
inventrio" na poesia de Carlos Drummond de Andrade, visto que
esta se presta tanto ao gesto taxonmico de inventariar coisas
quanto o de inventar formas poticas alternativas, hbridas, a par-
tir de suas inmeras listas, catlogos, recenseamentos e enumera-
es. E mais: de reinventar ironicamente os dispositivos
institucionalizados de classificao, evidenciando que os sistemas
de organizao das coisas e do conhecimento - no obstante aten-
dam necessidade humana de dar sentido multiplicidade e ao
caos do mundo - so tambm mecanismos legitimados pela lgica
burocrtica do mundo moderno e contemporneo, com a funo
de ordenar, controlar, hierarquizar e rotular nossa vida cotidiana.
Sob esse prisma, so exemplares os poemas drummondianos que
recriam - por vias muitas vezes inslitas - inventrios jurdicos,
receitas e bulas de remdio, instrues para uso de produtos, ca-
dastros e listas administrativas, aplices, classificados das pginas
283
284 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
amarelas, levantamentos estatsticos e descries imobilirias, com
o propsito de criticar tais formas de controle e, ao mesmo tem-
po, desestabiliz-Ias pela fora da poesia.
Soma-se ainda a esse exerccio irnico que Drummond
faz das classificaes um outro gesto taxonmico, de ordem um
tanto distinta: o de registrar/catalogar as coisas e lembranas do
passado, conferindo-lhes o papel de "testemunhos" (aqui, no sen-
tido arqueolgico do termo) de um tempo irrecupervel, de modo
a faz-las durar, como diria Jorge Luis Borges, "para alm do
nosso esquecimento". Isso confere a muitos dos inventrios e ca-
tlogos drummondianos tambm um trao afetivo, dado que eles
acabam por compor uma espcie de narrativa ntima da histria
do prprio poeta e de seus diversos "eus" ou personagens poti-
cos. Nesse sentido, pode-se dizer que tais inventrios configurari-
am o que Philip Blom, no livro Ter e manter- uma histria ntima
de colecionadores e colees, chamou de "teatro da memria,
uma dramatizao e uma mise-en-scene de passados pessoais e
coletivos, de uma infncia relembrada e da lembrana aps a mor-
te". 1 Isso porque eles garantem a permanncia dessas lembranas
ao fixarem em um espao comum os objetos que as evocam.
Um olhar diacrnico pela vasta produo potica de
Drummond permite-nos identificar esses procedimentos em vri-
as fases de sua poesia, o que atesta o impulso catalogador
drummondiano como uma das linhas de fora de sua obra. J em
Alguma poesia, de 1930, o levantamento de objetos que circun-
dam existncias ou definem paisagens ntimas de pessoas se faz
ver, como no poema "Famlia", no qual a listagem de todos os
elementos que fazem parte do universo prosaico de uma faml ia
o que justifica a existncia das prprias pessoas da casa. Papa-
gaio, gato, cachorros, galinhas, mveis, aparelhos, cigarros, bi-
lhetes integram o espao da casa, convertidos em referncias vi-
tais de um pequeno grupo composto de trs meninos, duas meni-
nas, uma cozinheira, uma copeira e "uma mulher que trata de
tudo". Procedimento esse que, em A rosa do povo (1945), se mostra
de maneira mais clara, haja vista a enumerao catica de tudo o
que, segundo o poeta, define o presente do mundo de "homens
partidos", no poema "Nosso tempo"; a bela seqncia dos traos
que restam do medo, do asco, dos gritos gagos e da rosa, em
"Resduo"; os registros administrativos da "Noite da repartio",
lBLOM, Philipp. Ter e manter
- uma histria ntima de
colecionadores e colees.
Trad. Berilo Vargas. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p. 219.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Pemando Pessoa
2GOODY.Jack.The
domestication of the savage
mind. Cambridge: Cambridge
University Press. 1995. p.74-111.
dentre outras enumeraes de coisas e palavras variadas. Isso,
para no mencionar o rol de palavras do poema "Isso aquilo",
de Lio de coisas (1962), que coloca em evidncia a lista como
um dispositivo taxonmico importante, capaz de reforar o car-
ter parattico da linguagem potica.
Vale lembrar que o ato de inserir palavras, objetos, animais,
eventos e nomes de pessoas em listas foi uma das primeiras prti-
cas taxonmicas de que se tem notcia nas civilizaes alfabetiza-
das, figurando como o procedimento arquivista mais elementar
advindo da influncia da escrita nas operaes cognitivas. Como
explica Jack Goody2 , a histria documentada dos primeiros scu-
los das culturas escritas mostra que as listas floresceram exata-
mente nesse perodo, tomando a forma de longas tiras feitas de
madeira, pedra, argila, pedaos de pano ou qualquer outro mate-
rial slido, nas quais eram gravadas as palavras em srie, com
diferentes propsitos: desde a simples nomeao das coisas at
um levantamento mais exaustivo destas. Listas administrativas,
funerrias, literrias, religicsas e lexicais so encontradas em vri-
as culturas antigas, sendo que algumas j funcionam como uma
espcie de protodicionrios ou enciclopdias embrionrias. Mui-
tas cobriam um vasto campo de observaes astronmicas, clim-
ticas, medicinais. Outras, de carter ldico ou didtico, j consis-
tiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas comeados
com uma determinada letra do alfabeto.
Ao adotar a estrutura de lista/catlogo em alguns de seus
poemas, como o "Isso aquilo", Drummond confere um sentido
ldico ao ato de listar, ao mesmo tempo em que deste subtrai a
dimenso meramente pragmtica, de ordenao, inserindo-o no
espao mvel e cambiante da poesia. Alm disso, cria uma confi-
gurao alternativa para o poema, assentada em princpios
paratticos e que tem no jogo continuidade/descontinuidade a sua
base. Se toda lista contnua, isso acontece porque enumera, apre-
senta as palavras em seqncia. Mas por no oferecer nexos sint-
ticos entre as palavras listadas, caracteriza-se tambm pela
descontinuidade. Seus traos constitutivos so, portanto, parado-
xais, como aponta ainda Goody, ao arrolar em um pargrafo as
principais caractersticas de uma lista:
A lista aposta mais na descontinuidade do que na continuidade;
285
286 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ela depende de um lugar fsico, de uma local; ela pode ser lida
em diferentes direes, de cima para baixo, de baixo para cima,
da esquerda para a direita e vice-versa; ela possui um comeo
bem marcado e um fim preciso, ou seja, uma margem, uma
borda, como uma tira de pano. E o que mais importante, ela
estimula a ordenao dos itens de que se compe, atravs de
nmeros, pelo som inicial, por categoria, etc. Alm disso, a
existncia de margens, externas e internas, traz grande visibili-
dade para as categorias, ao mesmo tempo em que as toma mais
abstratas
3

Pode-se dizer que a lista, como dispositivo paradoxal, foi
usada de diferentes formas por Drummond em A falta que ama
(1968) -livro em que a potica do inventrio (em todos os sentidos
apontados no incio deste texto) se d a ver de forma mais explcita.
Basta citarmos o poema "Bens e vria fortuna do padre Manuel
Rodrigues, inconfidente'''' ,que apresenta uma espcie de assemblage
de objetos, ou como disse Jos Guilherme Merquior, "um ready-
made lrico tipicamente surreal-modernista", em que a listagem dos
bens materiais de um clrigo ("inimigo da Rainha / a perptuo degre-
do condenado") mantm as coisas em um estado de concretude ir-
nica, para no dizer inusitada, como se pode ver no fragmento de um
dos dois inventrios dos bens do padre inconfidente:
3 manustrgios
1 corporal
1 brinco com olhinhos de mosquito
2 sanguinhos 3 amitos
1 casaca de lemiste forrada de tafet roxo
1 ngulo
3 tomos de Cartas de Ganganelli
2 chapinhas de ouro de pescocinho
4 manpulos
2 casulas
1 lacinho de prata com pedras amarelas
1 leito grande de pau preto torneado
1 mantelete
1 bacia grande que ter de peso meia arroba
1 dita pequena de urinar
1 tomo de Obras Poticas de Garo
( ... )
(p.357)
'Idem,p .. 81.
"Todas as citaes de poemas de
Drununond foram extradas de:
ANDRADE, Carlos Drununond
de. Poesia eprosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1988.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa
'ARTIERES, Philippe.
Arquivar a prpria vida In:
Arquivos pessoais. Revista
Estudos Histricos. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, vol. 11, n.
21,1998, p.3. Disponvel em:
http://www.cpdoc.fgv.br/
revistaJarQ/234.pdf (ltima
consulta: 30/03n006).
Sem dvida, se o conjunto dos bens do padre diz algo de
quem os possui, dado o sabido poder que as coisas tm de evocar
nossas referncias e gostos particulares, a seleo e a ordenao
dos objetos na lista funcionam como formas de arquivamento da
prpria existncia do "personagem", j que, como apontou Philippe
Artieres em suas reflexes sobre a constituio de arquivos parti-
culares, "a escolha e a classificao dos acontecimentos determi-
nam o sentido" que se deseja dar a uma vida.
5
Por outro lado. a
estranheza das palavras que nomeiam muitos dos objetos da lista
acaba por funcionar como elemento de humor, capaz de abalar a
funo pragmtica (ou burocrtica) do inventrio, inserindo-o na
esfera da inveno.
Em muitos outros poemas de livros subseqentes ao AJalta
de ama, h inumerveis listas de objetos, como a dos trastes "para
no serem consertados" (tamborete, marquesa, catre, selins, ca-
ambas, embornais, cangalhas, etc.) em um compartimento de uma
loja fechada, no poema "Depsito"; o extenso rol de coisas (que
vo de sedas ajornais e ronds parnasianos) que constitui o que o
poeta chama, no sem certa ironia, de "Imprio Mineiro"; os arte-
fatos que circundam e definem a "vidalvidinha" de uma solteiro-
na; a lista das mais de cem namoradas mortas no poema
"Retrolmpago de amor visual"; alm da srie de selos de uma
coleo (no poema "O prazer filatlico"), a qual capaz de per-
manecer apenas at que chegue ao colecionador "o tdio de pos-
suir". Registre-se ainda o poema "Escaparate", de Boitempo (1968)
no qual a relao de objetos dispostos sobre um armrio sugere
toda a atmosfera de doena que predomina no quarto antigo de
algum na iminncia da morte:
Sobre o escaparate
preto
o vidro de leo de rcino
a caixinha de cpsulas
o copo facetado e
a colher inclinada.
Sobre o escapara te
o relgio de algibeira
o bentinho vermelho
e o tero da aflio
a chama
287
288 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
da vela de espermacete vigiando
no castial de prata.
Dentro do escaparate
o gate expectante do penico.
Em volta do escaparate
a negra clica da noite - Estou morrendo.
(p.490-491)
No caso especfico desse poema, o inventrio de coisas atesta
a vida (e tambm a morte) do sujeito que as possui ou a que elas
se subordina, reiterando, por vias poticas, aquilo que Jean
Baudrillard afirmou a propsito dos objetos de uma coleo, ou
seja, que os "distintos do modo como deles fazemos uso em um
dado momento, representam algo muito mais profundamente re-
lacionado subjetividade 6. O que, inclusive, j havia sido, muito
antes, atestado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre
a arte de colecionar, ao mostrar que o colecionador aquele que
instaura "uma relao com as coisas que no pe em destaque o
seu valor funcional ou utilitrio, a sua serventia, mas as estuda e
as ama como o palco, como o cenrio de seu destino" 7. Creio ser
esta a relao de Drummond com muitos dos objetos que ele ar-
rola em sua poesia, como se estes tivessem a potencialidade de
narrar uma vida, a qual tambm pode ser compreendida pelo uso
ou desuso que se faz dela. E nesse sentido que caberia aqui uma
breve referncia ao escritor francs Georges Perec, exmio "cole-
cionador", para quem os objetos da vida cotidiana narram a hist-
ria das pessoas e lhes servem de memria.
Afeito a verbetes de enciclopdia, levantamentos estatsti-
cos, glossrios, dentre outras modalidades c1assificatrias, Perec
- que foi um dos mais ativos integrantes do grupo francs OULIPO
(Ouvroir de Littrature Potentielle), surgido nos anos 60 -
reinventou esses procedimentos em seus romances, a partir de
critrios incomuns de ordenao. Alm disso, desenvolveu uma
instigante teorizao no-convencional dos sistemas de classifica-
o no livro Penser/Classer, evidenciando "o quo tentador o
af de distribuir o mundo inteiro segundo determinados cdigos
capazes de reger o conjunto dos fenmenos" 8, embora saibamos
que "lamentavelmente no funciona, nunca funcionou, nunca fun-
cionar". Ou seja, ele reconhece o fascnio do ato de classificar ao
6BAUDRILLARD, Jean. O
sistema dos objetos. Trad.
Zulmira Ribeiro Tavares. So
Paulo: Perspectiva, 2000, p. 94.
'BENJAMIN, Walter. Desem-
pacotando minha biblioteca.
Obras escolhidas 11 - Rua de
mo nica. So Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 28.
PEREC, Georges. Penser/
classer. Paris: ditions du
Seuil, 2003, p. 153.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa 289
9 Idem, p. 190.
IOPEREC, Georges. A vida -
modo de usar. Trad. Ivo
Barroso. So Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
IICf. MACIEL, Maria Esther. A
memria das coisas: ensaios
de literatura, cinema e artes
plsticas. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004, p. 97-\09.
mesmo tempo em que proclama a instabilidade dos critrios
classificatrios. Mas admitir tal instabilidade, segundo ele, "no
impedir que sigamos durante muito tempo classificando os ani-
mais pelo seu nmero mpar de dedos ou por seus chifres ocos" 9 .
E a conscincia desse paradoxo que o leva a adotar o humor e a
ironia para subtrair da classificao suas funes utilitrias, liber-
tando-a para usos imaginativos.
No romance Vida modo de usa rIo ,o escritor conta a vida de
seus personagens a partir das coisas que os rodeiam, detalhando
tudo o que define e compe o prdio que habitam, alm de se
valer de vrios recursos taxonmicos como base da narrativa.
Cadeiras, armrios, cabides, estantes, livros, cmodas, objetos de
arte, relquias, malas, latas, utenslios domsticos, produtos de lim-
peza, dentre inmeros outros artefatos que confirmam o triunfo
da civilizao da propriedade e do consumo, so exaustivamente
listados e descritos por ele, compondo um inventrio que - pelo
excesso de ordem - acaba tambm por perder sua prpria eficcia
ordenadora diante da proliferao excessiva dos objetos e deta-
lhes. Para o escritor, se, por um lado, a vida foi reduzida a manu-
ais de instruo, as coisas, por outro, em seu poder de se integrar
ao mundo humano, so capazes tambm de funcionar como regis-
tro slido e incontestvel de nossa presena na terra. O que, como
j foi dito, tambm se confirma na poesia de Drummond.
Alis, a descrio de objetos cotidianos que constituem o
espao de uma casa ou de um edifcio tambm se faz presente em
vrios poemas drummondianos, como j tive a oportunidade de
mostrar em um ensaio de 2004"\1 . Sob esse prisma, vale a pena
citar aqui o poema "Torre sem degraus", um poema em prosa que
encerra o A falta que ama, totalmente estruturado enquanto uma
sucesso de fragmentos enumerados, cada um correspondendo
ao andar do prdio que nos apresentado. Lembrando, ainda que
obliquamente, o edifcio de Perec, a torre infinita de Drummond
funciona como um catlogo de objetos, pessoas, animais, aconte-
cimentos, textos, documentos, dentre outras coisas, aparentemente
organizado pelos caracteres numricos. Entretanto, o absurdo que
dele emerge acaba por arruinar' a ordem da enumerao, conver-
tendo-a em uma espcie de "deri va aleatria", para usar aqui uma
expresso de Flora Sussekind.
Classificar converte-se, assim, em uma forma paradoxal de
290 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
o poeta burlar os prprios procedimentos legitimados de classifi-
cao, j que para ele, se as coisas podem ser postas em ordem
segundo certos princpios reconhecidos cientificamente, elas po-
dem tambm deixar-se reger internamente por uma "ordem muda",
movida por regras estranhas ou regra nenhuma.
preciso desconfiar das classificaes, ele parece...,-os di-
zer. Sobretudo quando elas so colocadas a servio do poder eco-
nmico e poltico, como os classificados de jornais e pg:nas ama-
relas, os recenseamentos, os anurios estatsticos e as fichas
cadastrais. Isso se explicita em poemas como "Jornal de servio-
leitura em diagonal nas 'pginas amarelas' , composto de nove lis-
tas de produtos venda, sejam eles pessoas (a exemplo dos "peri-
tos em exames de documentos ou em imposto de renda"), sejam
doenas, condimentos, mquinas e fogos de artifcio. Em "Recei-
turio sortido", a vez das receitas mdicas, com listas ldicas e
irnicas de remdios para os tensos, insones, pssicos e ansiosos
do Brasil moderno. O tom pragmtico, prprio dos boletins
metereolgicos e estatsticos, o que predomina tambm em
"Diamundo - 24h de informao na vida do jornaledor", em que
so arrolados nomes e temperaturas de vrias cidades do mundo,
ndices de poluio, anncios imobilirios, indicadores econmi-
cos, censos de casos de afogamento, previses astrolgicas, numa
ntida aluso pardica aos clichs taxonmicos dos dirios, bole-
tins e informativos institucionais do mundo contemporneo.
Inventariar aqui todos os poemas em que Drummond burla,
com suas classificaes paradoxalmente antitaxonmicas, os dis-
cursos oficiais e os clichs do discurso burocrtico-institucional
seria um trabalho exaustivo. O fato que ele, ao construir sua
potica do inventrio, no deixa de se inserir em uma instigante
linhagem de escritores modernos/contemporneos, como Borges,
Calvino e Perec, que se valem dos sistemas de classifica%rde-
nao para criarem seus prprios anti-sistemas, os quais
desestabilizam a prpria lgica ordenadora que os define. Uma
linhagem na qual poderia se inserir tambm, em certa medida, o
portugus Fernando Pessoa que, ao adotar ostensivamente em seus
ensaios e contos esquemas de c,.tegorizao cientfica, converte o
excesso de ordenao no que Philip Blom chamaria de "caticas
conflagraes de curiosidades". 12 Para no falar nas listas
heterclitas que compem os longos poemas de lvaro de Cam-
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa
l' BLOM, Philipp. Ter e
manter - urna histria ntima
de colecionadores e colees.
Trad. Berilo Vargas. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p.1 07.
13 PESSOA, Fernando. Obra
potica. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1982, pp. 706-708.
pOS, que feio da poesia de Walt Whitman, estariam naquela
categoria definida por Leo Spitzer como enumerao catica. Alis,
ao criar toda a sua constelao heteronmica, com descries, de-
marcaes, mapas e classificaes, no estaria Pessoa tambm
criando um inventrio dos outros de si mesmo?
No que se refere especificamente sua prosa, impressio-
nante a proliferao de dispositivos classificatrios metodicamen-
te ordenados em caracteres alfanumricos e com divises/subdi-
vises em vrias categorias. Em praticamente toda a sua teorizao
do Sensacionismo, esse aparente rigor na formulao dos pressu-
postos estticos do movimento se impe, como que dando um
revestimento cientfico, racional, a idias e dizeres muitas vezes
inslitos e paradoxais. O que se repete de forma mais explcita no
Herstrato, um verdadeiro tratado sobre a celebridade, o talento
e o gnio, cheio de tipologias, divises e triparties que, pelo
acmulo, acabam por beirar a desordem, como, por exemplo, a
classificao que ele faz dos homens clebres, considerando os
tipos frustrados e os tipos imperfeitos. Mas no interessantssimo
fragmento "Um paranico com juzo" 13, tido como um texto pre-
paratrio da "novela policiria" O caso Vargas, que o rigor exces-
sivo das categorizaes levado aos limites (ou deslimites) do
llOllsense. Com o propsito de descrever e analisar a patologia de
um criminoso, Pessoa constri o retrato de um assassino, com
base em uma detalhada pesquisa taxonmica do comportamento
humano, que inclui:
"(1) Tipo de inibio: a) receio (no), b) moral (no), (c) fra-
queza de vontade (sim). (2) Fraqueza de vontade: (a) da vonta-
de impulso (sim), (b) da vontade de inibio (no), (c) da von-
tade de coordenao (no) - disposio s avessas destas (isto
, b, c, a). (3) Fraqueza da vontade do impulso de fraqueza: (a)
por debilidade mrbida, como no idiota ( ... ) (b) por debilidade
constitucional, como no vadio ... (c) por excesso de atividade
mental. ( ... )" (p. 706-707)
As subdivises se seguem vertiginosamente, apresentando
modelos de "atividade mental que produz a falta de vontade de
impulso", tipos gerais de concentrao, tipos de concentrao
emotiva, de emoo repulsiva, de emoo defensiva, etc., at che-
gar a uma espcie de emoo que "tem o temperamento parani-
291
292 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
co no fundo com o ocasional na superfcie". 14 E o narrador expli-
ca esta ltima categoria como "um paranico inteiramente lcido,
isto , tem todos os caractersticos da parania, menos o delrio
central, que de fato constitui a parania." E, entre parnteses, acres-
centa: "(Se me permitido usar de um paradoxo, direi, em con-
cluso desta srie de raciocnios, que o autor deste crime um
paranico com juzo)" .15 Os limites desse texto inclassificvel -
que aparece como um "conto de raciocnio", mas prescinde de um
enredo e se furta s demarcaes do gnero narrativo - se cir-
cunscrevem unicamente a essa classificao inusitada, a qual aca-
ba por instaurar o caos dentro da prpria ordenao que a define.
Em decorrncia da proliferao dos detalhes e subdivises, as pr-
prias categorias cientficas (ou falsamente cientficas) perdem a
eficcia enquanto procedimento taxonmico e revelam sua inevi-
tvel arbitrariedade. Assim, movido pelo "demnio da classifica-
o", Pessoa opta por categorias que se sucedem, mas sem que
delas o leitor deduza com claridade nenhuma idia de sistema.
nesse sentido que, em oblqua convergncia com a potica
drummondiana do inventrio, Pessoa atesta ironicamente o dizer
de Walter Benjamin, segundo o qual "toda ordem uma situao
oscilante beira do precipcio" 16. Ou - poderamos acrescentar,
parafraseando Perec - que a ordem e a desordem, em seus limites,
no deixam de ser duas palavras que designam por igualo acaso.
14 Idem, p. 708.
!5 Idem, p. 708.
16 BENJAMIN, Walter. Desem-
pacotando minha biblioteca.
Obras escolhidas II - Rua de
mo nica. So Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 28.
Esse artigo faz parte da
pesquisa de ps-doutorado
financiada pela Capes em 2003/
2004.
I Como no h, em Portugus,
um correspondente para
"heritage film", o termo ser
conservado no original ingls.
A palavra "heritage", entre-
tanto, est sendo traduzida, no
texto, por "patrimnio".
2 Um objeto, costume ou qua-
lidade que perdura por muitos
anos dentro de uma nao,
grupo social, ou famlia,
considerado importante e de
valor, e pertencente a todos os
membros.
3Existe uma organizao
britnica, a "National Heritage",
cuja responsa-bilidade destinar
recursos da National Heritage
Memorial Fund aos museus e
outras instituies, com o fim de
ajud-los a adquirir obras de
arte e edificaes de interesse
histrico, ou conserv-los em
boas condies. O dinheiro
usado vem da Loteria Nacional
do Reino Unido.
Lendo e re-escrevendo o passado:
Shakespeare apaixonado*
Tha"IS Flores Nogueira Diniz
(UFMG)
293
Esse trabalho visa estudar as relaes entre o filme de John
Madden, Shakespeare in Love - traduzido no Brasil por
Shakespeare Apaixonado - e o passado histrico da Inglaterra, o
que o caracteriza como um "heritage film"l ,
Segundo o Longman Dictionary of English Language and
Culfure, o termo" heritage" significa "an object, cus tom or quality
which is passed down over many years within a nation, social group,
or family, and is thought of as something valuable and important
which belongs to all its members"2, De acordo com essa defini-
o, qualquer coisa estaria situada dentro do conceito de "heritage",
Em 1983, quando o contexto deixava implcito que o que se que-
ria preservar eram monumentos, grupos de construes e locais
de valor universal, importantes do ponto de vista da Histria, da
Arte ou da Cincia, uma outra conceituao, proposta pela First
National Heritage Conference, estabeleceu que o termo deveria
referir-se ao que a gerao passada preservou e transferiu para a
nossa gerao do presente, e que um grupo significativo da popu-
lao deseja transmitir para a do futuro. A partir de ento, o termo
ganhou reconhecimento oficial, sendo a criao de duas entidades
- a Historic Buildings and Monuments Commissionfor England
ou "English Heritage" e a National Heritage Memorial Fund -
exemplo concreto desse reconheciment0 3
O que se vem preservando para as geraes posteriores tor-
nou-se um dos objetos de interesse da sociedade moderna. Gasta-
se muito tempo hoje olhando para trs, na tentativa de recapturar
o passado, muitas vezes considerado superior ao catico mundo
atual. Esse interesse, uma espcie de nostalgia, deu origem ao
294 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
desenvolvimento da "heritage industry", ou "indstria do
patrimnio histrico", cuja atividade, que vem se tornando lucra-
tiva desde os anos 70, propiciou a multiplicao dos museus, a
popularizao dos "Centros de Tradio" em locais histricos, o
entusiasmo crescente pela recuperao de velhas mquinas, e um
aumento visvel das visitas anualmente realizadas a abadias, man-
ses e re-construes do passado. Sua posterior adoo pelo tu-
rismo e lazer serviu como um meio de renovao e valorizao
das atraes tursticas.
O objetivo do estudo da "heritage" investigar a maneira
pela qual o passado est sendo usado, apropriado e consumido na
cultura contempornea. Sua abrangncia vai desde os desenhos
animados do Pato Donald, as expectativas dos visitantes de mu-
seus, a representao da "Englishness" nas eleies de 1996, at a
formao da identidade nacional e a preocupao com o currculo
das escolas. Entre as inmeras iniciativas tomadas na Inglaterra
para esse fim, esto a reconstruo do teatro The Globe, em local
prximo ao seu lugar de origem, e o projeto de reconstruo do
The Rose. Algumas outras, menos visveis, se resumem na mu-
dana de enfoque das obras de arte, entre elas, os filmes.
O cinema ingls nas duas ltimas dcadas se concentrou
numa espcie de cinema baseado no filme de costumes, compro-
metido com a maneira como a herana e a identidade da Inglater-
ra, ou a chamada "Englishness", deve ser compreendida. Esses
filmes, encenados no passado, em reconstrues de perodo deta-
lhadas e visualmente espetaculares, contam a histria da vida e do
passado da Inglaterra (HIGSON, 2003, p. 1). Nos anos 80 e 90,
diferenciados pelo assunto, fonte, pessoal de produo e elenco, e
com nfase na identidade cultural nacional, foram rotulados de
"heritage films". O termo emergiu, pois, num contexto cultural
particular recente para servir a um propsito especial: a
mercantilizao do passado, produto de uma economia que veio a
se denominar "indstria do patrimnio histrico".
Segundo estudiosos, o termo "heritage film" refere-se ao
cinema de costumes, produzido nos ltimos 20 anos, baseado em
clssicos populares, inclusive Shakespeare. Mesmo no sendo
originrios de obras literrias, os filmes assim denominados re-
correm a uma herana cultural popular que inclui figuras e mo-
mentos histricos, e tambm msica e pintura. Normalmente pro-
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
295
4Veraesserespeito:
HIGSON, 2003; MONK, 2002.
'Ver bibliografia adequada:
HIGSON, 2003; MONK, 1995;
MONK, 2002; VINCENDEAU,
200 1; MURPHY, 2000.
duzidos com oramento elevado, por diretores famosos que usam
no elenco astros tambm famosos, apresentam trabalho elabora-
do de cmara e iluminao e recorrem a muitas mudanas de ce-
nrio, a design de interior bem pesquisado, e msica clssica ou
nela inspirada. A mise-en-scene abundante expe a burguesia ou
aristocracia. Para Vincendeau (2001), esse tipo de filme no cons-
titui propriamente um gnero. Exceto pela presena de vesturio
da poca, no se define por uma iconografia unificada, nem por
um tipo definido de narrativa ou de efeito, podendo incluir ele-
mentos de outros gneros como comdias, nmeros musicais e
caractersticas gticas ou de romance. Apesar dessa variedade,
"heritage film" se transformou em um termo crtico que tem des-
pertado debates importantes
4

Com base na definio provisria acima, compilada a partir
de trabalhos de alguns estudiosos5 , pode-se classificar o filme de
John Madden como um "heritage film" por vrias razes. Primei-
ro, porque retoma, em verso mais moderna, o estilo dos filmes
de poca, revigorando-o e procurando atrair novas audincias.
Segundo, porque, em vez de simplesmente investigar o passado,
tem como objetivo principal celebr-lo. Finalmente, porque o fil-
me est recheado de aluses visuais e textuais, ao descrever as-
pectos da era elizabetana, particularmente o teatro, com seu per-
sonagem principal, Will/William Shakespeare.
No filme, so usadas vrias estratgias para retomar o pas-
sado, entre elas, a reconstruo do cenrio, as citaes a obras
anteriores, a atualizao de figuras histricas e, principalmente, a
referncia aos mitos em tomo da figura do dramaturgo.
O cenrio do filme permite aos espectadores uma
reconstituio impressionante da cidade no sculo XVII, especifi-
camente da margem do Tmisa, com seus teatros e habitantes. Os
produtores descartaram a filmagem em Stratford-upon-Avon e
construram sua verso da Londres de 1593, num jardim ao fundo
dos estdios. Os cento e quinze homens que trabalharam na cons-
truo do cenrio levaram oito semanas para edificar os dezessete
prdios, incluindo dois teatros, um bordel, uma taverna, uma pra-
a e o sto onde vivia Shakespeare. So realmente esplndidas
essas rplicas de ruas, estalagens e teatros que recapturam, de
maneira bastante viva, o alvoroo da Londres de Shakespeare.
Outros locais onde as filmagens aconteceram foram o Broughton
296 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Castle em Oxford, para a manso de Viola, o Hatfield House,
para o Palcio de Greenwich e o Great Hall, em Middle Temple,
para o Banqueting Hall, em Whitehall. Por outro lado, as cenas
no Tmisa foram todas filmadas no prprio rio, e a praia, onde
Viola consegue chegar sobrevivendo ao naufrgio, ao fim do fil-
me, a de Holkham, em Norfolk
6
Assim, construes e locais de
valor universal importante do ponto de vista da Histria foram
convincentemente usados na modernizao dos fatos.
A segunda estratgia para a retomada do passado a aluso
a obras anteriores. Para realiz-la, Madden estiliza vrias cenas,
apropriando-se de aspectos de coreografia, cenrio e interpreta-
es de filmes anteriores. A citao do filme de Laurence Olivier,
Henry V (1944), se d quando uma tomada panormica nos leva
at os detalhes do teatro, que vo surgindo gradualmente, fazen-
do-nos reconhecer o The Rose, teatro irmo do The Globe. Entre
as cenas do filme de Franco Zeffirelli, Romeu e Julieta, (1968), a
escolhida foi a do memorvel salo de baile, onde os jovens se
encontram pela primeira vez. Porm a mais efetiva a que d
incio ao filme de Trevor Nunn, Twelfth Night, (1996), que retrata
o naufrgio do navio a caminho do Novo Mundo, cena inserida ao
final de Shakespeare Apaixonado. Ela sugere que a continuidade
da verdadeira histria do casal de amantes se encontra na comdia
Twelfth Night, que Will, a mando da Rainha e na tentativa de tor-
nar Viola imortal, se prope a escrever. "Voc jamais envelhecer
para mim, nem murchar, nem morrer (Norman 150)" diz Will 'a
amada, antes de se despedirem. "Escreva-me bem", (NORMAN,
1999, p. 151) responde Viola, chorosa. Nesses exemplos, o ato de
metanarrao lembra ao espectador o lugar que a obra de Madden
ocupa na tradio flmica, "criando nele um senso de prazer irni-
co, pela reduo da distncia entre a audincia e o texto". (DA VIS ,
2004, p. 156) O mesmo prazer causado por outras imagens,
aluses textuais de natureza visual. A audincia no pode deixar
de pensar, por exemplo, nos fantasmas de Macbeth e Hamlet,
quando Lord Wessex, na catedral, v o que ele pensa ser o espec-
tro de Christopher Marlowe. Do mesmo modo, o episdio em
que Richard Burbage atingido por uma caveira, durante a briga
no teatro, leva o espectador a recordar-se do monlogo "Alas,
Poor Yorick", de Hamlet7 .
Alm dessas imagens, linhas de diversas peas - Hamlet,
6ANONYMOUS. In: Heat,
1999, p. 10-11.
7Yer a esse respeito: GRAHAM,
1999.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
'Para um estudo sobre todas as
citaes a obras de Shakespeare
no filme, ver: ALBERGE, 1999
e tambm KLETI, 200 I
9 Para um estudo dessa
passagem no filme, ver:
ROTHWELL,1999.
Antnio e Clepatra, Romeu e Julieta - e aluses a seus persona-
gens so incorporadas, em contexto bem diverso ao de origem,
como convm a uma obra ps-modernista que abdica da respon-
sabilidade tradicional de diferenciar os nveis de culturas e textos.
Temos "a plague of both your houses", palavras de Mercutio, na
boca do pregador, referindo-se, no s casas Montechio e
Capuletto, como em Romeu e Julieta, mas aos dois teatros, Rose
e Curta in. Outras, ainda fora de contexto, merecem ser mencio-
nadas: "To be in love, where scorn .... nights (L i)" e "What light is
light... ofperfection (IH, i)", ambos de Two Gentlemen ofVerona;
"Doubt the stars are fire, doubt that the sun move" e "Words,
words, words", ambos de Hamlet (H, ii), e "Give me to drink
mandrgora", de Anthony and Cleopatra
8

Entretanto, sobressaem e assumem papel crucial no filme o
"Soneto 18" e alguns trechos inteiros de Romeu e Julieta. Embo-
ra Shakespeare tenha dedicado o referido soneto ao seu patrono,
no filme, Will o dedica a Viola. Sua incluso determina o tema do
filme: os amantes, mesmo obrigados a se separar pelo casamento
de convenincia, permanecero inseparveis para sempre, miste-
riosamente unidos, atravs do milagre da arte
9

So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee. ("Sonnet 18", 13-
14)
Os trechos de Romeu e Julieta, incorporados s falas dos
personagens do filme/atores da pea, fluem em dois nveis dife-
rentes, o real (diegtico) do filme, e o literrio, da pea que est
sendo ensaiada/encenada. De acordo com o filme, a pea Romeu
e Julieta tomou sua forma final graas Musa de Will, a jovem e
nobre Viola, amante devotada do teatro, que trabalha em cena e
atrs dela, dando origem a uma verdadeira comdia existencial
surgida dessa interao entre a "vida real" - dos personagens do
filme - e a emocional- dos personagens da pea que Shakespeare
vai criando. Quando Will e Viola encenam Romeu e Julieta no
palco, esto apenas consumando, em termos estticos, o que vm
fazendo j h algum tempo no quarto. como se Will traduzisse
para o palco do The Rose o love affair que acontece na vida real,
e alimentasse, no palco, o amor que ele sabe impossvel. O roteiro
297
298 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
se vale da montagem, ao intercalar, durante as falas, cenas da vida
e do ensaio, sugerindo a relao entre o amor arrebatador e a
criao artstica. Assim composto, o script se beneficia da estrat-
gia ps-moderna de citao e pastiche em aluses textuais e visu-
ais que emprestam ao filme uma sensao de dj-vu, que apela
para o desejo da audincia pelo reconhecimento cultural.
Trazer para o presente fatos e figuras histricas, a terceira
forma pela qual o filme tenta recapturar o passado, pode ser ob-
servada logo na seqncia inicial, quando uma tomada panormi-
ca vai at o interior do teatro. Aps exibir os detalhes da rplica-
o telhado de palha, as galerias com os assentos para os espectado-
res abastados, o palco com suas portas para os bastidores, os al-
apes, os dois pilares de suporte do telhado do palco, e o cho
empoeirado da arena - a cmara focaliza finalmente um cartaz
impresso, j rasgado e manchado, onde se l:
7 &8 de setembro ao meio dia
O sr. Edward Alleyn e o grupo Admiral's Men
No Teatro The Rose, Bankside
A Lamentvel Tragdia do Agiota Vingado (NORMAN, 1999,
p.7)
Essa introduo funciona quase como parte de um
workshoplO sobre o teatro elizabetano, referindo-se ao horrio dos IOA idia de "workshop" apa-
espetculos, localizao dos teatros e a um deles especificamen- rece no artigo de Mary Murphy.
te, a um grupo de teatro e a um de seus atores mais famosos. A
essa tomada se segue uma outra, onde a cmara, em movimento
rpido atravs do palco, chega aos bastidores, onde o dono do
teatro, Henslowe, est sendo torturado, como se fosse uma con-
tinuao da "oficina" de teatro, quando os espectadores so infor-
mados sobre os preos cobrados. No desenrolar do filme, outras
figuras e fatos da poca elizabetana ainda so indiretamente apre-
sentados: Burbage, o ator famoso, Chamberlain, o outro grupo
de teatro, o modo de composio em equipe, sugerido pelo papel
de Christopher Marlowe e da prpria Viola, a proibio para mu-
lheres se apresentarem no palco, origem de muito do humor no
filme, o fechamento dos teatros por causa da peste e outros. Esses
sugerem, a princpio, que o filme seja realmente baseado em fatos
histricos. Entretanto, quando o personagem Will que encarna
William Shakespeare apresentado, vestindo umajaqueta de couro,
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
"Segundo dados histricos, a
colnia da Virgnia, assim
nomeada em aluso rainha
Elizabeth, foi fundada em
1607, por John Smith.
11 Para uma atualizao sobre
o estado das pesquisas sobre
Shakespeare, consulte MC-
DONALD,2001.
13 Em um de seus artigos,
Groatsworth of Wit,Greene
exortava seus contemporneos,
Marlowe, Lodge e Peele a
parar de escrever para os
atores, e estendia sua crtica a
Shakespeare, acusando-o de
pavo vaidoso e plagiador.
l4Em seu livro, Pierre Pelllliless,
his supplicatioll to the Devil,
Nash faz referncia a Talhot, o
herideHenryVJ.
tentando soletrar seu nome, jogando papis amassados na cesta
de lixo e desenhando o ttulo do filme, percebemos algo ahistrico,
o que confirmado pelo close-up numa caneca com a inscrio:
"Lembrana de Stratford-upon-Avon". Assim, apesar de tratar de
fatos histricos, o filme tambm apresenta incorrees e incon-
gruncias, numa mistura de fato e fico, como convm a uma
obra ps-moderna. Como exemplos de incorrees e anacronis-
mos, citamos o "psicanalista" estilizado, Dr. Moth, "consultando"
Will; o barqueiro que se diz escritor; o garon do bar, anunciando
o prato do dia, totalmente contemporneo, "p de porco tempera-
do com vinagre de zimbro, servido com uma panqueca de trigo
sarraceno" e o fato de o pretendente mo de Viola ter planta-
es de fumo na Virgnia, antes mesmo que a colnia na Amrica
tenha sido fundada
11

Quando consideramos a simultaneidade desses dois aspec-
tos-mincia no tratamento dos fatos histricos e anacronismos-
fica claro que o filme estabelece uma relao dialtica original
entre passado e presente, relao recorrente ao longo do filme,
mas principalmente na referncia que faz biografia de William
Shakespeare e aos mitos que circundam sua existncia.
O dramaturgo nasceu em Stratford em 1564. A construo,
em estilo Tudor, apontada como o lugar de seu nascimento, foi
comprada pelo pai e legada ao filho. Hoje, recuperada para servir
"indstria do patrimnio histrico" e constituindo um emblema
para os problemas da biografia de Shakespeare, ainda permanece
em Halley Street aberta visitao. A maioria das pesquisas apon-
ta que Shakespeare viveu em Stratford at 1585. No existem
relatos sobre os sete anos que se seguiram, at sua chegada a
Londres por volta de 1592, quando os teatros pblicos estavam
comeando a florescer. possvel que, nesse intervalo, ele se te-
nha juntado a um grupo de atores que percorria as provncias e
assim tenha aberto seu caminho para o mundo do teatro centrado
em Londres
l2
A partir de 1592, sua presena registrada numa
cena de teatro em Londres, o que indica ter ele estado ativo por
algum tempo. Alm disso, algumas poucas provas de sua atuao
esto contidas no ataque a Shakespeare em um folhetim dessa
data, pelo famoso escritor Robert Greene
l3
, e tambm na refern-
cia ao heri da pea Henrique VI, feita pelo dramaturgo e
panfletrio Thomas Nashe
l4
Essa escassez de registros, por sua
299
300 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vez, incentivou a criao de mitos em torno da figura de William
Shakespeare como escritor e como homem. Estimulado pela qua-
se total ausncia de dados biogrficos relacionados a esse perodo
denominado "the lost years", o cineasta/roteirista ficou seduzido
pela esfera da inveno e deu asas imaginao, permitindo um
tratamento livre aos mitos, sem ferir a autenticidade histrica. Entre
os mitos a que alude o filme, destacam-se o mistrio de sua sexu-
alidade e a controvrsia sobre a autoria das obras 15.
O mistrio sobre a sexualidade de Shakespeare um dos
principais mitos que rondam a figura do dramaturgo. Entre suas
obras, apenas os sonetos sugerem detalhes amorosos e sexuais,
que podem ser interpretados como referncias a sua vida pesso-
a1
16
Logo aos o fechamento dos teatros devido peste, os poe-
mas Venus and Adonis e The Rape oi Lucrece, dedicados ao con-
de de Southampton, patrono de Shakespeare, foram publicados.
A lenda diz que o conde recompensou-o com 1.000 libras. A natu-
reza do relacionamento entre o poeta e o patrono no muito
clara. Porm, qualquer que sejam os termos da ligao, esse fato
d um colorido aos mitos sobre a sexualidade de Shakespeare. A
seqncia dos 154 sonetos, segundo historiadores, se divide em
dois grupos, de 1 a 126 e de 127 em diante. Nos ltimos sonetos,
a voz potica confessa sua paixo por uma jovem infiel, a Dark
Lady, cuja identidade permanece envolta em mistrio. A primeira
srie, porm, dedicada a um jovem, que alguns estudiosos iden-
tificam com o Conde de Southampton. Se ele no for o jovem
desses sonetos, quem seria? Existem controvrsias acerca desse
assunto e questes relacionadas so acompanhadas por outras,
sobre a ordem dos poemas, as circunstncias da publicao, as
tendncias sexuais do poeta e, sobretudo, a especulao a respei-
to da narrativa: a seqncia representaria poeticamente as experi-
ncias vividas por pessoas reais?
O tema da sexualidade de Shakespeare tornou-se tabu a
ponto de estudiosos tentarem escond-lo. Em seu artigo, Margreta
De Grazia explora esse tema mostrando as adulteraes feitas nos
sonetos para "por um fim a esse segredo, alterando o sexo da
pessoa amada e assim convertendo uma paixo homossexual ig-
nominiosa em uma paixo respeitvel heterossexual, mesmo que
adltera (36)".
O filme tambm participa da tradio de enterrar o "segre-
" Para uma referncia aos
outros mitos que rondam a
figura do dramaturgo, ver:
ROSENTHAL,1999.
16 Algumas peas contm
detalhes amorosos que, entre-
tanto, no podem ser tomados
como referncias vida pessoal do
escritor.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
do de Shakespeare", mudando o destinatrio do Soneto 18. No
filme, esse destinatrio Viola e no o jovem a quem, na verdade,
ele foi dedicado. Embora Viola esteja vestida de homem no mo-
mento em que l o poema, o filme deixa ambga a possibilidade
de homossexualidade do poeta, ao retrat-lo como umjovem co-
mum, perdidamente apaixonado pela linda e rica Viola De Lesseps.
Assim, apesar de algumas aluses a esse mistrio, como a atrao
de Will por Thomas Kent - Viola disfarada - que culmina com
um beijo no barco, o amor retratado no filme se assemelha ao
manifestado nos ltimos sonetos, permitindo assim que a ambi-
gidade, parte do charme do filme, persista.
As narrativas mticas que se acumularam atravs dos scu-
los levaram muitos a descartar os fatos que os pesquisadores esta-
beleceram sobre a vida de Shakespeare em Londres e Stratford.
Embora no se saiba muito sobre o homem, o que se conhece
sobre a obra torna convincente a histria do filho de Warwick que
vai para Londres quando jovem e encontra seu caminho no mun-
do teatral, encenando, escrevendo e produzindo peas e poemas
que capturaram a imaginao do mundo. Assim, ao acreditar nas
narrativas coloridas e sentimentais que se referem aos anos que se
seguiram sua morte- que ele fazia discursos inflamados, que
deixou Stratford fugido, que comeou a trabalhar em Londres
cuidando de cavalos e s mais tarde se juntou companhia de
teatro e se tornou seu principal dramaturgo- possvel dar uma
face humana e celebrar a figura desse autor oriundo de uma cultu-
ra e um passado distantes. Porm dois fatos recentes entram em
considerao quando discutimos a questo da autoria. Primeiro,
um volume, que merece ser examinado quanto legitimidade,
publicado pelos que propem que o Conde of Oxford seja o autor
da obra de Shakespeare. Segundo, a reformulao recente do con-
ceito de autoria, que nos lembra, a todo momento, que as obras
de arte so produtos no do gnio de escritores individuais mas
da cultura que produziu esse escritor.
Embora no se negue a existncia de Shakespeare em seu
papel como ator, questiona-se seu papel como escritor. Ser que
aquele homem do povo, com pouca instruo, seria capaz de pro-
duzir os textos que ele produziu? O argumento usado que seria
necessrio algum com cultura universitria para escrever as obras
que tratavam do abuso do poder real, da hipocrisia poltica, da
301
302 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vaidade da Corte, da loucura dos monarcas e at de regicdio.
Esse questionamento preconceituoso resultou na proposio de
candidatos mais adequados para figurar como autores das obras
que lhe so tradicionalmente atribudas. Muitos nomes foram co-
gitados, desde Christopher Marlowe at a prpria Rainha Elizabeth,
porm Francis Bacon e Edward de Vere, o conde de Oxford, so
os favoritos. O que eles tm em comum serem ambos aristocra-
tas e, conseqentemente, mais cultos. O mito diz que o Conde
Oxford, por ser um aristocrata, no permitia que seu nome apare-
cesse frente do teatro popular e que Shakespeare teria sido seu
"testa de ferro". Porm, assim como h argumentos em favor de
Oxford como autor, outros negam essa autoria. O principal deles
sua morte ocorrida em 1604, anterior produo de Macbeth e de
The Tempest, escritas respectivamente em 1606 e 1611 e cujos en-
redos dependem de eventos ocorridos tambm depois da sua mor-
te: a inveno da plvora (1605) e a circulao de panfletos sobre o
Novo Mundo (1610). Quanto a Francis Bacon, escolhido no sculo
XIX como o "verdadeiro" autor das obras, apesar da fundao de
um jornal onde as obras eram meticulosamente estudadas com o
fim de se encontrar pistas secretas que levariam a origem das peas
a Bacon, no se chegou a uma concluso convincente. Essa discus-
so ainda se encontra inconclusa nos meios acadmicos.
O acontecimento que alimentou ainda mais essa questo foi
a reviravolta sobre o conceito de autoria, ocorrida nas ltimas
trs dcadas, que trouxe mudanas na teoria e na crtica, afetando
o estudo da literatura. A imagem romntica do artista como um
gnio individual e transcendente foi substituda por um modelo de
autoria mais amplo, baseado na cultura. Tem-se dado muita aten-
o s filiaes institucionais e sociais do escritor, com o objetivo
de identificar as condies e detalhes de sua participao numa
comunidade discursiva. Sob essa nova luz, produes literrias de
um autor como Shakespeare, por exemplo, so vistas como con-
dicionadas e determinadas pelas aes das foras histricas e so-
ciais, o que descarta as noes simplistas de autoria e de respon-
sabilidade artstica. No passado, os estudiosos tentavam identifi-
car os livros que o escritor teria lido ou os debates de que teria
participado. Hoje descarta-se a noo de influncia artstica e con-
sidera-se, juntamente com as teorias relativas re-escrita embuti-
da em todos os textos, que so as figuras polticas e as prticas
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 303
sociais especficas que contribuem para a criao do texto liter-
rio, mesmo quando essa relao no seja evidente. Essa a anli-
se que faz o "New Historicism". Essa corrente crtica procura en-
contrar a reciprocidade entre o campo cultural e o artefato literrio.
Nesse sentido, tenta investigar como o texto dramtico trabalha
para transformar a cultura que o produz, insistindo na disperso da
responsabilidade pela criao da obra de arte. O autor toma-se um
canal para o fluxo das foras culturais. Essa evanescncia da agn-
cia individual coincide com uma verdade sobre o teatro: a sua natu-
reza colaborativa, princpio pertinente a muitas reas artsticas, cujo
produto final resulta de um processo que envolve escritores, copistas,
atores, censores, audincia e at a imprensa.
O filme participa tambm desse debate na medida em que
apresenta a pea que est sendo escrita como um trabalho
colaborativo. Christopher Marlowe que, numa conversa de bar,
d suporte ao argumento de que foi ele o autor da maioria das
peas, sugerindo o tema: "Romeu ... italiano. Sempre se apaixo-
nando ( ... ) At que ele conhece a filha do seu inimigo. Seu melhor
amigo morre em duelo com um irmo ou parente de Ethel"
(NORMAN, 1999, p. 36). A cena sugere ainda que os dramatur-
gos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros, num verda-
deiro trabalho de equipe. Ned Alleyn, o ator, prope a insero de
uma nova cena, entre o casamento e a morte de Julieta. Nesses e
em vrios outros momentos do filme, o processo colaborativo de
criao ilustrado e implicitamente defendido. Mas o filme partici-
pa ainda da idia de um autor evanescente. Quando Will comea a
escrever a cena da sacada, suas linhas so declamadas em voice-
over enquanto somos transportados alternadamente para o quarto
de Viola e para o palco, durante o ensaio.O modo como essas cenas
se fundem sugere a indefinio dos limites entre a arte e a vida. Para
o casal, as linhas vo adquirindo um sentido duplo, medida que o
poeta escreve a histria de ambos. Assim como Romeu e Julieta,
Will e Viola esto condenados a se separar tragicamente, o que
pr-figurado quando Viola, ao ler as linhas de Romeu, ao fim da
seqncia da montagem, reconhece tristemente:
Receio que ...
Por ser noite, tudo isso no passe de um sonho.
bom demais para ser verdade. (NORMAN, 1999, p. 87)
304 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Diferentemente da maioria dos filmes denominados filmes
de Shakespeare, que prioritariamente traduzem para o meio cine-
matogrfico o texto das peas, o filme de John Madden tenta ser
uma biografia dos "anos perdidos" da vida do dramaturgo, qual
so acrescentados elementos de imaginao e inveno para a for-
ma em que se d o processo de criao artstica durante esses
anos. Mas, a despeito de contemplar essa viso romntica, o filme
sutilmente volta-se para a questo contempornea de que todo
texto produto de um processo complexo de criao, realizao
e transmisso, mesmo que exista um autor solitrio escrevendo.
Na realidade hoje conta menos quem escreveu as peas do que o
fato de que essas foram escritas e so admiradas.
Seguindo a tendncia que imprimiu uma mudana nos fil-
mes histricos, tornando-os parte da "indstria do patrimnio his-
trico", Shakespeare Apaixonado tambm tentou criativamente
re-escrever o passado, usando, nessa escrita, os artifcios de
intertextualidade e de pastiche, com o objetivo de criar novas for-
mas de histria para contar a histria no conhecida do "homem
do milnio".
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
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Luuondo, 40 anos: a fora ds
palavras mais velhas
Laura Cavalcante Padilha
(UFF)
Ler Luuanda, para mim, significa realizar um exerccio
de prazer e gozo. Sempre que retomo esta obra de Jos
Luandino Vieira, no posso conter uma espcie de assalto inte-
rior pleno de emoo e arrebatamento. Por outro lado, meu
imaginrio leitor acaba, tambm sempre, por entrecruzar
Luandino e Barthes, dois autores que, a meu ver, sabem, como
poucos, organizar linguajeiramente a festa de prazer do texto.
Em tal festa, no caso especfico do ficcionista angolano, as
palavras, as frases, o trabalho discursivo, para alm do relato,
so os principais convidados. Vale a pena citar textualmente, j
agora, o misto de poeta e ensasta francs, que Barthes, para
dizer que, com Luuanda, "corro, salto, ergo a cabea, torno a
mergulhar" (1977, p. 19). Nasce daum impasse fundante: o que
escrever, se tudo se faz, nessa minha leitura to "colada", um
ato de puro gozo e prazer esttico? Nada que penso ou digo
parece servir. O texto no se deixa prender; escapa como ser-
pente esperta que resiste a qualquer investida de captura. Assim,
vou tentar sair do impasse, correndo atrs da cobra, sempre
mais rpida do que eu, procurando, nessa quase caada,
depreender um pouco das cores de Luuanda, seus sinais, sua
"significncia", enfim (BARTHES, idem).
Em princpio, para comemorar os quarenta anos da publi-
cao da obra, embora com certo atraso, creio ser pertinente
lembrar ter sido LUllanda publicada em 1964 em Angola, rece-
bendo, ento, o Prmio Mota Veiga na ento colnia. Tambm
em Portugal, em 15 de maio de 1965, atribudo obra o Gran-
de Prmio de Novelstica pela Sociedade Portuguesa de Escri-
307
308 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tores, prmio este retirado quando se conhece a identidade da-
quele que se assinava Luandino Vieira. No dizer de Manuel
Ferreira, ento "se inicia a montagem da gigantesca encenao
poltico-repressiva que vai desenvolver-se, em todas as frentes,
contra a atribuio do Prmio e a Sociedade Portuguesa de Escri-
tores." (1980, p. 112). Como sabemos, a Sociedade dissolvida
em 21 de maio do mesmo ano, por ato do Ministro da Educao
do governo fascista portugus.
Luuanda, desde sua apario, em 1964, representa uma rup-
tura na srie literria angolana, primeiramente, no que concerne
espacialidade fsica e simblica nela figurada, ou seja, a da cidade
de Luanda. Tal cidade deixa de ser um espao colonial branco,
para transformar-se em um lugar angolano por excelncia, como
to bem analisa Tania Macdo. Sua areia vermelha se faz metonmia
explcita do sangue da prpria terra que em suas veias geogrficas
corre, de modo mais rpido e tenso, nesse momento poltico em
que, citando Macdo, "a colnia comea a tornar-se sujeito de
sua histria" (2002, 70).
De outra parte, a ruptura tambm - ou sobretudo - se d no
universo discursivo, quando, com grande senso de seu ofcio ar-
tstico, Luandino cria um texto que - se se faz uma abordagem de
leitura mais ligeira - parece muito simples, em termos de expres-
so lingstica, mas, na verdade, representa um produto literrio
altamente sofisticado, em termos de elaborao esttica. Por tal
exerccio discursivo, a territorialidade fsica da cidade amada se
transmuta em uma territorialidade humana por excelncia. De novo,
recorro a Barthes para melhor explicitar que os trs contos da
obra criam, no leitor, um efeito de fruio esttica que "faz vacilar
[suas] bases histricas, culturais, psicolgicas [ ... ], a consistncia
de seus gostos, de seus valores e de suas lembranas, faz entrar
em crise sua relao com a linguagem." (1977, p. 22)
O presente gesto de leitura, partindo desses pressupostos,
se debruar sobre os caminhos imagsticos e discursivos de
Luuanda tentando pensar, de um lado, a questo espacial e, de
outro, a esttica.
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
1. Uma cidade e a resistncia do fio da vida
Desde o sculo dezenove, o imaginrio de alguns autores
buscou os locais no urbanos como uma forma de reforo
identitrio. Pela projeo ficcional desses locais, os produtores
artsticos procuraram resgatar a fora simblica dos modos de
vida autojustificativos do sujeito etno-cultural e scio-histrico
angolano, contrapondo-os aos do sujeito metropolitano, tanto t-
nica, quanto scio-culturalmente.
H um missosso recuperado por scar Ribas, "Quimalauezo"
(1961, v.1, p. 41-64), bastante revelador do sentido desse jogo
espacial. Nele, Lau, o protagonista, filho de um soba, obrigado
a ir para Luanda por determinao do governador europeu, en-
cantado com sua beleza. Todas as aes subseqentes se originam
nessa mudana forada da personagem para o espao do outro no
qual recebe novo tipo de educao, sem jamais, contudo, esque-
cer suas ancestrais tradies, como revela sua volta ao "Sobado
dos Estreis". Esse conhecimento e a fora da fico oral, a que
Lau sempre recorre, se tornam os elementos responsveis por sua
vitria contra a prfida madrasta. Misogenias parte, o missosso
significa um modo de resgate da importncia do saber ancestral
nas comunidades de origem.
Podemos levantar, ainda, vrios outros exemplos desse re-
foro identitrio. Lembro, a propsito, a negra quissama cantada
por Cordeiro da Matta (1889), cuja seduo totalmente distinta
daquela das "europias damas". Tambm Ndreza, depois trans-
formada em Nga Mutri, na narrativa de Alfredo Troni (1882),
vem do interior, sendo obrigada a desfazer-se de seu "lindo pente-
ado seguro pelo ngunde e tacula [ ... ] tirando-lhe as missangas e
os bzios e todos os enfeites" (1973, p. 34). Assis Jnior centrali-
za as aes de O segredo da morta (1935) no Dondo, enquanto
Castro Soromenho escolher a Lunda para palco de contos e ro-
mances por ele escritos, s vezes at em forma de reescrita de
lendas ou narrativas tradicionais.
Antnio Jacinto, por sua vez, estabelece, com Vv
Bartolomeu (1952), um corte entre sua criao esttica e o modo
de representao colonial, seja pela estria contada, seja pela lin-
guagem nova que a sustenta. No entanto, ele permanece ainda
"apostando" na fora espcio-simblica do mundo rural, em oposi-
309
310 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o ao que se d nas cidades litorneas, cobertas pelas marcas
da cultura do colonizador. Por isso mesmo, as aes se passam
em uma senzala e Luanda mostrada como um espao branco
e em branco na narrativa. Por sua vivncia em tal espao, no
resgatada diretamente, tia Mariquinhas, a lavadeira, se trans-
forma em uma assimilada "com a mania de pessoa fina e a dizer
que j no sabia kimbundo". E continua o texto, afiando a l-
mina de sua faca:
Uma vez comeou de chover e a tia Anica disse:
- Eu! Nvula uiza!
e a tia Mariquinhas repreendeu:
- Ai dona! No fala assim, na lngua de pessoa se diz: est
chovar! (1979, p. 25)
o trabalho de recomposio imagstica de Luandino Vieira
em Luuanda, de certo modo na esteira do conto de Jacinto, con-
siste, justamente, em recobrir o corpo da cidade-sede da ento
colnia, com outros sinais, sempre postos de lado pelos mode-
los estticos hegemnicos da colonialidade poltica e literria.
Transforma a cidade num espao coberto pelos "mximos si-
nais" da alteridade, aqui usando uma expresso de Lourentinho,
sua personagem em outra obra (1981, p. 23). Tambm Joo
Vncio, dir, sem rodeios, a seu mudo interlocutor, na priso
onde se d a longa conversa, base do projeto discursivo
articulador da prpria ficcionalidade:
Muadi: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, cu e
nuvias, ilhinha pescadrica. Beleza toda eu no escoio. Eu
digo: Luanda - e meu corao ri, meus olhos fecham, sdade.
(1987, p. 81).
Nasce, nessa geografia imaginria feita de "casas, ruas, paus,
mar, cu e nvias, ilhinha pescadrica", desde Luuanda, uma es-
pcie de nova ancoragem simblico-cultural cujo motor um gesto,
mais que tudo, amoroso. Por ele, no caso da coletnea, a prpria
palavra nomeadora do lugar de pertena do sujeito ganha uma
espcie de prolongamento gozoso, com a letra dobrada pela qual
se suplementa. No apenas Luanda, mas Luuanda. Aninha-se,
nessa repetio da letra, as marcas do amor por tudo que na cida-
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
I Todas as citaes de Luuanda
so da edio brasileira de 1982
e, a partir de agora, s sero
marcadas as pginas da obra.
de descala se institui e a constitui, a comear pelos elementos de
uma natureza animizada cujas aes, sentimentos, formas de ser,
enfim, duplicam os traos caractersticos dos seres humanos que,
na comunidade formada na obra, ela ampara e sustenta.
A nuvem, por exemplo, mostrada, na abertura de "Estria
da galinha e do ovo", como tendo "braos" e com "malucas fi-
lhas"; a "mulemba velha" possui at "barbas compridas"; os relm-
pagos "riem" igualmente "compridos e tortos [ ... ] falando a voz
grossa de seus troves" (1982, p. 99)1 . A natureza ganha vida hu-
mana, pelas palavras mais velhas que lhe descobrem os segredos,
assim como Beto e Xico, no mesmo conto, o fazem com relao
fala dos animais, seguindo o que lhes ensinara o velho Petelu. o
que nos mostra seu entendimento do cdigo no-verbal da galinha
Cabri, recuperada nesta cena de traduo que resgato:
E ento Xico, voz dele parecia era canio, juntou no amigo e os
dois comearam cantar imitando mesmo a Cabri, a galinha
estava burra, mexendo a cabea, ouvindo assim a sua igual a
falar mas nada que via .
... ngjile kua ngana Bina
Ala ki ku kuata
kua ... kua ... kua ... kuata, kuata! (p. 108)
A vida humana em expanso transforma a paisagem da ci-
dade, dela fazendo um espao quase sacralizado, da a ligao
fundante entre os tempos, erigida pelos contos. O "antigamente",
em todos os sentidos, percebido como o tero onde o presente
se gera e, para alm disso, a gnese de qualquer promessa de futu-
ro. Vale citar o gegrafo e humanista brasileiro Milton Santos,
quando enfatiza a vida e seu poder de transformao infinito:
a sociedade, isto , o homem, que anima as formas espaciais,
atribuindo-lhes um contedo, uma vida. S a vida passvel
desse processo infinito que vai do passado ao futuro, s ela tem
o poder de tudo transformar amplamente. (2004, p. 109)
Essa cadeia temporal da vida, assim posta por Santos, se
metaforiza e ganha especial relevo imagstico em Lllllanda, mais
exatamente no conto intitulado "Estria do ladro e do papagaio".
Tal estria, por sua dimenso discursiva e por seu arcabouo
311
312 Revista 8rasiieira de Literatura Comparada, n.9, 2006
temtico - ao deixar apenas a representao da vida em direto
do musseque e escolher o espao da priso como principal cen-
rio ~ confere ao texto um dos seus simblicos e ideolgicos ali-
cerces. No conto, tal alicerce se projeta na imagem do "cajuei-
ro", metfora do fio jamais partido da vida. Por isso mesmo, ou
seja, por sua resistncia e teimosia em renascer sempre, apesar
de todas as violncias e tentativas de destruio por que passa,
"o pau de caju" se faz o
"fio da vida que [ ... ] mesmo que est podre no parte. Puxan-
do-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princpio
num stio qualquer, mesmo que esse princpio o fim doutro
princpio." (p. 52)
A crena na possibilidade de transformao e na fora da
indestrutibilidade do "fio da vida" enlaa a obra, dela prpria fa-
zendo, no todo, uma palavra mais velha. Tal palavra indica a ne-
cessidade de movimento da parte do leitor, convocado a buscar,
ele tambm, a raiz dos casos contados sob os quais se esconde a
violncia da agresso do dominador europeu, empenhado, desde
sempre, em cercear Angola, no a deixando viver a aurora de sua
prpria liberdade. A resistncia do "pau de caju" e das outras r-
vores espalhadas nas terras da prpria textualidade de modo qua-
se obsessivo - mulembas, sape-sape, accias, mandioqueiras, paus
de fruta, etc. - se fazem a marca por excelncia da territorialidade
cartograficamente expressa em letra e papel e, tambm, uma for-
ma de resistncia do prprio imaginrio recuperado pela fico.
Os contos, de maneira recorrente e quase fsica, nos fazem
ver essas velhas rvores, obrigando-nos a pensar no que se escon-
de sob a terra, sempre me, na cosmogonia banta. Por isso, somos
convidados por Luandino, pela voz do narrador dos seus casos, a
pensar no e com o cajueiro, a fim de entender que ningum mata o
fio da vida. Para tanto, temos de deixar
o pensamento correr no fim, no fruto, que outro princpio e
[ir] de encontro a com a castanha, ela j rasgou a pele seca e
escura e as metades verdes abrem como um feijo e um peque-
no pau est nascer debaixo da terra com beijos de chuva. O fio
da vida no foi partido.
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
E O texto continua, com empenho, a exercitar a ancestral
sabedoria, marca da cultura de Angola:
se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da
raiz, na vossa cabea vai aparecer a castanha antiga, me es-
condida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterra-
da doutro pau. (p. 52)
Eis a uma possvel epgrafe ou mote para Luuanda, por sua
vez tambm uma espcie de longa epgrafe das obras de Luandino
que lhe sucedero. O corpo ideolgico dos textos se sustenta na
metfora da castanha, projetada tambm para Angola nesse mo-
mento histrico em que, na luta por sua libertao, ela pode ser
lida como uma "castanha antiga, me escondida" da "rvore", s
na aparncia cortada, mas igualmente "filha enterrada doutro pau".
isto que Luuanda encena: a certeza da renovao da fora
incontrolvel da vida humana e poltica de uma nao por vir.
Vejamos um pouco como e/ou por qu.
Comecemos pelo rosto marcado de duas velhas: Xxi e
Bebeca, cuja pele - principalmente a do rosto - pintada como
"seca e escura", como a da castanha de caju. Por essas duas mulhe-
res-castanha, tanto em "Vav Xxi e seu neto Zeca Santos", quanto
em "Estria da galinha e do ovo", mostra-se a energia e a inteireza
do fio da vida. No por acaso ambas as velhas so plasmadas artis-
ticamente de uma mesma forma, ou seja, como uma espcie de
guardis comunitrias, cuja magreza do corpo esconde a corpuln-
cia da solidariedade; da f no futuro; da confiana na amizade; do
sentido coletivo e do empenho na afirmao do amor pela terra,
pela sua terra angolana. Elas so, respectivamente, para alm de
castanha, o sape-sape e o ovo, este, no caso, primeira fonte da vida.
O sape-sape descrito assim: "sem mais gua, s mesmo
com a chuva que vivia e sempre atacado no fumo preto das cami-
onetas" (p. 25). Elas, como ele, enfrentam a privao e o ataque de
uma ordem social injusta, demonstrando, a exemplo da rvore,
coragem e fora para pr uma sombra boa, crescer suas folhas
verdes sujas, amadurecer os sape-sapes que falavam sempre a
frescura da sua carne de algodo [ ... ] guardando na sua som-
bra massucas pretas de fazer comida de monangambas (idem)
313
314 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A sombra por Xxi e Bebeca projetada, como a do sape-
sape, era "boa, fresca, parecia era gua de muringue" (idem). Por
isso mesmo, as duas vavs so peas importantes na organizao
dos seus espaos do viver nos quais representam e defendem as
leis das autoridades locais, em detrimento das estabelecidas pelo
poder branco vigente. De outra parte, so os cimentos da arga-
massa discursiva formadora do edifcio da prpria textualidade,
organizada, ela tambm, como um exerccio da sabedoria mais
velha de Luandino Vieira, seu criador.
Por outro lado, Vav Xxi e Dona Bebeca so a possibilida-
de de instaurao de um futuro, cuja marca pode ser encontrada
em seus risonhos e gozonos rostos. Elas so o ovo onde a vida
igualmente se guarda, como na castanha de caju. Enquanto esta
se gera, rebenta e reproduz dentro do ventre da terra, o ovo o faz,
ora dentro de Cabri, a "humana" galinha tambm protagonista
dos casos, amiga dos midos Beto e Xico, ora dentro do tero de
Bina, cujo corpo de mulher o duplo explcito daquela mesma
terra. Xxi e Bebeca, empenhadas na manuteno do fio da vida
nunca partido, carregam dentro de si a teimosia da castanha, a
coragem do sape-sape e a fora simblica do ovo.
No por acaso, a descoberta do grande ovo carregado por
Bina feita por Xico, uma daquelas crianas a quem caber bus-
car, africanamente, o futuro, como ensina o missosso antigo e
reensina Dario de Melo na modernidade de seu conto renovador
do texto dos antigamentes - Quem vai buscar o futuro? (1986).
Vav Bebeca, por sua vez, como algum que traz em si o
"ovo" da esperana e f na vida, sorrindo, no quase fechar-se da
narrativa e "segurando o ovo na mo dela, seca e cheia de riscos
dos anos, o entregou para Bina", respeitosamente perguntando
dona da galinha "- Posso, Zefa? ... ". Nesse momento, o leitor v
os "olhos admirados e monandengues de mido Xico" fazerem a
grande descoberta, ou seja, que "a barriga redonda e rija de nga
Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande ... "
Cp. 123). Eis o ovo da vida, pois, a mostrar-se como outro fio
jamais partido.
Os trs contos de Luuanda funcionam metaforicamente
como uma espcie de rito de iniciao pelo qual os nefitos leito-
res, sobretudo se no angolanos, como no presente caso, ingres-
sam nos segredos e mistrios comunitrios. Tais segredos e mist-
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
rios foram sempre elididos na viso dos antigos senhores da letra,
com seu saber redutor. Como ensina Cames, tais senhores mos-
traram-se sempre perplexos diante da estranha gente cujos costu-
mes, leis e reis se fizeram absolutamente enigmticos, desde o
tempo dos navegantes por ele cantados. No por acaso tais
navegantes se perguntam sobre tal gente, em um dos primeiros
encontros dos dois grupos tnicos, nas costas de Moambique,
encontro assim sintetizado pelo poeta:
- Que gente ser esta? (em si diziam)
Que costumes, que lei, que rei teriam? (1972, I, 45. p. 71)
nesses costumes, nessas leis e, no em reis, mas na fora
dessas rainhas mais velhas, que Luandino, como um mestre da
cerimnia de iniciao dos seus textos, faz seu leitor imergir. Por
isso mesmo, a relao entre mais velhos e mais novos um dos
traos mais expressivos nos trs contos, como se sabe: Vav Xxi
e o seu neto Zeca Santos; Dosreis e Garrido e mesmo, na inverso
dos papis, Xico Futa e Dosreis ou Garrido e Joo Miguel, inver-
so surgida sempre que um mais novo demonstra sabedoria maior
que um mais velho. Tambm o trao ressurge na interao de Vav
Bebeca com as mulheres do musseque, principalmente Zefa e Bina,
e, mais que tudo, em sua relao e na de Vav Petelu, no conto
apenas referenciado, com a semente do futuro representada pelos
midos Beto e Xico.
Evidencia-se, na esttica da privao, base imagstica dos
trs contos, a presena utpica da esperana to bem metaforizada
por tais mais novos e pelo sol que sempre atravessa os espaos
textuais e copula, s vezes, com o vento, s vezes com o mar. Os
mais novos so duplos desse sol e devem ser iniciados para fazer
frente aos tempos marcados pelas chuvas, ventanias e ribombar
dos troves, como se d na abertura da obra com o primeiro con-
to em que "sai", metonrnica e metaforicamente, no apenas a chuva
avassaladora, mas "o grande trovo" a fazer tremer "as fracas
paredes de pau-a-pique e despregando madeiras, papeles,
luandos". Depois dele, chega "o brilho azul do raio que nasce no
cu, grande teia d' aranha de fogo" Cp. 6). Tal raio nos faz lembrar
aquele que, caindo na cubata onde se guardara o milho, para livr-
lo da chuva, destri, em Vv Bartolomeu, o sonho do narrador,
315
316 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
mostrado como um mais novo no corpo da estria. O importante,
e Jacinto refora isso, no se dobrar frente aos obstculos inter-
postos entre o sujeito e seus sonhos, da a necessidade de se man-
ter acesa a chama da esperana.
Tambm a chuva devastadora, nos passos da trajetria
inicitica dos trs contos de Luuanda, a exemplo do que ocorre
no de Jacinto, cessa. No segundo deles, tal chuva se transforma
em "chuva de cacimbo" (p. 82), a entrar pelas janelas da priso de
modo suave e fresco. Por sua vez, o vento deixa de ser uma ame-
aa, para transformar-se em "vento frio do cacimbo [que] corria
s gargalhadas, com os papis pelo musseque fora" (p. 76). No
ltimo conto, de modo amigo e apaziguado, esse mesmo vento
ressurge "a soprar devagar as folhas das mandioqueiras" e igual-
mente "devagar e cheio de cuidados e amizade, [ ... ] o vestido
gasto [de Bina] contra o corpo novo" (pp. 123 - 124).
Enfim, a hora de paz, pois o leitor j compreendeu. De
certo modo iniciado, ele no teme mais a violncia do primeiro
vento. Acredita que a esperana, angolanamente, no se deixa
morrer e a fome, a misria, a privao perdero a fora no mo-
mento da chegada do sol da liberdade. O espao espremido e tor-
to das ruas e cubatas dos musseques, na geografia instigante do
texto - Rangel, Sambizanga, Lixeira, Braga, So Paulo, Maral,
etc. -, a exemplo do cajueiro, no ser destrudo pela ordem erigida
na Baixa, espao somente referido no texto e entremostrado como
despido das cores da vida vivida com alegria, no obstante toda a
falta e privao.
Os meninos, por sua vez, j sem suas fogueiras, ainda dis-
pem da sombra amiga das velhas rvores e aprendem a lingua-
gem das gentes e dos bichos de sua terra. De nossa parte, ns,
leitores, como eles, pelo menos no tempo histrico da enunciao
do texto, entendemos ser possvel sonhar, acreditando na veraci-
dade do vo de uma galinha, cuja gordura no a impede de ir em
busca do canto amigo de um companheiro a cham-la. Picando e
arranhando fundo os braos-grade da ordem outra, repressora por
excelncia, do venal sargento, Cabri nos ensina que, pela resis-
tncia ao dominador, se pode voar "na direo do sol" Cp. 122).
Hoje, quase cinqenta anos depois do momento de escrita
do texto (segundo conversa com Luandino), aprisionados nos bra-
os-grade da globalizao neoliberal, no podemos deixar de lem-
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
brar O verso de Drummond - "E agora, Jos?" (1955, p. 196).
Perguntamos, ento, ao outro Jos, angolano: Cabri continua a
voar? Xxi e Zeca Santos podem pescar o peixe hoje para com-lo
amanh? Beto e Xico construram o futuro? E Garrido, Dosreis e
Xi co Futa? Por onde andaro? Teimosamente, s a esperana es-
condida na castanha, no sape-sape e no ovo ser capaz de, revi vida,
poder responder.
2. Uma festa linguajeira e sua beleza frra
No preciso explicar onde busquei a expresso "beleza
forra". Joo Vncio o seu "dono", doando-a, a ns, leitores, na
frase pela qual expressa seu medo de rebentar o fio, no mais da
vida, mas da construo da estria, pensada como a resultante de
uma parceria autoral entre ele e seu letrado companheiro de priso:
Ia rebentando o fio - a missanga espalhava, prejuizo. Que eu
no dou mais encontro com um muadi como o senhoro para
orquestrar as cores. Comigo era mistura escrava; no senhoro
a beleza forra (1987, p. 81)
Desse segundo fio que, como o da vida, no se pode deixar
partir, gostaria de falar brevemente e de modo bastante
esquemtico. Trata-se do fio da escrita artstica ou da elaborao
esttica da obra, pensada, tambm ela, na esteira das imagens re-
correntes da castanha, do sape-sape e do ovo, como uma possibi-
lidade de interligao de cada princpio com seu fim e vice-versa.
Essa interligao se d quando o artista inventa cada nova frase,
palavra, imagem, sonoridade, ou mesmo busca o exato movimen-
to dos sentidos expressos na e pela obra artstica. A escrita assim
concebida transforma-se tambm em rvore, fazendo-se forma de
resistncia frente fala impositiva do outro, muitas vezes empe-
nhado em "derrub-la" por total desconhecimento da eficcia es-
ttica de sua fora ancestral. Ela , sobretudo, a responsvel pelo
nascimento de outra forma de vida, a ficcional.
O discurso literrio de Luandino, por ser rvore, oferece a
sombra sob a qual nos assentamos ns, seus leitores. Como artis-
ta, voltando a Barthes, j agora em seus Fragmentos de um dis-
curso amoroso, ele faz "da forma um contedo" (1981, p. 132).
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318 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Nasce, por esse seu gesto, a "beleza forra", tal como pensada por
Vncio, superando-se, assim, qualquer possibilidade de escravi-
do ou aprisionamento. Volto a lembrar o cajueiro, j agora pro-
jetando, para o fio da vida narrativa, o que se d com o outro fio, o
da vida humana. Para se construir tal fio, j sabemos - " preciso
dizer um princpio que se escolhe: costuma se comear, para ser
mais fcil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das
conversas" (p. 54). Tanto na vida, como na fico. No caso desta
ltima, tal como a concebe VnciolLuandino, ela se esconde no
mgico encontro do "fio" e das "missangas" e na possibilidade de
ambos se acamaradarem, dando origem quele "colar de cores
amigadas" que a obra, tal como nos chega s mos e aos olhos.
A meu ver, para conseguir seu "arco-ris" de palavras,
Luandino aciona dois movimentos que passam, respectivamente
por dois procedimentos discursivos distintos, assim como por dois
- s vezes at mais - cdigos lingsticos. Tais procedimentos e
cdigos se atravessam e se suplementam, combinando, de um lado,
no plano discursivo, as cores das missangas, que s o literrio
conhece e sabe orquestrar, com o fio da oralidade no qual tais
missangas se sustentam. De outra parte, o atravessamento encon-
tra sua raiz no manejo da lngua portuguesaj acamaradada com
as lnguas nacionais, em uma clara e nova demarcao do limite
das fronteiras entre dois cdigos que, durante muito tempo, se
fizeram astros excludentes e em franca rota de coliso.
Pelo encontro quase genesaco da ancestralidade angolana
da voz com a modernidade europia da letra, tambm o passado
se convoca em Luuanda para alimentar o presente e assegurar o
futuro. O texto, como um todo, se faz uma maka, seguindo a
classificao de Chatelain (1964). Nela se encadeiam casos e ca-
sos e mais casos. Forma-se, desse modo, um elo instigante de
contos contados ou de textos "falados ouvidos vistos", para usar
uma expresso de Manuel Rui (1985). Tais estrias se aninham no
colo da letra literria, criando um texto suplementado por diver-
sos tempos, matrizes, memrias, saberes. O narrador da escrita
como que veste a pele dos contadores de sua terra, ritualizando
seu dito artstico pelas palavras mais velhas que sua prpria sabe-
doria pe em circulao. A raiz dos casos, das conversas, enfim, o
fio da vida narrativa l esto, intratveis, sustentados pela voz que
tudo semeia e sedimenta, como castanha partida de cuja casca
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
seca e escura nasce o pau de caju do texto literrio,
arquiteturalmente to bem edificado pela letra em festa:
Minha estria. Se bonita, se feia, os que sabem ler que
dizem. Mas juro me contaram assim e no admito que ningum
que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba
patos [ ... ]
E isto a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.
(p. 96-97)
A "verdade" assegura o carter de maka do contado, na
melhor tradio da oralidade. Por sua vez, o fato de os aconteci-
mentos nunca se terem passado garante a eficcia da fico, cum-
prindo-se a tradio literria do ocidente. Entre esses dois
parmetros discursivos, Luuanda com seus contos se equilibra,
ela mesma um "papagaio" sem poleiro fixo ou a sombra amiga de
um sape-sape sob o qual nos abrigamos, ns, seus leitores, para
ouvir as estrias de um "mais velho" contador que sabe como
poucos inventar estrias sobre estrias.
Quanto questo da lngua, penso que Luandino, como
Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas (1968), por exem-
plo, dobra a lngua em que o texto se escreve, o portugus, fazen-
do-a aceitar o uso da terra, nica forma possvel para que esta
terra ela prpria possa falar nos textos. D-se, em todos os senti-
dos, uma forma de traduo, como fazem Beto e Xico com a
lngua de Cabri. Conforme eu mesma afirmei, em ensaio de 1988,
mas s publicado em 1995, Luandino tenta recuperar o fio partido
da imposio da fala alheia, a fim de tambm torn-la sua. Nesse
af, desimobiliza sua fala artstica, fazendo com que ns, seus leito-
res, vejamos, ouamos, sintamos os cheiros e os tatos dessas pala-
vras engravidadas fono-morfo-sinttica e semanticamente no corpo
de sua textualidade. O quimbundo se faz o smen que possibilita a
criao nova, genesiacamente concebida como diferena.
319
Como sua personagem Joo Vncio ensina, surge, ento,
de acordo com o j afirmado, uma "beleza forra", construda por
esse atravessamento linguajeiro no qual tudo serve para extrair a
macia sumama das palavras prprias e alheias. H uma cena nar-
rativa, no segundo conto, recuperada pela memria de Xi co Futa,
que d bem a dimenso desse atravessamento de lnguas e da cri-
ao literria luandina, pelo que o autor se faz, novamente, uma
320 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
espcie de experiente mestre de cerimnias do rito inicitico que
s o bom texto literrio capaz de poder assegurar.
Eis a cena: quando o auxiliar da cadeia de Luanda, Zuz,
segundo o relato de Xi co Futa, chegava s celas pela manh, cum-
primentava os presos, dizendo, dentro da melhor norma da lngua
portuguesa: "- Bom-dia, meus senhores!" E completa o amigo de
Dosreis:
Nem nazekele ki-nazeka kiambote, nem nada, era s assim a
outra maneira civilizada como ele dizia, mas tambm depois
ficava na boa conversa de patrcios e, ento, a o quimbundo j
podia assentar no meio de todas as palavras, ele at queria,
porque falar bem-bem portugus no podia (p. 44)
A citao recupera de forma explcita, no, como querem
tantos, o "drama" lingstico do colonizado, mas a natureza de sua
fala prpria, construda pelo atravessamento de seu legado lingstico
ancestral e a lngua trazida pelo outro, quando viu concretizado seu
af de singrar os mares nunca dantes navegados, chegando frica
e Amrica, dentre outros lugares. As lnguas europias viajantes
se encontraram com o quimbundo, o umbundo, o ronga, o macua e
tambm com o tupi, o quchua, o guarani e tantas outras guardadas
no cofre das memrias culturais dos povos de origem.
O trabalho esttico de Luandino - na esteira de outros que
o precederam em Angola, desde Cordeiro da Matta em "Kicla!";
passando por Viriato da Cruz com "Makez" ou mesmo Jos
Craveirinha, em Moambique, com o seu "Hino a minha terra" -
consiste em revolver, na quinda simblica, as missangas, j agora
lingsticas, misturadas em denso e festivo colorido. Com elas,
entrecruzadas, em alegres jogos linguajeiros, o j senhor da letra
encontra os elementos de que necessita para criar os colares das
estrias produzidas por esses mesmos prazeirosos jogos.
Acamaradam-se as lnguas, como se dera com a voz e a letra e
tudo se harmoniza, apontando o caminho da esperana.
Para concluir essa minha corrida atrs de uma to gil ser-
pente colorida e esperta, chamada Luuanda, s me resta dizer que
Jos Luandino Vieira consegue, nesta e em outras obras por ele
assinadas, desenhar, com palavras, um belo e surpreendente arco-
ris, imagem que parece encant-lo de modo especial. Esse arco-
ris se inventa com os seguintes elementos: a maestria do artista
Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas
da vida real; a sabedoria dos narradores criados por ele; a fora, a
coragem e a solidariedade dos seus seres de papel chamados per-
sonagens e, soldando tudo, o amor por sua terra, Angola,
metonimizada por Luanda, talvez, pura e simplesmente, o amor
do amor. Terminamos, por isso, com Vncio, dizendo de Luuanda,
de Luandino Vieira: esta obra "beleza forra"! E ponto final.
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Dom Quixote: Utopias
Andr Trouche e Lvia Reis, (orgs.)
Niteri: EdUFF, 2005.
Rodrigo F. Labriola
(UERJ)
Poucas palavras esto hoje to depreciadas de sentido como
"Quixote" ou "Utopia": ao que parece, durante as Celebraes
Centenrias o mercado simblico sofre um surto inflacionrio que
atinge com singular virulncia a cultura li vresca. Depois dessa emis-
so incontrolada de significantes, geralmente certas obras literrias
remanescem ainda mais longnquas do que j eram para os leitores
no especializados. Tudo isso, caso fosse admissvel uma teoria da
economia poltica dos signos ... Mas talvez seja tempo de nos afas-
tar dos modelos econmicos sobre-impressos literatura em dire-
o de outras configuraes capazes de agir melhor sobre esse fe-
nmeno de esvaziamento nos discursos do cotidiano. Da o desafio
implcito no ttulo da compilao Dom Quixote: Utopias, organiza-
da por Andr Trouche (UFF) e Lvia Reis (UFF). Sem aditamentos
nem prevenes, essas poucas palavras previsveis ganham uma nova
complexidade quando considerarmos a forma e o contedo do li-
vro, neste caso feliz e inextricavelmente relacionados.
Com o apoio da Prefeitura de Niteri, a edio se apresenta
cuidada tanto nos textos como na reproduo das imagens que
complementam alguns dos captulos. No se trata, porm, de uma
obscena edio de luxo para glorificar costumeiros atos de gover-
no ou de verbas universitrias. A tentativa refletir sobre a obra
de Cervantes sem apagar nem sua escrita nem seus possveis leito-
res contemporneos. Nesse sentido, um acerto indiscutvel a
incluso, no mesmo nvel dos trabalhos crticos, de quatro frag-
mentos chaves do Dom Quixote em espanhol, e tambm das suas
respectivas tradues livres para o portugus, a cargo de Magnlia
Brasil Barbosa do Nascimento (UFF), Antonio Esteves (UNESP-
323
324 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Assis), Susana Planas (UFF) e Heloisa Costa Milton (UNESP-
Assis). A presena das duas lnguas deve ser destacada se levar-
mos em conta o apoio governamental edio e a sua espervel
distribuio nas bibliotecas escolares, pois indica uma vontade no
de uma mera difuso mas da procura do ensino efetivo do espa-
nhol no Brasil. Os claros comentrios dos tradutores que seguem
aos fragmentos de Cervantes reforam este objetivo, porque se
verdade que a boa literaturaj no de ningum mas da memria
ou da tradio, ento toda lngua pode tambm ser uma forma
extremada das literaturas. Certamente, recuperar o Dom Quixote
uma ilustre compensao da banalidade de certos materiais di-
dticos; mas, por outro lado, as tradues junto ao original pro-
pem uma hiptese problemtica para a tecnocracia lingstica:
que a vitalidade de uma lngua depende em grande medida do
contato com as outras e, sobretudo, da sua apropriao literria.
A liberdade para traduzir, e o conseqente sinal aberto para que
muitos leitores amadores se atrevam a realizar suas tradues,
constituem de fato uma prazerosa indstria para produzir ou re-
encontrar sentidos na prpria lngua, abalando o vazio dos luga-
res-comuns. Ler no outra coisa seno isso; nesse ponto, a cul-
tura audiovisual ainda leva fraldas, ou pior.
De maneira complementar, outro mrito da compilao
no ocultar as tenses decorrentes do catico estado da questo
em torno da significao atual do Dom Quixote e das utopias.
Percebe-se em todos os autores a preocupao por esse assunto
para alm das homenagens oportunistas. Por isso, os textos crti-
cos trabalham por vezes enfoques tericos que resultam contradi-
trios entre si, mas a vantagem do livro reside precisamente nessa
pluralidade, que libera o leitor e o autoriza a escolher alguns de-
les, ou qui nenhum. Entre (s temas mais relevantes para a lite-
ratura comparada se encontram as mltiplas relaes do Quixote
com a obra de Machado de Assis, grande leitor de Cervantes. Maria
Augusta da Costa Vieira (USP) mapeia com rigorosidade a recep-
o do.Quixote no Brasil, e sua sntese evidencia a necessidade de
aprofundar os estudos das conexes entre o manco de Lepanto e
o bruxo do Cosme Velho, ainda pouco exploradas pela crtica.
Embora limitado aos problemas de gnero, o trabalho de Eurdice
Figueiredo (UFF) serve a tal propsito e adiciona ao quadro a
perspectiva de Flaubert. A mexicana Mara Stoopen Galn (UAM)
analisa a fico e a lngua no Quixote a partir dos discursos sobre
o corpo e a subjetividade, no sem estimulantes surpresas: conse-
gue driblar as fartamente repetidas (e maiormente mal lidas) cita-
es de Michel Foucault e Norbert Elias. Por sua vez, a atualidade
irrompe por duas vias diferenciadas nos textos de Gustavo Bernardo
Krause (UERJ) e Mrcia Paraquett (UFF). No primeiro, o ceticis-
mo se alia ironia em defesa da fico: possvel que cada metfo-
ra quixotesca carregue a semente estril de sua prpria destruio
(como nas Vanguardas), mas o mago da literatura goza e faz gozar
disso, entanto o discurso da poltica a aproveita para fins medo-
cres: o presidente venezuelano Chaves, e tambm outros polticos,
so prova disso segundo o autor. Por sua vez, o texto de Mrcia
Paraquett estuda com singular nfase o paradigma de recepo con-
temporneo fora da literatura, seguindo o modelo da anlise do
discurso. As suas observaes sobre uma charge do desenhista N ani
arriscam uma leitura poltica do (ltimo?) escndalo no governo do
presidente Lula em tomo do ex ministro Palocci.
325
Meno aparte exigem os artigos de Lygia Rodrigues Vianna
Peres e de Paulo Bezerra, ambos professores da UFF, devido a
sua originalidade. A primeira descreve a "memria literria" do
personagem de Dom Quixote, que dependendo das circunstncias
e das impresses visuais ao longo da histria vai lembrando frases
que poderia ter lido na sua biblioteca ou ouvido dos romances
populares; assim, Alonso Quijano (em tanto leitor fantico) com-
partilha com Cervantes "a memria como registro especfico da
expresso literria". A concluso instigante: o Quixote um de-
lrio motivado pelo temporal e simultneo esquecimento do autor
e dos seus personagens. Quanto ao trabalho de Paulo Bezerra, a
figura de Sancho Pana focalizada luz da carnavalizao de
Bakhtin. O deslocamento da leitura para o parceiro lhe permite
estabelecer os diferentes tipos de dilogo do fidalgo com os ou-
tros, inclusive com o apcrifo de Avellaneda. O jogo de duplica-
es reconstri com sucesso a figura do Quixote como um perso-
nagem artificial, plural e polifnico, afastado dos esteretipos tanto
da loucura como do herosmo.
Cada um dos textos do livro, por vias diferenciadas, tenta
trazer para terra o problema das utopias. Isto : procura que Dom
Quixote seja um livro destinado atividade civil da leitura, e que
os leitores pensem sobre o mundo que os rodeia e nas suas possi-
326 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
bilidades. Esse seria um bom exerccio para fazer tambm em ou-
tros casos, como o daquele homem que em 1965 escreveu "otra
vez siento bajo mis talones el costillar de Rocinante" no incio de
uma carta dirigida a seus pais, antes de ir rumo Bolvia. A ele
devemos, tambm, adjudicar uma leitura da obra de Cervantes
talvez bem mais sutil do que cremos.
Conceitos de literatura e cultura
Eurdice Figueiredo (org.)
Juiz de Fora: Editora UFJF, Niteri:EdUFF, 2005.
327
Maisa Navarro
(Universidade Federal do Par)
o propsito deste livro o mapeamento de conceitos
identitrios e literrios que surgiram desde as vanguardas e transi-
taram pelas Amricas at o final do sculo XX a fim de lhes rastrear
o sentido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a
superposio de noes. Esses conceitos atentam para realidades
culturais s vezes semelhantes, s vezes diferentes, e foram cria-
dos e utilizados por tericos e crticos em vrias partes do conti-
nente americano e no Caribe.
Resultado de um amplo trabalho de pesquisa desenvolvida
pelo Grupo de Trabalho (GT) da ANPOLL, o livro "Relaes lite-
rrias interamericanas", organiza-se em forma de um glossrio em
que constam 20 ensaios, referentes a 20 conceitos fundamentais
do comparativismo interamericano. Os conceitos e os respectivos
autores so os seguintes:
Americanidade e Americanizao - Zil Bernd
Antropofagia - Helosa Toller Gomes
Barroco e neo-barroco - Helosa Costa Milton
Boom e ps-boom - Andr Trouche
Crioulidade e crioulizao - Magdala Frana Vianna
Entre-lugar - Nubia Hanciau
Heterogeneidade - Graciela Ortiz
Hbrido, hibridismo e hibridizao - Stelamaris Coser
Identidade cultural e identidade nacional- Eurdice
Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha
Indigenismo - Silvina Carrizo
Literaturas migrantes - Maria Bernadette Porto e Sonia Torres
328 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Mestiagem - Silvina Carrizo
Negritude, negrismo e literaturas de afro-descendentes -
Eurdice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos, Ana
Beatriz Gonalves e Mrcia Pessanha
Multiculturalismo e pluriculturalismo - Arnaldo Rosa Vianna
Ps-colonial - Elona Prati dos Santos
Ps-moderno - Gisle Manganelli Fernandes
Realismo mgico e realismo maravilhoso - Antonio Roberto
Esteves e Eurdice Figueiredo
Regionalismo - Dilma Castelo Branco Diniz e Hayde Ri
beiro Coelho
Textualidades indgenas - Cludia Neiva de Matos
Transculturao e transculturao narrativa - Lvia de Freitas Reis
Trata-se, portanto, de uma obra de referncia, que conta
com a participao de especialistas das vrias literaturas nas qua-
tro principais lnguas das Amricas (ingls, espanhol, francs e
portugus), que podem dar conta da circulao destes conceitos,
com as referncias bibliogrficas das fontes, as diversas significa-
es que eles foram assumindo ao longo do tempo e do espao
percorridos. Muitas destas noes tentam definir o estatuto da
cultura americana e, sobretudo, latino-americana, s vezes mais
particularmente a literatura dos pases das Amricas em oposio
literatura europia. Os termos tm origens diversas, ora antro-
polgicas, ora literrias, ora miditicas.
O estudo das literaturas nacionais, de maneira estanque, s
vezes impede a compreenso de que tendncias surgidas em um
pas ou rea lingstica tm correlao com outras muito mais
amplas que atingem outras regies da Amrica e especialmente da
Amrica Latina. Assim, as interrelaes que os autores dos dife-
rentes ensaios revelam na presente obra devem suscitar outros
desdobramentos a fim de se possam detectar os movimentos por
que passam as literaturas do continente. Os autores ressaltam que,
como um pensamento se inscreve na histria de cada pas, preci-
so ter o cuidado de, ao usar um conceito surgido em outro espao
de enunciao, refazer todo o seu percurso a fim de no
homogeneiz-Io, eliminando as nuances que constituem a riqueza
e a produtividade que ele tinha em seu surgimento.
A literatura comparada no Brasil pode tirar partido das con-
tribuies que os estudos culturais e ps-coloniais proporciona-
ram, sobretudo nas pesquisas sobre as questes identitrias, naci-
onais e transnacionais.
329
330 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Jacques Derrida: pensar a
desconstruo
Evando Nascimento (Org.)
S. Paulo: Estao Liberdade, 2005.
Carla Rodrigues
(PUC-RJ)
Numa entrevista que se manteve indita at a sua morte,
realizada pelo jornal francs Le Monde} e publicada em caderno
especial pstumo, o filsofo Jacques Derrida responde questo
que atravessou todo seu pensamento: o que a desconstruo?
Ele diz: "Se eu quisesse dar uma descrio econmica, elptica da
desconstruo, eu diria que um pensamento da origem e dos
limites da questo 'o que ?', a questo que domina toda a hist-
ria da filosofia. Cada vez que se tenta pensar a possibilidade de 'o
que ', de colocar uma pergunta sobre essa forma de questo, ou
de se interrogar sobre a necessidade dessa linguagem dentro de
uma certa lngua, uma certa tradio, isso que se faz nesse mo-
mento no se presta seno a um certo ponto da questo 'o que
"'2. Em outra entrevista, a psicanalista Elisabeth Roudinesco
quem afirma: "s vezes tenho a impresso de que o mundo atual
se parece um pouco com o senhor e seus conceitos, que nosso
mundo est desconstrudo e que se tomou derridiano a ponto de
refletir, como uma imagem num espelho, o processo de
descentramento do pensamento, do psiquismo e da historicidade
que o senhor contribuiu para pr em prtica"3 O raciocnio de
Roudinesco indicaria que a desconstruo no seria obra de
Derrida, mas algo que, como o prprio filsofo afirma, acontece.
Esse acontecimento, no entanto, no se daria sem traumas.
em tomo do acontecimento da desconstruo que gira a
coletnea Jacques Derrida: Pensar a desconstruo, organizada
por Evando Nascimento e editada em 2005 pela Estao Liberda-
de. O principal texto do livro o indito "O perdo, a verdade, a
reconciliao: qual gnero?", ntegra da conferncia
4
do filsofo
I A entrevista foi realizada em
30 de j unho de 1992. Em
edio especial pstuma, o
jornal publicou apenas a
resposta para a pergunta: "o que
a desconstruo". Le Monde,
12 de outubro de 2004, p. 3.
2 "Si je voulais donner une
description conomique,
elliptique de la dconstruction,
je dirais que c' est une pense de
I' origine et des limites de la
question 'qu'est-ce que? .. .' ,Ia
question qui domine toute
I'histoire de la philosophie.
Chaque fois que I' on essaie de
penserla possibilit du 'qu'est-
ce que? .. .', de poser une
question sur cette forme de
question, ou de s'interroger sur
la ncessit de ce langage dans
une certaine langue, une
certaine tradition, etc., ce qu' on
fait ce moment-I ne se prte
que jusqu' un certain point
laquestion 'qu'est-ceque? ... "'.
Traduo minha.
J DERRIDA, Jacques e
ROUDINESCO, Elisabeth. De
que amanh ... Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004, p. 11.
4 Conferncia proferida durante
o Colquio Internacional
"Jacques Derrida 2004: pensar
a desconstruo - questes de
poltica, tica e esttica",
realizado na Maison de France,
no Rio de Janeiro, em agosto de
2004, e promovido pela UFJF
em parceria com o Consulado
Geral da Frana.
5 DERRIDA, Jacques. Papel-
mquina. So Paulo: Estao
Liberdade, 2004, p. 348.
no colquio internacional realizado no Rio de Janeiro em agosto
de 2004, dois meses antes de sua morte. Derrida foi um pensador
engajado. Sobretudo, um filsofo interessado nas questes con-
temporneas. Foi esse interesse que o levou, ainda em meados da
dcada de 1980, a acompanhar o processo de fim do apartheid na
frica do Sul e suas conseqncias. A partir de 1994, ano em que
Nelson Mandela instituiu a Comisso de Verdade e Reconcilia-
o, que pretendia alcanar a "verdade" como condio para o
perdo, Derrida acompanhou de perto o funcionamento da co-
misso sul-africana, parecendo particularmente interessado no
mecanismo de vir tona, identificando a um movimento oposto
ao do recalque que tudo esconde e oprime.
Ainda que em contextos diferentes, as reflexes de Derrida
remetem o leitor brasileiro para a inegvel pertinncia do seu pen-
samento sobre o perdo num pas como o Brasil, que escondeu a
escravido e o racismo de tal forma que imensa a quantidade de
pessoas que cr firmemente viver num pas sem discriminao ra-
cial. Derrida interroga os objetivos da comisso sul-africana: tra-
zer tona o trauma e promover a reconciliao, ideal no qual ele
localiza uma expectativa de transcendncia (p. 61).
Numa discusso sobre as condies de possibilidade do per-
do, Derrida mais uma vez desloca o foco. Ao invs de perder-se
no debate sobre o mrito do perdo, afirma que s se pode perdo-
ar o imperdovel. desse paradoxo que surge a possibilidade de
responsabilidade em relao ao perdo. Num dilogo. filosfico
amplo, que vai de Kant a Hegel, Derrida guia o leitor pelos cami-
nhos da desconstruo tambm na poltica, o que remete ques-
to sobre o tipo de contribuio que o pensamento da
desconstruo tem a dar no questionamento sobre os impasses da
vida contempornea.
331
Conciliar o pensamento dessa desconstruo que acontece
e que aponta os limites da questo "o que ?" com prtica poltica
era um desafio para o filsofo, como ele mesmo explicou: "Ob-
tendo xito de maneira irregular, mas nunca o bastante, tentei,
portanto, ajustar um discurso ou uma prtica poltica s exignci-
as da desconstruo. No sinto um divrcio entre os meus escri-
tos e os meus engajamentos, apenas diferenas de ritmos, de modo
de discurso, de contexto, etc." S Os engajamentos a que ele se
refere so sua militncia contra a pena de morte, sua defesa dos
332 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sem-documento, sua adeso causa das minorias como mulheres,
homossexuais, e sua luta contra o apartheid, essa que o levou a escre-
ver sobre a experincia dos tribunais de perdo da frica do Sul.
Na explorao da desconstruo a que o livro se prope
desde seu ttulo, o texto de abertura, "O perdo, o adeus e a he-
rana em Derrida: atos de memria", assinado pelo organizador
Evando Nascimento, serve de timo fio condutor para quem de-
seja caminhar pelo pensamento de Derrida. Uma forma de dar as
boas-vindas aos que esto chegando agora, mas tambm um
desbravamento pelo trabalho do filsofo em relao a questes
contemporneas. Evando nos guia pelas trilhas, pelos rastros que
nos levam ao ltimo Derrida, aquele que esticou at o limite sua
definio para filosofia: "Pensar em ao, fazendo algo". 6
Hospitalidade e acolhimento
Jacques Derrida: Pensar a desconstruo tambm uma
demonstrao do acolhimento que o pensamento de Derrida teve
no campo da Literatura. So dezenove artigos que, de alguma
forma, esto relacionados ao tema. O livro agrupa textos por afi-
nidade temtica: "Polticas da desconstruo", "Desconstruo,
hospitalidade e tradio de pensamento", "Derrida e a traduo"
e "Querer acreditar. Nas mos do intelecto". do pioneiro Silviano
Santiago, a quem cabe o mrito de ter sido um dos primeiros a
trazer a leitura de Derrida para os departamentos de Letras no
Brasil, nos idos da dcada de 1970, um texto que explora a
diffrance derridiana como a subverso de uma letra. O incmo-
do a que, acrescentado palavra francesa diffrence, impede a
diferenciao entre o vocbulo escrito e falado, confundindo as
regras que deveriam separar claramente phon e escrita. Esse in-
cmodo Santiago identifica tambm na proposta de responsabili-
dade, trabalhada por Derrida sobretudo em Donner la mort,? e
discutida por Santiago em "O silncio, o segredo, lacques Derrida".
Tambm no campo das Letras esto artigos como "Aquele que
desprendeu a ponta da cadeia", de Leyla Perrone-Moiss, que
aproxima Derrida do pensador francs Roland Barthes, e o belo
trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield sobre Machado, Rosa,
Musil e Clarice Lispector.
'Entrevista publicada em httpJ
/indymedia.aI12all.org/
mail.php?id=83l23. Endereo
consultado em 20 de maio de
2005.
'DERRIDA, Jacques. Donner
la morl. Paris: Galile, 1999.
8 DERRIDA, Jacques. This
strange institution called
Iiterature: interview. In:
ATTRIDGE, Derek (Ed.)
Jacques Derrida: acts of
literature. Nova YorkJLondres:
Routledge, 1992.
9 NASCIMENTO, Evando.
Derrida e a literatura. Niteri:
EdUFF, 1999, p. 274.
10 DERR1DA, Jacques. A
escritura e a diferena. So
Paulo: Editora Perspectiva,
2002.
11 DUQUE-ESTRADA, Paulo
Cesar. Derrida e a escritura. In:
DUQUE-ESTRADA, Paulo
Cesar (Org.). s margens da
filosofia. Rio de Janeiro: Editora
PUC-RJlEdies Loyola, 2002.
verdade que Derrida soube retribuir a ateno merecida
nos departamentos de Letras. Detrida definiu a literatura como o
lugar onde se pode dizer tud0
8
, o lugar mais interessante do mun-
do, talvez mais interessante do que o mundo. Menos por preten-
der criar algum fetiche em torno da literatura
9
e mais para salva-
guardar o espao literrio como esse lugar de abertura. Quando
diz que "o sujeito da escrita um sistema de relaes em cama-
das: da lousa mgica, da psique, da sociedade, do mundo" e que,
"no interior dessa cena, a simplicidade pontual do sujeito clssica
impossvel de ser encontrada
lO
", Derrida est mais uma vez ti-
rando o fundamento do solo no qual deveriam florescer conceitos
slidos para a compreenso do mundo. No entanto, na Literatura,
pode-se afirmar que esse abalo parte constituinte, o que seria
uma das razes para a valorizao que Derrida faz da Literatura
como lugar de abertura.
Esse descentramento que destacou na escrita ou na psican-
lise, o filsofo tentou espalhar para o campo do poltico at o limite
mximo, sempre propondo deslocamentos. Seria seguro afirmar que
so justamente esses deslocamentos, esses reenvios de sentido que
fazem com que Derrida seja mais lido nos departamentos de Letras
ou entre os tericos da Psicanlise do que na Filosofia? O livro
uma demonstrao de como esse processo tambm se deu no Brasil
- e importante ressaltar que o fenmeno se reproduz em todos os
pases do Ocidente que se puseram a ler Derrida.
Entre os vinte e um artigos publicados, h apenas um filso-
fo brasileiro, o professor da PUC-RJ Paulo Cesar Duque-Estrada.
A solido filosfica poderia indicar um certo apego da Filosofia
ao pensamento da verdade como fundamento, numa perspectiva
que Derrida trabalhou para desconstruir. em "Derrida e a crtica
heideggeriana do humanismo" que Duque-Estrada explora o pos-
tulado humanista de volta ao sujeito. O autor lembra que Derrida
desconstri a noo de identidade para substitu-la por identifica-
o, esta mais prxima de um processo, de um movimento, de um
devir permanente que nunca se d completamente, do que a rigidez
da identidade fixa, prpria e apropriada. Para Derrida, o que forma
uma identidade aquilo que j a desloca, num processo que se re-
pete indefinidamente
ll
. J naqueles que reivindicam a volta ao su-
jeito da tradio haveria o desejo de ancorar a questo do ser em
portos supostamente mais slidos do que os indecidveis derrianos.
333
334 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Duque-Estrada demonstra que a desconstruo est sendo
posta sob suspeita Cp. 247) porque, no seu descentramento do
sujeito, acusada de no ter nada de substancial a oferecer diante
de um quadro poltico marcado pelo recrudescimento do
fundamentalismo religioso, pela violncia urbana crescente, pela
globalizao que tudo entrega s mos invisveis do mercado. A
crtica da insistncia no humanismo, que Derrida
'2
identifica in-
clusive no pensamento de Heidegger, poderia ser o ponto fraco no
qual os postuladores da volta ao sujeito percebem a desconstruo
como o pensamento que "no tem nada a dizer." No entanto, Du-
que-Estrada lembra que a clausura pode estar no pensamento que
insiste no homem Cp. 254).
Ainda no mbito da filosofia, no artigo "Mal de hospitali-
dade", da filsofa portuguesa Fernanda Bernardo, que o leitor
encontrar de maneira precisa a ligao entre desconstruo e
hospitalidade, para demonstrar como o acolhimento ao estrangei-
ro, ao outro que se apresenta a partir da desconstruo, a esse
outro que emerge quando a desconstruo acontece, como esse
incondicional sim ao estrangeiro, essa hospitalidade a todo e qual-
quer outro que "define a desconstruo como movimento de pen-
samento" (p. 193).
Etapas e deslocamentos
H quem pretenda dividir o pensamento de Derrida em duas
etapas - a primeira, a da descontruo do signo, presente em tex-
tos do final da dcada de 1960, dos quais Gramatologia (1967)
o mais exuberante. A categoria compreenderia tambm A diffrance
(1968), Afarmcia de Plato e A Disseminao, ambos de 1972.
J o ltimo Derrida seria aquele filsofo que ousou abarcar na sua
obra questes polticas contemporneas e, por isso, teria vindo ao
Brasil, meses antes de morrer, falar sobre pena de morte e perdo. A
diviso, creia-se nela ou no, serve os crticos tanto do primeiro quanto
do ltimo Derrida. De uma proposta de desconstruo que estaria
apenas "lendo textos de outro modo", ele teria passado a discutir
temas supostamente alheios filosofia. Por isso, perguntam os filso-
fos dogmticos, para usar uma expresso derridiana, o que perdo
tem a ver com a filosofia e com a questo primeira - "o que "?
Quando, em Gramatologia, Derrida comea a questionar o
12 DERRIDA, lacques. os fins
do homem. In: DERRIDA.
largues. Margens dafilosofia
Campinas: Papirus, 1991, p
161.
signo como portador de uma unidade natural entre significante
(palavra) e significado (sentido), pe tambm em questo a tradi-
o metafsica que estaria implicada na idia de que a linguagem
carrega a possibilidade de expresso de uma verdade
transcendental. Ao desfazer a estrutura binria significante/signi-
ficado, ele aponta para o "carter arbitrrio do signo" e questiona
a existncia da ligao natural entre significante e significado, o
que equivale a suspender esse conjunto de supostas oposies
entre sensvel/inteligvel, dentro/fora, presena/ausncia. Da em
diante, h um longo caminho a percorrer at chegar abordagem
poltica do "ltimo Derrida", que parte da ausncia de fundamen-
tos para identificar violncias, que joga com os indecidveis para
questionar verdades, mesmo - ou principalmente - aquelas ditas
em nome do Bem.
Pode-se reconhecer que Derrida foi um pensador em ao,
que trilhou o tnue fio entre desconstruo e prtica poltica. Com
isso, teria ele contaminado o pensamento filosfico, desviando-o
da questo "o que "? Ao questionar os limites dessa pergunta to
cara filosofia, Derrida abriu-se perspectiva de no apenas no
ter as respostas prontas, mas ousar diz-lo. Pensar a desconstruo
um livro que, no seu espectro amplo de abertura a diferentes
leitores de Derrida no Brasil e no exterior, monta um mosaico de
como o pensamento da desconstruo acontece, para alm do jogo
de ausncia/presena do ltimo Derrida entre ns.
335
336 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Histria. Fico. Literatura.
Luiz Costa Lima
So Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Srgio Alcides
(UFOP)
Histria. Fico. Literatura, como outros livros de Luiz
Costa Lima, parte de uma questo aparentemente simples, por
trs da qual o terico surpreende todo um labirinto de conexes e
impasses da maior relevncia para diferentes setores das chama-
das "humanidades". Foi assim com seus primeiros estudos sobre a
mmesis dos gregos: seria ela o mesmo que a sua contrapartida no
mundo romano, a im ita tio , subordinada ao primado do real? E
assim foi com a trilogia do Controle do imaginrio: que estatuto
reservado ao ficcional na modernidade, em face do tipo de razo
triunfante no Ocidente?
Desta vez a questo de partida est ligada a uma constatao:
tem sido superficial demais, desde a Antigidade, a reflexo com-
parativo-contrastiva entre a histria e a poesia. A carncia de um
aporte terico mais conseqente a esse respeito adquiriu aspectos
de emergncia desde os anos 1970, quando veio tona com toda
a fora a polmica sobre a dependncia da escrita da histria fren-
te a procedimentos e recursos ficcionais (tais como a narrativa e
as figuras de linguagem). Costa Lima tem participado do debate
h mais de uma dcada - mas s agora apresenta uma verso
cabal e mais desenvolvida de seus argumentos.
O ttulo do livro j d boas indicaes do posicionamento
do autor: como termos separados por pontos, histria, fico e
literatura no se confundem, nem so intercambiveis. As trs
partes da obra teorizam sobre os termos separadamente, tratando
das especificidades de cada um, mas sem deixar de investigar suas
relaes com os outros dois.
O longo prefcio procura expor a questo e apresentar uma
espcie de roteiro seguido pelo terico na sua abordagem. pro-
vvel que esta venha a ser a parte do livro mais consultada nos
cursos universitrios, sobretudo na rea de histria (pelo menos
num prognstico talvez otimista demais). No contexto de um de-
bate que j dura mais de trinta anos, escassamente conhecido no
Brasil, esse texto apresenta uma das crticas mais conseqentes e
originais j feitas obra de Hayden White, o autor de Metahistory
(1973). Por meio da anlise literria de textos historiogrficos cls-
sicos, o terico americano procurou demonstrar que a escrita da
histria se constitui mais propriamente numa srie de fices ver-
bais, cujo contedo to inventado quanto achado, e que tm
mais em comum com a literatura do que com as cincias.
importante frisar que a crtica de Costa Lima nada tem de
reacionria - como tem sido, em geral, a pequena recepo da
obra de White no Brasil. Longe de fazer tabula rasa do chamado
linguistic tum que inspirou o trabalho de White nos anos 1970,
Costa Lima ressalta vrios aspectos favorveis trazidos por essa
virada de perspectiva epistemolgica. Ao invs de negar in limine
toda e qualquer contribuio que venha dessa corrente, como tem
feito, por exemplo, Carlo Ginzburg, Costa Lima dialoga com ela e
assim encontra seus reais limites. Para alm destes se encontra o
campo terico novo, no qual ele procura fundar sua reflexo.
Para retomar a distino entre histria e fico, o autor cha-
ma a ateno para as "metas discursivas" de cada gnero, e ainda
acompanha a concepo de Reinhart Koselleck de uma camada
pr-verbal a ser considerada na escrita da histria. Em outros
momentos deste livro, ficar clara a maior proximidade de Costa
Lima com autores alemes do que com os americanos tambm na
rea da teoria da histria - assim como, na teoria literria, ele
nitidamente se identifica, desde finais dos anos 1970, com a cons-
telao de autores formados sob o impacto da "esttica da recep-
o", de Hans Robert Jauss - sobretudo Karlheinz Stierle e
Wolfgang Iser; a este ltimo, presta um importante tributo na se-
gunda parte do livro.
tambm marcante nesse prefcio o trio de apoio terico
que Costa Lima montou - totalmente inesperado e original- para
enfocar toda obra: um artigo esquecido de William J ames ("The
Perception of Reality", de 1889), outro de Alfred Schtz ("On
Multiple Realities", de 1954) e a obra capital de Erving Goffman
337
338 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sobre a "anlise por molduras" (de 1974). Partindo de trs auto-
res "fora de moda", ele traa uma maneira prpria de considerar a
"construo social da realidade" (livrando-nos da rotina de Berger
e Luckmann a esse respeito). O leitor que conhecer bem a obra de
KoseIleck (ou a de Jauss, neste caso), no ter dificuldades em
notar como Costa Lima l aqueles trs autores de um ngulo "ale-
mo", fortemente marcado pela nova hermenutica - sendo o
melhor sinal disso o uso recorrente da dupla de categorias experi-
ncia/expectativa, qual se recorre para explicar, por exemplo, o
conceito de frame ("moldura") do canadense Goffman.
Em J ames, Costa Lima busca uma interessante definio de
"crena" como estado emocional de conhecimento da realidade
que estabelece as condies para o consentimento e assim provo-
ca a "cessao da agitao terica". Para se acrescentar aos mui-
tos sinais de ceticismo espalhados pela obra de Costa Lima, ele
conclui: "o oposto da crena no a descrena, mas sim a dvi-
da". Esse indcio, aparentemente banal, ganhar maior importn-
cia medida que o leitor vai se dando conta do cerne do livro, que
diz respeito ao contraste entre o ficcional e o historiogrfico. Seja
como for, o artigo de J ames afasta desde o princpio a reflexo do
terico brasileiro de qualquer rano positivista: "a fons et origo
de toda a realidade", afirma o americano, " subjetiva, somos ns
mesmos". Para quem ainda supe ser possvel trabalhar em cin-
cias sociais dentro de parmetros tericos mais simplrios, ser
inquietante acompanhar a concluso desse pensamento, segundo
a qual "a prpria palavra 'real' , em suma, uma fmbria". Ao que
Costa Lima acrescenta: "Ser, do ponto de vista humano, a realida-
de uma fmbria significa que no a vivenciamos como um territ-
rio contnuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos
rgos dos sentidos". E continua: "Quando, portanto, nos dize-
mos que realidade o que se pe diante de ns e provoca reaes,
empregamos uma tosca lgica a posteriori, pois convertemos em
experincia passiva o que, na verdade, depende da participao
ativa da subjetividade".
A contribuio encontrada em Schtz serviu para dar mais
consistncia, como objeto terico, a essa fmbria heterognea sub-
jetivamente construda. Para tanto, recorreu-se concepo des-
se socilogo acerca das "provncias finitas de significao" que
cada um estabelece, na vida prtica, diante das prprias experin-
cias, gerando um "estilo cognitivo" especfico. A realidade, assim,
torna-se ainda mais fragmentria- desde a "fmbria" subjetiva at
as "provncias" intersubjetivas. Goffman ajuda Costa Lima a
aprofundar ainda mais o problema, atravs das "molduras"
delineadas por cada interao discursiva na vida cotidiana, que
trazem implcitos um conjunto de expectativas e um padro sele-
tivo de percepo do mundo e dos outros. Isso desvia Costa Lima
da hipervalorizao da retrica que vem ganhando espao em di-
ferentes domnios, como a economia, a histria e os estudos lite-
rrios. "Indiretamente", argumenta ele, "Goffman nos ensina que
a retrica nos acompanha em cada situao do cotidiano. Portan-
to, que no ser por ela que poderemos definir uma situao
discursiva".
339
Toda essa problemtica percorrer o restante do livro sub-
terraneamente; o autor no precisa mencion-la para nos relembrar
de que as trs partes de Histria. Fico. Literatura nela se enra-
zam. A primeira destas a que traz mais novidades para o conjun-
to da obra de Costa Lima, que aqui se consolida tambm como
um terico da histria. O objetivo, em linhas gerais, fixar as
especificidades da escrita da histria, sem deixar de insistir sobre
os seus dbitos literrios. "Preocupar-se com a construo do texto
no supe considerar-se a verdade (altheia) uma falcia conven-
cional; a procura de dar conta do que houve e por que assim foi
o princpio diferenciador d". escrita da histria. Ela a sua aporia".
Esse trecho introduz o conceito mais surpreendente de todo o
livro: aporia, como concepo de verdade uniforme e sem fissuras,
tida por auto-evidente e sempre idntica a si prpria, puro objeto
do reino dos fatos, independente de observao ou participao
subjetiva. Superado o primado positivista do real, a linha de dis-
tino entre a histria e a fico no passa mais pela distino
entre o documental e o imaginado, o factual e o fingido, mas sim
pela reivindicao de verdade que sustenta uma, aportica, ao passo
que a outra se isenta desse padro pr-lingstico e , por isso,
mais porosa.
A surpresa aqui est tanto na formulao, por sua originali-
dade, quanto na terminologia adotada. Estudioso de filosofia (que,
alis, tende ao trabalho do filsofo cada vez mais, pelo menos
desde Mmesis: desafio ao pensamento, do ano 2000), Costa Lima
certamente conhece a fortuna do termo aporia. Entre os dilogos
340 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
socrticos de Plato, so chamados de aporticos justamente os
inconclusos, nos quais a discusso se encerra sem que os
interlocutores cheguem a uma concluso firme sobre o tema em
pauta. Sem falar no famoso poema de Carlos Drummond de
Andrade, "poro", em que um inseto cava a terra em busca de
uma improvvel sada. Maior defensor do ficcional entre os teri-
cos da literatura ps-estruturalistas, Costa Lima parece mais uma
vez alinhar-se aos cticos ao escolher esse vocbulo para modelar
um conceito: ele, por si s, pe em questo os privilgios da ver-
dade. Essa impresso reforada pela circunstncia de a aporia,
conforme a argumentao do autor, ser mais rgida sobretudo na
crena (sendo o contrrio desta, como vimos com a ajuda de
William James, a dvida).
Dentro desses referenciais, a primeira parte se inicia com
uma cerrada reviso do debate acerca de autores que, na Grcia
Antigidade, foram chamados de "historiadores": Herdoto e
Tucdides. Estrangeiro em campo minado, Costa Lima no escon-
de suas preferncias por M.1. Finley e F. Hartog,justamente aqueles
que, entre os especialistas em histria antiga, tm sido os mais
polmicos. Desde o incio vem tona uma preocupao que atra-
vessar o livro inteiro, mesmo as duas partes seguintes, com o
temperamento refratrio dos historiadores, em geral, frente a quais-
quer discusses tericas, resultando numa espcie de positivismo
naif que freqentemente "alfinetado" pelo autor: seus maiores
inimigos so "o arraigado positivismo dos historiadores, que no
aceitam sequer discutir a aporia da verdade", "a marca objetivista
do padro positivista", "o infantilismo positivista dos historiado-
res", "a dificuldade dos historiadores de se libertarem da camisa
de fora que se tornou a objetividade". Se rejeita a reduo da
histria fico, devido ao apoio daquela na aporia veraz, o te-
rico no deixa de questionar a inscrio da verdade no domnio do
factual, pura e simplesmente. Com isso, ele retoma um dos temas
recorrentes de sua obra desde pelo menos O controle do imagin-
rio (de 1984), que a crtica ao substancialismo inscrito na con-
cepo de fato.
Por outro lado, em contraste com os pressupostos do
linguistic turn, Costa Lima postula a existncia de um nvel pr-
verbal de experincia onde possa radicar a premissa de verdade
dos historiadores. o que o autor chama de "histria crua", aque-
la onde est imersa a vida. Ela assim designada - quem sabe?-
talvez por no ter ainda sofrido a coco discursiva. Ou, por ou-
tro lado, pela crueza dos afetos humanos, sobre os quais ela avan-
a; num livro que se inicia com as interrogaes e as perplexida-
des de Herdoto e Tucdides sobre as guerras da Antigidade, e
escrito num tempo em que as paixes blicas reaparecem em pri-
meiro plano, compreensvel que Costa Lima reconhea uma
"marca amarga": "a histria crua caminha sobre a violncia". Deve
estar ligada ao mesmo amargor a hiptese de a ojeriza
historiogrfica relacionar-se com os seus compromissos frente ao
Estado-nao. E a conseqncia prtica - ou tica - da teoria de
Luiz Costa Lima se resume num trecho de sntese sobre toda a
primeira parte do livro: "O que esta seo tem afirmado, portan-
to, a necessidade de, reconhecendo-se a aporia especfica da
histria, dar-lhe um tratamento flexvel, submet-la a um uso po-
roso". Antes, o autor j tinha observado que prprio da aporia o
risco de se enrijecer contra o autoquestionamento, com a tendn-
cia ao dogma. A tarefa por excelncia do historiador, portanto,
no ser a montagem dessa superfcie sem poros e veraz, mas, ao
contrrio, a "abertura de horizontes". O que faz lembrar o conhe-
cido ditado segundo o qual "o passado um pas estrangeiro".
Mas, como nos ensina este Costa Lima terico da histria, para
viajar nele necessrio bem mais do que um passaporte ou um
diploma de bacharel.
A segunda parte trata da fico. Novamente, o autor come-
a pelo comeo: na Grcia, primeiro com Homero, depois com a
'tragdia. Um destaque do primeiro captulo o tratamento dado a
Aristteles (alis j discutido em menor profundidade na seo
anterior), como um pensador to seminal no campo das idias
estticas quanto falhado, por ter sido, na viso de Costa Lima,
mal compreendido e banalizado por seus continuadores: sua for-
tuna, afinal, ter s;do um infortnio. A discusso tambm origi-
nria do Controle doimaginrio, manancial de toda a obra madu-
ra do autor, que tem se revelado praticamente inesgotvel e ne-
cessita de urgente reedio (o primeiro volume da trilogia teve
uma reedio revista, mas os outros dois no). Se no livro anteri-
or o tema aristotlico revisto foi o conceito de verossimilhana,
alm do de mmesis, agora o interesse maior recai sobre a tragdia
e o conceito de catarse.
341
342 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Nessa mesma parte o autor se aprofunda em distin-
es finas, por exemplo entre o real e a realidade, a fico e a
mmesis, o fictcio e o ficcional. Reaparece aqui o problema da
retrica; para Costa Lima, a reduo das teses aristotlicas a um
conjunto de preceitos retricos foi "um desastre" - e, pode-se
concluir, a reificao desses preceitos pela crtica literria atual se
arrisca a repetir os efeitos desse antigo mal-entendido. Buscando
um roteiro prprio, Costa Lima prefere conduzir a discusso so-
bre obras marcantes da Antigidade latina - tais como a Eneida,
de Virglio, e as Metamorfoses, de Ovdio - a partir da relao
entre poesia, verdade e imaginao. Os especialistas em literatura
antiga talvez se sintam enciumados. Costa Lima ver em Virglio a
tentativa de denegar a fico, marcada pelo vnculo do seu poema
com a glorificao do imprio romano. Ao passo que as Meta-
morfoses tomam explicitamente o partido da imaginao: "O re-
sultado a retrica pr-se a servio do ficcional". E, assim como
a mmesis tem a propriedade de selecionar valores de uma deter-
minada sociedade, inscritos no tempo, destinando-os outra
temporalidade da obra de arte, o ficcional "traz em si incrito o
real": mais do que uma representao ou um reflexo dele, a fico
aquilo que o captura sob a forma de discurso, podendo assim
agir sobre ele. Fica evidente o carter disruptivo e potencialmente
subversivo do ficcional.
A seo termina, depois de uma discusso sobre a obra de
Wolfgang Iser, com um captulo inteiramente dedicado anlise
crtica - a partir dos pontos tericos at aqui levantados - de um
longo dilogo entre Otaviano Augusto e o personagem principal
do romance A morte de Virglio, de Hermann Broch. Est em cau-
sa precisamente o tema latente em todo o percurso de Costa Lima:
a quem pertence a poesia? ao poeta? ao Estado? No trecho anali-
sado, o imperador procura evitar que o vate moribundo destrua o
seu poema pico que glorificava o Imprio.
A terceira parte a menos ambiciosa do livro, mas ela que
"amarra" todas as pontas deixadas pelas anteriores - o que talvez
j sinalize algo de relevante acerca da sua palavra-chave, "litera-
tura". Esta, para Costa Lima, no se confunde com fico. A pr-
pria dificuldade de definir o conceito, que o autor estuda na sua
raiz, em F. Schlegel, Mme. de Stael e Chateaubriand, serve-lhe de
apoio para investir teoricamente sobre esse prprio vazio. A lite-
ratura passar a ser o discurso aberto, que comporta o heterog-
neo, o hbrido e o ainda no formulado, e cuja caracterstica sen-
svel o que o autor chama de "espessura da linguagem". Esse
trao vago - mas por definio infenso ao tipo de enrijecimento
que se cristaliza em aporia - justificaria que obras inscritas origi-
nalmente no campo das cincias sociais, como Os sertes e Casa
grande & Senzala, uma vez perdida a sua vigncia, sejam incor-
poradas ao acervo da literatura. Assim como na seo anterior o
terico se faz de crtico e enfrenta A morte de Virglio, aqui a vez
de o material terico formulado encontrar uma atuao crtica acer-
ca das Memrias do crcere, de Graciliano Ramos, obra na qual
Costa Lima encontrar uma "abstinncia de ficcionalidade" que, no
entanto, revela uma concepo de literatura mais complexa do que
mostra o mesmo escritor em sua obra de imaginao, limitada, se-
gundo o crtico, pela subordinao da fico realidade.
O ltimo captulo, na verdade um apndice, consta de um
ensaio de Costa Lima sobre Os sertes - tema de seu livro mais
prximo deste, a meu ver, que Terra ignota, sobre a obra de
Euclides da Cunha. O autor adverte que, nesse ensaio, a meio
caminho entre um livro e outro, as questes que gerariam Hist-
ria. Fico. Literatura j esto em preparo, embora no inteira-
mente formuladas. Em Terra ignota (de 1997), as relaes entre
histria e literatura so o tema de um dos dois apndices (sendo o
outro um dos textos mais importantes e menos comentados de
Costa Lima, "O pai e o trickster", sobre o contraste das condies
sociais e intelectuais de produo do saber e da literatura em mei-
os "metropolitanos" ou "marginais").
343
Histria. Fico. Literatura ser visto como um marco im-
portante de amadurecimento dentro da obra de Costa Lima. To-
mara que o traduzam logo para alguma lngua mais conhecida do
que o portugus, para que as contribuies originais que ele con-
tm possam fazer algum eco - inclusive no Brasil (pois faz parte
das nossas sndromes esse efeito "bumerangue" da projeo inter-
nacional). Entre ns, talvez desperte mais interesse nos departa-
mentos de letras do que nos de histria (sendo exceo entre estes
o da PUC-RJ, onde o autor leciona). pena, porque os maiores
beneficirios deste livro sero os historiadores menos "engessados"
nos preconceitos do seu mtier.
Apresentao dos autores
Ana Cludia Viegas professora adjunta de Literatura
Brasileira da UERJ e de Teoria da Comunicao e Teoria da Ima-
gem da PUC-Rio. Publicou, alm de artigos diversos, o livro Bliss
& blue - segredos de Ana C. (So Paulo: Annablumme, 1998).
Desenvolve, atualmente, pesquisa em torno das relaes entre a
Literatura Brasileira contempornea e os media eletrnicos e di-
gitais.
Andra Borges Leo doutora em Sociologia pela Uni-
versidade de So Paulo e professora do Programa de Ps-gradu-
ao em Educao Brasileira da Universidade Federal do Cear.
Em 2005, realizou estgio ps-doutoral na cole des Hautes
tudes en Sciences Sociales, Paris, sobre a formao das cole-
es literrias infantis da Livraria Garnier. Sua ltima publicao
: LEO, Andra Borges. Universos da devoo, sabedoria e
moral: as Bibliotecas Juvenis Garnier (1858 e 1920). In: Revista
Educao em Revista N. 43. Belo Horizonte: Faculdade de Edu-
cao da UFMG, 2005.
ngela Maria Dias professora de Literatura Brasileira,
Teoria Literria e Literatura Comparada da UFF & Pesquisadora
do CNPq. Ensasta e crtica literria, desde os anos 80. Publica-
es recentes: Estticas da crueldade (Coordenao e Organiza-
o com Paula Glenadel), Ed.Atlntica/2004; "Barthes e a foto-
grafia: Por uma fenomenologia do afeto". In: GLENADEL, Paula
& CASA NOVA, Vera. Viver com Barthes.Rio de Janeiro, 7Le-
tras, 2005.
Dlia Cambeiro professora de lngua e literatura italiana
da UERJ.
345
346 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Edson Rosa da Silva Professor Titular de Lngua e Lite-
ratura Francesa da UFRJ, Pesquisador do CNPq, Membro do
Comit Assessor de Letras e Lingsticajunto ao CNPq, e especi-
alista da obra de Andr Malraux, sobre a qual defendeu tese de
doutoramento na UFRJ (1984) e escreveu inmeros artigos em
revistas nacionais e estrangeiras.
Joana Luza Muylaert de Arajo, professora de Teoria
Literria e Literatura Brasileira do Instituto de Letras e Lingsti-
ca da Universidade Federal de Uberlndia e do Mestrado em Teo-
ria LiterriaJUFU, Coordenadora do Programa de Ps-gradua-
o em Letras - Mestrado em Teoria Literria.
Laura Padilha professora da UFF, pesquisadora do Cnpq,
ex- vice-presidente da ABRALIC e ex-presidente da ANPOLL.
Autora, entre outras, das obras: Entre voz e letra (Niteri/Lisboa:
EDUFFlNovo Imbondeiro, 1995/2(05); Novos pactos, outras fic-
es. (Porto Alegre/Lisboa: Ed. PUC-RGS /Novo Imbondeiro, 2002.
Luiz Gonzaga Marchezan professor assistente-doutor
de Teoria da Literatura do Departamento de Literatura da UNESP,
na FCL do Campus de Araraquara. Organizou, com a Profa. Dra.
Sylvia Telarolli, dois volumes: Ce1las literrias: a narrativa em
foco e Faces do 1larrador, ambos editados pelo Laboratrio Edi-
torial da UNESP de Araraquara, em convnio com a Cultura Aca-
dmica, da Editora da UNESP, lanados, respectivamente, em
2002 e 2003. Em 2005, apresentou a edio de Ermos e gerais,
de Bernardo Elis, pela Editora Martins Fontes.
Maria de Lourdes Patrini-Charlon professora do De-
partamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Suas publicaes mais recentes inc1uemA renovao do conto
- emergncia de uma pratica oral. So Paulo: Cortez Editora, 2005.
Maria Esther Maciel professora de Teoria da Literatura
da UFMG. Doutora em Literatura Comparada, com Ps-Douto-
rado pela Universidade de Londres. Autora, entre outros, dos li-
vros As vertigens da lucidez: poesia e crtica em Octavio Paz
(1995), Vo Transverso: poesia, modernidade e fim do sculo
xx (1999), A memria das coisas - ensaios de literatura, cinema
e artes plsticas (2004) e O livro de Zenbia (fico, 2004). Tem
vrios trabalhos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras
Marlia Librandi Rocha Professora de Teoria da Litera-
tura na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutora em
Teoria Literria e Literatura Comparada, USP.
Maria Luiza Berwanger da Silva professora do Progra-
ma de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Alm de artigos em peridicos, publicou Paisa-
gens Reinventadas (Traos Franceses no Simbolismo
Sul-Rio-Grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999.
Marisa Lajolo atualmente professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e professora titular de Teoria Literria da
Unicamp. Coordena o projeto temtico" Monteiro Lobato (1882-
1948) e outros modernismos brasileiros" (http://www.unicamp.br/
iel/monteirolobato) que tem apoio da Fapesp e do CNPq. Entre seus
livros listam-se: Coma e porque ler o romance brasileiro e Monteiro
Lobato - um brasileiro sob medida. Mais recentemente, organizou a
publicao dos postais que Monteiro Lobato enviou noiva entre
1906 e 1908 (Quando o carteiro chegou).
Patrcia Ktia da Costa Pina professora Adjunta de Li-
teratura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC,
em Ilhus, na Bahia. Organizou o resgate e a publicao do livro
Vindiciae, de Lafaiete Rodrigues, pela UERJ, em 1998, sob o t-
tulo Vindiciae: em defesa de Machado de Assis; publicou o livro
Literatura e jornalismo 110 oitocentos brasileiro, em 2002, pela
EDITUS. Organizou, tambm pela EDITUS, a revista Literatta,
em 2002.
Pierre Rivas professor de Literatura Comparada na Uni-
versidade de Paris, e especialista nas relaes literrias entre Frana,
Portugal e Brasil. Suas publicaes mais recentes incluem: Dilo-
gos interculturais. So Paulo: HUCITEC, 2005.
347
348 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Regina Zilberman Doutora em Romanstica pela Universi-
dade de Heidelberg, Alemanha; Professora Titular na Faculdade de
Letras, da PUCRS; Pesquisadora IA, CNPq. Publicaes, entre ou-
tras: Esttica da Recepo e Histria da Literatura (tica); Fim
do livro, fim dos leitores? (Ed. Senac); A literatura infantil na
escola (Global); Como e porque ler literatura infantil brasileira
(Objetiva).
Rogrio Lima Coordenador do Programa de Ps-Gradu-
ao em Literatura da Universidade de Braslia e autor de captu-
los de livros e artigos publicados em peridicos, especialmente
sobre o mundo digital e as relaes entre literatura e informtica.
Sandra Guardini T. Vasconcelos Doutora em Teoria Li-
terria e Literatura Comparada pela Universidade de So Paulo.
Professora Associada de Literaturas de Lngua Inglesa na Univer-
sidade de So Paulo, desenvolve nos ltimos anos pesquisa sobre
as relaes entre os romance ingls dos sculos XVIII e XIX e o
romance brasileiro do sculo XIX. Alm de vrios artigos e cap-
tulos de livros publicados no Brasil e no exterior, autora de Pu-
ras Misturas. Estrias em Guimares Rosa (1997) e de Dez Li-
es sobre o Romance Ingls do Sculo XVIII (2002).
Socorro de Ftima Pacfico Vilar professora da UFPB
desde 1987. Atualmente faz estgio de ps-doutorado na PUCRS,
com projeto relacionado aos jornais paraibanos. Desenvolve pesqui-
sas na rea de Histria da Leitura e Histria da literatura. Publicou
Primeiras leituras e outras histrias, pela EDUFPB e A inveno de
uma escrita: Anchieta, osjesutas e suas histrias, pelaEDPUCRS.
Tha'is Flores Nogueira Diniz professora adjunta de Lite-
ratura Comparada e Literaturas de Expresso Inglesa na Faculda-
de de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e especia-
lista em traduo intersemitica e teatro contemporneo. Suas
reas de pesquisa incluem a relao entre a literatura e as outras
artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a
intermidialidade. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana
University at Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o ttulo
em 1994. Fez seu ps-doutorado em Londres, no Queen Mary
College, University ofLondon em 2004.
Aos colaboradores
1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita traba-
lhos inditos sob a forma de artigos e comentrios de livros, de interesse
voltado para os estudos de literatura Comparada.
2. Todos os trabalhos encaminhados para publicao sero sub-
metidos aprovao dos membros do Conselho Editorial. Eventuais
sugestoes de modificao de estrutura ou contedo, por parte do Con-
selho Editorial, sero comunicadas previamente aos autores.
3. Os artigos devem ser apresentados em trs vias, texto datilo-
grafado em espao duplo, com margem, alm de dados sobre o autor
(cargo, reas de pesquisa, ltimas publicaes, etc).
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mentrios de livros, em tomo de 8 pginas.
5. As notas de p de pgina devem ser apresentadas observando-
se a seguinte norma:
Para livros:
a) autor; b) ttulo da obra em itlico; c) nmero da edio, se no
for a primeira; d) local da publicao; e) nome da editora; f) data de
publicao; g) nmero da pgina.
BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So
Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p.31.
Para artigos:
a) autor; ttulo do artigo; c) ttulo do peridico (em itlico); d)
local da publicao; e) nmero do volume; f) nmero do fascculo; g)
pgina inicial e final; h) ms e ano.
ROUANET, Srgio Paulo. Do ps-moderno ao neo -moderno.
Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.1, p. 86-97,jan./mar., 1986.
7. As ilustraes (grficos, gravuras, fotografias, esquemas) so
designadas como FIGURAS, numeradas no texto, de forma abreviada,
entre parnteses ou no, conforme a redao.
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ma, digitado na mesma largura desta.
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