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Diretoria A B R A L I C 2005/06
Presidente Jos Lus Jobim (UERJ/UFF)
Vice-presidente Lvia Reis (UFF) 1 Secretrio Antonio Carlos Secchin (UFRJ) 2 Secretrio Joo Cezar de Castro Rocha (UERJ) 1 Tesoureiro Roberto Aczelo Quelha de Souza (UERJ) 2 0 Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ) Conselho Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG) Eduardo Coutinho (UFRJ) Gilda Neves Bittencourt (UFRGS) Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Ceclia Queirs de Moraes Pinto (USP) Maria Eunice Moreira (PUC/RS) Reinaldo Martiniano Marques (UFMG) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Suplentes Mrcia Abreu (UNICAMP) Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC) Conselho editorial Benedito Nunes, Bris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Joo Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel. ABRALIC C.G.C.04901271/0001-79 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Instituto de Letras Rua So Francisco Xavier 524, 11 0 andar - CEP 20559-900 Bairro Maracan - Rio de Janeiro 1 RJ Fone/Fax: (21) 2587-7313 E-mail: [email protected] 4 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 2006 Associao Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- Dl 03-6963J uma publicao anual da Associao Brasileira de Literatura Comparada (AbralicJ, entidade civil de carter cultural que congrega prOfessores universitrios, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poder ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permisso por escrito, Editores Jos Lus Jobim Lvia Reis Antonio Carlos Secchin Joo Cezar de Castro Rocha Roberto Aczelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida Formatao e Casa Doze Projetos & Edies produo grfica Tiragem 2000 exemplares Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associao Brasileira de Literatura Comparada - v,l, n,l (1991 ),- Rio de Janeiro: Abralic, 1991- v, ,n,9, 2006 ISSN 0103-6963 1 , Literatura comparada - Peridicos, I. Associao Brasileira de Literatura Comparada, CDD 809,005 CDU 82,091 (05) A revista e o X Congresso Internacional da ABRALlC Jos Lus Jobim Lvia Reis Antonio Carlos Secchin Joo Cezar de Castro Rocha Roberto Aczelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida editores 5 Este segundo nmero da Revista Brasileira de Literatura Comparada, editado em nossa gesto, aponta para a possibilidade de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de dar nfa- se aos peridicos cientficos que tenham periodicidade no mnimo bianual nas avaliaes do QUALIS. O lanamento desta edio no X Congresso Internacional da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em promoo conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universida- de Federal do Rio de Janeiro - faz parte tambm das comemora- es referentes aos 20 anos de atividades ininterruptas de nossa associao, como no poderia deixar de ser. Agradecemos aos pesquisadores de todo o pas e do exteri- or que responderam ao callfor papers, e no podemos deixar de dizer que gostaramos de ter mais espao para acolher ainda mais artigos do que o j elevado nmero que ora publicamos. De todo modo, a prpria diversidade dos articulistas que contribuem para este nmero uma comprovao expressiva da importncia nacio- nal e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado. Agradecemos tambm aos nossos pareceristas ad hoc, que trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudssemos lan- ar este nmero ainda em nosso evento de 2006. Quanto ao evento em si, foi no perodo entre 31 de julho e 04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso da ABRALIC, 6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo profes- sores e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contan- do com mais de 2.000 inscritos. sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fundada em 1986, na UFRGS, completando assim 20 anos em 2006. Desde ento, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas se- guintes Universidades: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC, UFBa, UFMG e UERJ. Seus ltimos dois congressos (UFMG e UFRGS) reuniram, cada um, cerca de 1.700 professores e pesqui- sadores. Hoje, a ABRALIC a associao cientfica mais antiga e com maior destaque na nossa rea, e a maior associao de estu- dos literrios da Amrica Latina. Sua diretoria eleita bianualmente, compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus mem- bros so da VERJ, UFF e UFRJ), responsveis por todas as ativi- dades no binio. H tambm um Conselho, integrado por ex-pre- sidentes e por pesquisadores de destaque na rea, que dialoga com a diretoria, nos assuntos de interesse da ABRALIC. O X Congresso Internacional da ABRALIC discutiu o lo- cal, o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetrio: lu- gares dos discursos literrios e culturais, e teve como subtemas: Lugares dos discursos literrios e culturais. Construo de iden- tidades: local, regional, nacional, internacional, tnica, sexual, lingstica, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Me- trpole e colnia. O colonial e o ps-colonial. Herana ibrica e Novo Mundo. Relaes culturais e blocos transnacionais (MERCOSUL e Unio Europia). Exceo cultural e globalizao. Homogeneidade e heterogeneidade. Polticas cul- turais nacionais e internacionais. Intersees, compartilhamentos, articulaes, singularidades, diferenas, assimetrias e hierarquias nos fluxos literrios e culturais. Quadros de referncia da circula- o e aquisio do saber cultural e literrio. As teorias e seus lugares de enunciao. Modos de ver, modos de julgar, descries e prescries. Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu tanto o Encontro Regional da ABRALIC-2005 quanto este X Con- gresso Internacional da ABRALIC, convm aqui reiterar a nossa concepo deste termo: "Um lugar , antes de mais nada, uma construo elaborada A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC I Jobim, J.L. ABRALIC: Sentidos do seu lugar. Rev. Brasileira de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, 8, p. 95-112, 2006. por vrias geraes de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que tem. Ele constitudo por redes pblicas de sentido, formado- ras de subjetividade. Nele se constituem interpretaes pbli- cas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impem sentido s experincias singulares dos sujeitos, elementos em relao aos quais estes sujeitos interpretam suas experincias (e os textos que lem), bem como direcionam suas aes. Em outras pala- vras, o lugar sempre fonte de pr-concepes que de alguma maneira contribuem para a elaborao de nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referncias deste dizer - incluindo determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, siste- ma que sempre j estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciao se circunscreve. Lugares tm sempre histria, e mesmo o apagamento de certos elementos constitutivos da histria do lugar tambm decorrente de ra- zes histricas." 1 Mais do que nunca, hoje, faz-se necessrio estudar as corre- laes entre os lugares e os discursos literrios e culturais, gerando construes de toda ordem, derivadas no s de relaes polticas assimtricas, mas tambm de todo um quadro complexo de interse- es, compartilhamentos, articulaes, singularidades, diferenas, assimetrias e hierarquias nos fluxos literrios e culturais. Com o evento de 2006, pretendemos, entre outras coisas: 1) Dar prosseguimento ao trabalho acadmico que at o presente momento vem caracterizando o perfil da Associao Brasileira de Literatura Comparada (isto , situar o estudo da Literatura em relao a problemas tericos fundamentais para a discusso do quadro de referncias em que se situam estes estudos, bem como em relao a pesquisas desenvolvidas em outras reas das Cinci- as Humanas); 2) Buscar uma maior integrao acadmica entre os associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias inter- universitrias, a partir da realizao dos simpsios temticos e da sinergia gerada pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuio re- flexiva em relao aos quadros de referncia que delimitam fluxos literrios e culturais; 4) Incentivar a emergncia de novas parceri- as e projetos entre pesquisadores da rea; 5) Enfocar as mais re- centes teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a 7 8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 atividade literria e seu papel de verdadeira interseco entre as diversas reas de conhecimento, perspectiva que mantm o car- ter multidisciplinar dos eventos da ABRALIC. Tivemos a presena dos seguintes pesquisadores, como con- ferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC, todos com reconhecida qualificao e produo acadmica: Ana Pizarro (Uni- versidade de Santiago de Chile), Benjamin AbdallaJr. (USP), Edson Rosa da Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca (Universidad de la Repblica - Uruguai), Jean-Marc Moura (Universit de Lille), Luisa Campuzano (Universidade de Hava- na), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman (PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso (Universidade de Roma - La Sapienza), Zil Bernd (UFRGS). Ressalte-se que a publicao em livro das conferncias, a exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional da ABRALIC-2006, permitir a um pblico mais amplo o acesso ao resultado do evento. As atividades, em todos os dias do congresso, foram distri- budas em mesas-redondas, na parte da manh e ao final da tarde, da qual participaram os pesquisadores convidados, e em Simpsios, organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela Comisso Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez) mesas-redondas, cada uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (se- tenta e um) Simpsios, funcionando em um turno (manh ou tar- de), durante os dias do evento. Trs universidades participam diretamente da organizao des- se Encontro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sede do evento, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria da ABRALIC foi responsvel pela organizao, junto com uma Comisso Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: Jos Lus Jobim (UERJIUFF); Lvia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin (UFRJ); Joo Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Aczelo Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ); Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lcia de Souza Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo Bouas Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ) A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC Alm dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, in- dispensveis para tornar possvel a realizao do X Congresso In- ternacional da ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles cujo trabalho foi fundamental para o sucesso do empreendimento. Para terminar, gostaramos de chamar a ateno sobre o novo sistema de envio de todos os textos completos das comunicaes a serem apresentadas em cada simpsio, para publicarmos, de modo que, no primeiro dia do Congresso, cada participante pudesse rece- ber, junto com o material do congresso, os anais, com a sua comu- nicao j publicada. 9 Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de simpsios, a seu critrio, pudessem fazer apenas a discusso dos trabalhos, j que estes estavam disponveis bem antes do evento. Este um novo procedimento, j que o prprio formato dos con- gressos de nossa rea no beneficia um possvel aprofundamento crtico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura bsica de nossos congressos consiste em apresentaes de cerca de 20 minu- tos, sem discusso posterior - ou, pelo menos, sem uma discusso que merea, at pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invs de se levarem papers que so lidos sem discusso, se possa introduzir a prtica de disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedi- car-se apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a um maior adensamento geral das argumentaes desenvolvidas so- bre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalizao de opinies contrrias, obriga ao acuramento de posies. Ressal- te-se que tanto a deciso sobre a disponibilizao e circulao (ou no) dos textos antes do evento (por exemplo, atravs de anexos em e-mails para os participantes dos simpsios) quanto a sua forma de apresentao ou discusso no prprio evento foram decises does) prprio(s) coordenador(es) de cada simpsio. A todos os scios e participantes do X Congresso Internaci- onal da ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuio. Sumrio A revista e o X Congresso Internacional 5 da ABRALlC Artigos A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira Joana Luza Muylaert 1 3 Antonio Candido e o projeto de Brasil Regina Zilberman 35 A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos 49 A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor Patrcia Ktia da Costa Pina 65 O marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim Socorro de Ftima Pacfico Vilar 79 De So Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana para Monteiro Lobato Marisa Lajolo 99 Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos Dlia Cambeiro 1 07 Matriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France Pierre Rivas 1 29 Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista Andra Borges Leo 141 Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos Maria de Lourdes Patrini-Charlon 161 Da representao do horror ao vazio da representao Edson Rosa da Silva 1 81 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A literatura e a virtualizao do texto literrio Rogrio Lima 191 A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais Ana Cludia Viegas 213 O hipotexto de N 011 Luiz Gonzaga Marchezan 229 Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em trs tempos Marlia Librandi Rocha 243 Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes ngela Maria Dias 259 Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti Maria Luza Berwanger da Silva 269 As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa Maria Esther Maciel 283 Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado Thais Flores Nogueira Diniz 293 Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas Laura Cavalcante Padilha 307 Resenhas Dom Quixote: utopias Andr Trouche e Lvia Reis, org. Rodrigo F. Labriola 323 Conceitos de literatura e cultura Eurdice Figueiredo, org. Maisa Navarro 327 Jacques Derrida: pensar a desconstruo Evando Nascimento, org Carla Rodrigues 330 Histria. Fico. Literatura. Luiz Costa Lima Srgio Alcides 336 Apresentao dos autores 345 A formao, os deslocamentos:modos de escrever a histria literria brasileira Introduo Joana Luza Muylaert de Arajo (UFU) As relaes entre culturas literrias diversas tm recebido da crtica brasileira contempornea tratamentos distintos, confor- me o ponto de vista terico inseparvel das escolhas do crtico e da sua sensibilidade para certos temas, autores e textos, e no outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisria e inacabada das interpretaes assumida explicitamente nos tex- tos de crticos e historiadores da literatura. A pergunta que ento proponho, neste trabalho, refere-se possibilidade de se postular histrias da literatura brasileira orientadas para os vazios, para as rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e orgnico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a tradio ou a formao de textos cannicos brasileiros. Em sntese, a proposta tambm poderia ser nos termos, a seguir, formulada: compreendendo a formao da literatura brasi- leira no como linha evolutiva de uma identidade essencialista e original a ser revelada, mas como imagem construda no cruzamen- to da cultura e da subjetividade dos diversos intrpretes, passara- mos ento a identificar vriasformaes da literatura brasileira, tantas quantas propuseram os historiadores desde o romantismo. Em outras palavras, o que poderamos interpretar, talvez equivocadamente, como desacertos da crtica, oferece-nos ao con- trrio os elementos indispensveis para a afirmao de uma escri- ta caleidoscpica da histria, diversa e dispersa, com as aporias incontornveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crtica e historiografia. A hiptese aqui apresentada pressupe a reavaliao de ques- l3 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tes tericas pertinentes ao campo da historiografia literria, bem como ao terreno da crtica no Brasil, marcada pela insistncia no descompasso das produes literrias brasileiras em relao s lite- raturas europias. E, uma vez que toda opo terica nos com- promete em atitudes prticas, o ponto de vista escolhido me le- vou a assumir o gesto propositivo de afirmar em relao aos textos no o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles efetivamente se realizou. Nesse gesto est implicada, portanto, uma perspectiva crti- ca em relao s abordagens totalizantes da literatura brasileira, uma perspectiva plural e mais arriscada da histria literria como representaes assumidamente fragmentadas e inacabadas ou, nas palavras de Siegfried J. Schmidt, como construes "to multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO, 1996, p. 116). E desse ponto de vista que proponho examinar a possibilidade de outras escritas da histria literria brasileira, alm das que vem sendo elaboradas a partir da idia de "formao" como um percurso evolutivo, relativamente contnuo, de estilos, formas e temas literrios ou, ainda, como superao da tradio. A reflexo pretendida implica, em sntese, afinidade com as principais vertentes da historiografia literria contempornea, com- prometidas com a redefinio dos paradigmas que sustentaram a historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de lite- ratura nacional, de histria e narrativa ficcional enquanto gneros estanques, de poca e de periodizao e, particularmente, a cate- goria dos textos cannicos, os chamados clssicos universais da literatura. So questes da teoria literria, inseparveis da historiografia, que o historiador contemporneo - compelido a problematizar o seu ofcio - deve incorporar na sua escrita. Duplo desafio, portanto: alm de uma inescapvel opo terica entre as diferentes concepes a respeito da histria, deve ao mesmo tem- po teorizar sobre as mudanas constantes dos padres estticos ou as vrias representaes do que chamamos literatura, pois do historiador se espera que assuma a responsabilidade crtica, explicitando seus pressupostos tericos e seus mtodos, revelan- do, at onde isso possvel, as marcas de sua subjetividade na construo das histrias que narra e problematiza. No caso dos crticos brasileiros, distinguimos aqueles que, em seus trabalhos de crtica historiogrfica, vm promovendo des- A fonnao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira locamentos importantes nos modos de percepo de tudo o que se compreendeu at ento como histria da literatura nacional, tanto no que se refere a uma suposta brasilidade perceptvel nos textos considerados quanto no que diz respeito a uma tambm presumvel continuidade de formas e estilos sucedendo-se numa relao linear de causas e efeitos. Antes, porm, de expor algumas propostas dentre as mais representativas de uma historiografia no apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crtica de suas prprias premissas, considero necessria uma breve nota sobre o s-entido da idia de "formao" e seus desdobramentos na historiografia literria moderna no Brasil, destacando-se os traba- lhos de Antonio Candido e Roberto Schwarz. o sentido da formao na historiografia de Antonio Candido Momento decisivo para a historiografia literria brasileira o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crtica de autores como Silvio Romero e Jos Verssimo, desenvolver conceitos fundamentais como os de sistema e formao literria, pilares de seu trabalho historiogrfico, construdo a partir da idia de que, como todo discurso, a histria literria brasileira consiste na construo poltica/ideolgica de um projeto mais ou menos consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e ins- tituies, interessados em solidificar a sua prpria literatura. Com o necessrio distanciamento em relao ao mecanicismo de algu- mas abordagens sociolgicas da literatura, o autor pretende, con- forme ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpreta- o dialtica", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vida artstica e literria nos seus diferentes momentos" (CANDIDO, 1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crtico dispe de um conjunto de princpios balizadores das anlises que empreender. Em linhas gerais, a noo de sistema desenvolvida pelo autor, sustenta-se na inter-relao dos trs fatores - produo, recepo e transmisso - que asseguram a formao e a continui- dade de uma tradio literria no pas. A respeito, escreve o autor, explicitando seu mtodo, que a mtua dependncia entre autor, obra e pblico interessa na medida em que "esclarecer a produo artstica", pois importa estudar as relaes da literatura com a 15 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 vida social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite per- ceber "o movimento dialtico que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidrio de influncias recprocas" (CANDIDO, 1976, p. 24). Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singu- lar "dissonncia" no conjunto de autores clssicos que procura- ram explicar o Brasil, orientados pelo comum propsito de apre- ender as "linhas evolutivas mais ou menos contnuas" do processo social e cultural do pas, matria do recente trabalho de Paulo Arantes sobre o sentido da idia de formao, "verdadeira obses- so nacional", na ensastica brasileira.! No ensaio em questo, . interessa ao autor traar a histria crtica de uma destacada linha- gem de "intrpretes do Brasil", iniciada pelos escritores romnti- cos e retomada por crticos do final do sculo XIX, como Silvio Romero, Araripe e Jos Verssimo, salientando-se a figura de Machado de Assis, e mais recentemente redefinida, a partir de novos princpios tericos, por Antonio Candido e Roberto Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradio, desse modo compreendida "no como peso morto, mas como elemento dinmico e irresolvido, subjacente s contradies contempor- neas" (ARANTES, 1997, p.34). Roberto Schwarz: tradio e modernidade - descompassos da cultura brasileira na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai empreender a reflexo sobre a obra de Machado de Assis, dando continuidade ao que permaneceu sugerido nas ltimas linhas do segundo volume da Formao da literatura brasileira. Escreve Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos da cultura brasileira, que a experincia da segregao entre as elites intelectuais do pas e as classes populares passou a ser per- cebida como um impasse - que inviabilizava a sintonia da nao com os pases europeus mais avanados - apenas a partir da me- tade do sculo XIX. 2 No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de Slvio Romero, em polmico e equivocado julgamento a respeito I ARANTES, Paulo Eduardo e ARANTES, Otlia Beatriz Piori. Sentido da formao. So Paulo: Paz e Terra, 1997. 2 SCHWARZ, Roberto. Naci- onal por subtrao. In: -. Que horas so? So Paulo: Cia das Letras, 1989. A fonnao. os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira de Machado de Assis. Na passagem em questo, o crtico e histo- riador evolucionista, equvocos parte, acusa no quadro intelec- tual brasileiro uma ciso social, um disparate: de um lado, uma pequena elite europeizada, distanciada do grosso da populao, sem outro talento seno o de "copiar"; de outro, a maioria inculta, produtores annimos do folclore, da arte popular. A cpia, o arre- medo, o pastiche seriam a conseqncia natural de uma produo intelectual realizada por escritores, polticos e estudiosos sem ne- nhuma relao com o mundo sua volta. Certo que o problema no poderia ser reduzido a um es- quema to simples como o exposto nessa descrio realizada pelo escritor, em que so apontados os efeitos de questes cujas razes foram apenas aludidas. A explicao para o descompasso cultural no interior da soci- edade brasileira e entre o pas e as naes centrais desenvolvidas no poderia ser de natureza racial, conforme propunha Slvio Romero; sem considerar os disparates das mesmas teorias raciais, basta a evidente constatao de quem imitava no caso no eram os mestios do povo, mas a elite branca, europeizada, como observa o autor de Que horas so? O pecado original, nas palavras de Roberto Schwarz, no residia na cpia, mas no fato de que s uma classe copiava. Slvio Romero v nos tempos coloniais um relativo espri- to de coeso nacional e atribui isso "hbil poltica de segregao" que nos mantinha num circuito de idias exclusivamente portugue- sas e brasileiras. Foi apenas depois com a vinda de D. Joo VI para o Brasil e, sobretudo, a partir do Imprio, que a cpia do modelo europeu e a distncia entre elite letrada e populao inculta passa- ram a ser percebidas como "disparate" ou "descompasso". O que sempre existiu - a imitao, a separao entre elite e classes popu- lares - desde os tempos da colnia, tomou -se um impasse, um dile- ma terico para as geraes de intelectuais a partir da metade do sculo XIX. Dilema terico que expressa, por sua vez, os impasses de natureza econmica, social e poltica do pas. Como a passagem da colnia a Estado autnomo no acarretou, no Brasil Imprio, uma real modificao da estrutura bsica caracterstica da antiga colnia, assentada na escravido e no latifndio, o contraste entre formas de vida do Brasil Colnia e formas modernas de civilizao burguesa, entre velhos princpios e as idias liberais apenas acen- tuou as dimenses de um problema j antigo. 17 18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Diante desse quadro, compreensvel que tudo o que signifi- casse moderno fosse, simultnea e paradoxalmente, desejado e rene- gado como ameaa estrangeira "coeso" e "identidade nacional". A tese da cpia cultural proposta por Slvio Romero surge como tentativa de explicar a discrepncia entre os dois Brasis. Evitando a imitao, estaria solucionado o problema, o pas se reconciliaria consigo prprio, a cultura nacional estaria salva. Mas esse, como se v, constitui um falso problema. A renncia cpia , na verdade, impensvel'e mesmo indesejvel; de fato, no so- mos atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque so- mos atrasados. A cpia no constitui necessariamente um valor negativo, menos ainda ela a causa de graves desigualdades soci- ais e culturais no interior de uma mesma sociedade. Mas essas, porm, so avaliaes possveis segundo uma perspectiva con- tempornea nossa, do sculo XX; juzos portanto que no esta- vam no horizonte de um autor do sculo passado, inspirado por teorias raciais e pelo darwinismo social, como o caso de Slvio Romero. Em linhas gerais, essa a leitura crtica de Roberto Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva poltica dos conflitos de classe, retoma o problema anunciado no sculo XIX. Roberto Schwarz: forma - expresso e matria social na obra de Machado de Assis Tradicionalmente, Machado de Assis considerado uma das raras excees na experincia literria nacional; escritor uni- versal - voltado para uma temtica centrada em problemas que afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - cons- truiu uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos modernos esquemas da forma narrativa contempornea ao es- critor do que da provinciana prosa de acentuada cor local. Esse aspecto do romance machadiano, porm, nem sempre foi consi- derado uma qualidade. Basta lembrar as antigas polmicas em torno do sentimento nacionalista, supostamente precrio e mes- mo ausente, na obra do escritor. Seguindo as propostas sugeridas pelo prprio Machado no clebre artigo "Notcia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo da fic- A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira o machadiana expresso na forma, no a forma como a enten- dem os formalistas, mas numa "forma-expresso" da estrutura do pas. O que significa essa "forma-expresso" para o crtico? O grande desafio para os escritores brasileiros do final do scclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a realidade nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Ado- tar o romance" implicava "acatar tambm a sua maneira de tratar as ideologias". O romance uma forma importada da Europa "cujos pressupostos, em razovel parte, no se encontravam no pas, ou encontravam-se alterados". Ora, o nico modo de ser verossmil- isto , de ser fiel nossa condio j que a "dvida externa nas letras", to inevitvel quanto nas demais esferas da sociedade, nos conduzia imitao de uma forma imprpria, inadequada para ex- pressar a realidade do pas - era explicitar essa impropriedade, essa inadequao na forma importada. E essa "faanha" coube a Macha- do de Assis que soube reiterar, em nvel formal, os deslocamentos de ideologias, prprias de nossa formao social, utilizando para isso, de modo consciente e crtico, a forma importada. Machado encontrou na stira e na ironia a forma adequada a uma nova mat- ria. Na segunda fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma forma brasileira verossmil filiando-se, como era inevitvel, s ten- dncias europias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras, Machado foi original porque soube imitar de modo criativo. O nacionalismo de Machado, portanto, no exclui a univer- salidade, presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como o caso de Memrias pstumas de Brs Cubas em que a indissolubilidade entre forma literria e matria social se revela mais explcita na prpria construo do enredo atravs do narrador. Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar que, por meio da atitude desabusada, prepotente e voluntariosa do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamen- to tpico da elite intelectual brasileira, da qual Brs Cubas fazia parte, Machado conseguiu revelar a realidade nacional utilizando uma forma universal importada. Brs Cubas representa o homem culto brasileiro que "dispe do todo da tradio ocidental", ado- tando a esse respeito uma atitude de superioridade irreverente e afetada, sem consistncia crtica. O cosmopolitismo de Brs Cu- bas no passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral que ostenta se mostra "uma espcie de pacotilha, na melhor tradi- 19 20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 o ptria, em que o capricho de Brs Cubas toma como provn- cia a experincia global da humanidade e se absolutiza". Brs um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo co- nhecimento acumulado, banaliza "todas as idias e formas dis- posio de um homem culto do tempo", substituindo-as constan- temente de acordo com as suas veleidades pessoais. Ora, a uni- versalidade da narrativa machadiana reside exatamente no fato de a forma romance utilizada desmascarar, na sua prpria constru- o, o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a proposta de Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador , ao mesmo tempo, tema (contedo) e princpio formal do romance; frmula que, presente na prosa machadiana da segunda e grande fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano, desprovido de credibilidade", um lugar no primeiro plano da lite- ratura contempornea universal, embora reconhecido apenas bem mais tarde e, ainda assim, em crculos restritos. 3 Machado teria encontrado, desse modo, a soluo para o problema apresentado h algum tempo em "Instinto de nacionalidade", conforme j indi- camos. Mas, como reiterou em vrios artigos, o crtico entende que o verdadeiro antagonismo reside nos conflitos de classe soci- ais, por sua vez refletidos e refratados nas formas literrias; se as causas dos impasses nas esferas cultural e literria so em essn- cia de natureza histrica, a crtica deve pr em relevo as relaes entre forma artstica e necessidade histrica. A insistncia de Roberto Schwarz na perspectiva sociolgica se contrape a algu- mas das recentes tendncias da crtica literria brasileira, mais afi- nadas com o pensamento desconstrutivista europeu. So vrios os textos em que o autor discute essa questo, reformulando o problema da "formao", central na obra de Antonio Candido. A propsito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louv- vel, na crtica brasileira; que o apreo pelo pensamento crtico das geraes anteriores, resgatado, claro, em novas bases, con- forme j apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a esse respeito. ainda Roberto Schwarz quem chama a ateno para a vida intelectual no pas, marcada pela ausncia de "um campo de problemas reais, particulares, com insero e durao histrica prprias, que recolha as foras em presena e solicite o passo adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele- 'As observaes de Roberto Schwarz sobre Memrias Pstumas de Brs Cubas, comentadas neste artigo, encontram-se em L'm mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. So Paulo: Duas Cidades, 1990. A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira vncia do problema da "formao em descompasso", conforme discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, com o olhar voltado para o que h de prprio e ajustado nos escritos brasilei- ros que pretendo circunscrever um campo de problemas crticos pertinentes ao conjunto da produo literria nacional e suas rela- es com o contexto mais amplo da literatura universal, assim denominada provisoriamente. Ao incorporar as abordagens crti- cas inspiradas na perspectiva da histria literria como represen- tao de uma tradio inventada, sempre contingente em relao a nossas concepes e a nosso presente, encaminho essa reflexo para uma outra direo, diversa e, em certa medida, divergente, en relao dos dois autores mencionados, cuja historiografia se enraza na idia de tradio como sistema mais ou menos coeren- te e coeso de obras e autores nacionais. Pressupostos da idia de "formao": recortes Em conhecido texto, tanto quanto polmico, Haroldo de Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos bsicos da Formao da literatura brasileira: momentos decisivos. Valen- do-se de tericos como Walter Benjamim e Derrida, entre outros, o crtico ops as noes de "constelao" e "disseminao" aos princpios de "sistema" e "origem", eixos da historiografia de Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam na afirmao de que a perspectiva histrica fundamentada na ori- gem, na suposio de um comeo no inventado ou deliberadamente construdo, corresponde a uma "viso substancialista da evoluo literria" correlata, por sua vez, a "um ideal metafsico de entificao nacional". Sem considerar as dife- renas entre a historiografia do sculo XIX e a proposta de Candido, ressalta o propsito comum, verificvel em todas elas, de estabelecer uma "tradio contnua" de "estilos, temas, formas ou preocupaes", o que leva o crtico a reduzir a concepo historiogrfica de Candido a mera reedio do modelo romntico de histria literria, "voltada para o desvelamento evolutivo- gradualista" da literatura nacional. Outro escritor foi mais conseqente na crtica dirigida Formao, sobretudo pelo xito em conciliar o respeito ao "mes- tre" (LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame da obra. Sbrio 21 22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 no tom e consistente na argumentao, Luiz Costa Lima inicia o ensaio com observaes sobre o que denomina de "eixos da ativi- dade crtico-literria no sculo XX" (LIMA, 1992, p.153), visan- do, a partir dessas observaes, situar no panorama contempor- neo o trabalho historiogrfico de Candido. Ou, nas palavras do ensasta, dirigir-se Formao indagando "como ela se localiza quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questo da especificidade da linguagem literria", "a relao da linguagem literria com a socie- dade" e "a idia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156). Submetendo ao crivo de uma leitura crtica passagens do prefcio segunda edio e o captulo terico-metodolgico da Formao, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia pa- recer "afastamento das histrias orientadas pela exclusividade do fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributrio (LIMA, 1992, p.156). Tarefa nada fcil, devemos reconhecer, a de se propor a crtica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros de seus pressupostos tericos e juzos de valor, ao eleger "vrios caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36). Ainda mais levando-se em conta a astcia de uma crtica que, longe de negar a subjetividade inerente ao seu exerccio, pelo contrrio, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsa- bilidade de suas escolhas, conforme atesta o pargrafo final do captulo introdutrio da Formao: Sob este aspecto, a crtica um ato arbitrrio, se deseja ser criadora, no apenas registradora. Interpretar , em grande parte, usar a capacidade de arbtrio; sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, definir o que se esco- lheu, entre outros. A este arbtrio o crtico junta a sua lingua- gem prpria, as idias e imagens que exprimem sua viso, recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39). Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passa- gens, uma atitude crtica, derivada "de uma concepo a-hist- rica da forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e de uma insustentvel dicotomia entre interpretao e conhecimento objetivo. Em outras palavras, a declarada subjetividade crtica no A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira se faz acompanhar de uma explicitao das teorias e mtodos adotados e, ao que se sabe, precisamente a teoria o elemento esclarecedor da "conduta interpretativa do crtico" (LIMA, 1992, p.157). Sendo assim, "o favorecimento da tolerncia metodolgica" (presumivelmente solidrio de uma atitude consciente de seus li- mites, derivados das idiossincrasias do crtico), ao contrrio do que poderia parecer, pretende na verdade fazer desaparecer as marcas da subjetividade inicialmente assumida e, no mesmo pas- so, legitimar a objetividade da crtica, uma vez colada ao seu ob- jeto, de fato e de direito, "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com leve ironia, descreve o impasse desse "crtico-caador": Atividade dirigida por valores, a cadeia de decises em que a crtica se insere - a cadeia formada por pressupostos tericos, operacionalizao metodolgica e pragmtica crtica - implica que seu agente no mais pode ser confundido com um caador que, em busca da caa, se orienta pelos rastros que a presa deixa. Ao crtico, assim como ao historiador, s cabe a analo- gia com o caador se se lembrar que um e outro no s perse- guem rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros ras- tros: os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158). 23 Alm da concepo a-histrica da forma, acima menciona- da, Costa Lima acusa um outro rastro na Formao, em sintonia com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "asse- gurado pelo tom descritivo da narrativa" (LIMA, 1992, p.160). Esses traos do autor na obra, longe de garantir objetivida- de, so antes reveladores dos inevitveis, incontornveis, juzos de valor. Isso porque "a estabilidade esttica" - ou viso a-hist- rica da forma - no se deveria apenas ao primeiro eixo da moder- na historiografia no sculo XX (a questo da especificidade da linguagem literria), mas a "uma concepo mais tributria de uma viso tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA, 1992, p.l59). Examinada a suposta evidncia da idia de sistema literrio, assegurada na volumosa descrio dos fatos literrios, Luiz Costa Lima lana a pergunta que Candido no fez, mas cuja resposta estaria diluda tanto na exposio de seus pressupostos quanto nos captulos dedicados histria dos "momentos decisivos" da 24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 formao literria brasileira: [ ... ] quo extensa dever ser a recepo para que se lhe tenha como dec1aradora de um sistema? Bastar uma recepo ates- tada para que o sistema se afirme em funcionamento? Se o fosse, a fama local de Gregrio no justificaria sua excluso. Se, portanto, no basta uma recepo localizada, qual a exten- so necessria? (LIMA, 1992, p.162). Na passagem da Formao, abaixo destacada por Costa Lima, renem-se os dois traos que confirmam "a articulao de- cisiva da Formao ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo da preocupao crtica contempornea, precisamente aquele que de- rivava da atitude dominante no sculo XIX" (LIMA, 1992, p.l64), a idia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assi- nala: '[ ... ] Os escritores brasileiros que [ ... ] lanaram as bases de uma literatura brasileira orgnica, como sistema coerente e no manifestaes isoladas' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, esto explcitos - embora no explicados nem assumidos pelo autor da Formao - os conceitos de coerncia eforma orgnica deriva- dos do funcionalismo antropolgico ingls. Costa Lima, apesar de no se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importncia decisiva desse legado na concepo de sistema" (LIMA, 1992, p.163) incorporada na historiografia de Candido. Em sntese, afir- ma o autor "que o decisivo na armadura terica da Formao menos a idia de articulao entre produo e recepo literrias do que sua extenso nacional e seu carter de coerncia" (LIMA, 1992, p.163), favorecendo a "coeso homogeneizante" na inter- pretao da histria da literatura brasileira. O fato de o barroco ter sido excludo da Formao se explica "no tanto porque sua circulao fosse drasticamente menor que a dos rcades, seno porque impede que se lanassem as bases de uma literatura brasi- leira orgnica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164). Tanto a excluso de Gregrio como a incluso dos rcades "s se explicam porque o peso decisivo recai na qualificao de sistema nacional" (LIMA, 1992, p.164). Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva representatividade de um sistema literrio, vejamos como o crti- co formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Cam- pos. Ao reivindicar o resgate do barroco, sua incluso no cnone, A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita das histrias literrias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversrio e, por esse motivo sobretudo, perde fora, em grande parte, o con- junto de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa no a questo, Tendo como alvo principalmente a idia de sistema, Haroldo de Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta deci- siva: o que se entende por nacional? Na esteira de Joo Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos lembrar que a stira barroca era prevista e codificada nos tratados poticos, o que "impediria, se no por vezo anacrnico, que se envolvesse a poesia de Gregrio em algum propsito nacional" (LIMA, 1992, p.165). Um outro problema, portanto, no centro da polmica sobre a formao da literatura brasileira e que gerou, assim como a ques- to do nacional, algumas respostas equivocadas, contra as quais se manifestaram outros crticos, alm dos aqui citados. Em rela- o ainda ao "seqestro do barroco", muito oportunamente es- creve Lgia Chiappini: A contradio bsica de Haroldo de Campos est em, ao mes- mo tempo, contestar a histria contnua, a tradio que Anto- nio Candido se props a perseguir nos momentos decisivos de sua constituio, e integrar a Gregrio de Matos que, no en- tanto, v como ruptura, Recusar como ideolgica essa tradio e, no entanto, querer inclu-lo nela. Trata-se, no mnimo de um equvoco. Gregrio s poderia entrar em um outro livro, no neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, no este (CHIAPPINI, 1992, p.175). Devemos ainda ressaltar o anacronismo muitas vezes no percebido por crticos de Antonio Candido, que, ao postularem a incluso de Gregrio de Matos na Formao, no se do conta dos princpios que abraam, julgando contradiz-los. Noes como uma suposta origem absoluta (que, alis, Candido no postulou) e uma periodizao tributria da concepo romntica retomam cena, comprometendo o adequado entendimento da Formao, apontando erros onde houve extrema coerncia em relao aos propsitos do autor, devidamente explicitados. A esse respeito, recorro mais uma vez s palavras esclarecedoras de Lgia Chiappini: 25 26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 "a origem no um problema para Antonio Candido, mas para seus crticos. O que lhe interessa no defender uma tradio hegemnica, mas entender a constituio de uma hegemonia, pro- jeto que ele explicita claramente para leitores que queiram enten- der" (CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro captulo, "Literatu- ra como sistema". No sendo a "origem" propriamente um problema, volta- mos ento ao que, ao lado da idia de formao, motivou este texto: a idia de sistema literrio nacional, preponderante nas his- trias de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questo bem mais complexa do que supe uma crtica apressada. Este e outros problemas a ele relacionados - como os vn- culos entre culturas literrias hegemnicas e perifricas - tm re- cebido da historiografia brasileira contempornea tratamentos dis- tintos, conforme o ponto de vista terico inseparvel, sempre, das escolhas e da sensibilidade do crtico para certos temas, autores e textos, e no outros. A essa altura j podemos perguntar se seria possvel, dentro do registro da formao, postular histrias da literatura que no impliquem a noo de sistema nacional coerente e orgnico. Ou ainda: possvel, desejvel escrever uma histria literria no propriamente desvinculada da idia de formao mas, simultnea e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando. Em outros termos: entendendo a formao da literatura bra- sileira no como percurso evolutivo de uma identidade suposta- mente essencialista e original (ou, no entender de Candido, como "continuidade ininterrupta de obras e autores" (CAND IDO, 1975, p.25), mas como construo discursiva de seus diversos intrpre- tes, representao at certo ponto inseparvel de seu prprio refe- rente, seria mais apropriado falar deformaes da literatura brasi- leira, do romantismo s mais recentes teorias da histria literria. A propsito, a idia de "formao de um sistema literrio", proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele prprio explicitara, com o projeto romntico de construo nacional e da literatura. Essa noo, como sabemos, fez escola, inaugurando uma considervel tendncia do pensamento crtico brasileiro no sculo XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo Arantes, "tirar as devidas conseqncias do roteiro traado por Antonio Candido, reapresentando o problema da formao como A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira uma questo material de acumulao da experincia intelectual nas condies francamente proibitivas da dependncia" (ARANTES, 1997, p.32-33). Desde ento, "o sentimento acabrunhador da posio em falso de tudo o que concerne cultu- ra brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tnica de toda a crtica brasileira solidria com o autor das "idias fora do lugar". 27 Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequao que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso trato enviesado com as idias" (ARANTES, 1997, p.33) como uma das possibilidades de se reapresentar o problema da forma- o literria brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasilei- ros, motivadas por outro sentimento - o de que, em matria de prosa ou poesia literria, nem sempre a crtica comparativa pro- voca sensao de descompasso ou desacerto, a menos que se iden- tifique o historiador da literatura brasileira ao historiador da na- o brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laos indissociveis entre literatura e sociedade. Porque, no redundante nem excessivo reiterar, o que na verdade est em pauta , antes, uma questo de perspectiva teri- co-poltica, em jogo nas diversas propostas crticas da produo literria brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resul- tar de uma outra convico: a de que o sentimento de sermos ainda uma cultura perifrica em desacerto com a cultura hegemnica central - ou "uns desterrados em nossa terra", con- forme clebre formulao de Srgio Buarque de Holanda, no pa- rgrafo de abertura de Razes do Brasil (1995, p.31) - no seria privilgio do brasileiro, mas sentimento comum s culturas mo- dernas, margem dos grandes centros de deciso poltica e eco- nmica, que vem se aprofundando na mesma proporo dos impasses e contradies da sociedade contempornea. Na impossibilidade de se sentir em casa, familiarizado com o que seria prprio de sua cultura, na impossibilidade de superar o desterro ou acertar os ponteiros do relgio nacional, por que no assumir e incorporar a estranheza que nos constitui? Por que no acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - des- de o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirma- o desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se traduzido como expresso de uma melanclica ou nostlgica bus- ca do que nunca teria ou ter existido? 28 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 com o sentimento paradoxal de estranha familiaridade que assumimos identidades que no nos pertencem, assim, poe- tas, prosadores e (por que no?) historiadores deveriam narrar suas histrias como se fossem um outro, com o olhar oblquo de quem, no se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem diante de si, precisa criar as conexes, os vnculos, ali onde as lacunas, as fraturas no permitem uma imagem coesa e coerente. A histria da literatura, percebida como busca criativa de um sen- tido para as experincias de uma coletividade, solicitaria do histo- riador o mesmo gesto de deslocamento, de pr-se no lugar do outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibi- lidade de apreenso totalizante e absoluta da experincia literria, esse historiador sustentaria na sua prpria voz as mltiplas e dis- persas vozes da cultura, construindo, no lugar das histrias tra- dicionais teleolgicas, narrativas caleidoscpicas, micro-histri- as, anotaes margem. Consideraes finais Gostaria de encerrar essas consideraes/recortes evocan- do dois autores argentinos que, em seus ensaios crtico-poticos sobre a histria e a tradio literria de culturas margem, reve- lam percepes inteiramente novas para quem havia se habituado a pensar o problema como impasse, beco sem sada, ou ainda como contradio a ser, num futuro incerto, superada. De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhe- cidos - "O escritor argentino e a tradio" (BORGES, 1998) e "Sobre os clssicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles no se apresentaram casualmente minha lembrana. Ao contr- rio, esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem qualquer veleidade terica definitiva, produzidos, pois, de um outro lugar - no propriamente acadmico/disciplinar - pareceram-me, por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma palavra outra que no as que costumam soar dos lugares j conhe- cidos e percorridos. Como de costume, em sua prosa quase austera em contras- te com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira principais contradies implcitas na noo de obras clssicas. Cls- sico, nos lembra o autor, " aquele livro que uma nao, ou um grupo de naes, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas pginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passvel de interpretaes sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Con- tingentes e, em certa medida, imponderveis, essas decises variam tanto quanto as formaes histricas sobre as quais se erigiram. Levando mais longe a provocao, relembra que, se houve um tempo em que "acreditava que a beleza era privilgio de uns poucos autores", agora sabe "que comum e est a nossa espreita nas casuais pginas do medocre ou em um dilogo de rua" (BORGES, 1999, p.168). At aqui nada de muito novo nos re- velado, no fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as quais relativiza julgamentos consagrados pela crtica a respeito de um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir: Para alemes e austracos, o Fausto uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tdio, como o segun- do Paraso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de J, a Divina Comdia, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, salvo que diferir do presente. Uma prefe- rncia pode muito bem ser uma superstio (BORGES, 1999, p.l68). Sendo assim, a "beleza" de um texto no se revela na forma, na estrutura, na imanncia textual, nem tampouco em qualidades vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existncia de obras clssicas eternas. Essa "beleza" antes resultado de um encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glria de um poeta depende, em suma, da excitao ou da apatia das geraes de homens annimos que a pem prova, na solido de suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168). Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar ainda o deslocamento radical da perspectiva centrada na obra (e, portanto, no autor) para uma direo, seno oposta, divergente, destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessidade ine- vitvel de referncias e sua extrema precariedade, construdas que so sobre o movedio, incerto territrio do tempo. Movimento divergente tambm no sentido de que desloca o foco para outras, 29 30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 diversas, diferentes literaturas, por ns no apenas desconheci- das, mas quase sempre sequer suspeitadas. Num gesto de sincera modstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento das letras malaias ou hngaras seja completo, tenho certeza de que, se o tempo me propiciasse a ocasio de seu estudo, encontraria nelas todos os alimentos que o esprito requer" (BORGES, 1999, p.l68). Concluindo, na questo dos clssicos interferem as barrei- ras lingstica, poltica ou mesmo geogrfica, obrigando aqueles que da literatura se ocupam a admitir as limitaes de seus parmetros de "beleza", que so tambm as da coletividade de que fazem parte. Afinal, a preferncia por determinados autores e textos tanto uma questo pessoal quanto das "geraes de ho- mens" que, "urgidas por razes diversas, lem com prvio fervor e com uma misteriosa lealdade" os livros tornados clssicos (BORGES, 1999, p.169). Isso posto, poderamos pensar que Borges, um iconoclasta, desconsidera ou minimiza a importncia dos clssicos, quando o que se passa no exatamente assim. Em outro texto, tratando do escritor argentino e da tradio, afirma com veemncia o pertencimento cultura ocidental do escritor argentino e de todos os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998). Como no caso dos clssicos, a tradio ocidental do outro/ nosso colonizador tambm "um gosto adquirido", incorporado e transformado por sua vez em outra tradio, nossa, prpria, e do outro simultaneamente. Numa certa medida, no haveria como escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o escritor margem" ao beco sem sada das imitaes mais ou me- nos bem feitas do modelo europeu ou do sonho romntico de uma literatura autntica, surgida de um outro lugar, de uma ptria de origem imaculada, no de outros povos mas prpria supostamen- te. Estaramos assim ligados cultura ocidental por destino ou fatalidade histrica e portanto no teramos escolha. Por outro lado, a condio de culturas e tradies mar- gem (uma vez que se expressam nos limites de um centro, to imaginado quanto real, mas em relao ao qual no se percebem to estreitamente vinculadas que no possam com ele romper sem que, com esse gesto, se sintam rfos de origem e de valores par- tilhados) proporciona inesperadas possibilidades de transgredir, inovar sem a imposio de uma "devoo especial" diante de toda A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira a cultura ocidental herdada. "Creio que os argentinos, os sul-ame- ricanos em geral ( ... ) podemos lanar mo de todos os temas eu- ropeus, utiliz-los sem supersties, com uma irreverncia que pode ter, e j tem, conseqncias afortunadas", o que nos diz Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser euro- peu sendo argentino, descartando com essa atitude todos os luga- res comuns da velha questo sobre o local e o universal. Em outros termos, essa a perspectiva de Ricardo Piglia. "O olhar oblquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as qua- lidades do escritor do "prximo milnio", conforme uma "sexta proposta" para a literatura, imaginada pelo autor de Nome falso- Homenagem a Roberto Arlt, para ser acrescentada s de talo Calvino j conhecidas. O "deslocamento" a que se refere Piglia (2001) - da periferia para o centro - no mais diz respeito ao mapeamento geogrfico das culturas hierarquizadas. No seria esse o sentido do gesto prprio do escritor " margem". Piglia fala de um lugar especfico - "do subrbio do mundo" - verdade, mas para mostrar que esse o lugar da linguagem, ou da literatura, nesse caso tomadas sinnimas. A verdade tem a estrutura de uma fico de onde outro fala. Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que sempre outro o que vem falar. "Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre h outro a. Esse outro aquele que tem que saber ouvir para que isso que se conta no seja uma mera informao e tenha a forma da expe- rincia. Parece-me, ento, que poderamos imaginar que h uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria, ento, a distn- cia, o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale tambm na fronteira, naquilo que se ouve, naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3). Creio que desse lugar distanciado em relao prpria palavra, quase sempre cristalizada, que o historiador da literatura libertaria outros sentidos para a histria que narra, libertaria a ver- dade da correspondncia, no limite impossvel, com os fatos, apro- ximando-se do narrador ficcional na medida em que cede espao para a entrada em cena do outro que nos constitui. O historiador contaria no exatamente o que aconteceu mas, como o poeta! prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ainda, como quer 31 32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Piglia, "O ponto cego da experincia, que quase no se pode trans- mitir", a menos que se "suponha uma relao nova com a lingua- gem dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2). Referncias ARANTES, Otlia Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formao: trs estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lcio Costa. So Paulo: Paz e Terra, 1997. BORGES, Jorge Luis. O escritor argentino e a tradio. In: --o Obras completas. So Paulo: Globo, 1998, p.288-296, V.I. ---o Sobre os clssicos. In: --o Obras completas. So Paulo: Globo, 1999, p.167-169, v.2. CAMPOS, Haroldo de. O seqestro do barroco na fomwo da literatura brasileira: o caso Gregrio de Mattos. Salvador: Fundao Casa de Jorge Amado, 1989. CANDIDO, Antonio Formao da literatura brasileira: momentos decisivos. 2 v. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1975. CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: -. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histria literria. So Paulo: Editora Nacional, 1976, pp. 17-39. CHIAPPINI, Ligia. Os equvocos da crtica Formao. In: D'INCAO, Maria Angela & SCARABTOLO, Elosa Faria (Orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. So Paulo: Companhia das Letras, Instituto Moreira SaBes, 1992, p.170-177. LIMA, Luiz Costa. Concepo de histria literria na Formao. D'INCAO, Maria Angela & SCARABTOLO, Elosa Faria (Orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Condido. So Paulo: Companhia das Letras, Instituto Moreira SaBes, 1992, p.153-169. OLlNTO, Heidrun Krieger. (org.) Histrias de literatura. As novas teorias alems. So Paulo: tica, 1996. A formao, os deslocamentos: modos de escrever a histria literria brasileira PIGLlA, Ricardo. Uma propuesta para el nuevo milenio. Margens - Caderno de Cultura, Belo Horizonte, Mar deI Plata, Buenos Aires, n.2, out. 2001. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. So Paulo: Duas Cidades, 1977. --o Nacional por subtrao. In: --o Que horas so? So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 29-48. --o Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. So Paulo: Duas Cidades, 1990. 33 1 Cf. ANDERSON, Benedict. Nao e conscincia nacional. Trad. de Llio Loureno de Oliveira. So Paulo: tica, 1989. 35 Antonio Candido e o projeto de Brasil Regina Zilberman (PUC-RS) Mas olhemos antes, em sua generalidade, a Formao da litera- tura brasileira. O livro, fundamental como poucos outros sero em nossa cultura - do porte, digamos, de Um estadista do Imp- rio, Casa-grande e senzala, Razes do Brasil -, , antes de mais nada, uma histria do Brasil. Mas uma histria que se desenrola numa regio mental diferente. Trata-se do Brasil pensando a si prprio. O monlogo interior do Brasil. Antonio Callado No estudo sobre o que chama de comunidades imaginadas, Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regi- es do globo terrestre, se constitui o sentimento de nao ou a conscincia nacional. 1 Se, na Europa, a introduo da imprensa fra- turou a unidade do latim, promoveu a ascenso das lnguas vemculas e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador da Igreja, na Amri- ca o processo foi distinto. Nesse continente, a conscincia nacional associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento de uma sensibilidade singular, conforme a qual as pessoas geradas no Novo Mundo comearam a se perceber vinculadas ao espao natal, a se entender desde uma noo de pertena terra de origem, a qual desejaram transformar em nacionalidade. Anderson indica que, na Europa da imprensa nascente, houve a territorializao da lngua, que fragmentou a unidade at ento garantida pela f e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cu- nho "nacional", condio que garantiu sua permanncia na Idade Moderna. Na Amrica, talvez seja possa afirmar que a "territorializao" foi literalmente telrica, graas assimilao 36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 entre o espao e o sentimento suscitado por ele. Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a associao entre nacionalidade e conquista do territrio tenha se dado de modo mais completo. Ainda que a independncia tenha envolvido a rea ocupada pelas treze colnias originais, a expan- so na direo do Ocidente j se anunciava no sculo XVIII; e, na primeira metade do sculo XIX, o pas incorporava a Louisiania, disputava o Texas e avanava clere rumo conquista da regio junto orla do oceano Pacfico. A Doutrina Monroe, ambgua aos olhos atuais, significou, em 1823, uma tomada de posio poltica que tinha como referncia o desenho geogrfico do Estado que se apresentava populao norte-americana. Outros povos elegeram frmulas distintas, sem abrir mo da relao entre nacionalidade e espao fsico. Alguns colocaram a literatura na funo de intermedirio, transferindo-lhe a tarefa de representar o sentimento da nacionalidade que se definia por um apreo especial conferido ptria, local de nascena e perma- nncia. No Brasil, o processo tomou configurao particular, pois, mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consci- ncia nacional, coube literatura substitu-lo, tomar seu lugar e constituir, ela mesma, a encarnao do nacional. No foram os tericos e militantes da Independncia que delegaram literatura aquela misso, pois a tarefa definiu-se algu- mas dcadas aps a separao da metrpole. Foi preciso, inicial- mente, suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, de- pois apear o imperador do poder e ento buscar na histria os dados que ajudariam a encorpar a conscincia da nacionalidade. que essa no podia se construir revelia das relaes mantidas, desde o perodo colonial, com a Metrpole, de modo que se fez custa da conciliao entre separatismo e aceitao da dependn- cia econmica e cultural. O aparecimento, em 1838, de instituies como o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, modelado conforme o de Pa- ris, colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o fato de que, no comeo da dcada de 1840, seus membros ainda buscassem frmulas que ensinassem "Como se deve escrever a histria do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e ven- cido, em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemo Carl F. Philip Antonio Candido e o projeto de Brasil 2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a Histria do Brasil. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro 6 (24) : 389 - 411. Janeiro de 1845. Cf. igualmente ZILBERMAN, Regina Romance histrico, histria romanceada. In: . AGUIAR, Flvio; MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom; V ASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Org.). Gneros de fronteira. Cruzamentos entre o histrico e o literrio. So Paulo: Xam, 1997. J Cf. DENIS, Ferdinand. Resumo da histria literria do Brasil. Trad. e notas Guilhermino Cesar. Porto Alegre: Lima, 1968. Cf. GARRETT, Almeida. Bosquejo da Histria da Poesia e Lngua Portuguesa. In: _. Parnaso Lusitano. Paris: J. P. Aillaud, 1826. 4 SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. "Bosquejo da histria da poesia brasileira." In: ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O bero do cnone. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. p. I O. Originalmente publicado em Modulaes poticas. Rio de Janeiro: Tipografia Francesa, 1841. von Martius, sugestivo das dificuldades experimentadas por aque- le colegiado, numa poca em que a autonomia poltica parecia assegurada. 2 A mesma dcada de 40 do sculo XIX presenciou fenme- no interessante: se ainda era preciso estabelecer parmetros para a redao da histria do Brasil, que, da sua parte, no podia evitar a afirmao da presena e influncia portuguesa, a histria da lite- ratura, por outro lado, j propunha algumas formulaes bem de- finidas. As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na trajetria literria que o pas parecia dispor: em 1826, tanto o francs Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almeida Garrett, am- bos residentes na ocasio em Paris, conferiam detida ateno aos poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusi- tanos. 3 Mas os brasileiros no demoraram a se manifestar, valen- do a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa Silva,j ento membro do Instituto Histrico e Geogrfico Brasi- leiro, redigia o "Bosquejo da histria da poesia brasileira", bas- tante calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ainda as- sim, confiante de que ''j possuamos uma literatura, seno legi- timamente nacional, - que raras o so -, ao menos em parte",4 sintoma de que igualmente contabilizvamos um passado e con- sistamos uma nao. A literatura corporificou doravante a nao, respondeu por ela e prestou contas, em nome da autonomia e da auto-suficin- cia, ausente talvez em outros setores da vida pblica e social. Os historiadores da literatura converteram-se em avalistas da nacio- nalidade, o que, se, de um lado, aumentou sua responsabilidade, de outro, afianou a notoriedade que alcanaram, bem como sua insero nos aparelhos de Estado: no sculo XIX, o Colgio de Pedro 11 e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; no sculo XX, a universidade, onde exercem seu ofcio. A histria da histria da literatura , pois, a da trajetria da busca, encontro e afirmao da nacionalidade, expressa e materi- alizada pelas obras que formam aquele acervo. Antnio Candido situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contra- dies, indicando, por extenso, as alternativas que se abrem ao pesquisador a partir do modo como desempenhou sua funo. 37 38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 1. Uma histria de formaes Quando publicou, em 1959, a Formao da literatura bra- sileira: momentos decisivos, Antonio Candido j tinha percorrido os caminhos da histria da literatura, matria de sua Introduo ao mtodo crtico de Slvio Romero, de 1945, e de sua participa- o, com o captulo "O escritor e o pblico", no projeto encabe- ado por Afrnio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O crtico literrio talvez fosse mais notrio, graas atuao na re- vista Clima, no comeo da dcada de 1940, e nos jornais Folha de So Paulo, Dirio de So Paulo e Estado de So Paulo (cujo famoso Suplemento Literrio ajudou a planejar e a manter), nos anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Brigada ligeira, de 1945, e O observador literrio, de 1959. 5 Quando publicado, "Formao da literatura brasileira: momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais ex- tenso e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento da tradio da literatura brasileira, com nfase na documentao dos sculos xvrn e XIX, citada ao longo dos dois volumes do livro. Candido costuma falar com certa modstia da obra, atribuindo sua feitura encomenda do editor Jos de Barros Martins, que o encarregara de elaborar "uma histria da literatura brasileira, aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a di- vulgao sria e o compndio", aguardara pacientemente "nada menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado, portador de um ttulo no muito usual nos meios literrios. 6 Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso Furtado publicava a Formao econmica do Brasil e que, na dcada anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Jnior editara Formao do Brasil contemporneo: colnia, enquanto Nelson Werneck Sodr, em 1944, escrevera e publicara, pela co- leo Documentos Brasileiros, da Jos Olympio, a Formao da sociedade brasileira. Um ano antes do aparecimento da Forma- o da literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lanara Os donos do poder, cujo subttulo informava tratar a obra da "For- mao do patronato poltico brasileiro". O captulo das "formaes" congregava importantes inte- lectuais e pesquisadores do Brasil at o princpio da dcada de 60, que, por meio do ttulo de seus livros, confessavam determi- S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa; SCARAB6TOLC, Elosa Faria (Org.). Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios sobre Antonio Candido. So Paulo: Companhia das Letras; Poos de Caldas: Instituto Moreira Salles, 1992. 6 CANDIDO, Antonio. Prefcio da la edio. In: ___ o Formao da literatura brasileira. Momentos decisivos. 2. ed. revista. So Paulo: Martins, 1964. V. I, p. 13. Antonio Candido e o projeto de Brasil 7 IGLSIAS, Francisco. Introduo. In: FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1963. 8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. El nacimiento de la tragedia. Introduo, traduo e notas Andrs Snchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998. 9 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. La genealoga de la moral. Introduo, traduo e notas Andrs Snchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998. nada afinidade intelectual entre si. No prefcio Formao econmica do Brasil, Francisco Iglsias destaca que, ainda que o autor do livro, Celso Furtado, fosse economista, a atitude que assume na redao da obra a do historiador. O mesmo atributo confere Iglsias a Caio Prado Jnior, que, em 1945, escreve a Histria econmica do Brasil. Nesse caso, destaca que o trabalho de Prado Jnior importa sobretudo para a histria, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista talvez desejasse ser acolhido pelos economistas.? A observao de Iglsias indica como o termo "formao", presente direta ou indiretamente nos ttulos, vincula-se ao mbito da histria, apre- sentando-se como uma das facetas da investigao das genealogias. O estabelecimento das "formaes" uma maneira de fazer histria, que, desde logo, nega uma tendncia do gnero, a de buscar as origens ou o ato primordial da fundao. Esse procedi- mento vigorou no sculo XIX, sobretudo quando se estabilizaram as histrias nacionais, caracterizadas pelo esforo de fixar o mo- mento, ou a data, de nascimento da ptria. Aceito o episdio inici- al, estruturava-se a cronologia, contnua e ascendente, na direo do aperfeioamento das marcas iniciais e diferenciadoras, que vi- riam distinguir e assegurar o perfil nacional. O sculo XIX mostrou-se prdigo no que diz respeito a histrias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas histrias da literatura. Tambm essas movimentavam-se na busca dos incidentes fundadores, a gnese mtica, a partir da qual se construa uma tradio; marcada por especificidades e diferenas. O pensamento romntico, valorizando as origens e a primitividade, colaborou para fundamentar teoricamente a historiografia da lite- ratura, que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobre- tudo graas sua aliana com a escola e o ensino. N a passagem do sculo XIX para o XX, pensadores como Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo da histria, de um lado, entendendo o nascimento como um evento consagrador, e no como manifestao de primitividade inacabada e imperfeita, de que exemplo seu estudo sobre a tragdia grega;8 de outro, valo- rizando a pesquisa em nome das genealogias, momento de revela- o, compreenso e anlise da natureza dos temas e objetos que vm a ser matria da reflexo do filsofo. 9 A pesquisa focada na genealogia privilegia o comeo, acom- 39 40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 panhando a transformao, e no sua evoluo. S que o comeo mvel, porque corresponde ao tempo em que a investigao inicia, ocasio escolhida e fixada pelo pesquisador, que a elege em sintonia com o tema a estudar e a perspectiva a assumir. Se o tema perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o trabalho executado, passando, doravante, um a depender do ou- tro. O ngulo metodolgico adotado faz com que o tema dependa do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas for- mulaes apresentadas. O modo como Antonio Candido lida com a formao da literatura brasileira guarda afinidades com essa proposta de se fa- zer histria, cujo resultado permitiu-lhe, por extenso, refletir so- bre a sociedade brasileira a partir de paradigmas que suplantam as limitaes impostas pela tica romntica. 2. Formao e sistema Candido explica o entendimento da noo de formao na introduo de sua obra, dividida em quatro captulos. O primeiro comea por uma tomada de posio, estando declarado no par- grafo de abertura que" este livro procura estudar a formao da literatura brasileira como sntese de tendncias universalistas e particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor com- preender o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifes- taes literrias" e "literatura propriamente dita", sendo essa considerada "um sistema de obras ligadas por denominadores comuns".11 Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de que os textos literrios esto interligados garante a identificao do sistema. A literatura no se confunde com a obra; pelo contr- rio, ultrapassa-a, constituindo uma armao que acolhe ou rejeita criaes distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrio no es- gota, porm, a de sistema, que transcende o universo arts- tico, ao incluir um de sujeitos e de concepes vigentes no meio onde a criao individual aparece. Eis a natureza dos deno- minadores comuns, assim discriminados pelo Autor: Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (ln- gua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e 10 CANDIDO, Antonio. Op. cit. p.25. 11 Id. p. 25. nfases do A. Antonio Candido e o projeto de Brasil 12 Id. p. 25-26. 13 CANDIDO, Antonio. "A literatura e a vida social". In: . Literatura e sociedade. Estudos de teoria e histria literria. So Paulo: Nacional, 1965. p. 27. nfases do A. 14 Cd. JAKOBSON, Roman. Lingstica e potica. In: _. Lingstica e comunioao. 2. ed.Trad. Isidoro Blickstein e Jos Paulo Peso So Paulo: Cultrix, 1969. p. 123. psquica, embora literariamente organizados, que se manifes- tam historicamente e fazem da literatura aspecto orgnico da civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um con- junto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em es- tilos), que liga uns a outros. O conjunto dos trs elementos d lugar a um tipo de comunicao inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ngulo como sistema simblico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivduo se transfor- mam em elementos de contato entre os homens, e de interpreta- o das diferentes esferas da realidade. 12 Candido refere-se a trs elementos - sumariamente resumi- dos ao produtor literrio, ao conjunto de receptores, e ao meca- nismo transmissor, a linguagem - que possibilitam a uma obra literria aparecer e amalgamar-se a um processo de comunicao interpessoal. Percebe-se desde logo que o sistema conta com, pelo menos, quatro fatores, pois um deles, a linguagem, definida de modo muito amplo no excerto citado, inclui tanto um suporte material, que varia segundo sua especificidade, quanto um cdigo virtual. No ensaio, datado de poca aproximada, "A literatura e a vida social", Candido insiste no modelo tridico, referindo-se aos "trs momentos indissoluvelmente ligados da produo, e [que J se traduzem, no caso da comunicao artstica, como autor, obra, pblico."13 Trata-se, porm, de uma simplificao de sua intuio metodolgica, que, de certo modo, condiz com o modelo preferi- do pela teoria da comunicao, formado por seis elementos em permanente integrao e comutao: 14 contexto emissor ou remetente mensagem ou obra canal cdigo recebedor ou desti- natrio Na perspectiva de Candido, esse modelo, ainda que orgni- co, no esttico, mas dinmico, j que a interao entre os fato- 41 42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006 res da comunicao aciona e anima o sistema. Alm disso, confere papel categrico ao pblico, noo coletiva que abriga os desti- natrios das manifestaes dos produtores literrios. Por ltimo, materializa o significado da formao, pois essa somente se concreti- za quando esto presentes os sujeitos, os meios e as intenes artsti- cas que, conjugados, mobilizam-se para prover de cultura e de litera- tura a um determinado ambiente ou cenrio geogrfico. No Brasil, segundo Antonio Candido, "isto ocorre a partir dos meados do sculo XVIII, adquirindo plena nitidez na primei- ra metade do sculo XIX": 15 com os chamados rcades mineiros, as ltimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras for- mando conjuntos orgnicos e manifestando em graus variveis a vontade de fazer literatura brasileira. 16 Amparado na noo de sistema, Candido pode enraizar a formao num determinado tempo e em certo espao, liberando- se dos atos fundadores, dos atestados de nascimento e de batis- mo, das manifestaes isoladas, dos voluntarismos individuais. A formao no constitui processo abstrato, nem o sistema opera no vcuo, j que inclui, como se fosse um stimo fator, uma dada inteno - no caso, a vontade de fazer literatura brasileira. O his- toriador da literatura retoma ao ponto de onde saram os pesqui- sadores que o antecederam, para oferecer sua interpretao dos acontecimentos. O sistema pode no ter incio, mas dispe de uma finalidade, matria principal do projeto da historiografia literria brasileira. 3. Incio e projeto Em 1996, Antonio Candido publicou uma Iniciao lite- ratura brasileira, resumo originalmente destinado a fazer parte de obra coletiva a ser publicada na Itlia "no quadro das comemo- raes do 5 Centenrio do descobrimento da Amrica" .17 A co- letnea programada no se concretizou, o autor conservou o ori- ginal at decidir lan-lo "como texto interno da nossa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo", com o intuito de "oferecer aos jovens da Casa uma esp- 15 CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira. V. I, p. 27. 16 Id. p. 27. 17 CANDIDO, Antonio. Nota prvia. In: _. Iniciao literatura brasileira. 3. ed. So Paulo: Humanitas, 1999. p. 9. Antonio Candido e o projeto de Brasil I8 Id. ibid. 19 CANDIDO, Antonio. Apresentao. In: _./nicillo literatura brasileira. p. 11. 20 Id. p. 12. 21 Id. p. 13. 22 Id. p. 13. cie de aide mmoire que esclarea o desenho geral da literatura brasileira e sirva de complemento a textos mais substanciosos."18 Mais uma vez a modstia da apresentao no faz jus ao texto, que, ao substituir a "formao" pela "iniciao", retoma pontos fundamentais da obra de 1959. O primeiro deles aparece na introduo, em que o autor observa, primeiramente, a pertena da literatura do Brasil s "do Ocidente da Europa". A seguir, lem- bra que, no nosso caso, "o conceito de 'comeo' nela bastante relativo", porque, ao contrrio do que ocorreu com as "literatu- ras matrizes" (como a portuguesa, em relao brasileira), 19 no houve uma paulatina e simultnea constituio da lngua, da lite- ratura e da sociedade. Na Amrica, deu-se o imediato e cabal trans- plante de uma tradio literria j existente: Assim, a literatura no 'nasceu' aqui: veio pronta de fora para transformar-se medida que se formava uma sociedade nova. 20 A seguir, o autor completa e explcita o paradoxo: Num pas primitivo, povoado por indgenas na Idade da Pedra, foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a epsto- la erudita, o sermo e a crnica dos fatos. 21 Alm de paradoxal, o processo tem um significado ideol- gico que evidencia o papel exercido pela literatura durante a colo- nizao e a trajetria subseqente da sociedade brasileira: A histria da literatura em grande parte a histria de uma imposio cultural que foi aos poucos gerando expresso lite- rria diferente, embra em correlao estreita com os centros civilizadores da Europa. 22 A concluso', surpreendente pela convico, motiva a ne- cessidade de explicar o sentido da palavra "imposio": Esta imposio atuou tambm no sentido mais forte da pala- vra, isto , como instrumento colonizador, destinado a impor e manter a ordem poltica e social estabelecida pela Metrpole, atravs inclusive das classes dominantes locais. Com efeito, alm da sua funo prpria de criar formas ex- 43 44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 pressivas, a literatura serviu para celebrar e inculcar os valo- res cristos e a concepo metropolitana de vida social, conso- lidando no apenas a presena de Deus e do Rei, mas o mono- plio da lngua. Com isso, desqualificou e proscreveu poss- veis fermentos locais de divergncia, como os idiomas, crenas e costumes dos povos indgenas, e depois os dos escravos afri- canos. Em suma, desqualificou a possibilidade de expresso e viso-de-mundo dos povos subjugados. Essa literatura culta de senhores foi a matriz da literatura brasileira erudita. 23 Rejeitando, por outra via, o conceito de fundao ou come- o mtico, tal como fizera na Formao, Candido, na Iniciao, reitera o carter motivado e pragmtico que acompanha a presen- a e a ao da literatura no espao americano. Mais explicitamen- te materialista que nos anos 50, no tem iluses quando ao papel que exercem os aparelhos culturais e a tradio literria no pro- cesso de ocupao e colonizao do Novo Mundo. Contudo, no se deixa levar pela perspectiva reducionista, tratando de evidenci- ar o modo dialtico com que se d o desenvolvimento da literatu- ra nas condies impostas pelo meio - fsico, econmico, social- original. Eis por que lembra que cabe "discemir na literatura bra- sileira um duplo movimento de formao", decorrente da ao de dois fatores diversos que requereram harmonizao: de um lado, a necessidade de converter a realidade observada, diferente da que caracterizava a literatura europia, em tema artstico, o que significou inserir o novo no corpo do tradicional; de outro, a ne- cessidade de alterar as formas convencionais, para que tivessem condies de absorver os dados locais, o que significou adaptar o velho s formulaes do at ento desconhecido. O jogo que se estabelece determina a permanente e irremovvel tenso experimentada pelos produtores literrios bra- sileiros, que se expressam com mais intensidade medida que o sistema se consolida. Esse adquire forma a partir da segunda me- tade do sculo XVIII, reproduzindo-se na Iniciao o recorte his- trico proposto na Formao, agora com nome e sobrenome, pois o perodo designado "era de configurao do sistema liter- rio", antecedido pela "era das manifestaes literrias" e suce- 23 Id. p. 13. dido pela "era do sistema literrio consolidado" .24 Sistema, por !4 Id. p. 14. Itlicos do A. Antonio Candido e o projeto de Brasil 25 Id. p. 15. 26 Em "Literatura e desen- volvimento", Candido vale-se mais uma vez da triplice repartio paraentendere descrever a escala de re-presentao do subdesen- volvimento pela literatura brasileira. Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e desen- volvimento. In: _. A educao pew noite & outros ensaios. So Paulo: tica, 1987. 27 Cf. VERSSIMO, Jos. Histria da literatura bra- sileira. De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).4. ed. Braslia: Ed. da Universidade de Braslia, 1963. sua vez, recebe definio ligeiramente diversa, ainda que o pensa- dor no resista a defini-lo conforme um modelo tridico: Entendo aqui por sistema a articulao dos elementos que cons- tituem a atividade literria regular: autores formando um con- junto virtual, e veculos que permitem o seu relacionamento, de- finindo uma "vida literria": pblicos, restritos ou amplos, ca- pazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas circulem e atuem; tradio, que o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionamento como exemplo ou justifica- tiva daquilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar. 25 . Talvez seja o impacto do mtodo dialtico, debitado a Hegel e, depois, a Marx, que leve Antonio Candido a repartir em trs parcelas a noo de sistema que elege, assim como acontece ao recorte histrico proposto, que apresenta invariavelmente trs eta- pas. 26 A etapa intermediria corresponde anttese da primeira desde sua designao, pois, tal como na Formao e em ensaios posteriores, ope as j mencionadas "manifestaes literrias" "literatura", correspondendo essa a uma estrutura definida e com- plexa. Por decorrncia, no pode encampar a diviso usual, prefe- rida pela historiografia romntica e no desmentida depois, entre as literaturas anterior e posterior Independncia, diviso aceita mesmo pelo nada romntico Jos Verssimo, embora esse justifi- que a repartio em termos estticos, e no exclusivamente hist- ricos. 27 Com efeito, conforJTle Candido, tanto o que precedeu a se- parao poltica de Portugal e o Romantismo, quanto esse ltimo movimento constituem uma nica etapa, relativamente homog- nea e contnua, caracterizada no por estilos, temas ou escolas, mas pela adoo de um projeto comum. na Formao que Candido refere-se pela primeira vez a esse projeto, descrito ainda na introduo da obra. Dado o fato de que ele define a natureza da literatura brasileira, desenhando sua personalidade e percurso, o projeto revela-se metodologicamente mais importante para a construo da histria literria do que o reconhecimento do sistema e seu funcionamento. Esse constitui pr-condio da literatura, mas corresponde a uma armadura que requer preenchimento, o corpo e a alma traduzidos pelo projeto. 45 46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Que, no caso da literatura brasileira, tem o seguinte teor: Os escritores neoclssicos so quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram to capazes quanto os europeus; mesmo quando procu- ram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento, esto visando este aspecto. ( ... ) Depois da Independncia o pendor se acentuou, levando a con- siderar a atividade literria como parte do esforo de constru- o do pas livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciao e particularizao dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importncia atri- buda, neste livro, "tomada de conscincia" dos autores quanto ao seu papel, e inteno mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando no a descreviam. 28 Ao identificar o projeto que anima os escritores brasileiros, nascidos ou residentes na Amrica portuguesa, Candido procede a uma importante inverso. Diferentemente dos historiadores da literatura que o antecederam (e a alguns que o sucederam), ele no vai atrs da expresso nacional, que conferiria distino e autonomia s obras produzidas no torro natal ou relativas a ele. Pelo contrrio, ele transfere a busca para os autores estudados: so os intelectuais e criadores de boa parte dos sculos XVIII e XIX que trataram de se mostrar brasileiros, produzir uma arte "legitimamente americana", segundo os termos utilizados por Joa- quim Norberto, antes citados, e, com isso, competirem em p de igualdade com seus confrades europeus, em vez de emularem-nos. Candido no incorpora tal busca como sua, de modo que no precisa cobrar dos homens que fizeram a histria da literatura brasileira a realizao de uma idia pr-concebida e antecipada pelo pesquisador. Em vez de ver o tecido pelo avesso, como seguida- mente agiu a intelectualidade nacional perante seu prprio passado, ele analisa o lado direito, verificando o que foi alcanado na direo da realizao de um projeto que fez do Brasil uma nao. Nao com seus problemas e paradoxos, sem dvida. Como se observou antes, os romnticos elegeram a literatura para, mais do que representar, corporificar a nacionalidade; da sua parte, porm, o pas, povoado por iletrados, na maioria escravos, depois 28 CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira. V. I, p. 28. A rota dos romances para o Rio de laneiro no sculo XIX 47 imigrantes oriundos de regies muitos pobres da Europa, s po- deria frustr-los. Antes disso, como o prprio Candido destaca, a literatura tinha sido instrumento de dominao, imposio cultu- ral, incu1cao de valores estranhos aos habitantes originais da Amrica; tinha sido tambm instrumento de excluso, pois apenas no sculo XX, e nas ltimas dcadas principalmente, as formas de expresso populares receberam atestado de legitimidade artstica, podendo ser inseridas ao cnone e circular pela escola e pelas instituies culturais. Por tudo isso, a literatura parecia o veculo menos adequa- do a passar atestado de autonomia e nacionalidade a seus usuri- os. Foi ela, contudo, que recebeu a incumbncia, e narrar sua his- tria igualmente acompanhar um trajeto de muitos fracassos e poucos sucessos. Trata-se, porm, de uma histria consolidada, frgil no que diz respeito aos resultados, mas resistente enquanto itinerrio compacto e contnuo. Entend-la eqivale a entender a ns mesmos e a nosso lugar no trajeto percorrido, tendo, sempre que possvel, a obra de Antonio Candido como nosso guia. A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos (USP) o objetivo principal deste artigo lanar luz sobre o merca- do livreiro europeu das primeiras dcadas do sculo XIX, com especial nfase nos editores que exerceram um papel fundamental na disponibilizao e circulao dos romances ingleses no Brasil oitocentista. O interesse principal, aqui, recai sobre os mecanis- mos e prticas de mercado que possibilitaram que o principal porto brasileiro naquele perodo fosse um dos centros de irradiao e dis- seminao dos romances para o restante do territrio nacional. Tra- ta-se de investigar um dos importantes atores no processo de difu- so do gnero, na medida em que foram responsveis por criar con- dies materiais para a implantao do romance tambm no Brasil. O assunto de que vou tratar aqui foge do terreno propria- mente literrio. Ele forma, porm, junto com outros componen- tes, tais como a disponibilidade de equipamentos e bens culturais e a instituio de espaos pblicos de leitura, a base material que possibilitou o acesso dos leitores aos livros durante o perodo que se seguiu chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. A abertura dos portos s naes amigas e os interesses co- merciais em ambos os lados do Atlntico favoreceram a integrao do pas no mercado livreiro internacional, que experimentava, por sua vez, um momento de notvel expanso mundial. O ato do Prncipe Regente ocorria, ao que tudo indica, num momento bas- tante propcio para os livreiros europeus, ansiosos por expandi- rem suas vendas e encontrarem novos consumidores para os li- vros que imprimiam e vendiam. Antes de penetrar nesse territrio, no entanto, gostaria de explorar alguns dos argumentos que Franco Moretti apresenta em 49 50 Revista Brasileira de Literatura n.9, 2006 seu Atlas do Romance Europeu l , para, por um lado, confirmar algumas de suas observaes, e por outro complicar ligeiramen- te o quadro que ele desenha dos mercados narrativos por volta da primeira metade do sculo XIX. Entre suas principais teses, Moretti demonstra a existncia, nesse perodo, do que ele deno- mina de "duas superpotncias narrativas" - a Gr-Bretanha e a Frana - como centros produtores e exportadores de fico, fato que em si no deveria causar estranheza na medida em que esse predomnio apenas reproduziria, no plano literrio, o papel cen- tral que a base franco-britnica exerceu na "transformao do mundo entre 1789 e 1848"2. Os mapas de Moretti se restringem aos circuitos percorridos pelos romances franco-britnicos no res- tante da Europa e lhe permitem afirmar que, "na maior parte dos pases europeus, a maioria dos romances so, muito simplesmen- te, livros estrangeiros"3. Embora no tenha sido seu propsito incluir na sua geografia literria os pases deste lado de c, se o tivesse feito, as constataes de Moretti dificilmente seriam di- ferentes. Da mesma maneira que hngaros, italianos, dinamar- queses e gregos 4 , tambm os leitores brasileiros iriam se famili- arizar com o novo gnero por meio dos romances ingleses e franceses que, predominantemente, passaram a circular no Rio de Janeiro de modo cada vez mais significativo a partir das pri- meiras dcadas do sculo XIX e a se espraiar para as outras provncias do Imprio logo em seguida. O Brasil integrava-se, dessa forma, s rotas transatlnticas do mercado literrio, que tinha seu centro na Frana e na Gr-Bretanha. Restaria, assim, verificar se o que Moretti l nos mapas eu- ropeus, a preponderncia expressiva dos romances cannicos e um "padro regular e montono" de entusiasmo pelos mesmos tipos de livros - ou, em suas prprias palavras, "uma Europa unificada por um desejo pelo que Peter Brooks chamou de 'ima- ginao melodramtica"'5 -, tambm vale para caracterizar as obras de fico que se alugavam ou vendiam nas boticas e livrari- as e que se emprestavam nos gabinetes de leitura e bibliotecas fluminenses. Um exame dos romances disposio dos leitores brasileiros revela no apenas uma espcie de monoplio das es- tantes por autores como, por exemplo, Walter Scott, Charles Dickens, Daniel Defoe e Eugene Sue, mas tambm exibe uma in- teressante diversificao de ttulos e subgneros novelsticos, pos- I Franco Moretti. Atlas of the Europea1l Novel, 1800-1900. London. Verso, 1999. Trad. bras.: Atlas do Roma1lce Europeu, 1800-1900. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. So Paulo. Boitempo, 2003. Ver captulo 3, "Mercados narrativos, c. 1850", p. 153- 208. 2 Eric J. Hobsbawm. Ver prefcio, A Era das Revolues, Europa J 789- 1848_ Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1977, p.l5. 3 Moretti, p. 197. 4 Moretti, p. 197. , Moretti, p. 187. A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 51 6 Ver Jos de Alencar. "Como e porque sou romancista". Obra Completa. Rio de Janeiro, Ed. Jos Aguilar, 1959, vol. I, 125- 155. 7 Silver{ork: designao jocosa para se referir aos romancistas de princpios do sculo XIX que tratavam da vida e dos costumes elegantes, derivada das descries que o Fraser 's Magazine fazia de Edward Bulwer-Lytton como "polidor de garfos de prata". Embora Lytton afirmasse que seus propsitos eram satricos, esses romances ofereciam aos leitores uma experincia vicria da vida em sociedade. Entre os romancistas "silver-fork" encontravam-se Lady Charlotte B ury, Lady Blessington, Benjamin Disraeli e Catherine Gore, cujos romances encon- tramos nos acervos dos gabinetes de leitura flumi- nenses. , Na sua anlise da produo e circulao do romance na Europa, Moretti se vale da teoria de Wallerstein para identificar os pases que pertenceriam ao centro, semi periferia e periferia do sistema. Ver op. cit., p. 184. 9 Moretti, p. 190. 10 Moretti, p. 191. sivelmente facilitada pela posio perifrica do Brasil nesse mer- cado. Isto , para c os livreiros mandaram um pouco de tudo: Richardson e Marivaux, Lesage e Sterne, Radcliffe e Paul de Kock, Charlotte Bronte e Chateaubriand, Bulwer-Lytton e Fenlon, Fielding e Dumas, s para citar alguns freqentadores assduos dos anncios de jornal ou dos catlogos dos gabinetes de leitura desse perodo. Chegaram igualmente aqueles que Moretti afirma no terem tido presena significativa nos outros pases da Europa alm da Gr-Bretanha e Frana, como as aventuras do Capito Marryat, to apreciadas por Jos de Alencar 6 , Ainsworth, Miss M.Elizabeth Braddon, Wilkie Collins, ou Georgiana Fullerton, as "industrial noveIs" de Elizabeth Gaskell e os romances "silver- fork"7. Poderamos pressupor, portanto, que essa diversidade te- ria colocado em circulao no Brasil um amplo e importante acer- vo de temas, formas, procedimentos e tcnicas para os primeiros brasileiros que se arriscaram no terreno da fico. Talvez mais amplo do que tiveram sua disposio seus sucedneos nos pa- ses da semi-periferia e da periferia da Europa. 8 Por outro lado, ao atribuir a seleo a foras culturais parti- culares de cada lugar - "o padro geogrfico sugere uma afinida- de cultural entre a forma especfica e o mercado especfico"9 -, Moretti deixa na sombra um dos elos fundamentais nessa cadeia de circulao, pois sequer menciona o papel exercido pelo comr- cio livreiro no processo. No seria razovel imaginar que, numa fase de industrializao da produo de livros, os interesses co- merciais possam tambm ter estado na base dessas exportaes? Se assim for, possvel complicar ligeiramente o quadro dos mer- cados narrativos construdo por Moretti trabalhando com a hip- tese de que no so necessariamente "o catolicismo que 'selecio- na' os romances religiosos para o pblico italiano" ou "a maior emancipao das mulheres [que] seleciona narrativas de livre es- colha emocional nos pases protestantes"lO os nicos fatores res- ponsveis pela circulao de certas obras, e no de outras, nos diferentes pases. A concluso lgica nos levaria a supor, dessa maneira, que, se de um lado os pases importavam os livros, na outra ponta livreiros de olho no mercado podem muito bem ter imposto escolhas e padres de gosto, apostando no que j havia sido previamente testado, aprovado e se mostrara bem-sucedido no centro do sistema. 52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Nessa perspectiva, o comrcio livreiro se juntaria aos ou- tros componentes do circuito de circulao dos livros, tais como os jornais, os peridicos especializados e os crticos, nessa funo de mediao e de estabelecimento de um cnone literrio que, no caso do romance, foi se construindo paulatinamente desde o s- culo XVIII. As disputas e polmicas entre livreiros, crticos e pe- ridicos so um captulo curioso da histria do romance ingls setecentista e do bem a medida de quo influente era sua ativida- de e quo explcitos os seus interesses comerciais. ll Essas so algumas das trilhas que gostaria de explorar nesse ensaio, na tentativa de retraar os caminhos dos romances da Eu- ropa para o Brasil, na primeira metade do sculo XIX. evidente que no se pode esquecer a presena dos livreiros franceses e portugueses no Rio de Janeiro entre 1808 e a suspenso da censu- ra em 1821, estudados por Maria Beatriz Nizza da Silva, Lcia Maria Pereira das Neves, Tnia Bessone e Leila Algranti 12. Como salienta essa ltima, esse foi um perodo em que vrias casas e editoras de origem francesa, estabelecidas em Portugal desde o sculo anterior, "comearam a abrir filiais no Brasil, enviando seus representantes para atuarem no comrcio de livros"13 , atividade que, a essa altura, no era especializada - "eram negociantes que em meio a vrias quinquilharias e objectos de luxo tambm vendi- am livros" .14 Havia, ainda, os negociantes franceses que, fugindo da Restaurao ou em busca de melhores condies de vida, ha- viam entrado no Brasil a partir de 1815 e que, estabelecidos em diferentes tipos de negcio, vendiam livros.1 5 Por ora, entretanto, pode ser proveitoso inverter a direo do olhar e buscar recons- truir os circuitos de que participaram os homens que fizeram a histria do livro na Europa no sculo XIX. No cabe, aqui, investigar de forma exaustiva o comrcio livreiro nessa primeira metade do sculo XIX, mas creio ser pos- svel desenhar um quadro desse momento de expanso do comr- cio internacional do livro na Europa e arriscar algumas hipteses sobre seu impacto na circulao de livros em nosso pas, naquele perodo. Quero salientar que, embora meu recorte sejam sempre os romances ingleses, eles so representativos desse comrcio in- ternacional, que engloba britnicos, franceses, portugueses e as to conhecidas contrafaes belgas. De qualquer forma, essa ex- panso do comrcio europeu e os efeitos que surtir por aqui s 11 Ver Sandra Guardini T. Vasconcelos. A Formao do Romance Ingls. Ensaios Tericos. Faculdade de Filo- sofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2000. Tese de Livre- Docncia, 3 vol. 12 Maria Beatriz Nizza da Silva. Livro e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821), Revista de Histria, vol. XLVI, n. 94, abril-junho 1973, p. 441-457; Lcia Maria Bastos Pereira das Neves. Comrcio de livros e censura de idias: A acti- vidade dos livreiros franceses no Brasil e a vigilncia da Mesa do Desembargo do Pao (1795-1822). Ler Histria, n. 23, 1992, p. 61-78; Leila Mezan Algranti. Censura e comrcio de livros no perodo de permanncia da corte por- tuguesa no Rio de Janeiro (1808-1821). Revista Portu- guesa de Histria, voI. 23, n. 1,1999,p.631-663. 13 Leila Mezan Algranti. Poltica, religio e mora- lidade: a censura de livros no Brasil de D. Joo VI (1808- 1821). In: Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias Silenciadas. Histria da Cen- sura no Brasil. So Paulo, EDUSP/ Imprensa Oficial do EstadG"FAPESp, 2002, p. 1Il-112 14 Lcia Maria Bastos Pereira das Neves, op. cit., p. 64. i5 Ver Tnia Bessone da C. Ferreira e Lcia Maria Bastos P. das Neves. Livreiros franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823. Histria Hoje: Balano e Perspectivas. IV Encontro RegionaldaANPUH-RJ.Riode Janeiro, Associao Nacional dos Professores Universitrios de Histria, 1990, p. 190-202. A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 16 Depoimentos de comer- ciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na dcada de 1810, do notcia das dificuldades e demora na entrega dos produtos e no desembarao alfandegrio e da falta de infra-estrutura porturia. Ver Herbert Heaton. A Merchant Adventurer in Brazil 1808-1818. The Journal of Economic History, vol. 6, n. I, maio de 1946. 17 Ver Frdric Barbier. Le Commerce Intemational de la Librairie Franaise au XIXe Siecle (1815-1913). Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine. Torne XXVIII, janvier-mars 1981,p. 94-I17. 18 Fonte: National Archives (PRO), CUST 9/1 e CUST 9/ 35, respectivamente. 19 Barbier, op. cit., p. 11 O. 20 "De la situation actuelle de la librairie et particulierernent des contrefaons de la librairie franaise dans le nord de l'Europe", in Revue Britannique, Paris, torne XXVI, 4e. srie, mars 1840, 52-97. A revista traz um quadro com valores comparativos pgina 80. iro se fazer sentir a partir da dcada de 30, quando o Brasil j gozava de sua condio de pas politicamente independente. Em tomo do decnio de 1840, as inovaes, melhorias e maior rapidez nos transportes terrestres (ferrovias) e martimos (vapores), nas transaes bancrias l6 e nos servios postais, as mudanas nas tcnicas de impresso e nos modos de produo e distribuio, somadas expanso do pblico leitor graas ao au- mento da alfabetizao, comeavam a facilitar significativamente a circulao dos livros na Europa. O comrcio livreiro, a partir principalmente de Londres e Paris, passou por um processo de profissionalizao, com a substituio do antigo "bookseller" res- ponsvel pela impresso, edio e venda ou aluguel de livros, pela figura do "publisher", o editor moderno especializado apenas na edio dos livros. Alm disso, a reordenao jurdica do comrcio livreiro internacional, que passou a incluir convenes, leis de propriedade literria e acordos bilateriais entre editores, possibili- tou estabelecer redes de vendas, permitindo o contato e a relao direta entre profissionais, por meio da figura do livreiro comissrio permanente. Muitas vezes, o livreiro exportador acabava por fun- dar uma verdadeira sucursal no exterior, por intermdio de um mem- bro da sua prpria famlia l7 , como foi o caso de B.L. Garnier no Rio de Janeiro a partir de 1844. A abertura dos portos brasileiros ocorria, portanto, num momento absolutamente auspicioso para os livreiros europeus. J em 1812, os registros alfandegrios da Gr- Bretanha informavam exportaes da ordem de f346 em "livros impressos". E se at 1848 seu crescimento esteve longe de ser ex- cepcional, tendo atingido apenas f404 naquele ano lS , a participa- o da Frana aparece como muito mais expressiva, com 11 tonela- das de livros em portugus e em latim impressos ali e enviados ao Brasil em 1821. 19 Segundo dados da Revue Britannique, no ano de 1838 a Frana expediu 230.000 francos em livros para o Brasil, ao passo que no ano anterior as contrafaes belgas que tambm tive- ram o nosso pas como destino haviam somado 16.000 francos. 2o A anlise das referncias bibliogrficas relativas aos roman- ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro apresenta resultados interessantes do ponto de vista da atividade editorial europia. Longe de exibir uma concentrao, no entanto, o total de 99 autores e 502 ttulos coletados se divide entre casas editoriais diversas e proce- dncias vrias, como podemos verificar nos quadros abaixo: 53 54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Autores britnicos (identificados) Sc. 18 Sc. 19 30 69 Obras annimas Sc. 18 Sc. 19 11 24 Lngua Ingls Francs Portugus Espanhol Editoras: origem Frana Inglaterra Portugal Blgica Sem dados 9 225 ttulos 146 ttulos 128 ttulos 3 ttulos Alemanha (Leipzig) Brasil (Rio de Janeiro) EUA (Nova York) Sua (Genebra) 84 ttulos 81 ttulos 40 ttulos 33 ttulos 24 ttulos 11 ttulos 11 ttulos 2 ttulos Tamanha disperso dos ttulos por tantas editoras europias obriga a levantar diferentes hipteses para tentar explicar o cami- nho desses livros at o Brasil. Do lado de c, as licenas concedi- das pela Mesa de Desembargo do Pao do testemunho das ativi- dades de livreiros como Paulo Martim Filho (estabelecido Rua da Quitanda), Joo Roberto Bourgeois, que no s fazia negcios com Luanda, Lisboa, Porto e Londres, mas enviava livros do Rio de Janeiro para diversos cantos do Brasil, e Pierre Constant Dalbin, que foi tambm editor de obras de Cervantes, Fnelon, Chateaubriand e Lesage, entre outros. 21 Alm disso, sabemos, por exemplo, que, assim que se abriram os portos em 1808, "os brit- nicos chegaram em grande nmero. Por volta de agosto, tinham entre 150 e 200 comerciantes ou agentes comerciais no Brasil".22 21 Tnia Bessone da C. Ferreira e Lcia Maria Bastos P. das Neves. Livreiros franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823. p. 194 e ss. Fernando Guedes informa que a casa Rolland tinha entre seus "importantes e perdurveis clientes no Rio de Janeiro" um certo Joo Baptista Bourgeois. com quem Rolland fez "negcios entre 1798 e 1815". Ver Fernando Guedes. O Livro e a Leitura em Portugal. Lisboa. Ed. Verbo, 1987. p.148-150. nota 1. A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 55 22 Rory Miller. Britain and Latin America in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Longman, 1993, p. 42. Herbert Heaton: "Por volta do final de 1808 haviam sido enviados ao Rio de Janeiro produtos britnicos no valor de pelo menos cinco milhes de dlares. Com eles ou antes deles foram os comerciantes britnicos ou agentes comissionados s vintenas. Em setembro, era possvel reunir sessenta e duas firmas britnicas no Rio para subscrever um abaixo-assinado; e, uma vez que eles descreviam a si mesmos como compreendendo 'uma grande maioria dos comerciantes respeitveis residentes aqui', parece seguro supor que, se acrescentsssemos a minoria e os no respeitveis, alcanaramos um total de cem negociantes britnicos apenas no Rio." In: A Merchant Adventurer in Brazil 1808- 1818, op.cit., p. 6. 23 Ver Geoffrey Jones. Merchants to Multinationals. British Trading Companies in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Oxford, Oxford University Press, 2000. H notcia de que 60 casas comerciais britnicas estavam funcionando no Rio de Janeiro em 1820. Ver D.C.M. Platt. Latin America and British Trade, 1806-1914. London, Adam & Charles Black, 1972. 24 Nelson Schapochnik menciona o gabinete de leitura de Cremire, na Rua da Alfndega, e os de Mongie, Dujardin e Mad Breton, na Rua do Ouvidor. Veja "Contextos de Leitura no Rio de Janeiro do sculo XIX: sales, gabinetes literrios e bibliotecas", in Stella Bresciani (ed.). Imagens da Cidade. Sculos XIX e XX. (ANPUH/So Paulo: Marco ZeroIFAPESp, 1993), 147-162. Villeneuve, Didot, Mongie, Crmire, Garnier, Plancher, Dujardin eram alguns desses livreiros. Muitos comeavam como "commission merchants" e serviam como agentes dos fabricantes e atacadistas britnicos, negociando dire- tamente com eles. Mais importante mercado latino-americano para a Gr-Bretanha at o final do sculo XIX23 , quando foi suplanta- do pela Argentina, o Brasil portanto passou a fazer parte de uma rede que, alm dos negcios diretos com as editoras europias, muito provavelmente se valeu dos correspondentes e dos viajan- tes para estabelecer as rotas percorridas pelos romances at che- gar aos leitores brasileiros. O mercado livreiro local, mesmo que incipiente no inci0 24 , logo se expandiu a ponto de tornar possvel, algumas dcadas mais tarde, encontrar livros publicados por Aillaud e Hachette em Paris, por Routledge e Bentley em Londres, ou Bernhard Tauchnitz em Leipzig. Ele se mostrava, dessa forma, extraordinariamente atualizado em relao s modas literrias eu- ropias, e adotava prticas semelhantes s da famosa Mudie's Library25, que incluiu a ttica de anunciar sua seleta de livros nos jornais para aquecer as vendas e acabou por se transformar na melhor propaganda que podia haver para qualquer romance. A biblioteca circulante de New Oxford Street possua um Departa- mento de Exportao para os excedentes e recebia encomendas no s do continente europeu, mas tambm de locais to distantes quanto So Petersburgo, ndia, China e Amrica. 26 Seu maior ri- val era W.H. Smith, que abriu sua primeira banca de livros na Euston Station, em Londres, e por volta de 1862 possua uma rede de 185 filiais em estaes ferrovirias inglesas, fazendo ne- gcios e entregas em toda a Inglaterra e tambm no estrangeiro. O tamanho desses empreendimentos pode justificar o comentrio de Anthony Trollope em 1870: "We have become a novel-reading people [ ... ]"27. A histria do acesso da burguesia cultura letrada, no scu- lo XVIII, e, posteriormente, da classe operria ao mundo da fic- o, no sculo XIX ingls se fizera graas formao de um cir- cuito de que participaram livreiros, bibliotecas circulantes e edi- es cada vez mais acessveis, colocando o livro ao alcance de um nmero cada vez maior de pessoas. Esses circuitos letrados foram fundamentais na formao do leitor mdio. Concorreram para isso colees como a Routledge's Railway Library, a Bentley's Standard NoveIs, a The Parlour Library (com 279 ttulos publicados entre 1847 e 1863) e a Routledge's Standard NoveIs, que reuniam ro- 56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 mances tanto do sculo XVIII quanto do sculo XIX, como por exemplo Caleb Williams, Thaddeus of Warsaw, Frankenstein, Hungarian Brothers, Otranto, Vathek, St. Leon. A Bentley's Standard NoveIs, cujas trs sries somaram 158 volumes 28 , repre- sentou um notvel avano no processo de democratizao de lei- tura, graas s suas edies baratas de romances conhecidos. Michael Sadleir afirma que "( ... ) quando [os editores] lan- aram a srie [Bentley's Standard NoveIs] no a planejaram deliberadamente como uma srie barata de fico popular con- tempornea, mas sim como uma tentativa de registrar a fama per- manente de certos romances escritos desde o grande perodo do romance do sculo XVIII, que, entretanto, no haviam sido republicados adequadamente at o momento, de forma barata e acessvel"29. Entretanto, o fato que essas colees contriburam decisivamente para disponibilizar obras de fico a um contingen- te cada vez mais substantivo de leitores. Pblico para isso havia, j que a classe operria havia comeado a ganhar acesso educa- o formal na Inglaterra oitocentista. (Enquanto na dcada de 1790 Edmund Burke estimava a dimenso do pblico leitor na Gr- Bretanha em cerca de 80.000 indivduos, em torno de 1814 a Edinburgh Review contabilizava no menos de 200.000 pessoas dos setores mdios da sociedade como o pblico para as leituras de entretenimento e instruo.)30 Iniciada em 1831, com 126 volumes, a coleo da Bentley's Standard NoveIs s se encerrou em 1862, constituindo-se, ainda de acordo com Sadleir, "num marco da histria da publicao de edies baratas". Em 1849, a Routledge lanava a sua prolfica, bem-sucedida e longeva Railway Library que, sem qualquer pre- tenso de ater-se a textos significativos, tinha como objetivo pu- blicar fico popular a preos populares. At 1899, havia publi- cado 1.277 ttulos, os famosos "yellowbacks", livros de formato pequeno e baixo preo vendidos nas bancas das estaes ferro- virias, para serem lidos durante as viagens de trem e que re- ceberam essa denominao por causa de suas capas cuja cor pre- dominante era o amareloY Acrescente-se ainda a Smith, Elder's Library of Romance, com apenas 15 volumes, formada por fico completamente original e especializada nas histrias romanescas, como o prprio ttulo da coleo indica 32 . Muitos desses livros aqui chegaram ainda em suas edies originais, no traduzidas, " Tendo iniciado suas atividades com uma pequena loja em 1844, Charles Edward Mudie expandiu seus negcios em 1852, tendo se tomado um dos mais influentes livreiros do sculo XIX ingls. Era conhecido como "Leviat Mudie". Ver Guinevere Griest. Mudie's Circulating Library and the Victorian Novel. David & Charles, [1970]. 26 Ver William C. Preston. Mudie's Library. Rep. Good Words, October 1894; Guinevere Griest, op. cit. 27 G. Griest, op. cit.[nmero de pgina no recuperado 1 28 Priorizando novas tiragens de romances em formato acessvel e em grande escala, essa coleo marcou poca com suas trs sries: la. srie (1831-1854, com 126 ttulos; 2a. srie (1854-1856), com 22 ttulos; 3a. srie (1859-1862), com 10 ttulos, agora sob o nome geral de "BentIey's Popular Noveis". Ver Michael Sadleir, XIX-Century Fiction. A bibliographical record based on his own collection. London, Constable & Co., 1951,2 vols. 29 No original: "In other words, when they [the editors] launched the series they did not deliberately foresee it as a cheap-edition series of current popular fiction, but rather as an attempt to register the permanent fame of certain noveis written since the great period of eighteenth-century novel-writing, but not hitherto fittingly reprinted in handy and cheap form". Michael Sadleir, op. cit., vol. 2, p. 94. 300S dados podem ser encontrados em William SI. Clair, The Reading Nation in the Romantic Period. Cambridge ,C ambridge University Press, 2004. A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 57 " Ver Chester Topp. Victorian Yellowbacks and Paperbacks, 1849-1905. Denver, Hennitage Antiquarian Bookshop, 1993- 1999,4 vols; Michael Sadleir. Collecting "Yellowbacks" (Victorian Railway Fiction). Constable, London, [1938], p. 127-161. 31 A Smith, Elder & Co. foi fundada em 1816eeraumadas editoras de grande prestgio no sculo XIX, tendo publicado Charlotte Bronte, William Thackeray, Anthony Trollope, Elizabeth Gaskell e George Eliot. Ver Robin Myers & Michael Harris. A Genius for Letters. Booksellers and Bookselling from the 16th to rhe 20th century. Winchester, St. Paul's Bibliographies; Delaware, Oak Knoll Press, 1995. Foi a Smith, Elder & Co. que publicou o Catlogo da Rio de Janeiro British Subscription Library. lJ Os dados podem ser encontrados em Richard D. Altick. The English Common Reader. A Social History ofthe Jfass Reading Public, 1800- 1900. 2nd ed. Columbus, Ohio State University Press, 1998. Ver Appendix B, p. 383-384. " Romances publicados em srie ao preo de um penny (moeda inglesa). como o caso de Marryat, W.H. Ainsworth e G.P.R. James (dig- nos representantes da Railway Library), dos annimos The Disinherited and The Ensnared e The Mascarenhas, da Smith, Elder & Co. Outros, chegaram em traduo, vindos de Lisboa, Paris, Bruxelas ou Leipzig, como o caso de M. Banim, M.E. Braddon, Wilkie Collins, etc. A aposta na edio ou reedio em colees baratas dos romances favoritos do pblico (entre os 279 ttulos da The Parlour Library, por exemplo, se reeditaram romancistas como Elizabeth Gaskell, Jane Austen, Elizabeth Inchbald, Anne Bronte, Jane Porter, etc.) rendeu vendas que nos deixam espantados, mesmo dentro dos padres dos dias de hoje: Guy Mannering, de Scott, vendeu 2.000 cpias no dia seguinte ao de sua publicao; Rob Roy, tambm de Scott, vendeu 10.000 numa quinzena e mais de 40.000 at 1836; Pickwick Papers, de Dickens, vendeu um total de 800.000 exemplares at 1879; A Christmas Carol, tambm de Dickens, vendeu 16.000 s no dia de sua publica0 33 So nmeros que impressionam no s como indicadores de verda- deiros fenmenos editoriais - os best-sellers do sculo XIX - mas tambm porque so prova concreta da existncia de um cr- culo cada vez maior de leitores e de um processo inegvel de democratizao do acesso ao livro. As edies baratas no se restringiram aos romances do s- culo XVIII ou aos escritores mais consagrados como Scott e Dickens. Aos poucos, elas deram lugar produo de novos tipos de fico para atender mudana de gosto dos leitores das classes mais baixas. Os velhos romances reeditados em novas tiragens haviam prestado um bom servio mas decerto devem ter comea- do a parecer fora de moda aos novos leitores citadinos - sua lin- guagem era destoante e soava antiquada, a vida que retratavam parecia estranha e era necessrio um estilo mais contemporneo, mais prximo e adequado aos novos tempos. Decorrente da industrializao e da migrao do campo para a cidade, a formao de uma nova cultura urbana, se deu incio a uma era de fico de massa, nas dcadas de 1840 e 1850, confir- mou no. gosto popular os nomes de Ann Radcliffe, cuja influncia na fico popular foi enorme, e de Walter Scott, cujo Ivanhoe foi onipresente e gozou de uma popularidade que atravessou o scu- lo. As penny-issue novels 34 , embora tenham elegido outros temas 58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 e interesses, mais afeitos a essa cultura urbana, fundiram o gtico e o histrico e imitaram exaustivamente esses modelos. Segundo Louis James 35 , The Pickwick Papers (1836-7) de Dickens foi o livro mais plagiado de seu tempo. As penny-issue noveis esto fora do escopo dessa discusso, mas o que interessa ressaltar aqui que, com freqncia, foram as edies baratas dos romances populares na Inglaterra que chegaram ao Rio de Janeiro. At 1829, as vinte e cinco Waverley noveis de Walter Scott haviam vendido 500.000 exemplares e at 1860, em torno de 2 a 3 milhes 36 Scott tambm teve papel fundamental na consolida- o de um formato de edio que se iniciou com seu Waverley, em 1814. Como significava bons negcios para as bibliotecas circulantes e gabinetes de leitura porque podia ser alugado para trs leitores simultaneamente, o romance em trs volumes virou moda pelas mos de Charles Edward Mudie, que no s ajudou a difundi-lo como lhe conferiu status, dignidade literria e serieda- de, em comparao com os "yellowbacks", considerados leitura leve e de entretenimento. Mais importantes, porm, foram as con- seqncias que esse formato teve na prpria estruturao dos ro- mances pelos romancistas, que se viram obrigados a lev-lo em conta e passaram a adequar suas narrativas extenso dos "three- deckers": o uso de incidentes, a tendncia a longas descries, os enredos mltiplos, a nfase nos retratos das personagens, a rique- za de detalhes, as digresses autorais, as reflexes ou as conver- sas com o leitor. No se trata, como se poderia supor, de simples pormenores, uma vez que esses procedimentos sero aqueles que se tornaro familiares tambm para os nossos escritores, desse lado de c do Atlntico. Enquanto Richard Bentley logo adotou, tambm ele, o for- mato dos trs volumes mas tratou de baixar os preos, e George Routledge e W. H. Smith apostavam nas "railway libraries", os editores franceses imediatamente reagiram com edies baratas (caso de Charpentier, Levy e Hachette, entre 1838 e 1855)37 e com as colees do "chemin de fer"38 . Assim como os ingleses, tambm eles haviam se aberto para o estrangeiro (Gosselin, Bossange e Didot eram livreiros exportadores), chegando alguns inclusive a se instalar nas colnias, ou ex-, como foi o caso das falTI11ias Bossange e Garnier, no Rio de Janeiro. 39 Os irmos Michel e Calman Levy, por exemplo, criaram uma biblioteca familiar a 35 Louis James. Fictionfor the working man, 18301850. London, Penguin, 1974. 36 Ver WiIliam St. Clair, op.cit., ver quadro p. 221. 37 Jean. Yves MoIlier. L'Argent et les Lettres. Histoire du Capitalisme d'dition, 1880- 1920. Paris, Fayard, 1988. 38 Em lo de abril de 1852, Louis Hachette props-se, em nota s Compagnies de Chemins de Fer, a publicar o sucedneo francs das "railway noveis": "MM. L. Hachette et Cie ont eu la pense de fare toumer les 10isirs forcs et l'ennui d'une longue route au profit de I' agrment et de l'instruction de tous." Cf. Jean Mistler, La Librairie Hachette de 1826 nos jours. Paris, Hachette, c. 1964, p. 123. 40 Mollier, L'Argent et les Lettres, p.365. Ver tambm Jean MistIer, op. cit., p. 269. 39 Baptiste-Louis Gamier (1823- 1893) foi o irmo que se estabeleceu no Rio de Janeiro em I 844,segundoinforma Laurence Hallewell. O Livro no Brasil. so Paulo,EDUSP, 1985,p. 127-128. Martin Bossange, por sua vez, juntamente com seus dois filhos Adolphe e Hector, forma urna empresa familiar com ramifi- caes internacionais, com lojas emLeipzig,Madri,noMxico,em Montral, Npoles, Nova Iorque, OdessaeRiodeJaneiro. VerDiana Cooper-Richet. L'imprim en Iangues trangeres Paris ao XIXe siecle: lecteurs, diteurs, supports. In: Revue franaise d'/stoire du livre, ns. 116-117, 3e e 4e trirrestres, 2002, p. 203-235 (p. 213). A rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 59 40 Mollier, L'Argent et les Lettres, p. 365. Ver tambm Jean Mistler, op cit., p. 269. 41 A Revue Britannique de maro de 1840 ressaltava a importncia dos colporteurs e da colportage na distribuio dos livros. Ver nota 16. 42 Jean-Yves Mollier, op. cito 43 Ver Jean-Franois Botrel. La librairie "espagnole" en France au XIXe siecle. In: Jean-Yves Mollier. Le Commerce de la Librairie en France au X/Xe siecle, /789-1914. Versailles, IMEC ditions; Paris, ditions de la Maison des Sciences de I'Homme, p. 292-3. Nota explicativa: quintal uma antiga medida de peso equivalente a 4 arrobas; um quintal mtrico equivale a cem quilogramas. 44 Frdric Brubiec lb! Publishing Industry and Printed Output in Nineteentb-Centwy France. In: Kennetb Carpenter (ed.). Books andSociety in History. New Yorlc, R.R. Bowker, 1983, p. 199-230 [p.205]. 45 Jean-Yves Mollier, L'Argent et /es Lettres, p. 91. 46Williamst. Oair,op.cit., p. 296- 297. Segundo Diana Cooper- Richet, Giovanni Antonio GaIignani insta1anocentm de Paris uma livraria, um gabinete de leitura e uma casa editora, consa- grados literatura britnica e a jornais em ingls, enquanto Louis- Claude Baudry lana. em 1829, a coleo Ancient and modem BritishAuthors, com 32 ttulos. A partir dos anos 30, Galignani e Baudry iriam se associar, ofere- cendo aos leitores Walter Scott, Maria Edgeworth, Dickens e Thackeray. Ver L'imprim en languestrangres Paris au XlXe siecle: lecteurs, diteurs, supports. In: Revue franaise d'histoire du livre,ns.1l6-1l7,3ee4etrimestres, 2002, p. 203-235. um franco o volume e, em 1889, seu catlogo contava com 1.414 ttulos de 277 autores, a includos Dickens, Ann Radcliffe e G.R. Reynolds,40 Enquanto uma rede de colporteurs 41 e de viajantes comerciais ou vendedores itinerantes (os "commis voyageurs") era o ponto de contato entre os comerciantes e os clientes e con- sumidores e garantia as exportaes para a Amrica do Sul duran- te o sculo XIX42, os nmeros demonstram que no comeo do sculo XX a Frana j havia exportado para a Amrica Latina "(Argentina, Mxico e Brasil, essencialmente) uma mdia de 1.100 quintais mtricos de livros em lnguas estrangeiras ou mortas".43 Paris, centro das modas, tinha um pblico leitor capaz de transformar em best-seller qualquer aventura literria 44 e, ao final da guerra de 1815, tornou-se um dos grandes centros de publica- o de textos em lngua inglesa. Enquanto os irmos Firmin Didot tinham a propriedade literria das obras de Scott 45 , Baudry publi- cava textos em ingls e, j ao final da dcada de 1820, os novos romances ingleses eram vendidos em Paris no prazo de trs dias de sua publicao em Londres, em edies de boa qualidade e por um preo quatro vezes menor que o britnico. Tambm se torna- ram comuns os acordos e as sociedades, como a de Baudry e Galignani, ou a de Firmin Didot e Hachette, com fins de compartilhamento da produo e distribuio dos livros. Entre 1830 e 1850, Baudry e Galignani ofereciam um bom catlogo de literatura inglesa recente 46 e o mesmo Baudry, assim como Aillaud e Pillet Ain, publicava ainda tradues de romances em portugu- s, Constata-se, dessa maneira, o quanto esses livreiros e editores contriburam para as trocas e transferncias culturais e como, mesmo que indiretamente, exerceram um papel fundamental no processo de difuso e disseminao de autores e romances em circuitos ml iro mais amplos e territrios muito mais distantes do que o dos pases europeus. Cada uma das casas editoras tem, obviamente, sua histria. Para ilustrar esses caminhos tortuosos do romance pelo mundo, valho-me dos casos mais representativos no que diz respeito quele conjunto de 502 romances ingeses que chegaram ao Rio de Ja- neiro no sculo XIX, O primeiro abarca um conjunto de ttulos que, embora tenham sido publicados por editoras diferentes, re- presenta a participao inglesa nesse mercado, com suas inventi- vas solues para a democratizao do livro. Refiro-me especifi- 60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 camente s edies populares da Routledge, da Chapman and Hall (1849-1902), da Bentley, da J.S. Pratt e da S. Fisher, com uma contribuio diferenciada mas tendo em comum o fato de estarem todas envolvidas na produo de encadernaes baratas. De to- dos, talvez George Routledge (1812-1888) seja o exemplo mais paradigmtico. Tendo comeado suas atividades como livreiro em 1836, Routledge j em 1844 havia se tomado editor, publicando tanto grandes autores quanto romancistas menores, e tambm obras estrangeiras em ingls, como as de Lesage, Eugene Sue, Balzac, Cervantes e Dumas. 47 "Imitao deliberada e no totalmente es- crupulosa da ParIour Library", editada por Simms & M'Intyre de Belfast e cujo propsito era difundir boa literatura num formato elegante e barat0 48 , a bem-sucedida Railway Library, a um shilling o volume reimpresso, foi a verso de Routledge para aquela srie. Tacada certeira, sua iniciativa de associar o smbolo do progresso e modernidade da Inglaterra vitoriana e industrial - o trem, as ferrovias e as viagens de trem - e o romance sobreviveu meio sculo, at 1899, e foi imitada do outro lado do Canal da Mancha por Louis Hachette e em Portugal pelo editor Manuel Antonio de Campos Jnior, com sua coleo "Leitura para Caminhos de Fer- ro", de 1863. 49 Tanto em Londres quanto em Paris, esforos simi- lares em estabelecer uma poltica de preos baixos e edies po- pulares criaram novos parmetros editoriais e produziram os exem- plares que atravessaram o oceano e vieram aportar no Rio de Ja- neiro. Seriam eles tambm destinados aos eventuais viajantes das estradas de ferro brasileiras, implantadas a partir do decnio de 1850 pelas companhias inglesas?50 O segundo caso diz respeito conhecida Casa Hachette. Responsvel por uma coleo de 150 volumes vendidos a um fran- co cada - a Bibliotheque des Meuilleurs Romans trangers -, Louis Hachette ajudou a divulgar na Frana um conjunto de auto- res estrangeiros, entre os quais os ingleses ocupavam um lugar de honra: Bulwer-Lytton, CharIotte Bronte, Benjamin Disraeli, Mayne-Reid, William Thackeray e CharIes Dickens. este ltimo que me interessa particularmente aqui, porque representa um caso emblemtico das mudanas que passavam a ocorrer no mundo da edio. Desde 1854, algumas obras de Dickens figuravam no ca- tlogo da Bibliotheque de Chemins de Fer e, desde as dcadas de 1830 e 1840, vrios de seus romances podiam ser lidos em fran- 47 Ver Chester Topp. Victorian Yellowbacks, vol I. 48 Michael Sadleir, op. cit., volume lI, p. 167. 49 Ernesto Rodrigues. Cultura Literria Oitocentista. Porto, Lello Editores, 1999, p. 13. 500S britnicos estiveram envolvidos na construo e operao das ferrovias bra- sileiras desde o incio (a primeira linha foi inaugurada em 1854) e nos ltimos anos do Imprio havia vinte e cinco delas controladas por grupos britnicos em diversos cantos do pas, como por exemplo a The So Paulo Railway, The Minas and Rio Railway Company, The Recife and So Francisco Railway, etc. Fonte: Catlogo da Exposio "Os Britnicos no Brasil", So Paulo, Centro Brasileiro Britnico, 2001. -\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 61 'I Citado por Jean Mistler, op.cit., p.l60. Devo todas as informaes referentes Casa Hachette a essa obra e a Jean- Yves Mollier, Louis Hachette 11899-1864). Le fondateur d'un empire. Paris, Fayard, 1999. 52 Sobre esse tpico, ver Herman Dopp. La Contrefaon des Livres Franais en Belgique,J 815-1852. Louvain, Liv. Universitaires, Uystpruyst d., 1932; Franois Godfroid. Nouveau Panorama de la Contrefaon Belge. Bruxelles, Acadmie RoyaJe de Langues et de Littrature Franaises, [1986]. cs, seja em tradues livres como a de Mme Niboyet para As Aventuras de Mr. Pickwickem 1838, ou o David Coppeifield que Pichot havia traduzido para a Revue Britannique, tendo como ponto comum entre todas elas a infidelidade das tradues. Para fazer frente aessa situao, emjaneiro de 1856 Dickens e Hachette assinam um contrato de publicao e logo depois Paul Lorain escolhido para supervisionar o trabalho de traduo da srie de 28 romances do escritor ingls, iniciando-se uma parceria estreita entre autor, editor e tradutores que vai render frutos no sentido de uma maior profissionalizao dessas relaes. Alm disso, Dickens as- sume o papel de conselheiro na escolha dos romances ingleses para traduo e coopera com Hachette nos contatos que o editor francs busca estabelecer com outros autores ingleses da poca. Em minuta de carta a Dickens, datada de maio de 1856, Hachette declarava: Je dsirerais maintenant tendre ces relations [avec Milady Fullerton, auteur de Lady BirdJ aux autres crivains dont les ouvrages sont les plus estims en Angleterre et son de nature tre le mieux accueillis en FranceY Como seus sucedneos, Hachette tambm tinha uma ativi- dade importante na exportao por meio do Dpartment tranger Hachette (D.E.H.) e especial interesse na Inglaterra e Alemanha, mantendo representantes e viajantes e s vezes at mesmo seus dirigentes em andanas pelo mundo, a partir do final do Segundo Imprio. O dado de que os esforos da casa editora se dirigiam sobretudo Amrica Latina pode ser comprovado pelo fato de que a coleo de romances ingleses em circulao no Rio de Ja- neiro no sculo XIX publicados por Hachette consta de 44 ttu- los, a maior por parte de um s editor. Haveria ainda que ressaltar a presena e a participao das contrafaes belgas, nessa coleo. A controvrsia que cerca a propriedade ou impropriedade do uso do termo e sua definio conhecida e exige uma certa cautela na sua aplicao. Associada ou no idia de fraude e plgio, vista como imoral e corruptora do gosto, a contrafao foi fenmeno mundial e no apenas belga, favorecido pela ausncia de regras e de regulamentao internaci- onal quanto a direitos autorais e legais. 52 Assim, tanto Aillaud, em 62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Paris, quanto Bassompiere, em Liege, os Baudoin freres e Berthot, em Bruxelas, Chapman, em Londres, Dujardin em Gand e Tauchnitz em Leipizig, podiam ser includos na lista dos contrafacteurs. No entanto, foram os belgas que souberam tirar proveito da maior liberdade de imprensa vigente nos Pases Bai- xos, livres da censura e dos impostos pesados que marcavam as atividades na Frana sob Napoleo, e a contrafao belga viveu seu perodo de apogeu entre 1815 e 1850, quando entrou em declnio graas assinatura da primeira conveno franco-belga de direitos do autor, em 1852. "Une rproduction bon march", conforme a definiu Herman Depp53 , a contrafao belga adotou o formato reduzido (in-12, in-18 ou in-32) no lugar do in-8 D parisiense, com papel de qualidade inferior e tipos mais cerrados. E, embora a contrafao belga de livros em lngua inglesa tenha sido modesta, dada a universalidade do francs como lngua de cultura, foram vrios os livreiros belgas que publicaram autores ingleses: em 1825, P.J. de Matt de Bruxelas tinha em catlogo os romances de Walter Scott; em 1835, Wahlen publicou sua "Collection d' Auteurs Anglais Modernes", alm de Banim, Blessington, Gore e Radcliffe; Mline ou Wahlen publicaram ain- da Bulwer, Dickens, Edgeworth, Goldsmith, G.P.R. James, Marryat, Scott, Trollope. Os franceses, evidente, se ressentiram da concorrncia belga, mas, como Emile de Girardin deixou claro, "La Blgique a fait ce qu'elle avait le droit de faire, et ce que la France n'avait aucun scrupule de pratiquer l' gard des livres anglais ... "54 , o que d a medida de quo generalizada era a prtica nos dois pases. A Revue Britannique de maro de 1840 comentava: MM. Galignani et Baudry, de Paris, sont les seuls qui, force de soins et de persvrance, soient parvenus donner la contrefaon des ouvrages anglaises une certaine importance. Ces diteurs ont pour clientelle les trente mille familles anglaises qui habitent la France, la Suisse, la Savoie, l' ltalie et les diverses parties de l' Allemagne ( ... )55 Vindos de Bruxelas, so trinta e trs os ttulos de romances ingleses que compem o acervo fluminense, dos quais trinta e um em francs e dois em ingls, o que apenas confirma a avaliao da mesma Revue Britannique a respeito da predominncia flagrante 53 Herman Dopp, op. cit., p. 12. 54 Citado por Herman Dopp, op. cit, p. 12. 55 Revue Britannique, mars 1840, p. 60-61. .-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no sculo XIX 63 56 William Todd & Ann Bowden.Tauchnitz International Editions in EnglishJ 84 J -1955. A Dibliographical history. New Yolk, BibliographicalSocietyofAm'rica, 1988, p. 3. 57 Idem, ibidem, p. 770 e 1022. e universalidade da lngua francesa, considerada como "instrument de haute sociabilit" no perodo. Como dizia o autor (no identi- ficado) do artigo, os editores belgas sabiam muito bem como ex- plorar o filo que a apatia dos franceses parecia deixar de lado, aproveitando-se ainda do fato de que "aujourd'hui, Londres consomme par semaine de 12 [sic] 1.500 francs de contrefaons belges". curioso lembrar que a prpria Revue Britannique, ori- ginalmente editada em Paris, tinha sua similar belga, com uma tiragem de 1.200 exemplares. Por outro lado, os ttulos em ingls, originrios de fora da Gr-Bretanha, se concentram nas mos de outro dos casos inte- ressantes que vale a pena destacar. Trata-se de outro pequeno conjunto de 24 romances, que tambm circularam no Rio de Ja- neiro naquele perodo, todos produzidos pelo mesmo editor, um alemo de Leipzig. Bernhard Tauchnitz (1816-1895) fundou a editora em 1837 e a partir de 1841 passou a publicar uma coleo de autores britnicos e norte-americanos em ingls, um costume bem-estabelecido no continente, como o provava a parceria entre as firmas de Baudry e Galignani. 56 A editora encerrou suas ativi- dades apenas em 1943, ao ser destruda em um bombardeio. Na- quele ano, a coleo havia atingido a impressionante cifra de 5.370 volumes, a maior parte deles de fico. 57 O principal alvo de Tauchnitz no era o mercado britnico, mas o prprio continente europeu, e as ferrovias faziam o trans- porte de seus livros para diversos pontos da Europa, para dali serem enviados para o exterior: de Bremen para os Estados Uni- dos, de Dresden para Viena, de Paris, para a Espanha, Portugal, frica e Oriente Prximo. Por contrato com os autores, os volu- mes no podiam ser exportados para a Gr-Bretanha, mas acaba- vam l chegando pelas mos de turistas britnicos que os compra- vam durante suas viagens ao continente. Uma oferta de publica- o vinda de Tauchnitz significava uma consagrao, e no nos surpreende saber que Dickens, Marryat e Bulwer-Lytton foram alguns dos romancistas que autorizaram o editor alemo a public- los. Pelham, or the Adventures of a Gentleman, de Bulwer Lytton, e The Posthumous Papers ofthe Pickwick Club, deDickens, inau- guraram a coleo em 1842, que anunciava como seus traos dis- tintivos a correo do texto, a elegncia exterior e os baixos pre- os, e podia se gabar de que, muitas vezes, a "edio internacio- 6.+ Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 nal" era lanada muito antes de sua contraparte nacional. Segun- do dados de 1937, a firma havia produzido mais de 40 milhes de exemplares e o legendrio Baro de Tauchnitz havia recrutado 6.000 livreiros em todo o mundo. 58 Quer seja nas edis de Hachette, de Tauchnitz ou da Routledge Railway Library, ou em contrafaes belgas, os roman- ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro ao longo do sculo XIX ajudam a contar a histria dos circuitos, rotas e caminhos percorridos por esses livros a partir dos diversos centros euro- peus em seu longo percurso at os portos brasileiros. O que eles nos mostram que os mercados narrativos de que fala Moretti so efetivamente sem fronteiras. Por ocasio do centenrio de Tauchnitz, um outro editor, Walter Hutchinson (1887 -1950), pres- tou-lhe uma homenagem, lembrando-lhe as realizaes: There are no boundaries in literature - neither race nor creed, and books, I sometimes think, fonu probably the best basis for that true internationalism which it is hoped will one day be established in the world. Baron Tauchnitz, whose Centenary it is to be fittingly celebrated throughout the world, was, in my opinion, one of the greatest of embassadors, for he made available to millions of people the works of the greatest authors af alI nations. Baron Tauchnitz's brilliant idea developed into an internatianal institution and few men have left behind them in their work a more enduring memoriaP9 Mesmo que se oua nessas palavras um certo exagero encomistico, caracterstico dessas ocasies, foroso reconhe- cer que, assim como ocorreu no caso de Tauchnitz, o grande feito desses homens foi ligar os continentes por meio dos livros. Foi graas a esses espritos empreendedores, ao seu faro para os ne- gcios e sua ousadia que os livros se tornaram mais baratos, que as tiragens aumentaram e que obstculos foram transpostos para que os romances chegassem s mos de seus leitores, mesmo que eles fossem em pequeno nmero e estivessem distantes, do outro lado do oceano. " Cf. Tauchnitz-Edition. The British Library, London, 1992. 59 Idem, ibid. 1 CAMPOS, Humberto de. "Elogio do Analfabetismo". 1.1.: Dirio da Tarde. Ilhus, 28 de maro de 1933,. p.2 , Idem. A crnica na imprensa peridica oitocentista : Machado de Assis e a formao do pblico leitor Patrcia Ktia da Costa Pino (UESC) I. Oralidade e jornalismo No dia 28 de maro de 1933, o escritor Humberto de Cam- pos publicou, na pgina dois do Dirio da Tarde, peridico ilheense de destaque na sociedade da poca, o protesto "Elogio do Analfa- betismo", de onde destaco o fragmento a seguir: "Brasileiro que sabe ler o nome no pega mais no cabo da enxada, abandona a lavoura, e vem para a cidade ... "l . Sua concepo de ordem social, cultural e econmica fica clara no texto em questo: h indivduos privilegiados - os donos das terras - que podem e devem estudar, dominar as letras e os clculos; h, por outro lado, aqueles que, desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens, devem contentar-se em "servir aos senhores". Campos termina a crnica: "Quem planta alfabeto no apanha feijo"2 . Ou seja, para esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveri- am, com seu suor cotidiano, sustent-los, na eterna reproduo de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel. Esse patriarcalismo brasileiro remonta aos tempos coloniais e vem do outro lado do oceano. A Metrpole construiu, nos scu- los em que explorou nossas riquezas materiais e humanas, um pas dividido entre os que tinham e sabiam e os que no tinham e no conseguiam nunca saber. No tnhamos escolas, ou as tnhamos em pequenssimo nmero; no tnhamos imprensa; no tnhamos meios de produo e ampla circulao de conhecimento, enfim. Somente a partir de 1808, o Brasil conquistou o direito de contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo 65 66 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 negado nos sculos precedentes, reduziu nossas letras impressas marginalidade. Com a chegada de D. Joo VI e a transferncia da Corte para c, entramos, tardiamente, na era da imprensa. Mas, tudo o que impresso demanda leitura, supe-se. E como, at ento, o impresso era raro, a habilidade da leitura era um tanto ociosa, pelo menos, no que tange aos grupos populares e, em particular, s mulheres e aos negros. Na parte introdutria deA letra e a voz, Paul Zumthor estu- da trs formas de oralidade: a primria, prpria de grupos analfa- betos, sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influ- ncia externa da escrita; a terceira, chamada segunda, que se re- faz pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita (possuidora de uma escritura) e cultura letrada, na qual " ... toda expresso marcada mais ou menos pela presena da escrita ... "3 Mesmo voltadas para a Idade Mdia europia, as reflexes de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as pr- ticas culturais oitocentistas brasileiras. Ns no eliminamos radi- calmente a oralidade; aqui, escrita e oral partilham a cultura. A voz surge como alternativa para o olho, permitindo que a leitura fique na interseo visual/auditivo e contactando diretamente o universo oral do leitor. a Brasil do incio do sculo XIX era carente de editoras, livrarias e peridicos. Com o correr do sculo, a situao muda em parte, surgem livreiros, editores de peridicos 4 Mas os leito- res, esses espcimes raros, demandavam uma verdadeira emprei- tada de caa por parte dos produtores de bens culturais impres- sos. Essa precariedade, se criou obstculos para a formao de grupos de leitores, por outro lado, viabilizou o aproveitamento dos protocolos de comunicao oral que reinavam por estas plagas, deu margem sua incorporao aos padres do impresso, aproxi- mando este ltimo de possveis receptores. Tal incorporao, como a entendo, significou, de certa for- ma, fazer do papel e da tinta substitutos do corpo e da voz dos contadores de causas, dos porta-vozes das instncias administrati- vas etc, num processo de modernizao das aes de produo e de recepo. Se, nas prticas culturais marcadas pela oralidade, o tom, o gesto, do suporte voz, no mbito das prticas letradas, tornou- se necessrio o estabelecimento de instrumentos que orientassem a recepo do impresso, mediando o trnsito do oral para o escrito. 3 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Traduo de Amlio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. So Paulo, Companhia das Letras, 1993.p.18 4 PINA, Patrcia Ktia da Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro. Ilhus, EDITUS, 2002. p.29-59. A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao 00 pblico leitor 67 5 LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formao da leitura no Brasil. So Paulo, tica, 1996. p. 16 6 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. "O Jornal e O Livro". In.: --o Obra completa. 5ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985. V.3. p.943-944 Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... s existem o leitor, enquanto papel de materialidade histrica, e a leitura, en- quanto prtica coletiva, em sociedades de recorte burgus, onde se verifica no todo ou em parte uma economia capitalista."5 Leitor e consumidor so, portanto, termos equivalentes no dezenove, no s brasileiro. Enquanto indivduo de carne e osso, o leitor do dezenove o mantenedor do comrcio cultural: orientar seu gosto, estabelecer modos de habitu-lo a determinado tipo de texto e/ou de publicao eram aes autorais/editoriais importantssimas. Nesse contexto, o jornalismo foi fundamental. Suas carac- tersticas - periodicidade, universalidade, variedade de temas e matrias, atualidade, difuso - fazem dessa prtica cultural um grande instrumento de agregao de pblico (leitores e/ou ouvin- tes). O jornalismo desenha o espao social, marca seus contornos, suas reas de interseo; tudo, nas pginas dos jornais, tem uma seqncia, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de cultura impressa, especificamente, os tipgrafos e editores de jor- nais, desde os incios do sculo XIX, constroem suas pginas, a fim de que pudessem atender s necessidades e expectativas dos indivduos que, em funo da nova ordem social e econmica, passavam a ser vistos como consumidores em potencial. Em 1859, Machado de Assis publica, no Correio Mercantil, uma apologia ao Jornal: Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal um sintoma, um exemplo desta regenerao. A humanidade, como o vulco, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? No; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrtico, como ele. Foi a nova cratera do vulco. 6 Aos vinte anos de idade, o Bruxo do Cosme Velho lana um de seus feitios, atravs do texto "O Jornal e O Livro", do qual foi retirado o fragmento acima. O feitio a que me refiro a confisso pblica de sua paixo pelo jornalismo, paixo que ele almejava contagiante. Referindo-se ao jornal como uma alavanca de Arquimedes no que tange inteligncia humana, possibilidade jornalstica de penetrao social que Machado de Assis rende homenagem. 68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006 Para enfocar a importncia do jornalismo, o romancista fluminense faz uma breve reflexo sobre as relaes entre a imprensa e o livro: o livro era um progresso; preenchia as condies do pensa- mento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; no era ainda a tribuna comum, aberta famlia universal, apare- cendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um siste- ma planetrio. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuio do po eucarstico da publi- cidade, propriedade do esprito moderno: o jornaP ,--o op. cit., p.945 o livro era pouco: de circulao restrita, de manuseio dif- cil, interessando diretamente quase que apenas a um grupo seleto de indivduos cujos hbitos culturais foram estabelecidos quer no convvio escolar e acadmico, quer no convvio social com outros indivduos de formao cultural erudita, caso do prprio Macha- do de Assis, o livro s atendia em parte aos anseios de difuso cultural prprios desse escritor e de seus contemporneos. Reside a a importncia do jornal: dirios, semanais, quinze- nais ou mensais, os peridicos vinham preencher uma imensa la- cuna no Brasil oitocentista - vinham mediar as relaes entre a cultura oralizada, ou auditiva, que se constituiu e firmou no Brasil Colnia, e a cultura letrada, pautada pela insero e circulao do impresso como mdia veiculadora e organizadora do pensamento. Erafciller um jornal: suas folhas se dobravam, era pouco volu- moso, podia ser guardado at nas algibeiras. Podia ser lido na esquina, compartilhado por muitas pessoas. O jornal inclua, as- sim, os trnsitos cotidianos oitocentistas em suas possibilidades de apropriao, as quais j estavam previstas e configuradas em sua materialidade, em sua forma. Na teorizao de Luiz Costa Lima, h uma distino entre oralidade e auditividade. O primeiro conceito por ele entendido como prprio de culturas desconhecedoras da escrita, as quais tm na palavra falada o instrumento maior para a construo e a manuteno da memria e das tradies grupais. O segundo, por sua vez, caracteriza o uso de estratgias de aprendizagem, produ- o e circulao de conhecimentos de natureza oral, por parte de culturas que conhecem e dominam a escrita. A auditividade, as- sim, traz um peso negativo, pois implica o desprestgio do escrito e do impresso. Para o referido pesquisador, " ... a cultura auditiva A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor 8 LIMA, Luiz Costa. "Da Existncia Precria: O Sistema Intelectual no Brasil". In.:-. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. p.16 9 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Op. cit., idem. profundamente uma cultura de persuaso. Mas da persuaso sem o entendimento. Donde, da persuaso sedutora."8 Conside- rando a cultura brasileira como marcada pela auditividade, Luiz Costa Lima a caracteriza como uma espcie de reino do espetcu- lo, onde viceja o ornamental e ilusrio. Como se organizaria a empresa jornalstica nesse Brasil espetaculoso? Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da sociedade. Os antecessores do jornal dirio - dentre eles desta- que-se a leitura coletiva, em praa pblica, de ordens, leis, avisos oficiais - supriram, por alguns sculos, as necessidades de comu- nicao dos que aqui viviam e contriburam para que se estabele- cesse uma tradio de oralidade. O jornal dialoga com as marcas deixadas por essa tradio, revi sita-a e a coloca em interao com as mudanas culturais trazidas pelo sculo XIX. Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chegada da Famlia Real, a Imprensa Rgia, a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense, tendo, a princpio, Portugal como refern- cia e, com o peridico de Hiplito da Costa, o Brasil como ncleo explcito de suas tentativas de construo de um grupo receptor expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circu- lar mais ampla e livremente. lI. O jornal e sua importncia como suporte da escrita Para Machado de Assis, o jornal apareceu, trazendo em si o grmen de uma revoluo. Essa revoluo no s literria, tambm social, econmi- ca, porque um movimento da humanidade abalando todas as suas eminncias, a reao do esprito humano sobre as frmu- las existentes do mundo literrio, do mundo econmico e do mundo social. 9 Alm de mudar as prticas de produo literria, e isso por envolver um pblico amplo, "democrtico", diferente das elites habituadas ao consumo do livro, o jornal - e os demais peridi- cos, acrescente-se - abalaria as estruturas das sociedades a ele 69 70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sujeitas. E por que tal convico? No Brasil, especialmente, por- que o jornalismo, na tica machadiana, efetuaria um processo de educao informal, levando esse novo pblico, historicamente habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crena e a adeso s idias alheias, a fazer contato com uma maneira de produzir e divulgar bens culturais cuja nfase vai para o individu- al, o particular, o reflexivo. Cumpre ressaltar que a questo no problematizar uma possvel ameaa ao livro pela "popularidade" do jornal. Andr Belo assinala que o sentimento de que o livro estava ameaado apareceu pela primeira vez na segunda metade do sculo XIX, no momento em que, por razes econmicas, culturais e tecnolgicas, a lei- tura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de leitores que no liam livros habitualmente. 10 As relaes entre livro e jornal m e d e m - s ~ exatamente pelo tipo de pblico a que cada uma dessas mdias atende, pelos usos a que cada uma dessas mdias pode se submeter. O livro tem um leitor raro no Brasil Colnia e no Brasil Imprio, raro por inme- ras razes: pouca escolaridade da populao, desprestgio histri- co da leitura em favor da audio, preo das publicaes etc. Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... 0 livro configura-se como lugar em que a noo de propriedade mostra a cara, conferindo visibilidade a um princpio fundamental da sociedade capitalista. construda a partir da idia de que bens tm donos, fazem parte das transaes comerciais ... "1l O livro patrimnio, bem dur- vel, pertence a uma ordem social ligada noo de permanncia e de valor material agregado. O livro no era e no para "qualquer um". Infelizmente ... O jornal responde a uma demanda diferenciada: seu consu- midor queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para "man- ter a prosa na esquina". E mais que tudo: no queria - e ainda no quer - perder a segurana de se sentir parte de um processo mai- or, um processo que no o exclui atravs de mecanismos de sele- o que o caracterizam negativamente em comparao com seg- mentos sociais privilegiados. :0 BELO, Andr. Histria & liwo e leitura. Belo Horizonte, Autntica, 2002. p.20 11 LAJOLO, Marisae ZILBERMAN, Regina. O preo da leitura: leis e nmeros por detrs das letras. So Paulo, tica, 2001. p.l8 A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor 7\ 12 LIMA, Luiz Costa. "Machado de Assis: Mestre de Capoeira 11". In.: Jornal do Brasil. Caderno Idias. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1997. p.5 13 SANTAELLA, Lcia. Cultura das mdias. 2ed. So Paulo, Experimento, 2000. p.53 Em "Machado de Assis: Mestre de Capoeira lI", publicado no Caderno Idias do Jornal do Brasil, a propsito da edio das crnicas machadianas feita por J ohn Gledson, Luiz Costa Lima d uma pequena amostra de como se configuraria o carter auditivo da cultura brasileira na pgina jornalstica: "Ora, curiosamente, o xito de Machado dependia de que seus leitores estivessem habi- tuados, como ele prprio diria, s letras grandes, tipos in oitavo, com muitas ilustraes nas margens."12 Essa transposio para o impresso de elementos ornamentais, sugestivos de prticas cultu- rais auditivas, era efetivamente necessria para que o jornal pu- desse ter acesso aos novos consumidores que na poca ganhavam visibilidade - para que pudesse, sim, seduzi-los. E nessa afirma- o no vai nenhum desdouro, uma questo de "economia de mercado". A sociedade brasileira, at a difuso da imprensa, em mea- dos de sculo XIX, mantm hbitos culturais formados no mbito da oralidade, isto , o leitor brasileiro foi criado nos liames da palavra-espetculo. O ornato o seduz, a reflexo o afasta. preci- so reeduc-lo. Para Machado de Assis, o jornal a mdia adequa- da para levar essa tarefa a bom termo, conjugando prticas orais e prticas letradas. Segundo Lcia Santaella, a linguagem jornalstica insere-se perfeitamente no mundo de consumo capitalista: o jornal, por seu lado, aps um primeiro momento (suas fases ainda artesanais) de importao de beletrismo literrio, foi gradativamente desenvolvendo seu prprio know-how (ps-in- dustrializao) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e imparcialidade que o mosaico jornalstico parecia realizar, satisfazendo a necessidade de condensao informati- va e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento - (fico). J3 Enquanto suporte de informao e cultura, o jornal pode suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase inicial, no Brasil do sculo XIX, ele poderia ser lido em qualquer lugar, por uma ou por vrias pessoas, poderia ser alvo de uma leitura coletiva, alcanando, assim, at mesmo receptores analfa- betos - poderia ser, tambm, emprestado, vencendo limites, im- posies e dificuldades financeiras. 72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A viabilizao da leitura como ato social, da leitura por gru- pos, da audio do lido, faz do jornal o elemento revolucionrio a . que se refere Machado de Assis. EmA ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importn- cia do meio material do impresso para a efetivao de um proces- so receptivo: Manuscritos ou impressos, os livros so objetos cujas formas comandam, se no a imposio de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriaes s quais so suscetveis. As obras, os discursos, s existem quando se tomam realidades fsicas, inscritas sobre as pginas de um livro, transmitidas por uma voz que l ou narra, declamadas num palco de teatro. 14 o suporte da escrita, ento, influi diretamente no processo de recepo. O livro, ao surgir, incrementou uma elitizao da leitura: quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor dialoga to s com o lido. O livro objeto de status, de determina- o do lugar social dos grupos que com ele so habituadas. Luiz Costa Lima, em "Comunicao e Cultura de Massa" , afirma que, no sculo XIX europeu, h imensa quantidade de pu- blicaes, entre jornais, romances-folhetim etc, mas no h, ainda uma efetiva "cultura de massa", uma vez que se mantm enorme distncia entre produes culturais destinadas elite citadina, ao homem urbano, e ao homem rural, por exemplo. Segundo ele, "A comunicao cultural tem suas centrais indicadas nos mapas das cidades: so os teatros e seus sucedneos, os chs recitativos, os jornais matinais, as salas de concerto." 15 Isso significa que, na tica do terico em questo, nem a produo cultural que se que- ria voltada para novos e amplos segmentos sociais efetivava seus objetivos de circulao e consumo. Mas, j um comeo de mu- dana, j um sinal de incorporao de fraes sociais at ento excludas do circuito cultural. Ao relacionar livros e jornais, Luiz Costa Lima tem um ponto de vista conteudstico: entre a adaptao de um dado assunto para um livro e para um artigo de jornal h uma boa distncia, o que no impediria que "questes graves" fossem tratadas nos dois veculos. Na verdade, enquanto mdias da escrita, livros e jornais 14 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os sculos XIV e XVII. Traduo de Mary Del Priore. Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1994. p.8 l' LIMA, Luiz Costa. "Comunicao e Cultura de Massa". In.: MOLES, Abraham A. et alii. Teoria da cultura de massa. Introduo, comen- trios e seleo de Luiz Costa Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. p 40 A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor \6 CHARTIER, Roger. Op. cit., p.16 17 __ "Do Livro Leitura". In.: -. et alii. Prticas da leitura. Traduo de Cristiane Nascimento. Introduo de Alcir Pcora. So Paulo, Estao Liberdade, 1996. p.96 tm funes, em geral, diferenciadas: pela periodicidade curta, pela freqncia da publicao, pela multiplicidade de assuntos enfocados em uma mesma edio, as folhas tendem a tratar pano- ramicamente o que noticiam, informando o pblico dos aspectos essenciais de cada fato; os livros, por outro lado, do um enfoque verticalizado aos assuntos que abordam e isso, no mnimo, por uma questo de volume e extenso. Segundo Roger Chartier, "O essencial compreender como os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, maneja- dos e compreendidos" .16 Essa diversidade no implica, necessari- amente' marcas de hierarquizao, no faz, por exemplo, o livro melhor que o jornal, mas aponta para a relao indispensvel en- tre contedo e suporte material do texto. Em "Do Livro Leitura", Chartier trabalha com a questo da posse do livro e com a questo dos usos do impresso e das formas de apropriao do mesmo, colocando a histria do im- presso como uma histria das prticas culturais a ele associadas: ele expe duas formas de abordagem da histria do impresso e da leitura - a que enfoca a produo de textos e a que aborda a pro- duo de livros. O que importa para a investigao da leitura via produo de textos so as senhas, explcitas ou implcitas, traba- lhadas pelo autor, suas instrues ao leitor, as quais tm duas es- tratgias, a saber, inscrever no texto convenes sociais ou liter- rias e empregar tcnicas que objetivam a produo de um deter- minado efeito: Existe a um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecnica literria que o coloca onde o autor deseja que esteja. 17 Essas instrues, no entanto, se cruzam com outras, relacio- nadas ao suporte material da escrita e que envolvem questes tipo- grficas, como disposio e diviso dos textos, ilustraes etc. Tal trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com ele, e traz implcito o tipo de leitor a que o impresso se dirige: 73 74 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Os dispositivos tipogrficos tm, portanto, tanta importncia ou at mais, do que os 'sinais' textuais, pois so eles que do suportes mveis s possveis atualizaes do texto. Permitem um comrcio perptuo entre textos imveis e leitores que mu- dam, traduzindo no impresso as mutaes de horizonte de ex- pectativa do pblico e propondo novas significaes alm da- quelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. 18 o enfoque do suporte material da escrita abre, portanto, espao para o social. Os protocolos de leitura implicados no im- presso indiciam os possveis usos que cada grupo social pode fa- zer dele. Como afirma Mrcia Abreu: "A leitura no prtica neu- tra. Ela campo de disputa, espao de poder."19 A percepo da problemtica envolvida no consumo do impresso implicou, desde seus comeos, um investimento em estratgias capazes de abrir caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem cir- cular produtivamente nas sociedades. Faustino Xavier de Novaes, em tom bastante divertido, pu- blica em O Futuro, uma "Chronica", texto bastante interessante, do qual retiro o seguinte fragmento, para reflexo: "Um peridico que encerra cinco artigos, ocupando 40 pginas, e uma gravura, e que s desagrada pelo formato, um excelente peridico. Falta- lhe s crescer, ou diminuir, e tudo isso poder suceder com o tempo."20 Pode-se perceber que o cronista parece se dar conta da importncia do suporte material do impresso em seu processo de consumo e apropriao: tamanho, quantidade de textos, de pgi- nas, presena de ilustraes, localizao das mesmas, relao en- tre o lugar do texto e o dos anncios, enfim, so fatores decisi- vos, ao que tudo indica, na relao entre o bem cultural impresso e seu possvel e desejado consumidor. No sculo XIX brasileiro, ao que tudo indica, independen- temente de o escrito circular no livro ou no jornal, sua transfor- mao em moeda cultural de troca cotidiana foi objetivo comum a toda a nossa elite intelectual. O consumo da cultura impressa tor- nou-se capital nessa poca. Aument-lo era prioridade, ao contr- rio do desejo de Humberto de Campos, expresso no protesto de 1933, cuja abordagem deu incio a este estudo. Para isso, era pre- ciso tornar essa cultura impressa no apenas um instrumento de educao distensa, informal: o consumidor educado dentro de de- terminados padres passaria a exigir a permanncia desses mes- IS __ Op. cit., p.98 19 ABREU, Mrcia. "Prefcios: Percursos da Leitura". In.:-. (org.). Leitura, histria e histria da leitura. Campinas, Sp, Mercado das Letras, Associao de Leitura do Brasil; So Paulo, FAPESP, 2002. p.IS 20 NOVAES, Faustino Xavier de. "Chronica". In.: O Futuro: periodico litterario. Fundao Casa de Rui Barbosa, Rev20 1, V.I, n I, set.l862. p.1 .:.. ~ r n i c a na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor 21 ASSIS, Joaquim Maria \, lachado de. "29 de outubro de 1893". In.: --o A semana. Rio de Janeiro/So Paulo/Porto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. V. I. p.409 "-. Op. cit., p.435 mos padres. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impos- tos, at porque essa imposio no era explcita. Era preciso re- volucionar o horizonte de expectativas da poca. IH. Na impossibilidade de uma concluso ... No dia 29 de outubro de 1893, Machado de Assis publica, em A Semana, uma curiosa crnica. Trata-se da representao de uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se afastara da coluna na semana anterior por problemas de sade. A leitora reclama a presena do cronista, colocando sob suspeita a doena alegada e imputando ao texto a caracterstica de soporfe- ro. 21 uma leitora ousada, sem dvida. O espao deixado vago por Machado de Assis na Gazeta de Notcias do dia 22 de outubro foi ocupado por um texto de Ferreira de Arajo, diretor do referido peridico. Houve, apenas, uma al- terao no ttulo da seo usualmente ocupada pelo escritor fluminense: em lugar de "A Semana", "Uma Semana". Trocar a definio do "A" pela indefinio do "Uma" poderia dar ao leitor habituado coluna uma idia de exceo, camuflando a lacuna e, simultaneamente, exibindo-a. Ferreira de Arajo demonstra grande empenho em descul- par-se com o leitor: Doente o cronista, doente ou alistado em um batalho de vo- luntrios, voluntrio ou preso sem noo de culpa, preso ou nadador barrigudo, fora que algum o substitua por esta vez s, amigo leitor, que h tempos trazes o paladar apurado pelo manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. 22 O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mes- mas: somente por doena, guerra ou priso o cronista poderia afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicaes que simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas do leitor oitocentista. Era necessrio ocupar o lugar deixado por Machado de Assis. Outra questo que ressalta do fragmento aci- ma: o leitor um "amigo", algum a quem no se poderia decep- cionar, um "amigo" que j se habituara a encontrar "manjares jornalsticos" naquela mesma seo do peridico, todo domingo. 75 76 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 o hbito estabelecido pelo cronista machadiano parece ter um papel fundamental na interao do jornal com o receptor: resguard-lo, ao que tudo indica, essencial. Na crnica de 29 de outubro, em que retoma Machado de Assis, um outro aspecto des- sa necessidade de se criarem e alimentarem hbitos de recepo aparece no dilogo do cronista com a leitora ousada e irrequieta: - No, no me mande embora, deixe-me ficar ainda um instan- te. to bom v-la, mir-la ... E depoi's, advirto que estou ape- nas na tira oitava, e tenho de dar, termo mdio, doze. - Vamos; fale por tiras. - Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. No esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feiti- os e o gosto que sinto em estar a seu lado. 23 o cronista parece ficar merc do consumidor: pede que este continue a l-lo. S que a advertncia de que um determina- do nmero de tiras deveria ser preenchido, alm de apontar para a obrigao profissional do jornalista - que deve ocupar um deter- minado espao no papel, espao este que lhe prvia e sistemati- camente indicado - d outra dimenso ao relacionamento escri- tor/jornal/pblico: o termo mediano desse circuito - o jornal - tinha sua organizao particular, a qual precisava ser seguida pe- los dois outros termos - escritor e pblico, isso para que se esta- belecessem hbitos de consumo para a mercadoria adquirida, em- prestada ou ouvida, i.e., a fim de que o que estivesse impresso pudesse ser conhecido. Assim, o aparecimento repetitivo da mes- ma coluna, nos mesmos dias, em um dadO peridico, seria, de um lado, garantia de circulao para o jornal e, de outro, garantia de distrao para o consumidor. Dividir o espao do papel impresso entre o texto literrio ou no e anncios de Semolina, espartilhos, mquinas de costura; usar o texto como moldura para uma ilustrao central; conversar familiarmente com os leitores; publicar as sees sempre na mes- ma pgina e em dias pr-determinados; usar linhas separadoras de colunas e condutoras do olhar do leitor; trabalhar com tipos mai- ores para facilitar a leitura. 24 Todas essas estratgias, muitas delas simbolizando uma incorporao de prticas culturais auditivas ao espao da escrita, funcionaram para persuadir, seduzir, envolver o receptor oitocentista brasileiro. 23 _. Idem, p.409 24 PIN A, Patrcia Ktia da Costa. Op. cit., p.149-162 A crnica na imprensa peridica oitocentista: Machado de Assis e a formao do pblico leitor Todas elas indiciam o imenso valor cultural da pgina jornalstica nesse processo de construo de hbitos de leitura e consumo do impresso, permitindo que se reflita sobre sua funcio- nalidade social, sobre como o jornal, enquanto suporte da escrita - literria ou no -, contribuiu para uma espcie de educao informal do pblico, tomando-se, at hoje, mdia privilegiada no reino da escrita, configurando-se como a alavanca de Arquimedes a que se referiu Machado de Assis, em 1859. Referncias ABREU, Mrcia. "Prefcios: Percursos da Leitura". In.: -. (org.). Leitura, histria e histria da leitura. Campinas, Sp, Mercado das Letras, Associao de Leitura do Brasil; So Paulo, FAPESP, 2002. ARAJO, Ferreira de. "22 de outubro de 1893". In.: ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A semana. Rio de Janeiro/So PaulolPorto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. v.I. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. 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So Paulo, Companhia das Letras, 1993. o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim Socorro de Ftima Pacfico Vilar (UFPB/Cnpq) o marido da adltera faz parte daquele rol de obras do sculo XIX que foram relegadas por certa histria da literatura brasileira que "dividia o tempo em segmentos demarcados pelo surgimento de grandes escritores e grandes livros" (DARNTON, 1990, p. 132). No Brasil, alm de esquecidos alguns livros, tam- bm o foram o suporte por onde circularam - predominantemente o jornal- e os leitores que os leram e participaram indiretamente da sua elaborao. nosso objetivo portanto, trazer para o centro do debate tanto a figura de Lcio de Mendona, como escritor importante do sculo XIX, como tambm o seu romance e o pa- pel que o jornal desempenhou na formulao de um gnero liter- rio, fundamental para a formao da literatura brasileira, que o romance-folhetim. Para no fugir a essa tradio de escritor jornalista ou jor- nalista escritor to peculiar ao sculo XIX, a carreira de Lcio de Mendona, autor de O marido da adltera, objeto de anlise des- te ensaio, esteve desde muito cedo ligada ao jornal. Sabe-se que, quando aluno do Colgio Pimentel, em 1864, fundou e manteve como redator e proprietrio um pequeno jornal, A Aurora Fluminense. Em 1867, j na Corte, funda outro jornal A Tesoura, que ilustrado. Na dcada de 70 passa a trabalhar no jornal A Repblica, como tradutor e noticiarista, ao lado de Machado de Assis, Jos de Alencar, Quintino Bocaiva, entre outros, convi- vendo assim com vrias geraes de escritores. Depois da passa- gem pelo jornal Colombo do interior de Minas Gerais, Lcio de Mendona volta ao Rio de Janeiro em 1888 e funda o jornal O Escndalo, porta-voz do carter militante desse autor: "Chama- se O Escndalo esta revista porque vivemos num tempo tristssimo, 79 80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 delimitado, constrito, impregnado de conveno e de mentira tem- po que escandaloso dizer a verdade. Pois havemos de diz-la, nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa a quem doer" (MENDONA, 1934, p.32). Com o fim desse jornal, Lcio de Mendona passa a traba- lhar na a redao de O Pas e do Jornal do Brasil. No Rio, estabe- lece contato com outros escritores, entre os quais Pardal Mallet, Olavo Bilac, Lus Murat e Raul Pompia. Com Machado de Assis, Medeiros de Albuquerque e outros, ele funda a "Panelinha", que consistia de encontros mensais, em que aproveitavam almoos e jantares para discutir interesses da profisso. Em 1889, outro lu- gar de reunio desses intelectuais, para um dirio ch das cinco foi a redao da Revista Brasileira, onde Lcio de Mendona, agora membro do Supremo Tribunal Federal, teria ressuscitado a idia de criar a Academia Brasileira de Letras, "a ser fundada ofi- cialmente pelo governo republicano". Desde ento, a "Academia passou a ser tema de interesse dos debates dos presentes, que, concordando com Lcio, iniciaram uma intensa campanha pelas pginas dos jornais em prol do apoio governamental na implementao do plano acadmico" (RODRIGUES, 2001, p. 34). Talvez porque, como afirma Joo Paulo Rodrigues, o projeto ori- ginal de uma Academia patrocinada pelo Estado tenha falhado, o nome de Lcio de Mendona muito pouco lembrado na criao da Academia, cabendo todo o mrito de fundador figura Macha- do de Assis. Alm do carter de fundador, Machado de Assis foi responsvel pela idia equivocada, segundo Joo Paulo Rodrigues, de que a instituio tinha e tem carter "apoltico": "Era [Macha- do de Assis] o exemplo maior de escritor que havia conseguido se manter puro, o que significava que conservara sua produo e sua postura afastadas da ingerncia poltica ( ... )" (Idem, p. 60). Apenas em 1901, em um jantar em que se reuniram vrios escritores em um almoo oferecido por Lcio, em homenagem ao lanamento do seu livro Horas do bom tempo, "Valentim Maga- lhes proclama-o, em pblico, 'o verdadeiro fundador da Acade- mia Brasileira" (Idem, p. 68). Sobre sua participao no surgimento da Academia, Coelho Neto assim comenta: Lcio era o mais corajoso e solcito dos aios da pobrezinha. Foi ele que a vacinou com a linfa da perseverana. Foi ele que o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim I Sua obra consiste prin- cipalmente de livros de poesia (conf. MENDONA, 1934)e alguns trabalhos jurdicos, alm da sua colaborao em jornal. a curou da coqueluche, que lhe ps ao pescoo o colar de mbar para evitar as crises de dentio, que a batizou no templo das musas e que lhe incutiu na alma a grande f, tnico que a forta- leceu para vencer os percalos da primeira infncia ... "(Apud, MENDONA, p. 175)". Foi no jornal Colombo, onde Lcio de Mendona trabalhou de maro de 1879 a junho de 1885, que foram publicados os cap- tulos do folhetim O marido da adltera, seu nico romance l . Como a maioria dos jornais e folhas das cidades do interior, o pequeno jornal da provncia de Campanha, do estado de Minas Gerais, tan- to circulou por todo o estado e pas, como fez circular em suas pginas matrias e artigos dos principais jornais da corte e de ou- tras provncias. O certo que este romance s foi publicado em livro em 1882, pela tipografia de Oliveira Andrade, proprietrio do jornal Colombo. Lcio de Mendona dedica O marido da adltera, que cha- ma de "ensaio de romance", ao colega Dr. Esperidio Eloy de B. Pimentel Filho, a quem confessa, pedindo a benevolncia do ami- go que do romance nada pode esperar como obra de arte, uma vez que fora Escrito para folhetim do Colombo, quase sempre hora de fechar-se o correio da Campanha, e impresso em folha de livro logo depois da publicao peridica, sem tempo de corrigir-se, sem prvia leitura do trabalho completo, o que deu causa a numerosas retificaes posteriores ( ... ) (p. 22) Na sua dedicatria, Lcio de Mendona encena uma con- cepo bastante corrente no sculo XIX acerca do jornal. Moran- do em So Gonalo, ele enviava pelo correio o folhetim a ser publicado no jornal Colombo, da cidade de Campanha. Assim, o texto escrito para o jornal sempre fruto da urgncia, redigido ao calor da hora, sem burilamento ou correo, o que caracteriza o demrito com que foram tomadas as publicaes em jornais. Ao mesmo tempo, a divulgao de um romance em jornal era essen- cial para os autores, pois ele dava projeo aos folhetins, muitos dos quais, rapidamente transformados em livros, de onde eram apagadas as marcas que lhes dava o jornal. o que se observa no depoimento de Coelho Neto, autor de obra to volumosa que, ao 81 82 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 contrrio da presso sempre alegada como transtorno pelos escri- tores, sentia grande prazer enquanto escrevia, mas se assustava depois com os erros ali encontrados: "Tenho um processo de tra- balho constante. S as novelas foram acabadas e retocadas antes de serem entregues aos editores. resto da minha obra tem sido escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei fantasma, O turbilho" (In RIO, 1907, p. 56). Talvez porque tenha lhe faltado essa reviso que no ro- mance de Lcio de Mendona percebemos de forma bastante evi- dente as caractersticas do romance-folhetim, revelando, como est implcito nas palavras do autor, que o jornal imprime um modo de escrever e constitui um gnero que lhe bastante peculiar. Trata- se do romance-folhetim, cujo "texto definido externamente pela forma como apresentado: o fragmento cotidiano do jornal que vai por sua vez constituindo fascculos que levam ao todo do vo- lume" (MEYER, 1996, p. 159). Em outras palavras, segundo Antonio Hohlfeldt (2003, p. 40), citando Lise Quefflec, a carac- terizao do romance-folhetim francs possui as seguintes carac- tersticas do ponto de vista da sua estrutura e circulao: Seu suporte o jornal e, por isso, ele deve possuir atualidade em seus temas; divulgado na seqncia diria do rodap do jornal, exige rapidez de escrita mas, ao mesmo tempo desen- volvimento do prprio enredo, exigindo por vezes o retomo de alguma personagem ou no valorizando determinada figura para a qual o romancista havia reservado um papel de maior signi- ficao na narrativa. H ainda que se considerar o romance-folhetim a partir do tipo de contedo e do pblico que o l. Assim temos que havia os romances para homens, o romance para mulheres e aqueles desti- nados a crianas e jovens; naqueles dedicados s mulheres, como o caso de O marido da adltera, prevalecem os de narrativa "lacrimenjante ou sentimental", as narrativas de "alcova", cujo relato principal diz respeito traio (HOHLFELDT, p. 45). Mesmo correndo o risco de toda a generalizao, podemos afirmar que O marido da adltera e A conquista de Coelho Neto so uns dos raros romances do sculo XIX que deixam explcita essa ntima relao entre jornal e literatura. Em A conquista, Co- elho Neto tem como objetivo mostrar o jornal e sua importncia o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim nas conquistas e na "odissia" de toda uma gerao de escritores, a quem dedica o livro. Como ele mesmo afirma na dedicatria, dele apenas a memria, que utiliza para tratar da vida de todos os que "venceram" e no perderam a esperana. Seu romance traz para o centro do debate, o modo como alguns dos principais inte- lectuais da poca se utilizaram e trabalharam no jornal. Entre eles, Aluisio de Azevedo, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Jos do Patro- cnio, Pardal Mallet, Guimares Passos e Paula Ney (OLIVEIRA, 1985, p. XIII). No romance A conquista, o autor encena esse co- tidiano de trabalho atravs do personagem Anselmo, que todos identificam com ele prprio. Nele, Anselmo afirma que "levanta- va-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade, sentando-se imediatamente mesa de trabalho. Escrevia o artigo de fundo, a Bomia, romance au jour le jour, a crnica do dia, redigia o noticirio e todas as sees" (p.21O). Em A conquista, a literatura ganha um suporte e uma materialidade e os escritores deixam de ser prncipes de poetas e passam condio de empregados e trabalhadores. Como afirma Cristiane Costa em Pena de aluguel, esse brilhante estudo sobre a relao entre os escritores e o jornal, "o jornalismo tambm esta- va longe de ser uma profisso bem-remunerada. Para conseguir melhor renda, at os mais famosos escritores eram polgrafos obri- gados a se dividir por vrios rgos de imprensa" (2005, p.55). Mas apesar da presena constante da literatura e do jornal, no h na construo do romance os elementos prprios a outros livros do mesmo autor, construdos para e no jornal, como Capital Fe- deral, o Rei fantasma, O turbilho, acima referidos. Segundo Flora Sussekind, em um dos rarssimos estudos motivados pelo romance O marido da adltera, "o papel prepon- derante do jornal na organizao da narrativa e como elemento que se faz referncia a todo o momento" (1993, p.219). O roman- ce Marido da adltera construdo por cartas da personagem central Laura e do amigo de Lus, seu marido, Otvio redao do jornal O Colombo. Denominadas respectivamente de "Cartas de uma desconhecida" e "As confidncias do morto". Em ambas, o autor utiliza mais do que as cartas aos leitores do jornal, pois faz uso das cartas pessoais de Lus dirigidas ao amigo e de cartas de Laura a amiga Malvininha, bem como de uma cpia de seu livro de lembranas. Todo esse artifcio prprio ao romance-folhetim, 83 84 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 conforme analisaremos a seguir, serve para contar a histria de uma moa do interior que, ao se mudar para o Rio de Janeiro, deixa-se seduzir pelo primeiro rapaz que encontra. Baseado no determinismo, o autor tenta provar a influncia da famlia no car- ter de Laura, a personagem principal. Alis, a famlia quem v em Lus, jovem bacharel, a oportunidade de tramar o casamento da filha, a fim de "reparar" o erro do passado. Lus, por sua vez, ama Eugenia que obrigada a casar com um jovem rico. Laura depois de casada vai com o marido para o interior, onde passa a tra-lo, movida pelo tdio e pela falta de amor. O ltimo caso de Laura ser na casa da irm, que era uma cortes, famosa pelos rui- dosos casos amorosos com homens ricos. Numa rocambolesca tra- ma, Lus toma conhecimento do adultrio e se mata em seguida. Em O marido da adltera, do ttulo ao leitor implcito, do uso que a narradora faz do pseudnimo, passando pelas cartas em que so contadas as desventuras da adltera e do seu marido, observamos as marcas explcitas dessa relao. Na verdade, at mesmo o captulo inicial, " redao do Colombo" onde Laura pede ao redator para que publique por sua vez, reproduz o argu- mento do primeiro captulo de Os dramas de Paris, de Ponson du Terrail, onde este vai contar como submeteu um manuscrito ao diretor do jornal La Patrie, que constava de mais de 100 folhetins, (MEYER, 1996, p.147). Entre as tantas razes para se justificar o pouco caso que a histria da literatura teve com a contribuio do jornal para sua consolidao, pode-se incluir a rgida diviso que colocou em la- dos opostos jornalistas e escritores, ou que identificou a literatura com a "alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa". Cristiane Costa tenta retomar e compreender os laos que uniram o jornalis- mo e a literatura e indagar sobre essas entidades que so autor jor- nalista e autor literrio e de "como e quando os dois campos se constituem em separado. Para ela, "somente na dcada de 20 do sculo passado que a literatura (ou, antes, o beletrismo) ser ex- pulsa do jornal", mas "essa separao ser to naturalizada que se esquecer que as duas atividades comeararnjuntasem 1808" (2005, p. 14). Para analisar essa relao nas primeiras dcadas do sculo XX, a autora toma como base o clebre Momento Literrio, de Joo do Rio, especificamente uma das cinco perguntas: "O jornalis- mo, especialmente no Brasil, um fator bom ou mal para a arte o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim literria?" (Rio: 1907, p. XVIII). As respostas, sejam em forma de cartas, seja atravs das entrevistas, foram publicadas primeira- mente na Gazeta de Notcia - seguindo um caminho bem conhe- cido do texto literrio - e s em 1907 tiveram sua publicao em livro. Segundo nota de seu editor, os depoimentos fizeram tanto sucesso, "que os principais jornais dos principais Estados no du- vidaram em aplic-los s respectivas literaturas" (Idem, p.VII). Em geral, tinha-se uma viso ambgua do jornal. Ao mesmo tempo em que se reconhecia sua importncia para a formao da literatura brasileira e para a consolidao e reconhecimento da carreira do autor, revelava-se o que consistia a queixa mais co- mum: o teor superficial, ligeiro e pouco profundo dos textos pro- duzidos em jornal, marcados pela necessidade de serem produzi- dos de forma rpida e cotidiana, fazendo com que os jornalistas escrevessem sob presso. Acreditava-se que, movidos pela pres- so, dificilmente conseguiriam produzir algo de qualidade. Nada diferente do que afirmava, em 1859, Machado de Assis na crnica "O folhetinista". Para ele, o folhetinista uma planta europia que se alastrou pelo mundo afora "por onde maiores propores to- mava o grande veculo do esprito moderno, o jornal" (1986, p. 967). Ele no tem dvidas que o folhetinista uma "nova entidade literria", que une a "arte do til e do ftil, o parto curioso e singular do srio, consorciado com o frvolo", com dias tecidos a ouro, a no ser por aqueles em que tinha que escrever, quando "passam-se sculos nas horas que o folhetinista gasta mesa a construir a sua obra". Essa dificuldade, segundo o autor, origina- se do "clculo e do dever". Essa imagem do folhetim - que ser o espao por excelncia do literrio -, do romancista, do poeta e do jornal criada por Machado de Assis modelo de uma concepo que se fortalecer durante o sculo XIX. Esta lgica do literrio como o ftil til, parece nortear a personagem Jos do Patrocnio do romance A conquista, de Coelho Neto, que ao propor a cria- o de um jornal, inclui a crnica literria, mas com a ressalva de que para ele, as "duas coisas srias do jornal so o noticirio e a gerncia" (COELHO NETO, 1985, p. 150). Na desvalorizao do texto publicado em jornal, est impl- cita a valorizao do livro pelo tempo que se lhe podia dispensar na r e v i s ~ ~ , na correo dos erros tipogrficos e at mesmo para evitar-se algo muito comum aos folhetins que era a inverossimi- 85 86 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 lhana, muitas vezes constatada na morte de um personagem que voltava trama muitos meses e captulos depois, em um sinal cla- ro de que o autor no lia o escrevia e era trado pela memria. Na verdade, o escritor de folhetins contava com a desateno do seu leitor, ou leitora, como sempre explicitou Machado de Assis, uma vez que estes eram publicados emjornais que circulavam em dias alternados, s vezes semanalmente, outras vezes quinzenalmente. o caso do jornal Colombo, onde primeiramente foi publicado o romance em questo, que saa apenas nos dias 2, 8, 14,20 e 26 de cada ms (MENDONA, 1934, p.23). Mesmo que fosse publica- do em dias espaados, os leitores do jornal, a quem Lcio de ~ l e n dona, editor do Colombo e personagem do romance no queria desagradar, prezavam a seqncia, o desenrolar de toda histria e a perspectiva de desenlace final, razo por que ele temeu que a carta que dava incio quela histria no fosse seguida por outras: "publica-se a primeira carta (que ela havia dirigido aos redatores para que fosse publicada). Mas as outras? Mas publicar a primeira e ter talvez de seqestrar as seguintes? nada menos que excitar a curiosidade dos leitores e deix-la insaciada: m ao em todo caso, talvez desgosto para os assinantes, descortesia com certe- za" (p. 25). A preocupao com os leitores revela as injunes que este comeava a exercer no tocante s assinaturas dos jornais. Observe-se que no h por parte do redator do jornal qual- quer manifestao no sentido de no publicar a carta. Por isso, que no gesto de Laura da certeza da publicao de suas cartas, assim como no do amigo de Lus o outro narrador da histria, revela-se uma imagem bastante prxima do que ocorria nos jor- nais: esse era um espao propcio a vrios gneros literrios 2
parte todos os propsitos polticos e libertrios do jornal, dir Silva Ramos em O momento literrio, h uma "feio essencial- mente mercantil das folhas dirias, revelada nas pequeninas preo- cupaes de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de sensao, ao paladar das criadas de servir ( ... ) (1907, p. 179)". Deixando de lado os preconceitos de Silva Ramos, suas observa- es talvez nos ajudem a entender por que alguns escritores trata- ram de "retirar" de seus textos as marcas do jornal. Afinal, as folhas e jornais eram muitos e toda a colaborao era bem-vinda. Como sugerem as palavras do editor Lcio de Mendona em rela- o ao desejo de Laura de ter suas cartas publicadas: "a vo para , Para Flora Sussekind (1993, p. 2 I 6), o fato de o missivista ir se tornando o narrador principal do relato, deve-se simpatia do diretor de O Colombo, uma vez que este no poderia deixar de se aliar a "algum que encara o jornal como um espao polmico, plural, semelhana da imagem liberal que sonha para0 pas". ) marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim a imprensa as suas cartas, e iro pelo mesmo caminho as que vie- rem. Se, porm, como mais provvel, Laura de M. quer fazer romance sentimental, ainda que verdadeiro, que o faa embora; s temos que lhe agradecer a colaborao, que interessante" (p. 26). No havia seleo, nem critrios para a publicao dos textos no jornal e grande parte do que se publicava era ou annimos, ou sob pseudnimos. Como argutamente observa Flora Sussekind (1993), o jor- nal exerce no romance o papel de protagonista, pois que foi atra- vs dele que Laura conheceu Lus Marcos, naquilo que era muito comum: os bacharis iniciarem (muitos evidentemente no conse- guiram passar dos annimos e da "colaborao solicitada") sua carreira literria, publicando em jornais de So Paulo, o que foi o caso do prprio Lcio de Mendona. Laura "j conhecia o nome de Lus Marcos, e sabia de cor muitos versos dele publicados em folhas de So Paulo que o bacharel mandava famlia" (p. 59/60). O jornal era O Apstolo lido no s por Laura, mas por sua amiga beata que tambm j conhecia o rapaz de nome e lamentava que ela viesse a casar "com um inimigo da religio" (p. 99). H tam- bm o episdio, j notado por Flora Sussekind, em que Laura, planejando um futuro na Corte para ela, imagina uma carreira jornalstica para o marido para a qual tinha os pr-requisitos ne- cessrios: "tinha amizades no jornalismo fluminense, podia obter que o tomassem para colaborador de alguma das folhas dirias" ... (p. 123). H inclusive um momento irnico, visto pelo prprio Lus, minutos antes de ele mesmo ler em um jornal a sua nefasta hist- ria. Ao entrar em uma barbearia, enquanto esperava viu um rapaz "muito embebido na leitura de umjornal do dia, em que colabora- vam escritores novos. Imaginei pelo interesse, que estaria lendo algum artigo dele prprio" (p. 148). atravs da leitura de jornais que Lus toma conhecimento da traio da mulher. tambm pelo jornal que seu amigo se inteira da morte dele. No jornal, ele reco- nhece a histria de Lus e identifica no pseudnimo a verdadeira autora do folhetim. Mais que isso, o jornal era o lugar das disputas amorosas, palco dos amores impossveis, dos amores risveis, revelados numa guerra de textos nem sempre tidos por "literrios", seja atravs de poemas amorosos - muitas vezes em forma de carta - seja em trovas populares, mas todos de uma forma preponderantemente 87 88 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 marcados pelo anonimato, escondidos pelo pseudnimo, recurso utilizado por praticamente todos os escritores e muitos leitores que viam seus textos publicados, como fez Laura, com o nome ngela do folhetim que Lus leu. Dentro da narrativa mesma, per- cebe-se que anteriormente esta histria, que era lida atravs de cartas, veio a pblico, em um jornal, quando um "amigo literato distinto" props a Otvio que se revelasse a traio de Laura, "num conto engenhoso, que s os interessados entendessem" (p. 145). Outro uso para o jornal tambm est descrito no romance. Trata-se de uma fala de Joo, padrinho de Laura, inconformado com o fato de sua famlia no lhe ter procurado quando passaram aperto financeiro: "- Diabo! - dizia com voz velada de comoo. - Por que no me escreveram ... para toda parte do mundo ... ainda que fosse pelo jornal? .. "( p. 53). Muito nos ajudaria poder consultar os originais onde foi publicado pela primeira vez O marido da adltera, para determi- nar com preciso o nmero de exemplares e meses em que foi dado a pblico. Mas pela estrutura dos captulos e a informao de que O Colombo saia pelo menos 5 vezes por ms, podemos nos aproximar desse tempo real. O livro composto de 14 partes, dividas entre as cartas que Laura escreve aos leitores do jornal e aquelas que escreve a sua amiga Malvininha, alm das memrias do seu livro de lembranas, que formam os IX captulos denomi- nados de "Cartas de uma desconhecida"; a outra parte denomina- da de "As confidncias do morto", refere-se s cartas do narrador ao jornal e quelas de Lus que lhe chegaram s mos. Ao todo so 6 cartas distribudas em 3 captulos. Essa variedade de gne- ros e multiplicidade de vozes, ou "virtuosismo rocambolesco" como observa Marlyse Meyer, ao analisar os romances de Poison du Terrail, so constitudas pelas "famosas gavetas caractersticas do romance arcaico ... ". Segundo a autora (1996, p. 159): Internamente o texto apresenta os mais variados processos nar- rativos, que emprestam todos os modelos para compor uma vertiginosa construo em abismo estruturada em embuste e ardil como forma de articulao do enredo: embuste de verda- de, embuste de mentira, vtimas de mentira (cmplices e pr- informados) etc. o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim Nessa "construo em abismo", h o embuste da narradora, "ardilosa" como mulher e tambm como narradora; se ela enga- nou o marido, engana agora os leitores. Primeiramente, faltando com a verdade, quando surge um outro narrador, amigo de Lus, o marido trado, que resolve contar a verdadeira verso da hist- ria. Histria do passado alis que ele conhecia em detalhes, mas que resolvera ocultar do seu amigo; era o segredo de Laura, seu envolvimento com o jovem oficial rio-grandense. Se por um lado Laura escreve para que seu exemplo seja "lio proveitosa a algu- mas outras", supondo serem as leitoras quem liam os seus escritos e os romances-folhetins, por outro, o missivista duvida que seja uma mulher aquela quem escreve as cartas. Trata-se de outro embuste, agora com relao prpria escrita: "Digo que deve ser um homem porque no de pena feminina aquele estilo embebido de realidade; o mais que digo v-se pela desapiedada nudez em que se revelam os fatos vergonhosos dessa vida de mulher" (p. 73). No se trata de falta de capacidade ou de talento para escre- ver um romance, mas da necessidade que estes romances tm do engodo, do ardil para o "bom" andamento do folhetim. 89 Considerando que a maioria das cartas e dos captulos corresponde ao espao do jornal destinado ao folhetim, exceo do captulo VI, muito longo, que provavelmente foi dividido em sua publicao, temos que este romance levou algo em torno de 4 meses para ser publicado. Como um bom romance-folhetim, es- crito quase sempre no limite da hora, como sugere a dedicatria do autor, O marido da adltera possui um "mistrio do passado" (MEIYER, 1996) que vai nortear toda a trama. Primeiramente, em relao prpria Laura que esconde do marido o fato de j haver tido um relacionamento no passado, o que na moral oitocentista j se constitui como um adultrio; Lus Marcos por sua vez amava Eugnia que casou com um homem rico. Em meio a esses pequenos segredos, h um maior que no o adultrio, nem o motivo pelo qual ela o pratica, mas a pergunta principal: teria, portanto o suicdio de Lus Marcos relao com esse epis- dio? Teria o marido tomado conhecimento da traio de Laura? Como se deu a traio? Este era o verdadeiro mote para o desen- rolar do folhetim. Contrariando o esteretipo do folhetim sobre adultrio, nesse romance a adltera no punida com a morte, nem com a reclu- 90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 so, porm, sua "falta"deveria ser reparada com a expiao pbli- ca do seu remorso. A narrativa tem incio com a personagem Laura de M. justificando a publicao de sua histria como sendo uma forma de provar aos amigos dele que agora compreendia, "ainda que muito tarde, o homem honrado que foi [seu] marido - para desgraa sem remdio e para meu desesperado remorso" (MEN- DONA, 1974, p. 23)3. Mas o narrador faz questo de mostrar ao leitor que se trata de mais um engodo dela, posto que depois da morte do marido, "s depois de gasta e repelida, tendo descido toda a escala da degradao, que se foi refugiar na provncia se na devoo, refugium peccatorum", onde passa a escrever sua histria (p. 152). Pois qual no a surpresa do leitor contemporneo - que pode voltar as pginas do texto e confirmar que o marido estava morto quando ela deu incio narrativa - quando no ltimo cap- tulo, surge uma carta do marido de Laura, o dr. Lus Marcos de Lima, ao missivista narrador em que conta como tomou conheci- mento da traio da mulher. A citao longa, mas ser funda- mental para acompanharmos como a narrativa construda com esses fragmentos dirios no tem compromisso com a verossimilhana, mas com movimento vertiginoso da elaborao "simultnea": Na estao, comprei as folhas do dia, a Gazeta, o Jornal, a tal folha dos rapazes. Na travessia fui lendo a Gazeta; no ferro- carril, abri o jornal, e embrenhei-me nas correspondncias da Europa at que me faltou luz. A poucos quilmetros da esta- o terminal, abri o jornalzinho. Atraiu-me o folhetim .. .\ngela, assinado por um pseudnimo auspicioso; mas , proporo que me adiantava, a leitura ia ganhando para mim um interesse terrvel. ngela era um feliz retrato de Laura, completo. minu- cioso, desenhando at um imperceptvel defeito que ela tem no lbio inferior. O marido, designado apenas por doutor, era eu, visto atravs de um baixo dio que eu no conhecia (p. 149). Voltemos pois ao primeiro captulo como leitores da narra- tiva integral, publicada em livro, desconfiados do fazer folhetinesco. Nele, a protagonista dirige sua carta aos leitores do jornal Colombo, tempos aps a morte do seu marido. Como se observa na passa- gem acima, a histria que Lus l, a mesma histria publicada em o Colombo, est contada em outro jornal, o tal jornalzinho "em '.-\ partir dessa citao, fart; referncia apenas ao nmero da pgina do romance de Lcio de \1endona. 'J marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim que colaboravam escritores novos"(p. 148). Portanto, temos aqui duas possibilidades bastante plausveis em se tratando de um fo- lhetim. Primeiramente, o folhetim ngela, no representaria uma outra histria apenas parecida com a sua, como somos quase obri- gados a considerar. Mesmo cor' a total inverossimilhana desta passagem, esta seria a mesma histria escrita por Laura com a finalidade de precipitar o fim trgico e intensificar embuste e o ardil da personagem. Nesse caso, levando em conta a forma de escrever e ler um folhetim, a coerncia no se daria com os cap- tulos iniciais, mas com aquilo que tinha sido recentemente publi- cado, pouco importando se o que se passava naquele momento diferia do incio do romance. A citao acima do ltimo folhe- tim, separado do clmax da narrativa por uma cpia de carta, em que com tom momo, Lus se despede do amigo narrador e confidencia o amor impossvel que nutria por Eugenia, bem como o sofrimento ao se despedir dela. Esse captulo, referente quinta carta das "Confidncias do morto" precedido pela "Cpia do meu livro de lembranas", onde Laura, sem nenhum pudor ou culpa - diferentemente do que afirmava no primeiro captulo - narra sua aventura com o jovem estudante de medicina, na man- so da sua irm em S. Loureno, tal qual descrito pelo folhetim ngela. O captulo do folhetim termina com a inesperada viagem do marido e a possibilidade de ela passar trs dias e trs noites com o amante. Segundo, a outra possibilidade, bastante plausvel do ponto de vista do romance-folhetim, a de Otvio ter levado a cabo a sugesto do amigo "literato distinto" de revelar tudo a Lus, atra- vs "de um conto engenhoso, que s os interessados entendes- sem", e que foi publicado no jornalzinho lido pelo marido trado. Seja qual for a soluo encontrada pelo autor, ambas, so perfei- tamente adequadas ao desfecho de um folhetim publicado emjor- naI. O importante para a ao deste tipo de romance que ele descobrisse os atos da mulher. Descobri-lo pelo jornal ento, uma forma de negociar o sentido do texto, diminuindo a assimetria entre este e o leitor (ISER, 1999, p. 28), favorecendo a produo de sentido do qual o leitor tambm participa, haja vista que ele est lendo a mesma histria tambm numa folha de jornal. Dessa forma, temos aqui uma estratgia sabida dos escritores do sculo XIX, que pela boca da personagem Teixeira, mdico e filsofo de 91 92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A conquista consiste em oferecer ao pblico leitor que "est ainda no perodo infantil do deslumbramento", os romances preferidos que "so os de complicado enredo, os magnificentes, os emara- nhados que no passam de ampliaes de contos de fadas para crianas grandes. No h ainda o critrio esttico, no sei se pos- so dizer assim. O leitor no se preocupa com a substncia nem com a forma; a inverossimilhana o seu ideal, quanto mais irre- al melhor" (COELHO NETO, p. 132, Grifos nossos). Filiado esttica realista, O marido da adltera, ao mesmo tempo em que "aumenta a complexidade do espao de jogo" (ISER, 1999, p. 69), ao apresentar a trama sob vrios olhos, precisa de alguma forma manter presente o contexto citado, na referncia implcita que faz a outros romances do gnero. Dessa forma, o adultrio, ou a tese naturalista que o romance tenta provar - a de que o carter da personagem foi forjado pela herana familiar e pelas condies do meio - compreende a "citao" da "alta litera- tura", aliada aos ingredientes fundamentais do "baixa literatura" caracterstica do romance-folhetim, publicado no jornal. Assim que, para Lcio de Mendona, editor do jornal e personagem do romance, a primeira carta de Laura revela um "caso literrio dos mais atraentes e dos menos embaraosos" numa aluso explcita a um assunto comum a esse gnero de romance, ao mesmo tempo em que ela "por mais que nos queira prevenir em sentido contr- rio, , apesar de sua desgraa, ou por amor dela prpria, uma romntica. Sinto dizer-lho: mas est se vendo ... " (p. 25). Assim, ao consider-la romntica, o autor traz para dentro do texto ou- tras personagens de romances realistas, por sua vez, leitoras de folhetins e romances romnticos, cujo paradigma a personagem Madame Bovary, aludida seja pelo adultrio, seja pelo tdio que sentia quando passou a morar em B. depois do seu casamento, como relata em carta para a amiga Malvininha: Malvininha, est decidido: a tal roa, que os senhores poetas nos impigem como um ninho de tranqilas felicidades, um mar morto de tranqila pasmaceira, de inesgotvel aborreci- mento! [ ... ] Mas as horas vazias de trabalho precisavam ser cheias de outra equivalente ocupao se que outra assim existe; e no o eram. o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim Desta falta me veio o tdio, que caminho certo da perdio para as naturezas imaginativas, como infelizmente minha vida Cp. 120) Os amores de folhetim e o adultrio esto presentes tam- bm na leitura que o narrador, amigo de Lus, faz do Processo Clmenceau, de Alexandre Dumas Filho e discute com Lus e Otvio, no tempo em que eram estudantes em So Paulo. Nele, o marido adulterado mata a adltera, uma jovem que ele mal conhe- cia, mas com quem resolvera casar. O narrador defende a conduta do marido trado. J Lus argumenta de forma contrria, justifi- cando que como o homem casara com sua fantasia - j que no conhecia a famlia, nem a origem da mulher - fora ele e no ela quem traiu. O fato que Lus Marcos, ao acusar o marido que mata a adltera, est se condenando, assumindo para si toda a responsabilidade pelo que viria a fazer dali a dois anos. Suas pala- vras so ao mesmo tempo antecipao e excesso folhetinesco na medida em que toma mais "vil" a traio de Laura que o enganou antes do casamento; ele j uma "vtima da verdade" antes mes- mo de ela vir tona, pois se este o no previu, se o no evitou, com certeza, culpado (p. 76). Ao contrrio do narrador, Lus Marcos v como nica sada para o marido trado do Processo Clmenceau, o "dever de ma- tar-se". Otvio, seu amigo e narrador, embora fique sabendo do segredo de Laura, evita escrever para o amigo contando, na espe- rana de encontr-lo em breve. Mas os ardis supostamente mon- tados pela famlia dela para que passe a noite com Laura e o casa- mento de Eugnia, seu verdadeiro amor, precipitam e exigem dele o casamento. O amigo por sua vez, o sujeito pr-informado a qual se refere Marlyse Meyer, toma-se cmplice do passado de Laura, levando o amigo a ser vtima da mentira. Porm, ao narrar a hist- ria, tenta de alguma forma justificar aos leitores de o Colombo a sua atitude. Outra estratgia de romance folhetim trazida para este ro- mance diz respeito ao passado do prprio Lus Marcos. Este tam- bm tinha um segredo que nunca chegou a conhecer. Na segunda carta do seu amigo, ficamos sabendo "que a famlia a que Lus, enjeitado, apenas julgava pertencer por adoo e caridade, era sua pelo sangue, e a herana do homem que o criou, renunciada 93 94 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 por ele em favor dos colaterais, no era mais do que uma restitui- o, e desfalcada, da herana do prprio pai". Assim, quando mais tarde o tio movido pela culpa, na tentativa de reparar seu erro, instituiu Lus seu herdeiro universal, este sem o saber repudiou a herana num gesto herico e de desprendimento.(p. 82). Outro aspecto tpico do folhetim o ttulo que nos remete diretamente ao assunto tratado, sem as sutilezas machadianas de nomear D. Casmurro um romance sobre adultrio. Nesse caso, o ttulo at redundante, pois segundo Marlyse Meyer, o adultrio sempre do gnero feminino (1996, p. 253). Na verdade, esse ttulo revela uma das nuances dos romances-folhetins, publicados em jornais, que antecipavam o lanamento de um novo romance, a poucos dias de finalizar o que estava em publica0 4 Muitas vezes, esses anncios vinham at mesmo sem o nome do autor, o que revela a importncia de um ttulo direto, chamativo, que ante- cipasse para o leitor de folhetins o teor daquilo que iria ler como algo j conhecido. Assim foram Anjos e demnios, de Alxis Bouvier, Os companheiros do crime, E. Chavett, A carne de Os- car Metinier, Caixo Negro de George Pradel, entre tantos. Coe- lho Neto trata desse aspecto quando conta a Joo do Rio a hist- ria do seu livro Rajah de Pendjab. Como estava precisando de dinheiro props escrever um folhetim para substituir aquele que fora perdido pela Gazeta. Sugeriu como ttulo O prncipe encan- tado, o que no foi aceito por se tratar de um "'ttulo velho". Sugeriu Rajah de Pendjab, que foi aceito e proposto para dar incio em dois dias: "E a reclame foi feita para um romancista francs, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do Humphreys" ... (RIO, 1907, p. 57). Em seu ensaio, "O romance epistolar e a virada do sculo" Flora Sussekind (1993, p. 211) chama a ateno para o fato de que "o romance brasileiro tambm passou ao largo da trilha epistolar", razo pela qual ela dedica seu estudo a dois exempla- res desse gnero: O marido da adltera e A correspondncia de uma estao de cura de Joo do Rio, de 1918. Embora escassa no romance, a carta freqentou com muita assiduidade o jornal, prin- cipalmente nas polmicas e debates, como aquela que travam Laura e Lus pela verso verdadeira da histria. Na carta cabiam os vri- os tipos de texto literrio: poesia, narrativa,"ensaio". Pelo menos nos jornais paraibanos, desde 1854, encontramos cartas polmi- 4 Quando fao referncia circulao do texto literrio em jornais, ela diz respeito aos jornais paraibanos nos quais desenvolvo pesquisa. Faltam- me dados sobre os jornais que circularam no Rio de Janeiro, mas creio que o processo verificado nas Provncias repetia aqueles da Corte. o marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim cas, de carter poltico e cartas mais pessoais, como aquelas que Laura, Lus e seu amigo escrevem. Ainda est por se fazer uma pesquisa sobre os gneros utilizados pelos jornais, que foram apa- gados depois de sua publicao em livro. Ein uma nota de Vida literria no Brasil- 1900, Brito Bro- ca informa que o gnero epistolar tomava-se comum em algumas revistas, entre elas O Pirralho (1911 - 17) e que aquela era uma voga francesa(BROCA, 1958, p. 229). Exemplo dessa utilizao da carta pelo cnone da literatura brasileira, o das cartas escritas por Machado de Assis que, no se adequando aos propsitos dos priorizados por Afrnio Coutinho, organizador de suas obras completas, prefere juntar todas sob o epteto de Miscelnea, nome bastante apropriado, pois que sob essa rubrica se enquadrava toda a sorte de escritos. Mas o certo que nessa Miscelnea se inclu- em vrias cartas, entre as quais "Carta redao da imprensa aca- dmica", publicada no jornal de mesmo nome, de So Paulo, cujo teor visa responder a crticas que foram feitas a sua comdia Ca- minho da porta. Outra, dirigida a Henrique Chaves e publicada na Gazeta de Notcias, faz o necrolgio de Jos Telha Ferreira de Arajo. H ainda outro exemplo clssico do uso de cartas no jor- nal, que so aquelas que deram a Jos de Alencar notoriedade, quando comeou a escrev-las sobre a Confederao dos Tamoios, publicadas em 1856, com o pseudnimo de Ig, no Dirio do Rio de Janeiro, nas quais critica o poema pico de Domingos Gonal- ves de Magalhes, dileto do Imperador e considerado ento o maior poeta da literatura brasileira (LIRA NETO, 2006). Na verdade, a carta um dos elementos fundamentais para uma das "marcas sui generis"do folhetim que o exagero amplifi- cador. A perspectiva levantada por Marlyse Meyer (Idem, 160), na anlise da obra de Ponson du Terrail, e bastante apropriada ao romance de Lcio de Mendona, demonstra que "um bom exem- plo desse excesso so as cartas, as narrativas intercaladas, as lei- turas de depoimentos, testamentos, etc ... ". Como j comentamos, O marido da adltera lana mo dessa estratgia para cativar o leitor e prolongar o enredo folhetinesco, alm de permitir as tais gavetas literrias a que se refere Marlyse Meyer. Do ponto de vista de Laura, h a carta intencionalmente elaborada para a leito- ra do jornal Colombo, com vistas ao propsito nobre de tirarem delas "lio proveitosa". Do ponto de vista da construo do 95 96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 folhetim e dos leitores que o lem, uma adltera arrependida, ten- tando provar as conseqncias de uma "educao corruptora e falsa" no matria de interesse. Tanto que sua primeira traio - do ponto de vista da moral oitocentista - ao manter relaes com o jovem estudante, perdoada por um padre. preciso, portanto, provar o seu engodo e para isso, surgem as cartas que escreve para Mal vininha - "acabado produto da educao com que se cri- ara, entre mimos babes e brutalidades viloas, na ociosidade, na ignorncia e no namoro" - cujo carter assim descrito pelo narrador aproxima-a mais do perfil de Laura e justifica por que a escolheu para fazer suas confidncias. Nelas no a adltera arrependida quem narra, mas a mulher entediada, insatisfeita com o marido e o casamento. Seu livro de lembranas, por sua vez, vai revelar a "verdadeira" Laura, que se deixa seduzir por uma nica frase do estudante, com quem ter um caso. Do lado do narrador, as cartas que publica como "As confidncias do morto" so compostas da memria desse narrador e de cartas escritas por Lus a ele que, cmplice involuntrio da mulher, se sentir na obrigao de res- taurar a verdade e eximir-se da culpa. Enfim, pode-se concluir, que o estranhamento causado as solues estticas de O marido da adltera causam certa estra- nheza ao leitor contemporneo, porque desnuda em sua estrutura as estratgias e o modelo de narrar prprios ao folhetim. Estes, por sua vez, fazia-se a partir de um leitor real, o leitor de jornal. "Leitor intencionado, fico do leitor no texto" (lSER, 1996, p. 79), a quem autor e narrador originalmente se dirigiram, cujas injunes foram determinantes na elaborao do romance-folhetim. =" marido da adltera, de Lcio de Mendona, ou as estratgias de publicao de um romance como folhetim Referncias BROCA, Brito. A vida literria no Brasil-1900. Rio de Janeiro: MEC, 1958 COELHO NETO. A conquista. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1985 COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil 1904- 2004. So Paulo: Companhia das Letras, 2005 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourrette. Mdia, Cultura e Revoluo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas.O romance- folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003. (Coleo Memria das Letra, 12) 97 ISER, Wo1fgang. "Teoria da Recepo". In ROCHA, Joo Cezar de. Teoria da fico. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999 ___ o O ato da leitura. So Paulo: Ed 34,1996. V. 1 LIRA NETO. O inimigo do Rei. Uma biografia de Jos de Alencar. So Paulo: Globo, 2006 MENDONA, Edgar e Carlos Sussekind de. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1934 (Publicao da Academia Brasileira) MENDONA, Lcio de. O marido da adltera. Rio de Janeiro: Trs, 1974 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996 OLIVEIRA, Franklin. "Ler Coelho Neto" In COELHO NETO. A conquista. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1985 RODRIGUES, Joo Paulo Coelho de. A dana das cadeiras. Literatura e poltica na Academia Brasileira de Letras (1896 - 1913). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2001 SUSSEKIND, Flora. Papis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993 1 Texto presentado en la 8' Jomadns Andinns de Literatura wtitw Americana (Lima, 9 a 13 de agosto de 2004). , "So muitos os estudos sobre o romance, a poesia, o teatro, o cinema, a pintura e a msica, entre outras linguagens, nos quais est presente, explcita ou subjacente, a idia de" nacional". ( ... ) Sem prejuzo das contribuies realizadas e possveis a partir do emblema nacional, cabe experimentar a perspectiva aberta pela idia de contato, intercmbio, permuta, aculturao, assimilao, hibridismo, mestiagem ou, mais propriamente, transcul- turao." (p.94-95) In: Ianni, Octavio. "Transculturao". In: -. Enigmas da moder- nidade mundo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira. 2000 J Sus cuentos fueron publicados bajo los siguientes ttulos: Urups. So Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1918; Cidades .\fortas. So Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1919; Negrinha. So Paulo: Revista do Brasil e Monteiro Lobato & Cia. 1920 De So Paulo 01 Aconcagua: una trayectoria latinoamericana para Monteiro Lobato 1 Para Octavio Ianni, in memoriam Marisa Lajolo (Unicamp) Muchos son los estudios sobre la novela, la poesa, el teatro, el cine, la pintura y la msica - entre otros tantos lenguajes- en los cuales se encuentra presente - de forma explicita o subyacente la idea de " nacional" ( ... ) Sin prejuicio de las contribuciones realizadas y posibles a partir deI emblema na- cional cabe experimentar la perspectiva abierta por la idea de contacto, intercambio, permuta, aculturacin, asimilacin, hibridismo, mestizaje o - mas propiamente dicho - transcul turacin 2 EI escritor brasileno Jos Bento Monteiro Lobato naci en Taubat -ciudad deI interior paulista- en 1882. Su abuelo -el Vizconde de Trememb-, era propietario de ti erra en una regin de agricultura y economa decadentes a partir de fines deI siglo XIX. La madre de Monteiro Lobato era hija ilegtima deI Vizconde, pero ese origen -en aquella poca estigmatizado- no impidi que su hijo se tomase heredero deI abuelo. De su origen rural, Monteiro Lobato parece haber mantenido una sensibilidad bien sintonizada con personajes, situaciones y paisajes interioranos. Sus cuentos magistrales 3 giran en tomo a la identidad de este campesino -el polmico jeca tatu-, inevitablemente atropellado por el progreso, que en las primeras dcadas deI siglo XX arruin pequenas ciudades deI interior paulista. De ah surge la metfora ciudades muertas , la cual da 99 100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ttulo aI libro en cuyo af.o de lanzamiento (1919) vendi ms de cuatro mil ejemplares. pn 1918 Urups tuvo tres ediciones, alcanzando la estupenda cifra de cinco mil ejemplares. Reeditada aI af.o siguiente, en 1919 la obra parece haber llegado a doce mil ejemplares. Cidades Mortas vendi 4 millares durante el af.o de su lanzamiento, y ambos libros (Urups y Cidades Mor- tas) fueron reeditados en 1920, cuando junto con el nuevo t- tulo -Negrinha-, prosiguieron su carrera de xito, totalizando 20 mil ejemplares en 1920. Como todos los jvenes de su c1ase social, Monteiro Lobato estudi Derecho y se gradu en 1904. En 1907 fue nombrado promotor pblico en otra pequef.a ciudad deI interior paulista - Areias-, y all vivi durante algunos af.os. Con la muerte deI abuelo en 1911, Monteiro Lobato hereda la hacienda a la cual se muda con su familia (se haba casado en 1908). Desde all enva artcu- los para la prensa, colaborando con el peridico O Estado de So Paulo y con la Revista do Brasil. Ambos eran vehculos de gran circulacin y de slida respetabilidad. Fue en un gran peridico paulista que en 1914 Monteiro Lobato public los dos artculos que tornaron famoso su nombre en todo el pas: "Velha praga" (12 de noviembre de 1914) y "Urups" (23 de diciembre deI mismo af.o). En ambos, Lobato haca una crtica cida e implacable a las costumbres interioranas. Es en la Revista do Brasil que, poco tiempo despus, inicia su trayecto de xitos como editor y empresario de cultura. De colaborador, Monteiro Lobato se convierte en propietario de la Revista do Brasil. En efecto, en 1917 vende la hacienda, se muda a So Paulo y aI af.o siguiente compra la Revista do Brasil. Y es desde la mesa de redaccin de tal revista, que comienza a planear y construir una dimensin latinoamericana para la litera- tura. Para su literatura, para la literatura brasilef.a, para la literatu- ra latinoamericana. Son tradicionales, ai menos en la tradicin de los estudios literarios brasilef.os que conozco, las investigaciones que tratan de "encontrar" o "construir" convergencias temticas y estticas entre intelectuales latinoamericanos brasilef.os y no brasilef.os. Investigaciones de este tipo son instigantes, sin embargo pueden enriquecerse an ms con estudios que le confieran materialidad a las convergencias estticas y crticas que ellas rastrean. Esta Je So Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato verti ente de recorte materialista, histrico y recepcional resulta esencial para desarrollar un discurso crtico comprometido con una teora literaria de Amrica Latina, en oposicin a una teora literaria en Amrica Latina. Siguiendo la estela de ngel Rama, Cornejo Polar, y Anto- nio Cndido, este trabajo parte de la hiptesis de que no siempre las categoras crticas forjadas en los centros hegemnicos responden de manera satisfactoria a las prcticas literarias vigen- tes en la periferia. Del centro a la periferia es el rayo que cubre la distancia entre las expresiones teora literaria en Amrica Latina y Teora Literaria de Amrica Latina. Monteiro Lobato puede ser una clave para el estudio de estas relaciones literarias latinoamericanas. Por lo tanto es hacia l que llamo la atencin de los colegas, invitndolos a revisitar la obra deI escritor que habit en los estantes de lectura y en los corazones infantiles de Amrica Latina, de Mxico a la Patagonia, de los Andes aI Po de Acar. Monteiro Lobato fue uno de los primeros arquitectos de la utopa de una Amrica unida por libros y lectores ... Asi que en su vasta obra podemos rastrear manifestaciones reincidentes -aunque tenues y efmeras- de un proyecto para la formacin de un sistema literario latinoamericano. Desde la perspectiva de Antonio Candido, la existencia de un sistema literario resulta fundamental para que se puedan discu- tir las diferentes articulaciones de la literatura con la sociedad. En el caso de nuestra Amrica, tal sistema necesita responder a las diferentes e inestabls articulaciones entre las diversas literaturas latinoamericanas, y de todas y de cada una de ellas con la sociedad pluritnica, polilingstica y no homogneamente letrada de nuestros pases. Las relaciones entre autores, obras y pblicos, la mediacin de intermediarios entre estos tres polos de la lectura literaria, las formas histricas asumidas por tales relaciones y mediaciones, la base tcnica disponible y la legislacin que reglamenta el comer- cio nacional e internacional de libros, junto a los datos cuantitativos y cualitativos de pblicos disponibles, son elementos que le confieren materialidad a (concretizan) lo que se estudia cu ando se estudia literatura, sobretodo desde una perspectiva historico- comparativa . 101 102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 En el material sobre el cual me apoyo para la construccin de este sistema comienza a revelarse de forma modesta y doms- tica, a travs de una carta de 1920. En ella Monteiro Lobato, ya de gran renombre y p r o p i ~ t a r i o de la Revista do Brasil, le escribe a Lus da Cmara Cascudo (1898-1986), entonces un intelectual todava indito de una lejana provincia deI nordeste brasileno (Rio Grande do Norte). La carta es pequena, sin embargo, ya docu- menta el empeno de Lobato en la construccin de una red entre intelectuales de diferentes puntos de Amrica: en la misma le anun- cia a Cmara Cascudo el envo de una obra argentina, de la cual haba recibido algunos ejemplares para distribuirIos en Brasil: Y espero mandarle un libro interesante que la "Nosotros", re- vista argentina, me encomend que distribuya entre nuestros hombres de letras. Esta promesa fija la figura de Monteiro Lobato como intermediario y difusor de la literatura argentina en territorio brasileno, aI colocar en circulacin a escritores deI pas vecino, no slo ms all de las fronteras argentinas, sino tambin ms all deI eje Rio de Janeiro -So Paulo. Muchas y muchas cartas deI acervo de Monteiro Lobato depositadas en la UNICAMP por sus herederos refuerzan y detallan este su papel de divulgadorA. EI autor integra una red de intelectuales -en especial brasilenos y argentinos- que no slo intercambiaban libros y divulgaban sus respectivas producciones, sino que tambin debatieron y desarrollaron proyectos para viabilizar el intercambio literario entre sus pases. En la Revista do Brasil, Monteiro Lobato publica a escritores argentinos, aI tiempo que varios de sus textos circulan por Argentina durante los anos veinte deI siglo pasado. 5 Estas traducciones muestran que no fue apenas desde la posicin de distribuidor que Monteiro Lobato dia curso aI (hasta hoy) ambicioso proyecto de dar amplitud latinoamericana a un proyecto cultural y literario. Algunos anos ms tarde, tambin consigui una abundante (y hasta hoy probablemente inigualada) circulacin de sus obras en la Amrica hispnica. En carta de 1943 ,el comenta con su esposa las grandes expectativas que depositaba en el mercado argentino: 4 Los herederos de Monteiro Lobato depositaron un valioso acervo dei escritor en el Centro de Documentao Alexandre Eullio, en el Instituto de Estudos da Linguagem, de Unicamp. La investigacin de dicho acervo - de la cual este trabajo es un resultado parcial - cuenta con financiamiento de la Fapesp y dei CNPq. 5 Urups es publicado en Argentina en J 921, en la Biblioteca de Novelistas Latinoamericanos (trad. de Benjamin Garay), y en ese mismo ano la revista Nosotros (a. 15, v. 38, n. 145, mayo de 1921, pp. 96-100) publica el ensayo "Letras brasilenas: visin general de la literatura brasilefia". Tambin en ese afio La Novela semanal (a. 5, n. 183, 16 de mayo) publica el cuento "Negrinha" con el ttulo de "Alma negra" (Cf Artundo, Patrcia. Tesis de Doctorado. USP,2OO2). De So Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato 6 Maria Pureza da Natividade Lobato era la esposa de "'Ionteiro Lobato . 7 Ruth Monteiro Lobato (t 916- XXXX) fu la ultima ruja de Monteiro Lobato y D. Purezinha. Purezinha 6 : ( ... ) Recib el contrato de la edicin de todos mis libras infantiles en espanol en la Argentina. Todos. Y para comenzar saldr un bloque de cinco. El negocio me parece excelente, pues alI podr tener una renta tal vez mayor que la de aqu, y de ese modo podr reservar una de esas rentas para ir acumulando una fortunita para ti y para Ruth 7. Mi preocupacin ahora son slo t y Ruth. He de dejarlas bien. Tranquilicnse. Ahorrando unos 5 contos por ano, en pocos anos estarn seguras -y habr la renta de mis libras aqu y alI. Hasta 60 anos despus de mi muerte. No le temas aI futuro ( ... ) Efectivamente la promesa se cumple, aunque slo en parte. I no se hace rico, pero su obra circula por toda Amrica Latina. Y algunos anos despus de esta carta, Lobato sigue el camino de sus libros: entre junio de 1946 y junio de 1947 se muda a la Ar- gentina, donde junto a algunos amigos funda la editora Acteon. La persistencia con que Monteiro Lobato invierte en Argen- tina es reforzada por una carta de ( 13 de) agosto de 1946 enviada desde Buenos Aires aI amigo brasileno Otaviano (Alves de Lima). En ella , Monteiro Lobato muestra una aguda percepcin de las especificidades y potencialidades dei mercado argentino (en oposicin ai brasileno). En ese sentido demuestra un tino comer- ciai poco comn entre los hombres de letras, si bien sto ya lo haba probado con anterioridad en los anos 20, cu ando transform una pequena casa editorial en la mayor editorial brasilena. EI escritor atribuye la pujanza dei mercado editorial argenti- no a la gran difusin del idioma espanol, as como a una legislacin que prcticamente subsidia la produccin dellibro, aI no tas ar su materia prima: En el campo editorial, Argentina goza de dos grandes ventajas sobre Brasil: 1) el papel para libras entra libre de derechos de aduana; 2) existe un mercado exterior para la produccin. EI ano pasado la praduccin de libras fue de diez mil toneladas, de las cuales cinco mil fueran exportadas. Fjate que maravilla. Ah no exportamos libra alguno y sobre el papel importado tenemos una tasa equivalente aI 100% deI precio de costa. Solamente existe exencn para el papel de peridicos y revis- 103 104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tas. Esto explica el tremendo desarrollo de la industria editori- al argentinas. Es as que a lo largo de toda su vida, Monteiro Lobato fue multiplicando sus lazos con el mundo editorial/literario latinoamericano. De regreso a Brasil, en carta a otro amigo - Godofredo Rangel - relata que ( ... ) este mes escrib 20 libritos nuevos para la Editorial Codex de Buenos Aires, libritos juguetes, de poco texto y muchas ilustraciones coloridas. Saldrn en dos lenguas. Y abora voy a escribir unos seis para un editor de Mxico -que ms tarde tambin podrn salir aqu. -( ... ) (30.07.1947) Ya en su Historia dei mundo para los ninas 9 - la versin que Lobato da de la conquista de Amrica por los espanoles tiene un acento critico poco comun en livros infantiles anteriores a lo politicamente cierto de nuestros das. Ya en aquel entonces ensefiaba Lobato que La conquista de Amrica por los europeos fue una tragedia sangrienta . i A hierro y fuego i era la divisa de los predicadores dei cristianismo . Mataran a diestra y siniestra , destruyeron todo 10 que encontraron y llevaron todo el oro que haba. Otro espanol , llamado Pizarro, hizo en el Per lo misino con los incas, otro pueblo civilizado, muy adelantado que exista all (108) Las lecciones de este narrador las aprendan bien los personajes que, a semejanza de lo que se quera que se pasase con los lectores, preguntan a quien les contaba la historia: - Pero, l, qu diferencia hay, abuelita, entre estos hombres y aquel tila, o aquel Gengis Khan, que march hacia Occidente con los terribles trtaros, matando, arrasando y saquendolo todo l,(1l0) A esta tan sencilla cuanto actual pregunta, le contesta Dona Benita ,la abuela tantas veces en la obra de Lobato alter ego deI escritor : 8 Nunes, Cassiano (org), Monteiro Lobato vivo. RJ. MPM Propaganda / Record 1986, p. 122 9 Se trata de una adaptacin dei libro Child's history of the world de Y.M.Hiller , publicada en 1933 en Brasil, y que alcanzara 9 ediciones hasta 1943. En 1947 la versin espaiiola de este Iibro se publica en dos volmenes por el editorial argentino Arnericalee. Unacuartaedicin (traduccin deM.J. de Soza) sale alaluzen 1956 por el editorial Losada ( copyright by Editorial Americalee) . Ias citas vienen de esta edicin . De So Paulo al Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato 10 La carta es citada por Edgar Cavalheiro que, infelizmente, no indica la fecha ni la localizaci6n de las cartas; pero la veracidad de la fuente es confinnada por otras cartas depositadas en la Unicamp, que tambin se refieren al abortado proyecto peruano de Monteiro Lobato.Ell4deenerode 1947, porejempl0, e1 escritor informa a su amigo Rangel que "(. .. ) Habiendo ya visto y hecho amistad con los rboles de Buenos Aires, puedo mudarme de pas y ando pensando en eso. Escogiendo uno. Por el momento Per est en primer lugar ( ... )" - La unica diferencia es que la historia ha sido escrita por los occidentales, y nada ms natural que lleven el agua a su molino. De ah que nuestros historiadores consideren como fieras a los trtaros de Gengis Khan y como heroes a los conquistado- res europeos. ( 110) Se ve asi muy temprano en su obra, la comprensin critica de Monteiro Lobato respecto la historia de Latinoamrica. Pero es cu ando todava viva en la Argentina, que el da retoques finales, y casi inesperados, aI antiguo proyecto de una literatura de identidad latinoamericana. En esta nueva versin de la antigua utopa, la latinoamericanidad lobatiana va ms all deI intercambio deI mer- cado editorial latinoamericano. Lobato , desde Buenos Aires, propone la latinoamericanizacin de su discurso literario y se prepara para ello. ( ... ) me voy aI Peru. Esto aqu, de la misma forma que ah, no tiene profundidad. Son dos pases que comenzaron con la llegada dei europeo. Pero el Peru ya tena mil metros de profundidad cuando el europeo lleg. De modo que all existe una superposicin de civilizaciones y razas - cosa mucho ms interesante que este inrnigracionismo de aqu y de ah. Como se ve la inspiracin para este salto cualitativo latinoamericano de su proyecto literario viene deI Peru 10 : ( ... ) En estos tres meses me voy ai Peru, a vivir por all algn tiempo, a incarme, llamarme, guanacarme, chinchilarme, etc., y escribir rni mayor libro: mi pandilla de all deI Sitio, hundida en el Peru de Atahualpa, presencia el drama de la conquista por los fascinerosos Pizarro y Almagro, los nazistas de la poca. ( ... ) Incarse, llamarse, guanacarse, chinchilarse es una linda metfora deI ritual de iniciacin latinoamericana para un escritor brasilefo: pues solo despus de incarse, guanacarse, llamarse y chinchilarse, Monteiro Lobato se cree listo para escribir un libro sobre ( ... ) toda la tragedia de la destruccin de los incas, aztecas y mayas por los espaoles invasores.l,La historia de Amrica se 105 106 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sabe por boca de quin? iDel Aconcagua! Slo un Aconcagua puede tener la necesaria ausencia de nimo para contar la cosa como realmente fue, sin falsedades patriticas, nacionalistas, raciales o humanas ... Cp. 233)11 . Infelizmente, el plan no se realiza. Lobato no viaja aI Peru, ni escribe ellibro anunciado. Deja la tarea inconclusa para que otros la realicen, tal vez hoy, quizs nosotros . Dicho sea de paso, aI recontar desde otra perspectiva la tragedia brasilef.a de Canu- dos, tal vez Vargas Llosa haya dado un gran paso en ese sentido de nosotros contarmos la historia los unos de los otros. EI caso es que Monteiro Lobato regres a So Paulo y muri un af.o despus, el 04 de julio de 1948. No obstante no haber escrito la historia de Amrica por boca deI Aconcagua, esto no impide que Lobato ocupe un lugar impor- tante en la historia de la literatura de esta Amrica. En la historia de la literatura de la Amrica deI Sur Amrica deI Sol Amrica de Sal, para hablar como un contemporneo de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade. As, bien antes de la formalizacin de las teoras de la globalizacin, Monteiro Lobato parece haber sido un escritor latinoamericano que percibi la fecundidad de la mirada oblicua con que, observndonos los unos a los otros, vamos construyendo una identidad que , sin embargo sus mltiplas fauces, tiene en cada una y en todas sus verti entes la solidez fuerte deI Aconcagua o deI Po de Acar. Identidad de la cual los estudios literarios tienen que dar cuenta lo que puede empiezar por construirse una base de datos de las relaciones letradas y literarias latinoamericanas y por inventar la epistemologa de la oblicuidad. II Cavalheiro, Edgar, Monteiro Lobato: vida e obra. Tomo 2. So Paulo: Editora Brasiliense. 3'. Ed., 1962, p. 233. Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos U ma sinttica introduo Dlio Combeiro (UERJ) Nunca ser demasiado avivar-se a memria para o terrvel massacre de Canudos, que em 5 outubro de 2007 comple- tar 110 anos, para a figura de seu idealizador e a de seus seguido- res. Muitos ttulos encontrar o pesquisador, ou um simples lei- tor, cuja curiosidade intelectual o leve indagao. Desde o apa- recimento de Os sertes, surgiram numerosos documentos - al- guns ficcionais -, que, por vezes, fixaram alguns esteretipos a respeito da rica temtica, mas, no se pode negar, acumulam im- portante material de estudo. So inmeras crticas a uma possvel influncia - o comentado Facundo, de Domingo Sarmiento -; dura dico euclidiana em julgar o fenmeno - o Conselheiro e sua gente so casos patolgicos -; alm de tantos outros instigantes juzos. Alm disso, ao mesclar segmentos interpretativos, outros de cunho criativo, com forte dose de imaginao sobre o fato, provoca classificaes, que a situam como uma obra hbrida, cir- culando entre a Histria e a Literatura. Raros textos, entretanto, conseguiram subtrair-se influncia da anlise de Euclides e, sem dvida, o autor denunciou o crime cometido contra uma coletivi- dade, tambm provocou uma interpretao do Brasil. Para esse breve trabalho de marcas comparatistas, cotejam-se trechos de Os sertes com os d' A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa, obra tambm extensa e cerrada. Pela impossibilidade de nele comentarem-se as inmeras articulaes e cenas da trama complicada e bastante enovelada, privilegiar-se- o algumas passagens onde se evidenciam mais vivamente a refle- 107 108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006 xo de Llosa sobre Canudos. Focaliza-se o dilogo respectiva- mente entre as personagens ficcional e histrica Galileu Gall e frei Joo Evangelista. Pretende-se refletir sobre a representao lite- rria dos elementos evidenciados nas primeiras linhas desse en- saio. Uma tentativa de cotejo Quando esteve no Rio de Janeiro, ao ser entrevistado sobre por que escrevera uma obra sobre o serto brasileiro, Vargas Llosa explicou que fizera um roteiro para a Paramount, em parceria com Rui Guerra. No se realizou o filme - La guerra particular ou Los papeles deI infierno - mas, desejando escrever a "Guerra e Paz" latino-americana, ele transformou o roteiro em livro. Des- lumbrado com Os sertes, assinala ter sido a obra fator importan- te para escrever A guerra do fim do mundo, confessando que, atravs dela, o trgico episdio no fora completamente esqueci- do, como outros violentos choques havidos na Amrica Latina. Sobre Canudos, lera imensa bibliografia, assinalando a falta de representatividade dos vencidos nos textos pesquisados. Por- tanto, em seu reescrever palimpsstico, retocando, sua maneira, o mosaico euclidiano, entrelaou vozes representativas de nveis sociais, econmicos e culturais. A escrita de Vargas Llosa articula acontecimentos verdicos j longamente descritos por Euclides da Cunha, porm, mesmo tendo como fonte a famosa obra, ques- tiona o texto ncleo e abre imaginativos vos, no s na constru- o da narrativa, bem como nos meandros da fbula. Recriando, por outro vis, a epopia daqueles seres despossudos do arraial baiano, Llosa pintou um monumental painel de imagens - misto de crnica e situaes factuais - ao repensar, em perspectiva cr- tica/criadora, o que chamou de um "mal-entendido nacional". Munido do distanciamento crtico, ao inverso de Euclides, devido separao temporal quanto s ocorrncias de Canudos, vai mes- clando reflexes dialticas s novas faces e vises do que teria sucedido poca, por meio de um narrador onisciente e inmeras personagens. Desse modo, no mundo contemporneo, sua escrita ilumina, com agudeza, aquele sangrento episdio da Histria do Brasil. Prmio Ernest Hemingway de 1985, essa representao da Euclides da Cunha e Vargas LJosa: dois olhares sobre Canudos epopia brasileira - uma alegrica luta entre ordem e transgresso - entrelaa experincias pessoais de diversas personagens verda- . deiras e fictcias, que emergem na trama, enredadas em monta- gem bem atual. Os episdios sempre fragmentados retardam a trama, modificam os focos narrativos, em alternado jogo de aes, que, pouco a pouco, pelos vrios pontos de vista introduzidos por um nico narrador onisciente, vo-se fechando e concluindo, em micro estruturas aparentemente estanques. Embora independen- tes, elas se coligam por mestria tcnica: na concepo de Baktin, trata-se de uma escrita polifnica, em que vozes em contraponto, tal qual na partitura musical, harmonizam-se, unem-se, em igual- dade de importncia, sem haver sobreposio hierrquica de dis- curso. Com essa tcnica Llosa sugere ao leitor a impossibilidade de a verdade sobre aqueles fatos ser totalmente conhecida. O tempo narrativo reflete a fragmentao daquele universo em mltiplas linhas cronolgicas, estruturadas em constante fluxo de idas e vindas, com imagens focadas/desfocadas, mas que se interligam num "plot", ou seja, em uma intriga subjacente, nervo da ao que tudo comanda: a histria de Canudos e a energia magnetizadora do Conselheiro. Pode-se dizer que, na obra, a si- nuosidade temporal (re)trabalha os fatos, na tentativa de compreend-los, sem estabelecer vises binrias redutoras, ten- tando criar um tertius inclusivo e auxiliar na leitura plural do ho- mem em situao. A arquitetura textual sugere uma estrutura mutante - de certa forma caleidoscpica - pois os episdios amarram/desamar- ram, em sucesso cambiante de quadros, impresses e sensaes, produzindo, em sntese, a ao global, deflagradora da questo poltica e religiosa nacionais. A narrativa, portanto, prima pela ausncia de um ponto de vista nico ou exclusivo, com seus arti- fcios desconstrutores, ramifica-se em histrias particulares coli- gadas grande Histria. Tudo emerge do ataque a Canudos que, no relato, est acontecendo, bem como da influncia que a expe- dio ao arraial suscitou na vida de cada personagem. Apesar de desencadeador da "guerra do fim do mundo", Conselheiro no assume a fora da enunciao. Tudo o que se sabe a seu respeito afIora indiretamente pela descrio, atos ou dilogos de certas personagens que gravitam pelas bordas do re- lato. Ancorada na Histria e na fico, A guerra do fim do mundo 109 110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 conserva alguns nomes histricos da obra euclidiana, entre eles, Moreira Csar, que aparece em ao, como representante da or- dem. Nela qualificado de temperamento "fantico" e "obsessi- vo": acusaes freqentes, em Os sertes, mas em relao ao Conselheiro. Cria tambm outros, de conotaes no raro irni- cas ou de marcas universalmente expressivas, que, por analgicas ilaes, suscitam reflexo pelo pensamento renovador que demons- tram. Expressivo exemplo Galileu Gall, cujo nome composto lembra dois cientistas: Galileu, fsico, astrnomo e escritor italia- no do sculo XVI-XVII (1564-1642), introdutor da luneta na as- tronomia, alm de outras inovaes cientficas e seu posicionamento diante da Inquisio; Gall, o mdico alemo Franz J osef Gall (1758-1828), criador da frenologia, teoria que estuda o carter e as funes intelectuais e humanas, baseando-se na con- formao do crnio. Alis, na obra de Vargas Llosa, essa personagem - amlgama de dois cientistas - desempenha relevante papel crtico. Com a luneta de seu olhar inquiridor, tudo para ele objeto de pesquisa, de questionamentos da ordem lgica e social. Na novela, ele tambm frenlogo, alm de um revolucionrio politicamente engajado, com posies anarquistas, tambm correspondente de um jornal francs, cujo nome Etincelle de la rvolte j acena para a prpria centelha da lucidez, o grmen do fogo, o estopim clarificador da rebeldia, atravs de idias desconstrutoras. O iconoclstico Galileu Gall parece ser um alter ego do narrador, que, por meio deste, exercita sua posio diante dos fatos, valori- zando os atos libertrios daquele herege nos confins de Belo Monte. Entre inmeros da galeria imaginria de Llosa, h o Jorna- lista Mope, irnico epteto, transformado em onomstico, pois no desenrolar da narrativa jamais dito o seu verdadeiro nome. Sem dvida, o autor pontua tambm sua crtica em relao ao jornalista Euclides da Cunha, ao enxergar, com lentes deturpadas/ desfocadas, a veracidade das ocorrncias, segundo a opinio subliminar que mina do texto. Gall enxerga melhor do que o Jor- nalista Mope, que forado a fugir chega ao arraial completamen- te desvinculado com o mundo de Canudos. Ele deseja escrever um livro para relatar a guerra, porm perdera os culos - portan- to, no via - e ficara sem pena e sem tinta durante a fuga - logo, no escrevia. Por isso, lembra Euclides, criticado por sua viso Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos mope da realidade de Canudos. Em diversificadas elucubraes, Llosa transita por vrios patamares em tomo da Histria acontecida. Apreende o proble- ma, contorna-o atravs de olhares diversificados, inverte-o em choques de abordagens que se "dialetizam" na narrativa in fieri, ou seja, no prprio processo de escrita. Em meio s entrelinhas, nas dobras e subterrneos do discurso, mltiplas so as peripcias das personagens impregnadas de situaes crticas. No ludismo verbal de tempos e de espaos acoplados, deli- neia-se na obra o comportamento e a psicologia do Conselheiro, caracterizando seu desempenho no grupo, como organizador po- ltico - o mito do heri civilizatrio - como orientador espiritual - o mito do guardio do sagrado congregador. O narrador abre o texto com o retrato fsico do Conselhei- ro, aludindo a seu aspecto alto e magro que parece "estar sempre de perfil". Os mesmos trajes usados aproximam-no do perfil eternizado por Euclides da Cunha: a mesma tnica de azulo e as sandlias de pastor. Os detalhes focalizam parte de seus hbitos simples, desprovidos de qualquer preocupao corporal, chegam ao famoso epteto - Conselheiro - que lhe deu fama e, aos pou- cos, compe-se a aura mtica do chefe poltico-religioso. Em se- guida ao primeiro retrato fsico e psicolgico, tem-se lrica descri- o do ambiente natural dos vilarejos do serto, hora do crespculo, do qual participavam os que se sentiam amparados por suas palavras. Nesse momento, todos o "escutavam em siln- cio, ( ... ) o interrompiam para tirar dvidas milenaristas, escatolgicas. Terminaria o sculo? Chegaria o mundo em 1900?" (VARGAS LLOSA, 1987,p.17). Essas e outras aluses fornecem subsdios para uma interpretao de ele estar ligado experincia do sagrado, no s pelas previses e anncios das desgraas dos ltimos dias, mas pela fora de sua presena coroada de intensa atmosfera mstica. O epteto de Conselheiro, que Antnio Vicente Mendes Maciel recebeu, tambm corresponde justia divina e humana, reunindo as funes essenciais de conselheiro do esprito e da carne. Alm da fora carismtica que exercia sobre o outro, ele atraa seus ouvintes - j seguidores ou no - por meio da po- tncia da linguagem que empregava em seus sermes. Euclides da Cunha afirmou que na apreciao dos fatos o tempo substitui o espao para a focalizao das imagens e que o 111 112 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 historiador precisa de certo afastamento dos quadros que con- templa, desta forma, nota-se a preocupao em compor um qua- dro mais fiel possvel dos acontecimentos j ocorridos. Sem aprofundarem-se opinies de que sua obra suscita vrias interpre- taes quanto sua classificao, Euclides preocupou-se em trans- mitir um relato compromissado com a verdade impessoal dos acon- tecimentos, com a histria e no imagin-los - oposto a Vargas Llosa, que, longe do espao e do tempo de Canudos, acrescentou a verdade ficcional da trama romanesca realidade histria do administrador daquela cidade santa. A vida material em Canudos era dividida por tarefas entre os adeptos, porm passava obriga- toriamente pelo crivo do lder, ratificando sua funo de chefe religioso e de legislador poltico. No entanto, interferir no mundo imaterial, no sobrenatural, apenas o Conselheiro poderia fazer, sobretudo nos tempos de luta contra o Anticristo, pois eram dele as profecias do que haveria de acontecer. Ele j revelara em seus sermes que as foras do "co" viriam prend-lo e passar na faca toda a cidade. Por isso, com as perseguies das tropas, com o "comeo do fim do mundo", toda Canudos se uniu em tomo do Conselheiro. Nos dois escritores, encontra-se referncia tolerncia do Conselheiro quanto ao amor livre e pregao contra a Repbli- ca, "porque o dominador, se no estimulava, tolerava o amor li- vre. Nos conselhos dirios no cogitava da vida conjugal, traan- do normas aos casais ingnuos" (VARGAS LLOSA, 1987, p.146). Tambm no texto de Llosa, acentua-se o fato de os seguidores negarem o casamento civil e praticarem, com base nas leis pro- postas pelo chefe, algo que a personagem Llis Piedade - repro- duzindo a fala do consenso - comenta ser promscuo e represen- tar a instituio do amor livre. A personagem acrescenta que, com tal prova de corrupo e de heresia, as autoridades expulsaro os fanticos. Tal a viso preconceituosa da personagem, nas fre- qentes discusses dialticas que atravessam o livro, engrandeci- do pelas possibilidades de diferentes leituras dos fatos. A rebeldia quanto s normas do estado civil salienta-se nos dois autores, confirmando-se acentuado interesse por temas de insubordinao libertria de minorias. No caso dos iconoclastas, o repdio s leis da Repblica significava estarem apenas preocu- pados com as de Deus, confirmadas no casamento religioso. Para Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos eles, era de vital importncia a unio frente a Deus e no diante dos homens. Quanto rebeldia, Canudos descrito como reduto de revoltosos durante o relato de Oall sobre encontro com Frei Joo Evangelista do Monte Marciano - participante do famoso Relat- rio sobre os acontecimentos. Nas consideraes do revolucion- rio, Canudos sugere, dependendo do olhar que o aborde, um ut- pico falanstrio, maneira de Fourier, ou refgio de insurretos desobedientes das leis. Em comentrio ao clebre Relatrio, o jornalista e frenlogo coloca a viso do Frei, que, enviado pelo Arcebispo da Bahia ao povoado devido a denncias de heresia, fica assustado e enojado com o que viu. Porm, refletindo sobre o relato do capuchinho, Oall conclui que, logicamente, por causa da condio de religioso, sua experincia no arraial deveria ter sido difcil de compreender, at mesmo amarga. Para suas concluses norteadas por princpios libertadores, diz Oalileu Oall que: Para um ser livre o que o Relatrio deixa entrever por entre suas remelas eclesisticas apaixonante. A pretexto de refrear o casamento civil, o povo de Canudos aprendeu a unir-se e a se desunir livremente sempre que homem e mulher estejam de acor- do, pois, ( ... ) seu condutor e guia - a quem chamam de Conse- lheiro - ensinou-lhes que todos os seres so legtimos pelo sim- ples fato de nascer (VARGAS LLOSA, 1973, p. 56). Sem dvida, ele um advogado das normas circulantes em Canudos, comunga com o iderio da harmonia entre os seres en- voltos pelo mesmo desejo. A entrevista do frenlogo com o capuchinho a oportunidade de reforar a geografia libertria de Canudos, opondo-se, ento, idia de distopia eternizada por Euclides, ao utilizar famosos sintagmas depreciativos como "urbs monstruosa", "refgio de fanticos", e "civitas sinistra do erro", Tal encontro fictcio, entre Oall e o padre, realizado no refeitrio do Mosteiro comentado com entusiasmo pelo correspondente; confirmaria, tambm, nesse dilogo, a opinio de que em Canu- dos a gente humilde e sem experincia praticava coisas que os revolucionrios europeus consideravam necessrias para implan- tar a justia na Terra. Sublinha-se aqui um dos veios essenciais: os seres so mobilizados religiosamente pelo anseio de eqidade so- cial. Em Euclides, o lder, que no escondia o horror que tinha 113 114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 pelo sexo feminino, chegando a no encar-las, comparado ao frgio Montano, no que tange a restries impostas aparncia fsica das mulheres, proibidas de se cuidarem. J os seguidores, a uma "farndola de vencidos da vida, gente nfima e suspeita, aves- sa ao trabalho, heris da faca" (CUNHA, 1993, p.120). O relato do capuchinho enfatiza haver no arraial uma multi- do de seres esqulidos, cadavricos, amontoados em cabanas de barro e palha, alm de armados at os dentes "para proteger o Conselheiro, que as autoridades tinham tentado matar antes" (V ARGAS LLOSA, 1987 ,p.57). O padre assegurava ter visto em Canudos facnoras perigosos, mencionando para Galileu o nome de Joo Sat, um dos tenentes do Conselheiro. Tal constatao estarrecera o religioso que, em misso ao lugar, interpelou o pr- prio bandido sobre a existncia de delinqentes numa aldeia que se diz crist. O padre recebeu como resposta que o desejo do Conselheiro era o de faz-los homens bons e que se algum dia rou- baram ou mataram foi pela condio em que viviam. Se fossem banidos dali cometeriam novos crimes. Alm disso, entendiam a caridade do chefe como a que Cristo praticara. A declarao entusi- asma o anarquista, que a ela se refere em carta endereada a revolu- cionrios europeus: "Essas frases, companheiros, coincidem com a filosofia da liberdade" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 57). A novela de Llosa, portanto, desenha uma geografia da li- berdade e da fartura, sedimentada no mito de um espao utpico, criado literariamente com esse nome por Morus e, de certa forma, materializado em Canudos por seus habitantes, pois respeitavam o direito do outro e os bens coletivos. O arraial enfocado como um lugar de paz, abenoado, recebendo os seguidores o mesmo tratamento que Jesus Cristo dispensara a seus fiis, sugerindo a aproximao do Conselheiro com o Filho de Deus. Com isso, a narrativa desenha a figura do lder como um protetor, um salva- dor - um soter - levando sua palavra a fim de redimir no apenas os sofrimentos materiais, a misria, mas o crime, o pecado. Se em A guerra do fim do mundo, Canudos aparece como terra de aco- lhida e aperfeioamento espirituais, incrustada numa geografia pro- tetora, salvtica e sobretudo revolucionria, onde o chefe legisla- va em leis fundamentadas no ius profano e no fas divino, em Os sertes, a sociedade foi interpretada como bastante negativa. Gall engrandece os seguidores, comenta que as pessoas de Canudos ::c:dides da Cunha e Vargas L1osa: dois olhares sobre Canudos chamam-se a si mesmas de jagunos, palavra que quer dizer re- voltados e que para elas Anticristo e Repblica so a mesma coi- sa, considerando as palavras do lder religioso uma verdadeira msica revolucionria para seus ouvidos. O novo regime, pertur- ba a estrutura consignada, considerado o responsvel por todos os males, alguns abstratos, sem dvida, mas tambm pelos con- cretos e reais, como a fome e os impostos. J em Euclides, jagun- o no possui a mesma conotao: no texto de Llosa recebe uma carga romntica. O significado de revoltado, atribudo palavra jaguno na obra do peruano, no encontra aproximao na do brasileiro, que o representa como um bandido. Deve-se tambm considerar que a interpretao de Gall torna a palavra engrandecedora e heroicizante, pois, etimologicamente, jaguno no remete a revoltado. Jaguno prende-se a zaguncho, uma arma de arremesso, semelhante azagaia. O valor semntico atribudo ao termo liga-se ao defensiva da chamada Guarda Catlica do Conselheiro e de seus fiis, tratados como fanticos e revolucio- nrios, em A guerra do fim do mundo e como facnoras, em Os sertes. Na crtica fala conservadora do capuchinho, Gall duvida de que ele e sua ordem sejam grandes entusiastas do novo, pois, a Repblica, paraso de maons, significou um enfraquecimento da Igreja. Para o religioso, os conselheiristas formavam uma seita poltico-religiosa insubordinada contra o governo constitucional do pas, Canudos era um Estado dentro do Estado, pois l no se aceitavam as leis, as autoridades no eram reconhecidas nem o dinheiro da Repblica admitido. Preocupado com as mudanas no vilarejo, garantia que, da mesma forma com que se institura a promiscuidade de sexos, tambm se estabelecera em Canudos a promiscuidade de bens: tudo era de todos. Para Gall, contrrio a essa viso, o Conselheiro praxilizava idias sociais novas no ser- to, ainda que to antigas no esprito humano. As "novas" idias sociais, segundo o revolucionrio, encontravam-se taticamente ve- ladas sob pretextos religiosos, devido ao nvel cultural dos conselheiristas. Ao final de uma carta, ele pergunta aos destinatri- os se no era notvel que no fundo do Brasil um grupo de insurretos formasse uma sociedade em que se aboliu o casamento, alm do dinheiro; onde a propriedade coletiva substituiu a individual. Fiel a ideais polticos reformadores, afirma no participar 115 116 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 da consternao de Frei Marciano, quanto aos fenmenos obser- vados em Canudos, pois o que experimentava com a concreta realizao de uma possvel utopia na Terra era "alegria e simpatia por esses homens graas aos quais, dir-se-ia, no fim do Brasil, renasce de suas cinzas a Idia que a reao acredita haver enterra- do na Europa no sangue da revolues derrotadas" (VARGAS LLOSA, 1987, p.59). Portanto, a partir da fala de uma personagem fictcia, Galileu Gall, e de uma outra histrica, Frei Marciano, constri-se no tex- to literrio, atravs de dialtico questionamento, a figura emblemtica do Conselheiro conforme a concepo mtico- messinica, quando um salvador viria para exercer o poder religi- oso e o poltico em uma Terra desprovida da dor e do mal. Em sutil intertextualidade com as lendas apocalpticas do fim do mun- do e com a escrita de Os sertes, Vargas Llosa retoma, em vrias passagens, o filo mtico to difundido na cultura luso-brasileira, oriundo da Pennsula Ibrica, desenvolvido, sobretudo, por Bandarra, nas Trovas, e por Vieira, em A histria do futuro. Retornando-se ao foco em que Gall se manifesta com insis- tentes reflexes questionadoras, tem-se, em outra carta, remetida aos mesmos correligionrios, relatos concernentes a experincias junto a homens do povo, defensores dos objetivos do "santo guia". Comenta a vitria dos fiis contra os soldados do governo, diz que os acontecimentos constatados de que os jagunos derrota- ram cem soldados que marchavam contra Canudos "confirmavam os indcios revolucionrios". Contudo, acrescenta, refletindo so- bre a estratgia dos seguidores, que intuies e aes corretas se misturavam com supersties inverossmeis. Deste modo, apesar de entusiasmo pelas prticas daqueles homens rudes, ele conse- gue emitir dialtica viso, situando-se entre dois horizontes: lou- va as corretas aes, mas vislumbra arraigados aspectos supersti- ciosos entre os fiis daquele cenobita. Em certa medida, nesse elo de uma prxis concreta, desconstrutora do status quo vigente concomitante a aspectos arcaicos de arraigadas crendices, reani- ma-se, na escrita de Llosa, a prpria ambincia em que eclodiu a utopia do Conselheiro: em Euclides, "um infeliz [que] destinado solicitude dos mdicos, veio, impelido por uma potncia superior, bater de encontro a uma civilizao, indo para a histria como poderia ter ido para o hospcio" (CUNHA,1993, p.120). Quanto Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos 117 a supersties, a intuies dos conselheiristas convm notar seus comentrios cientificistas sobre a dbia psicologia do grupo: o cl tumulturio de Antnio Conselheiro ( ... ) continuou a marcha do desnorteado apstolo, pervagando no serto. ( ... ) No cogitava de instituies garantidoras de um destino na Terra. Eram-lhe inteis Canudos era o cosmos ( ... ) transitrio e breve: um ponto de passagem terminal, de onde descampariam sem demora ( ... ) (CUNHA, 1993, p. 36). Demonstra-se, assim, a diminuio de valor na anlise do cl do Conselheiro. Tem-se o perfil "tumulturio", em que o con- dutor se configura um homem sem rumo, um "desnorteado aps- tolo". Para Euclides, Canudos no possui a chave soteriolgica, no havendo ali uma conjuntura estvel, garantindo a seus pros- litos eficaz apoio material. Aquele topos no seria um eterno cos- mos, mas um caos transitrio e breve. J em Vargas LIosa, supers- ties e intuies so motivos que participam do trao particular da psicologia do grupo de maneira positi va, desprovida de lingua- gem cientificista, caracterizadora do pensamento euclidiano. Ainda por intermdio de GalI, em carta aos amigos, tem-se a tentativa de questionamento racional, porm, no depreciativo, segundo a lgica do revolucionrio. Ele vai atrs de todos os ind- cios clarificadores do problema, sem pretender a Verdade absolu- ta. Logo, sem descartar quaisquer hipteses, questiona: So os smbolos religiosos, msticos, dinsticos, os nicos ca- pazes de sacudir a inrcia de massas submetidas h sculos supersticiosa tirania da Igreja e, por isso, utiliza-os o Conse- lheiro? Ou tudo isso obra do acaso? Ns sabemos, compa- nheiros, que na histria no h acasos, e por arbitrria que parea, h sempre uma racionalidade encoberta atrs da mais confusa aparncia. Imagina o Conselheiro a perturbao hist- rica que est provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um espertalho? Nenhuma hiptese descartvel, e, menos que as outras, a de um movimento popular espontneo, no preme- ditado. A racionalidade est gravada na cabea de todo homem, mesmo na do mais inculto ( ... ) (VARGAS LLOSA, 1987, p. 93). Advogando a racionalidade, alis tnica que permeia o dis- curso de Euclides, refletindo as coordenadas dos fins do sculo 118 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 XIX, Gall utiliza esse artifcio lgico atravs de teses e antteses, pois diz que nenhuma hiptese descartvel, a fim de ratificar o valor de Canudos e de seu fundador. Valoriza, entretanto, uma racionalidade "outra", diferente do pragmatismo cartesiano que se manifesta na observao de Euclides daqueles "sertanejos bron- cos"; abre, assim, a possibilidade de que se perceba com novo olhar os que no comungam a fala oficial. A tentativa de Gall de compor uma explicao convincente e no preconceituosa, para aqueles fatos advindos de um chamado proftico, de marcas escatolgicas, de um imaginado corte da Histria pelo lder e que culminaram na formao da cidade. Em Os sertes, o arraial con- cretizou a irracionalidade geogrfica pelas mos de um pietista ansiando pelo reino de Deus e abrigaria uma horda de loucos. Sublinhando a irracionalidade e a psicose coletiva, os seguidores teriam sido atrados para l pelos "despropsitos do Santo endemoninhado" cuja misso pervertedora levou-os a um "fana- tismo que no tem mais limites". O lugar era visto como uma distopia insana, "uma cidade dobrada por um terremoto", um "ddalo desesperador" e um "baralhamento catico" que "traam a fase transitria entre a caverna e a casa (00') traduzindo, mais do que a misria do homem, a decrepitude da raa" (CUNHA, 1993, p. 232-239). J o texto de Llosa fornece outros pontos de obser- vao contrastantes, quanto aos elementos humanos e geogrfi- cos encontrados em Os sertes. Eternizando por meio do texto ficcional a compreenso do fenmeno como um todo harmonioso, l-se no autor peruano que "a diversidade humana coexistia em Canudos sem violncia, em meio a uma solidariedade fraterna e um clima de exaltao que os escolhidos no haviam conhecido" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 97). Em Llosa, no se encontra aluso ao "diagnstico" euclidiano dado a Canudos de loeus horrendus da loucura e do banditismo. A populao no considerada uma turba de "temperamento vesnico" guiada por um chefe "dominador incondicional", por um "grande desventurado" e "retrgrado do serto". O texto de Llosa alude sim a uma heterclita comunidade de necessitados e de abandonados: ndios, negros, brancos, mulatos, homens consi- derados de bem - ou mesmo bandidos - todos juntos em uma comunidade de destino, unidos em constante harmonia de pensa- mento e de objetivos, como desejava Charles Fourier. Eram co- Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos mandados pelo Conselheiro, que delegava Guarda Catlica a defesa do territrio sagrado e, como diz o narrador sobre o "san- to", o santurio atraa peregrinos de todo o mundo, tambm a ateno do Anticristo Repblica. Em A guerra do fim do mundo, a fala depreciativa encon- trada na obra de Euclides assumida por personagens da classe dominante e do poder constitudo. Um dilogo entre Moreira Csar e o baro de Canabrava - rico latifundirio da regio - retoma idias contidas em Os sertes quanto aos "escolhidos". Note-se que o famoso coronel da Repblica fala dos seguidores como he- reges dementes, incendirios e ladres de fazendas, que matavam com balas explosivas e fuzis modernos. No entanto, o baro, sus- peito de proteger os "jagunos", desmente as afirmaes, decla- rando que tudo no passava de uma manobra para se fazer todo o pas acreditar que Canudos significava aquele perigo to propalado. Acrescenta, ainda, a seus argumentos: Esses miserveis no tm armas modernas de nenhum tipo. As balas explosivas so projteis de limonita, ou hematita parda se prefere o nome tcnico, um mineral que ( ... ) os sertanejos usam em seus bacamartes h muito tempo. ( ... ) Os fuzis ingle- ses, sim. Foram trazidos por Epaminondas Gonalves, seu mais fervoroso partidrio na Bahia, e para nos acusar de aliana com uma potncia estrangeira e os jagunos. E quanto ao es- pio ingls de Ipupiar, ele tambm o fabricou, mandando as- sassinar um pobre-diabo que, para sua desgraa, era ruivo. O senhor sabia disso? (VARGAS LLOSA, 1987, p.92). Mas a crtica atualizada, tendo como idneo apoio reflexivo Ataliba Nogueira, repensou a perseguio ao Conselheiro e a des- truio de Canudos. A partir de conceitos desenvolvidos pelo es- tudo da reviso de Os sertes por A. Nogueira, deduz-se no ser apropriado o ttulo de herege dado ao funda- dor de Canudos. Antnio Conselheiro no pregava idias hete- rodoxas. No pode ser chamado de gnstico, muito menos de bronco, pois sabia ler e escrever, deixando obras de f cujo lastro de raiz ortodoxa catlica. Ratifica-se, dessa forma, que ele no se ops aos dogmas da Igreja, ( ... ) nunca se nominou Messias, muito menos Salvador,( ... ) mas se negava a seguir 119 120 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ordens de seus representantes. Portanto no foi um dissidente radical da Igreja romana, como afirmou Euclides da Cunha. estudioso viu a dinmica do fenmeno captada, de alguma for- ma, porum esprito pr-concebido. ( ... ) Quanto a possveis anseios de esperanas escatolgicas ( ... ), seria possvel que tais fantasi- as msticas circulassem no imaginrio coletivo dos conselheiristas, da mesma forma que circularam em vrios grupos religiosos de vrias pocas (CAMBEIRO, 2003, p. 468-470). Tal linha crtica, seguida por Roberto Ventura, atribui o ataque ao temor das classes dirigentes de que o arraiallibertrio se tomasse ameaa regional e nacional do ponto de vista da pro- priedade, alm de constituir-se em um Estado dentro do Estado, como diz o capuchinho a Galileu Gall. Para R.Ventura, a destrui- o de Canudos se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que a fatores polticos, como os conflitos entre faces partidrias na Bahia, a atuao da Igreja contra a atuao pouco ortodoxa dos beatos e pregadores e as presses dos proprietrios de ter- ras contra a comunidade, cuja expanso trazia escassez de mo- de-obra e rompia o equilbrio poltico da regio. (VENTURA, 1997, p. 90). Assim, o dilogo entre o coronel da Repblica e o latifundi- rio demonstra que o tema da propriedade fundamental, sendo trabalhado em A guerra do fim do mundo. Tambm o dilogo entre Gall e um determinado jaguno aborda a questo da terra como ponto de honra para os proprietrios da regio se defende- rem contra outras possveis investidas dos "conselheiristas fanti- cos". Ao tentar explicar que a perseguio ao Conselheiro e a sua Jerusalm eram uma defesa da burguesia contra o ataque de mi- norias carentes propriedade privada, o jaguno negou ser esta a verdadeira causa. Para o ponto de vista daquele homem simples, o poder, representado no coronel, enviara soldados porque os fiis esta- vam construindo templos, visto que a Repblica queria acabar com a religio, oprimir a Igreja, os fiis e todas as ordens religi- osas. Pior ainda: institura o casamento civil. Replicando as afir- mativas do conselheirista sobre a interpretao das causas da Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos guerra, Gall diz que abolir a propriedade e o dinheiro estabelece uma comunidade de bens, faa-se em nome do que quer que seja, mesmo no de nebulosas abstraes, algo ousado e valioso para os deserdados do mundo, um comeo de redeno para todos. E que essas medidas desencadearo contra eles, cedo ou tarde, uma dura represso, pois a classe dominante jamais permitir que frutifi- que semelhante exemplo: neste pas h pobres de sobra para tomar todas as fazendas. O Conselheiro e seus seguidores tm conscincia das foras que esto acionando? (VARGAS LLOSA, 1987, p. 92). Confinuando o dilogo existente nas duas obras, tem-se tam- bm a aluso ao movimento da Vandia, acontecido durante a Revoluo Francesa. Esse sectarismo manifestado aos ideais re- volucionrios do sculo XVIII, comentado pela personagem de Vargas Llosa como movimento retrgrado, inspirado pelos pa- dres, foi tambm objeto de comparao com as leis internas de Canudos. Em Os sertes, Euclides da Cunha refere-se aos aconte- cimentos de Canudos como "a nossa Vandia", aludindo a ela em seu livro e tambm em um artigo na imprensa, a possveis "foras monarquistas em luta contra a Repblica ainda jovem ... " (ANDRADE,2002,p.122). Canudos - historicamente um "divrcio trissecular entre o litoral e o serto" (ANDRADE, 2002, p. 179) - em Llosa repre- senta um autntico paraso concretizado, em Euclides, mesmo guardando o carter de um den, o arraial definido como um primitivo abrigo de fanticos e de bandidos. Para o peruano, o Conselheiro retratado como agente de um singular, expressivo e importante fenmeno de uma cidadela libertria, sem dinheiro, sem patres, sem polcia, sem padres, sem banqueiros nem pro- prietrios, um mundo construdo com a f e o sangue dos pobres mais pobres. Comparando-se o texto de Euclides com o de Llosa, mas respeitando-se as devidas diferenas de poca e de viso, conclui-se, parcialmente, que em Vargas Llosa existe uma conti- nuidade literria do mito do chefe e da utopia salvadora, smbolo de um mundo sem maldade, sem doenas, nem misria. Tal espa- o fora criado e liderado por Antnio Conselheiro, ser carismtico capaz de preparar os fiis em uma comunidade sonhada, uma re- 121 122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 produo da Cana e da Jerusalm bblicas para o milnio to esperado e propiciador da volta ao Paraso. Entretanto, Euclides da Cunha cita nomes e termos correntes poca, para descrever e esboar, ante o olhar de futuros historiadores, o que chamou de um crime. Ele pretendia descrever o acontecimento sob a tica da realidade lgica e acabou seduzido tambm por pretensas ma- nifestaes sebastianistas encontradas em quadrinhas dentro dos casebres e anotadas em sua caderneta, embora isso fosse refutado por estudiosos, dentre estes, Ataliba Nogueira e Roberto Ventura. Porm, cabe enfatizar que, se Euclides se preocupava principalmente com o fato histrico, com a viso cientfica e raci- onal do fenmeno, Vargas Llosa, ao contrrio, investiu na roma- nesca recriao da histria, de forma diversa, imaginativa, que, sem abandonar o factual, descreve literariamente o movimento de Canudos. Confirma-se na obra do escritor peruano a perspectiva mtico-sagrada do fenmeno e, por ironia, essa constatao se estende, ainda, obra euclidiana, pois, ao assinalar crendices e ignorncias mticas/msticas, sublinha a permanncia de algo pri- mordial naquela sociedade. Inconscientemente e sob a gide da cientificidade, que deseja demonstrar e esclarecer, em seu relato histrico-cientificista deu relevncia suficiente aos mitos que tran- sitavam no universo de Canudos. Perpetuava-se no texto dos dois escritores o momento em que se consolidava, na sociedade arcai- ca de Canudos, a metamorfose de temas confluentes, tais como: milenarismo, heresia, utopia, messianismo. Desta forma, mani- festaram dados armazenados no imaginrio cultural, captaram em pocas diversas da Histria fenmenos que eternizaram as aes humanas e canalizaram para o texto a emergncia do mito do che- fe poltico-religioso. Na tentativa de concluir sem esgotar possibilidades de ou- tras futuras reflexes, pode-se dizer que a figura literria do Con- selheiro, em Os sertes, negativa. O autor alude ao chefe como um evangelizador fatal e sinistro. Interpreta ter sido o Conselhei- ro quem arrastara aquela pobre gente para uma desgraa incalcu- lvel. A obra, apesar de registrar o mito atualizado de uma figura carismtica, carece da inteno engrandecedora, encontrada em Vargas Llosa. J em A guerra do fim do mundo, focalizaram-se tambm as supostas ligaes anti-republicanas de Canudos, de- senvolvendo-se, da mesma forma, o mito do chefe poltico-religi- ::<.IClides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos oso simbolizado no sebastianismo corrente na Baixa Idade Mdia portuguesa revigorado no lder. Diversas vezes, tem-se o relato de que os fanticos sebastianistas queriam restaurar o Imprio, com a ajuda do Conde D'Eu, dos monarquistas, da Inglaterra, apesar de a literatura encaminhar a interpretao para um movi- mento messinico capaz de fundar um "mundo s avessas": um dos topoi literrios mais conhecidos (CURTIUS, 1996, p. 139- 144), onde no existissem dores. Quanto ajuda extramuros enviada por anti-republicanos para Canudos, est igualmente tratada. Durante um dilogo entre Moreira Csar e Padre Joaquim, proco de Cumbe, a idia de conspirao estrangeira apresentada em situaes ridculas para o poder. O padre, preso por suspeita de levar munies para os jagunos, gozava de toda a liberdade no arraial, rezando missa, visitando sua companheira e filhos, sendo interrogado por isto pelo obsessivo Coronel: - Falemos das balas explosivas ( ... ) Entram no corpo e estou- ram como uma granada, abrindo crateras. Os mdicos no ti- nham visto feridas assim no Brasil- de onde vm? Algum mi- lagre, tambm? ( ... ) - Que um padre tenha filhos no me tira o sono - diz Moreira Csar. Preocupa-me, apenas, que a Igreja Catlica ajude os facciosos. Diga o nome de outros sacerdotes que ajudam Ca- nudos (VARGAS LLOSA, 1987, p. 254-255). Durante o dilogo entre o coronel e o padre, aparece mais uma vez a descrio psicolgica dos jagunos atravs da tica do poder, sugerindo-se no perfil ambguo do seguidor a concepo da natureza do chefe: louco, mstico, santo e bandido. Durante o interrogatrio, as dvidas e os mistrios envolvendo o Conselheiro tambm se mostram: - O Conselheiro? - pergunta Moreira Csar, sarcstico. - Um santo, sem dvida? - No sei, Excelncia - diz o prisioneiro. Eu me pergunto todos os dias, desde que o vi entrar em Cumbe, h muitos anos. Um louco, pensava no princpio. ( ... ) Apareceram uns padres capuchinhos, enviados do Arcebispo, para investigar. No en- tenderam nada, assustaram-se, tambm disseram que era lou- 123 124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 co. Mas como se explica ento, senhor? Essas converses, essa paz de esprito, a felicidade de tantos miserveis? - E como se explicam os crimes, a destruio de propriedades, os ataques ao Exrcito? - interrompe o Coronel (VARGAS LLOSA, 1987, p.256-257). Alm da interferncia das personagens Gall, Frei Damio e Padre Joaquim, chega-se a uma configurao de Canudos, do Conselheiro e dos fiis, atravs do Jornalista Mope, que apresen- ta outro ngulo do fenmeno. Os pensamentos do Jornalista so- bre tudo o que se passava e o futuro da guerra so investigados pelo narrador. Acompanhando os acontecimentos, estava presente no ins- tante da conversa entre o Padre e o Coronel. Aps o encontro, o Jornalista Mope foi tocado por questes instigantes, buscando mentalmente respostas esclarecedoras. Ele faz indagaes para compreender se Canudos podia ser explicado somente atravs dos conceitos de conjuntura, rebeldia, conspirao, intrigas dos pol- ticos que pretendiam a volta da Monarquia. Com as palavras do padre tivera a certeza de que no era bem assim. Para ele, forma- va-se o contorno de algo "difuso, desatualizado, incomum, algo que seu ceticismo no o impede de chamar divino ou diablico ou simplesmente espiritual" e que uma dvida sobre a verdade o leva pergunta: "O que ento? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233). Uma concluso parcial Justamente tal pergunta gerou, nos textos literrios e crti- cos uma srie de conceitos os mais variados sobre o fato. Uma polmica se instala quanto ao comportamento de alguns seguido- res, encarregados da defesa de Canudos contra ataques externos. Nas descries de Euclides da Cunha e Vargas Llosa, os adeptos aparecem como guerreiros e se igualam na fora aos militares. Todavia, considerado estranho um grupo de pessoas religiosas apresentarem uma milcia armada. Os jagunos, em Os sertes e em A guerra do fim do mundo, formaram a Guarda Catlica, am- bgua designao das "tropas" conselheiristas. Os dois autores atestam a existncia de uma brigada de defesa composta de fan- ticos e de antigos perseguidos pela polcia. Outra observao ::udides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos feita a respeito de armamentos, citados pelo dois autores, mas refutado, no incidente das madeiras, pela crtica revisionstica, em especial de A. Nogueira. Quanto ao porte de armas, a explicao simplificada, j que normalmente um sertanejo traz sempre algo que o defenda do ataque de um animal ou de um salteador em suas incurses pelo mato. Sejam eles jagunos armados - significando um revoltado ou um bandido - ou simples fiis fanticos, deve-se recorrer fora do Conselheiro que, em suas peregrinaes e sermes per- suasivos, conseguiu arrastar todos os componentes da mar- gem para a pgina da existncia. Tentando colocar o ser humano acima dos desejos e paixes da vida material, ela atraa a ateno dos ouvintes com suas promessas de um futuro restaurador, de uma romntica ordem social igualitria. Por se sentirem atacados, constituram um grupo defensivo, apavorados pelo medo de se- rem dispersados. Os bens que conseguiram recolher, trazidos por aqueles que aderiam causa, eram de todos. Eles temiam que acabassem em mos do Anticristo Repblica, a fora desarticuladora de Canudos - para Euclides, um "ddalo desesperador de becos estreitos, ( ... ) em absoluta desordem, ( ... ) [obra de] uma multido de loucos" (VENTURA, 1992, p.91) - porm experimentado como omphalos, como o centro do mundo, pelos seguidores. Em A guerra do fim do mundo, Antnio Conselheiro , para alguns, um santo e um revolucionrio desejando efetivar, social- mente, ideais igualitrios. Para os representantes do poder um fantico rodeado de bandidos. J em Os sertes, um doente pa- ranico aliciador dos desprovidos que viam na sua figura e pa- lavra a nica salvao propagada em seus sermes. O organizador religioso e poltico sugerido por Vargas Llosa, em Euclides da Cunha, um louco apstolo extravagante, perseguido por estig- ma atvico, portador de uma "psicologia especial". Ressaltado por Vargas Llosa como um lder organizador, preocupado no apenas em salvar os homens do Anticristo Repblica, emA guer- ra do fim do mundo, ele o lder social e religioso de seus segui- dores, munido de autoridade necessria para livr-los do pecado e conduzi-los salvao aps o juzo final. Assinala-se que a essncia rebelde e a sntese revolucionria da utopia imaginada e concretizada por Antnio Conselheiro 125 126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 indicada ainda por Gall, aquele idealista que se identifica com o lder e com o arraial. Mas sua preocupao com o material, com o quotidiano, assim, afasta seu questionamento sobre a desigual- dade entre os homens do campo metafsico e mstico, no se em- penha em responder s questes que lhe coloca, a personagem Jurema: - O senhor acredita que o Conselheiro foi mandado pelo Bom Jesus? Acredita nas coisas que ele anuncia? Que o mar ser serto e o serto mar? Que as guas do Vaza-Barris vo virar leite e suas barrancas, cuzcuz de milho pra que os pobres co- mam? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233). Para finalizar, destaca-se a passagem em que durante sua viagem rumo a Canudos, a fim de conhecer a cidade prometida e seu fundador, Gall encontra um grupo de sertanejos que vagava e lhes fala da seguinte maneira, em clara adeso quele to criti- cado projeto: _ No percais a coragem, irmos, no sucumbais ao desespe- ro. No estais apodrecendo em vida porque um fantasma es- condido atrs das nuvens assim o decidiu, mas porque a soci- edade est mal formada. Estais assim porque no comeis, por- que no tendes mdicos nem remdios, porque ningum se preocupa convosco, porque sois pobres. Vosso mal se chama injustia, abuso, explorao. No vos resigneis, irmos. Do fundo de vossa desgraa, rebelai-vos, como vossos irmos de Canudos. Ocupai as terras, as casas, apoderai-vos dos bens daqueles que se apoderaram de vossa juventude, que rouba- ram vossa sade, vossa humanidade ... (VARGAS LLOSA, 1987, p. 233). Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos 127 Referncias ANDRADE, O. de Souza. Histria e interpretao de Os sertes. 4.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002. CAMBEIRO, D. A figura literria de soter e herege em Os sertes, de Euclides da Cunha. In: MALEVAL, M. A. T. e PORTUGAL, ES. (orgs.) Estudos galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicaes, 2003. CUNHA, E. da. Os sertes. So Paulo: 1993, Cultrix. CURTIUS, E. Literatura europia e Idade Mdia latina. So Paulo: Hucitecl USP,1996. NOGUEIRA, A. 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Michel Riaudel, ADPF, 2005), La rception de la littrature brsilienne en France , p.67-72. 11 integre galement des lments de la communication du colloque sur La formation du roman au Brsil . Pour Ie dtail des ceuvres traduites, je renvoie la Bibliographie franco- brsilienne de Georges Raeders (Rio de Janeiro, 1960) qu'on compltera avec Estela dos Santos Abreu: Brasil Frana, ouvrages brsiliens traduits en France (B.N., Rio, 2004). Pour I'histoire de la traduction et de la rception de cette littrature,je renvoie mes deux livres Encontro entre lite- raturas .' Frana Portugal Brasil (Hucitec, 1995) et Dialogos interculturais (Hucitec, 2005). On se reportera aussi Mario Carelli, Cultures croises, Nathan, 1993 et Marie Hlene Catherine Torres : Variations sur l' tranger dans les lettres.' cent ans de traductions franaises des lettres brsiliennes (Artois Presses, Universit 2004). Pierre Rivas (Sorbonne Nouvelle, Paris 111) La littrature brsilienne se situe, dans le systeme de la littrature mondiale, comme ultra-priphrique, au sens ou les organismes intemationaux parlent de centre, priphrie, semi- priphrie, priphrique longtemps par rapport au Portugal, lui- mme priphrie de la Pninsule ibrique. La relation Centre- Priphrie, thorise un temps, dans le sillage post Braudel de I' conomie-monde a labor I' ide de dpendance culturelle: une littrature du soupon, entre plagiat et pigonisme, voire exotisme, la frappant d'illgitimit, car transposant des ides intempestives hors de leur lieul Pareillement priphrique, la place du portugais dans le systeme mondial de la traduction, ses flux et refluxo Les spcialistes ont montr que les langues du monde constituent un systeme de communication hirarchis, qui se vrifie dans le flux des traductions. 11 y a des langues dominantes et des langues domines. L'anglais est aujourd'hui la langue hypercentrale : 50 % des traductions se font partir d'elle ; puis des langues centrales : le franais (10 %) et I' allemand ; puis des langues semi- priphriques : espagnol, italien ; les autres langues : arabe, russe, chinois, portugais, se situent au-dessous de 1 % (on voit donc que la hirarchie d'une langue est indpendante de son extension : il y a des langues internationales et des langues rgionales, mme avec des milliards de locuteurs). 11 y a une relation entre hirarchie des langues et flux des traductions; si paradoxal que cela paraisse, plus une langue est dominante et plus on traduit partir d' elle et moins elle traduit vers elle. Le systeme anglo-saxon est tres auto- 129 130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 centr; la France s'est longtemps nourrie d'elle-mme ; elle traduit aujourd'hui plus de littrature brsilienne que les USA2. Le handicap brsilien est ici encore manifeste: position priphrique ; une langue rare selon la terminologie officielle, et Iongtemps non institutionnalise dans l'enseignement (et I' avenir incertain et menac aujourd'hui). Handicap encore: une insularit go-culturelle face aux vingt Amriques hispaniques qui n'ont jamais perdu le contact avec I' ancienne mtropole espagnole, laquelle leur a servi de relais et de chambre d'chos dans le monde hispanique et le reste du mon- de, en particulier grce aux maisons d'dition Barcelone, et au rle d'agents littraires. Tel n'est pas le cas du Portugal, ex- mtropole qui a vu sa colonie grandir et s' auto-centrer, ou les relations littraires se sont distendues au point, parfois, de s' ignorer. Handicap encore: I' crivain hispano-amricain crit pour un immense public, vingt pays, une ex-mtropole attentive, dans une langue intemationale. Cela explique le boom latino-amricain, auquelle Brsil ne participe pas. L'crivain brsilien crit dans une langue mconnue et sans chos autres, parfois, que son tat rgionaI, hors de grands centres lgitimant (So Paulo, Rio). En ce sens, la littrature brsilienne est une littrature mineure, au sens de Deleuze, priphrique au sens no-marxiste. L'hritage portugais Iui-mme, prestigieux et trop ignor, est une voix solitaire, lgiaque et dsaccorde face I' ostentation espagnole. Le Portugal salazariste a longtemps tenu I' cart cette littrature d'un modemisme subversif et, malgr le Prix Cames, ces deu x littratures se connaissent mal. La littrature hispano-amricaine a su trouver depuis longtemps sa conscration Paris, capitale de la Rpublique Mondiale des lettres, qui a intemationalis ces littratures, imposant Borges malgr la rticence de ses compatriotes, ou Paz. La prsence d'crivains, diplomates ou en exil, d'universitaires, de colonies importantes d'expatris ont t des relais fondamentaux, en particulier dans l'universit. Tel n'est pas le cas pour les Brsiliens, migrant peu, et I' enseignement de leur Iangue a t essentiellement investie par des Portugais. Se pose donc ici le problme central des intermdiaires et des traducteurs. Ferdinand Denis a t au XIxe sicle le fondateur des tudes brsiliennes (et, d'une certaine manire, l'aptre et le 2 HEILBRON, 1. et SAPIRO, G. in Actes de la Recherche en Sciences sociales, n144. Les traductions reprsentaient en 2003, 2,8 % du total de la production ditoriaIe \'Iatriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France .1 SurcesnoIm,cf.rresdeuxlivres cits en note 12, et le colloque Lisbonne atetier du lusitanisme .tranais, tudes runies par 1. PENJON et P. RIVAS, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2005, l04p. " Voir V Latbaud, agent secret des littratures luso-brsiliennes en France et Demiere tentation de V Latbaud,le Brsil", in Cahier des Amis de V. Larbaud, respectiverrent n 34, 1997,87 p. et n 5, nouvelle srie, Edit des Cendres, 2005, 157 p. (tudes runies par P. RIVAS). 5 Je renvoie mon article <<Fortune et infortunes de 1. Amado en France, rception compare de I'reuvreamadienne,inJ.Amado, lectures et dialogues autour d'une lEuvre, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2005, p. 23 30. Sur le rgionalisrre,je rappelle \estravauxd' Anne-MarieThiesse. On sait que le rgionalisme n' est qu' une variante de I' exotisme : le paysan mrre Franais, est <<I1otre frere farouche plus proche du caboclo que du Parisien. parrain d'une Iittrature brsilienne autonome). Ces mdiateurs Iittraires indispensables ne sont pas toujours des traducteurs, IesqueIs manquent OU de rigueur ou de gout, sans relle formation jusqu' rcemment. Hommage ici des passeurs inspirs teIs Phileas Lebesgue, Pierre Hourcade ou Armand Guibert 3 Roger Caillois a jou un rle central avec La Croix du Sud, mais Ies trop rares titres brsiliens se circonscrivent une veine essentiellement rgionale. V. Larbaud a t 1' agent secret des Iittratures Iuso-brsiliennes ; Ie Brsil fut sa demire tentation4 . C' tait un exceptionnel passeur, mais isol, mal paul par des traducteurs peu inspirs ; et la maladie a vite mis un terme cette trop brve saison. II faut ici insister sur une question centrale s' agissant de la rception de cette Iittrature. Le BrsiI est un pays-continent, qui, l' inverse de I' Amrique hispanique, ne s' est pas balkanis. Mais l'unit impriale n'a subsist qu'au prix des autonomies rgionales. La littrature brsilienne est une, mais constitue de rgionalismes Iittraires spcifiques, des comarcas (AngeI Rama). La cartographie littraire du Brsil ne cOIncide pas avec sa rception l' tranger. Une Iarge partie de cette littrature ne passe pas l'tranger. L'horizon d'attente du lecteur franais (mais gnralisable) ne s'intresse qu' une partie trs gographique et circonscrite: la littrature du Nord-Est. Donc, il faut analyser la rception de cette littrature dans ses diversits rgionales : quelles rgions Iittraires retiennent principalement, voire exclusivement, I' intrt franais? C' est une question pineuse et qui gnre beaucoup de malentendus dans le dialogue France-Brsil. Depuis le Romantisme, avec F. Denis, l'intrt franais va naturellement, vers la diffrence, de I'!ndien au XIXe sicle jusqu' la reconnaissance du Noir au xxe sicle. Phileas Lebesgue adap- te Iracema pour un public adolescent. Mais il faut surtout insister sur l'importance de la littrature rgionaliste en France au dbut du sicle. Les deu x principaux traducteurs franais, Lebesgue et Gahisto, sont des militants rgionalistes, venus du Nord, provinciaux hostiles la littrature parisienne, mondaine, psychologique ou avant-gardiste, et sduits par I'ide de race, non raciste mais enracine, celle d'un peuple, de I' intrieur5 . Cette sduction ethnographique explique leur attention au courant rgionaliste, en particulier Monteiro Lobato, l'Enfer et au 131 132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Paradis vert amazonien, mais aussi Alcides Maya, ou au caboclo de C. Neto. Ce sera aussi le cas de I' autre important intermdiaire, Jean Duriau. Les trois collaborent la Revue de ['Amrique [atine qui est entre les deux guerres, la principale revue ouverte ces pays. Ajoutons qu'ils sont pareillement hostiles aux avant-gardes littraires tenues pour jeux gratuits du parisianisme. Or le Brsil doit se librer de ces modeles. peine sacrifient-ils au roman psychologique et mondain d' A. Peixoto. Les fortunes contrastes de Machado de Assis et Graa Aranha relevent pareillement de stratgies idologiques, diplomatiques et mondaines. Le succes de ce dernier relevant de I' antigermanisme alors frntique en France, de son nacionalis- mo para barressiano (G. Freyre), et, accessoirement, du roman philosophique ides mis la mo de par Paul Bourget. Bergson le loue comme le reprsentant par excellence de la pense brsilienne. Pour O. Lima, prsentant Machado en Sorbonne, le plus grand loge est de le placer entre Mrime, Renan ou Daudet; de le rduire, en fait, la tradition de la latinit quand Aranha serait aux avant-postes du combat pour la civilisation. Canaan, pour Jacques Bainville, est I' quivalent des Dracins de Barres. Machado est un artiste, Aranha un penseur, trop peu Brsilien. II faudra attendre Roger Bastide pour le restituer au lecteur franais sa brsilianit intrieure fonciere dans sa prface la traduction de Quincas Borba en 1955. La traduction de Dom Casmurro en 1936 avait quelque peu dplace les rfrences, d' Anatole France vers Sterne (Ren Lalou dans les Nouvelles littraires) et voire Dickens (Gahisto dans le Mercure de France en 1937). Tous ces traducteurs sont plus sensibles au courant loca liste (ils traduisent C.Neto, M. Lobato, A. Azevedo, etc.) qu'au versant cosmopolite (ni Machado, ni les modernistes) ; la posie noparnassienne (Bilac), pas la modernit potique - accessoirement Ribeiro Couto, en poste en France. Ces stratgies officielles de 1 'idologie de la latinit rendent ainsi hommage, en Sorbonne, en 1909, Machado de Assis sans lui rendre justice: honor, peine traduit et inaperu. On lui prfrera Graa Aranha, plus idologue. Son statut rappellera assez celui de Ea de Queirs qui on prfrera Teixeira de Pascoaes, plus idiosyncrasique. Mais le roman raliste europen, Galdos, Verga, Fontane, ne trouvera pas plus de curiosit en France, \latriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France 133 attentive -Ia- seuIe- singularit- anglaise ou -russe: La politique- officielle fait traduire Nabuco ou Rui Barbosa sans aucun cho. Les relations mondaines, la comdie des gens de lettres faciliteront les traductions de A. Celso ou A. Peixoto et plus encore celle de Graa Aranha. Mais beaucoup de ces traductions sont compte d'auteur (Eneas Ferraz, etc.). L'absence de relais ditoriaux est ici manifeste malgr la prsence de l'diteur Garnier, O Bom Ladro, dont Figueiredo Pimentel disait que son reprsentant au Brsil ignorait tout de cette littrature. L' officialit incline une lecture sollicite de cette littrature. Ainsi de I'Anthologie de Victor Orban publie en 1913, la de- mande de O. Lima, et qui est bien contestable et trop officielle. Un paradigme regne encore, celui, dysphorique, de I' anthropologie des Lumieres, de De Paw Buffon et Hegel: continent de l'immaturit physique et morale ... pays inachevs ... enfants inconscients [simple] cho du vieux monde ... expression d'une vie trangere, dit Hegel dans la Raison dans l'histoire. La formation du roman brsilien, laborieuse et difficile est le propos du livre en franais de B. Costa, le Roman au Brsil (1918). Il cite peine Mmoires d'un sergent de la Milice, qui n' aurait qu'une valeur documentaire. Ronald de Carvalho, dans la Revue de Geneve d' avril 1921 sera moins fervent de Aranha, plus ouvert Macedo, attentif Lima Barreto, un Sterne plus mu, un Gorki moins rude. Les rfrences de B. Costa sont Ia haute littrature franaise : Bourget, Hermant, MareeI Prevost, Anatole France. Voulant analyser les moments mentaux du Brsil, montrer I'closion du roman au Brsil, son dveloppement, il retient quatre cri vains de rfrence: Machado de Assis, la colonne ionienne, sobre et lgante; A. Azevedo, naturaliste dorique, Coelho Neto, no romantique composite, et, culmination et couronnement, Graa Aranha, colonne corinthienne ( I' exception de Machado, tous ces crivains sont aujourd'hui absents des librairies franaises, comme le sont Abel Hermant, MareeI Prevost. Paul Bourget). Graa Aranha et Coelho Neto seront les crivains les plus traduits, ou les plus lous. lei se vrifie encore la gographie littraire du Brsil franais: Alencar, Azevedo, etc., tous crivains du Nord, du Nord Est, du Maranho, de Bahia, de l' Amazonie, 134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 attentifs une ligne d'expression sociale, romantique ou raliste, aux scenes de la nature quasi ou franchement exotiques. Ce sont des crivains bombsticos, boursoufls, qu' on qualifierait de no-baroque, ou d' pais sensualisme. Vn peu de cette constance pourrait se retrouver dans le succes de J. Amado en France, qui fut considrable et qui, s' il doit un peu au dpart, aux stratgies politiques, l'a incontestablement transcend, en faisant l' crivain le plus lu et par un lectorat largement ouvert. Mais son succes permet de revenir sur la lecture idologique et tlologique de Costa, pour qui le roman brsilien - I' image du franais - devrait passer du pur phnomnisme de Macedo ou de Almeida, du grossier sensualisme de Azevedo (et sans doute aurait-il pens ainsi de Amado), au grand roman idologique de Aranha. On a juste titre soutenu que la matrice du roman brsilien du XIXe siecle ne se trouve pas dans le roman europen du XIXe siecle, mais dans celui du XVIIle siecle chez Steme ou Diderot, et, au-del, chez Cervantes ou Rabelais, comme le dit Milan Kundera. D'ou la modemit, aujourd'hui reconnue, de Macedo ou de Manuel Antonio de Almeida. Il faudra attendre, dans la lecture et la rception de la littrature brsilienne en France, les travaux de Roger Bastide apres la Seconde guerre, pour qu'un changement de paradigme, dcisif, se produise et que la littrature brsilienne soit reconnue dans son altrit et Machado dans sa radicale et universelle diffrence. Mais le modemisme brsilien, la littrature du Sud, reste encore largement trangere au lectorat franais. La dpendance parait jouer en sa dfaveur. Simple cho du vieux monde? Le saut qualitatif du modemisme brsilien par rapport aux avant-gardes europennes chappe encore nos ethnocentrismes. L'unit de la littrature brsilienne est faite de tension entre deux ples, le cosmopolitisme et le localisme pour reprendre I' opposition de Antonio Candido. Littrature double registre, fatalit de I'hritage colonial - entre Mmoire europenne et Fondation amricaine, entre tentation centrifuge et vocation centripete, entre Machado de Assis, crivain de stature intemationale la mesure d'un Flaubert, et Euclides da Cunha, I' auteur de l' pope nationale des Sertes, entre Clarice Lispector qui n'est pas indigne de V. Woolf et Jorge Amado, le chantre de Bahia. S'il fallait rduire tres vite l'horizon d'attente du lecteur ~ fatriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France Voir mon article <<Le Brsil dans l'imaginaire franais: tentation idologique et rcurrences mythiques, in Images rciproques du Brsil etdelaFrance,IHEAL,1991. franais face au Brsil, on hasarderait le fantasme duprimitivisme sous ses deux formes, rpondant aux deux moments fondateurs de son mergence ; celui de la Dcouverte, des descobridores et, disait Borges, dans ce mot, il y a or: vision de l'Eldorado, du Paradis Terrestre, le pays du dsir (Hegel), de lajouissance (Lacan) et, I' oppos, celui des conquistadores colonisateurs cruels: l'Enfer, la violence, l'esclavage, l'anthropophagie, marquant ngativement conqurants et autochtones. Ce sont ces deux veines qui traversent I' imaginaire franais de Montaigne et Jean de Lery Cendrars et Lvi-Strauss. Dans l'imaginaire franais, sur la longue priode, le Brsil appara'it la fois comme remords (colonial) et dsir (fantasme) d'une incompltude franaise. C'est la veine exotique et primitiviste qui travaille nos fantasmes brsiliens. Elle constitue l'horizon d'attente franais, la fois son fondement et ses limi- tes. Limites quand la France rduit le Brsil sa latinit priphrique pour des raisons go-politiques; cette littrature est une copie du modele franais et Machado de Assis un Anatole France des Tropiques. Les Modernistes de So Paulo, pour Blaise Cendrars ne font que singer les modes parisiennes, tard et mal. Cette littrature est donc, dans sa dimension universaliste ou ses modalits modernistes, frappe d'illgitimit ou d'pigonisme. C' est la veine rgionaliste, la plus idiosyncrasique pour les uns, la plus exotique, se plaindront beaucoup de Brsiliens ouverts la Modernit et en qute de reconnaissance internationale, qui retiendra le lecteur franais - non plus le double de la France, sa ple copie, mais sa contre-figure. L'horizon d'attente franais, dans les annes 30, perd de sa superbe ethnocentrique et travaille les trfonds archai'ques et primitivistes: crise de la raison occidentale, mergence de I' ethnographie, du freudisme, du marxisme, du Surralisme 6 Ces tropismes vont trouver dans la veine rgionaliste enracine, archai'que, du Nord-Est leur Supplment d'me: le roman social, surtout celui de Jorge Amado, dont on ne saurait sans injustice rduire le succes I' acti visme de I' internationale communiste, ni son seul exotisme, ni, plus tard, son ct rotico-populiste. Pourquoi cet intrt pour le roman rgionaliste-social nordestin, cette ignorance des grands romans urbains de Macha- do de Assis et ce constant dsintrt pour le Modernisme ? Blaise 135 136 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006 Cendrars n' avait que sarcasmes pour ces modernistes de So Paulo qui I' avaient accueilli si gnreusement, assurant qu' il ne resterait d' eux que quelques romans illisibles et une pince de plaquettes rares , leur prfrant Bahia et Pernambuco, les deux mamelles des Belles Lettres et des Arts Brsiliens [ ... ] qui ont mis le Brsil dans le grand courant de la littrature mondiale ct des USA (prface I'Enfant de la plantation de Jose Lins do Rego, repris dans Trop c' est trop). II y aurait dire et redire sur les propos et sur la position de Cendrars dans le champ littraire franais d' alors. II y a un double malentendu, de Cendrars, Robinson Suisse s'ensauvageant dans le Brsil archa'ique et fuyant les milieux littraires ( la maniere de Jean Jacques) et des modernistes tentant de fonder une tradition nationale que le pirate du Lac Lman, pourri de littrature dit Mario de Andrade pourrait compromettre dans son utopie de la tabula rasa .7 II y a un double malentendu entre Cendrars et les Modernistes propos de deux Brsils - des deux Brsils. Mais les choses n' ont guere chang, mme apres qu' on a traduit, dit, tudi, le Modernisme 8 Et le succes d' Amado perdure. Le Brsil est bien la contre-figure du modele franais. Face une littrature du soupon, s' puisant en psychologisme, minimalisme, noclassicisme, formalisme, narcissisme autofictionnel, le roman nordestin affirme sa confiance dans le rcit, son abandon au Iyrisme, sa force tellurique, sa dimension pique: I' mergence de ce que Milan Kundera appelle le roman du Sud et sa gnalogie : Rabelais, l' oralit, le crole, I' esthtique de I' invraisemblance, Rushdie, Naipaul, Garcia Marquez, Chamoiseau . Face I'utopie de lamodernit I'heure de la mondialisation arasante, le roman du Sud - y compris Faulkner et Glissant- oppose, selon I'expression d'Homi Bhabha (O local da cultura) des cultures de la contre modernit, rsistant leurs oppressives technologies assimilationistes. Le Brsil est le pays de I' homem cordial contre I' individu srialis. Mais I' altrit brsilienne ne se rduit pas la nature tropicale, la vitalit du Noir ou I'nigme de l'Indien. Le mystere des origines et la fascination de la transe exportent beaucoup de strotypes et de clichs alimentant en retour et multipliant les fantasmes franais et leurs crits sur le Brsil, et pas seulement chez Cendrars. 7 l' ai esquiss ces poiots in Ceodrars Homme Nouveau, Nouveau Monde, in Europe, spciaI Ceodrars, o o 566, juin 1976 ; dans B1aise Cendrars et I' avant -garde in Blaise Cendrars 20 ans apres, Klincksieck, 1983, et dans <<loge du dserteUD>, in B. Cendrars, le bourlingueur des deux rives, A. Colin, 1995 (sous la direction de Qaude Leroy). g Sur le Modernisrne brsilien, voir Ie nurnro 599 d' Europe, mars 1979. Matriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France Cette rception - et cette veine franaise - dsesperent le Brsil du Sud face la persistante mconnaissance de leur avant- garde littraire et de leurs grands crivains classiques. Littrature exotique d' exportation: putes aguichantes et voyous au grand creur. Mais la France a export aussi nos paysans madrs de Maupassant et les Marseillais de Pagnol. Et on a plus lu l' tranger Herv Bazin que Julien Gracq. 11 faudrait ici distinguer entre auteurs lus - et trop lisibles (Gide de Amado) et auteurs reconnus dans le canon littraire I' tranger - cas des hispano-amricains Borges, Cortzar, Paz. Machado de Assis est une rfrence pour Susan Sontag ou Carlos Fuentes. Son reuvre, relue la lumiere, non plus de Anatole France, mais de Steme, voire de Dostolevski ou de Pirandello, est un peu mieux reconnue d'une lite restreinte et mrite de I' tre davantage. Le seul auteur brsilien qui a trouv un certain statut littraire est Clarice Lispector, travers Helene Cixous; le relais se fait travers la littrature fministe qu'elle n'a jamais prtendu reprsenter. Elle est une rfrence dans un certain systeme littraire franais, mais en marge, que sa qualit littraire transcende infiniment. Entre le grand lectorat - Amado - et les instances de lgitimation - Clarice - qu'y a-t-il ? Des noms, souvent phmeres. Le modemisme pauliste n'a pas trouv son public, mme restreint une lite et Graciliano Ramos pas beaucoup plus. La prgnance en France du roman nordestin et amazonien est corrobore par les tropismes des chercheurs franais. Lvi-Strauss, RogerBastide enseignant So Paulo, mais travaillant sur 1'lndien et le Noir et ignorant les travaux de leurs collegues du Sud (Sergio Buarque de Holanda ne sera traduit - Racines du Brsil- que tres tardivement alors que Gilberto Freyre est traduit et ft Cerisy-Ia-Salle). Les manifestations de cette Anne du Brsil- de I' ouverture indienne au Grand Palais aux musiques nordestines et aux expositions sur l' Amazonie en sont encore la preuve. La rception d 'une littrature trangere donne toujours lieu des malentendus : la place de Poe en France, celle de Laforgue, de Corbiere ou de Supervielle en Angleterre le montre assez. La diffrence brsilienne est particulierement manifeste s' agissant de la posie et sa rception spcifique. Vn lectorat partout rduit et davantage en traduction ; la ncessit de traducteurs inspirs 137 138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 maitrisant la langue source et la langue cible ; des maisons d' dition dvoues. Mais il faut dire encore que la trajectoire de la posie brsilienne au XX e sicle est irrductible, elle ne recoupe pas les grands courants potiques internationaux, le Surralisme par exemple, l'cart des grandes tendances, y compris sud- amricaines. Le Modernisme, dans sa radicalit, et le concrtisme, dernire utopie de I' avant -garde, ont pu retenir I' intrt de quelques revues, de quelques maisons d' dition et paraitre mme parfois confisquer toute la parole potique brsilienne dans des chapelles ou des ghettos de revues. Quelques grands ont t traduits (Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar). Mais on ne trouve aucun recueil de Bandeira, de Joo Cabral de Melo Neto. On peut se fliciter de voir traduit quelques figures fminines exemplaires: Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, etc. L encore, c' est la singularit de cette posie, I' cart des grandes tendances, qui peut expliquer leur isolement : un certain schmatisme formeI, une rticence certaine aux images, un ostinato rigore dans la philosophie de la composition, une radicalit extrme dans I' exprimentation, aucun de ces grands potes qui aient connu la conscration d'un Neruda, d'un Borges, d'un Paz, d'un LezamaLima. De grands potes exils et ensevelis dans leur insularit. La facile sduction brsilienne et son exotisme rducteur cachent la difficile altrit brsilienne et son opacit. Le vertige de I' altrit peut se tradu ire dans les piphanies de Clarice Lispector mais plus difficilement dans I' ethos amazonien ou I' aridit du ser- to. - qui est une image de I'me - chez Euclides da Cunha ou Guimaraes Rosa: le paradis vert est surtout un enfer 9 La culture orale, qui est la matrice de cette littrature, donne sa sduction aux romans de J. Amado, et sa difficile apprhension ceux de G. Rosa. Pour Hegel, l'Europe dsormais, c'tait la Prose. L'pope, la Posie, le Mythe taient le terrain et le terreau du Nouveau Monde, pays ou I'on rencontre le Diable, les Esprits, la Mort, le Double, le Merveilleux mdival ; pour la thorie post-coloniale, les socits priphriques sont la mmoire et le laboratoire des contre-cultures. Ceci se vrifie au Brsil plus qu'ailleurs. D'ou peut-tre la difficult d'apprhender ces lectures sinon travers strotypes et clichs? Mais est-ce une bonne approche que ce rductionnisme socio-critique ou idologique ? 9 La veine nordestine a retenu I' dition franaise. L' autre grande fascination est I' Amazonie. Mais le grand livre amazonien pour le lecteur franais est F ort vierge, l'reuvre du portugais Ferreira de Castro <<tIaduit" par B. Cendrars. Matriaux pour une tude de la rception de la littrature brsilienne en France 10 On trouvera un tat de la question dans le n 919/1920 d' Europe, Littrature du nov.-dc. 2005, organisation Michel RIAUDELet P. RIVAS et dans France Brsil, ADPF, 2005, sous la direction de M. RIAUDEL, qui releve I'tat prsent des traductions disponibles actuellernent dans la librairie franaise. On trouvera galementdans cetouvrage,sous le titre La rception de la littrature brsilienne en France, une prernire bauche de ce texte sur les Matriaux ici repris, largi et augment. Cetlcprsenlaliondel'1mpresem de la littrature brsilienne en France, sommaire, rapide, panoramique, certainement arbitraire, s' adresse des lecteurs franais non avertis. On peut la prendre, de mme que ces Matriaux, comrne une vision franaise qui, ce titre, avec ses limites et ses limitations peut
comrne docwnent. En conclusion, faisons le point sur I' tat prsent de cette rception de la jeune littrature lO
On peut la rsumer par ces deux ples constitutifs ds I' origine, entre tradition naturaliste et rgionale et cosmopolitisme international. La ligne no-naturaliste de la Gnration de 90 s'tablit pour nous dans la tradition fondatrice de notre imaginaire comme terre de la sauvagerie, de la violence, de la cruaut. Les Nouveaux Cannibales sont les jeunes des banlieues sensibles, les sauvageons de la priphrie. Ce sont les romans de lafavela: ainsi de la Cit de Dieu de Paulo Lins, de Tant et tant de chevaux de Luiz Ruffato ou des romans de Patricia Melo. Trafiquants de drogue, psychopathes, marginaux, romans de la violence urbaine, dont le pre est Rubem Fonseca. Littrature la lisire du document, de l'image, dans un no-naturalisme exacerb, un hyper ralisme bru- tal, aliment par et alimentant les media, telenovelas ou films - assurant ainsi continuit et rupture dans notre horizon d' attente et nos premieres images : la Terre du Mal, de I' exces, de la dmesure. L' image dnique, la nostalgie des origines, notre rverie rcurrente, primitiviste et amazonienne s'inflchit en nostalgie non plus de I' espace, mais du temps et de la mmoire chez Milton Hatoum, auteur amazonien mais habit de sa mmoire libanaise et orientale, tissant de songe une lgie mlancolique. Cette veine orientale (Raduan Nassar) voire orientaliste (Alberto Mussa) dessine, dans une littrature gnralement expressionniste, un filon qui dralise le rel. Ce travail de dralisation est au centre de romans de Chico Buarque (Budapest) et de Bernardo Carvalho, plus maniriste et post modeme (Mongolia, Neuf nuits) traduisant l'incertitude, la perplexit, l'instabilit d'un Brsil dracin de son terreau rural et perdu dans ce Nouveau Brsil. Vision dilacre de ces deux Brsils, entre enfer et paradis, qui s'inscrit dans la ligne d'un imaginaire brsilien de Cendrars Orsenna, de Peret Rufin, voire dans l'mergence d'un roman noir franais chez Bernard Mathieu ou Mathieu Trence, entre euphorie et dysphorie, enchantement et dsenchantement du monde. Le succes intemational de Paulo Coelho, dans son formatage de best-sellers dterritorialis, laisse peut-tre encore sourdre un peu de cette prgnance d'une qute et d'une nostalgie d'un autre monde. l39 I A pesquisa de que resulta este texto s foi possvel graas a uma temporada de estudos no Centre de Recherche sur le Brsil Contemporain da cole des Hautes tudes en Science Sociales, Paris, onde realizei, no priIreim seJreStre do ano de 2005, um estgio ps-doutoral. Para tanto, contei com a orientao de Jean Hbrard e obtive bolsa de estudos da CAPES. 2 Sobre os dados biogrficos de Amelie Schoppe, consultar Brinker-Gabler (1986). Maria Teresa Cortez (2003) apresenta um estudo sobre a representao do Brasil na novela alem Die Auswanderer Nach Brasilien Oder Die Htte Am Gigitonhonha, de Amelie Schoppe, no qual oferece indicaes sobre o percurso intelectual da autora Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista 1 Andra Borges Leo (UFC) Repblica mundial das letras juvenis Amelie Weise Schoppe nasceu em Fehmarn, uma ilha ao norte da Alemanha, no dia 09 de outubro de 1791. Com o pai, o Dr. Friedrich, foi iniciada na arte de curar, e, aps a morte do "mdico da cidade", em 1798, mudou-se para Hamburg. L, ins- talou-se na casa de um tio acabando por abrir uma escola para meninas, em 1823, com uma educadora chamada Fanny Tarnow. Antes disso, Amelie cumpriu o destino das moas de seu tempo: casou-se com um jurista, teve trs filhos e ficou viva. Seu casa- mento no lhe trouxe muita felicidade. Aps a morte do marido, passou a escrever livros com o objetivo de sustentar a famlia. Publicou, ento, obras com lies de sabedoria e moral a fim de guiar as crianas na vida prtica, alm de colaborar para muitas revistas e editar jornais de moda na Alemanha e em Paris, dentre os quais se destaca a Revista Para Jovens Iduna. Suas obras so- mam mais de 200 ttulos e, alm do francs, algumas foram traduzidas para o ingls, o holands e o tcheco. Em 1851, a es- critora emigrou para os Estados Unidos onde faleceu no dia 25 de setembro de 1858 2
Julie Nicolase Delafaye-Brhier nasceu na cidade francesa de Nantes, ento capital da Bretanha, no dia 15 de maro de 1785. Seus pais eram um casal de burgueses comerciantes, Jean Julien Marie Brhier e Marie Jeanne Pichon. Em 1793, Julie trocou a Bretanha por Saintonge, a regio de sua me, abandonando o ca- tolicismo e tornando-se protestante. Cresceu educada pelo tio, Auguste, um cura constitucional e poeta a quem a escritora dedi- 141 142 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 cou seu livro L'[ntrieur d'une Famille ou Le Rcit du Voyageur. Com o pai, no menos afetuoso e severo que o tio, Julie definiu-se escritora. No texto da dedicatria - la mmoire de mon pere - do livro Le Robinsonfranais, publicado logo aps a morte de Brhier, a autora traa o perfil de uma figura austera a qual nunca teve coragem de glorificar em vida. A conduta do pai lhe servira para a composio dos personagens. Em 1812, casou-se com o mdico Gratien-Claude Delafaye. Julie cultivou uma longa rela- o de amizade literria com seu primeiro editor, o livreiro espe- cializado em colees juvenis Alexis Eymery, dedicando-lhe o li- vro Le petit voyageur en Grce ou lettres du jeune Evariste et de safamille. Julie Nicolase, ou Mme. Delafaye-Brhier, consagrou- se escritora de sucesso de livros juvenis classificados como ro- mance moral, gnero bastante popular. Faleceu em 1850, aps concluir sua maior obra - o romance histrico Histoire de ducs de Bretagne: racont par um pere ases enfants, publicado pela casa Lehuby, herdeira dos Eymery, em 1851 3
O que h em comum entre as trajetrias individuais dessas duas mulheres de letras? Se partirmos de suas origens sociais, linhagem materna e paterna, e de suas estratgias de aliana no universo letrado, suas inseres na Repblica das Letras, vere- mos duas figuras femininas tpicas do perodo: familiarmente bem dotadas por capitais escolar e cultural, os quais convertem em educao e escrita. Essas mulheres constituem-se plo domina- do no mundo da produo intelectual. s vezes, de to discre- tos, seus trabalhos so, por longos anos, invisveis, o que, no entanto, no as impede de cultivar a singularidade do prprio nome, reivindicando publicamente suas autorias. Os exerccios de cpia, o gosto pelas cartas e pelas narrativas dialogadas que orientam os romances epistolares, a prtica dos deveres de esti- lo, o cuidado com os usos das palavras, todas as experincias da intimidade, levam as duas escritoras entrada num lento percur- so de afirmao da individualidade, que tem corno conseqncia imediata o investimento na carreira literria atravs da escrita de livros para ajuventude. No por acaso as duas caprichavam nos prefcios e dedicatrias que antecediam os textos de seus livros, segredando detalhes de suas vidas domsticas, desenhando-se como criadoras singulares e, claro, preparando elas mesmas a recepo de seus romances. 3 Para os dados biogrficos de Julie Nico1ase Delafaye-Brhier, consultar D' Amat e Prevost (1982). E os seguintes do- cumentos: Catalogue Gnral des Livres Imprims de la Bibliotheque Nationale (s/d); Catalogue Gnral de la Librairie Franaise Pendant 25 ans (1840-1815). Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista Amelie Weise Schoppe e Julie Nicolase Delafaye-Brhier tm em comum um lan criador e a paixo pela educao moral. Partilham um universo de temas, preocupaes e referncias co- muns que define suas autorias no gnero da literatura de forma- o pedaggica. Como mulheres de letras cumprem seus papis no longo processo de interiorizao das obrigaes sociais atra- vs dos dispositivos de imposies e apropriaes das prticas de leitura. Afinal, o leitor que aprende a lio, domina a emoo. Amelie e Julie Nicolase ocupam lugar de honra nas experincias que orientam o processo de civilizao (Elias, 1994), e, a uma certa altura de suas carreiras, chamam a ateno dos livreiros- editores. Da a convenincia em public-las e a aposta feliz no sucesso comercial de suas obras. Uma outra disposio bem mais desafiadora revela o trao de unio entre as duas: uma rica imaginao literria, misto de sensibilidade e razo, que as conduz ao exotismo tropical. Amelie e Julie Nicolase elegem o Brasil e o sistema de relaes coloniais como tema de um de seus romances juvenis. As duas escritoras parecem contar com as mesmas fontes de inspirao e trabalho, que orientam a trama dos enredos e a descrio de personagens ndios e negros americanos, viajantes e emigrantes europeus, to prximos e distantes. Lendo seus livros, chega-se concluso de que as duas damas estavam muito bem informadas sobre a histria do Brasil e de que seus conhecimentos no eram apenas docu- mentais e livrescos. De incio, suas obras destacam-se pela excelente aceitao obtida daqueles que' referendam as leituras na Europa do sculo XIX: os livreiros-editores e o pblico leitor. No ano de 1828, publicado, em Berlim, um romance de Amelie Schoppe intitulado Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha. Iluso, sa- bedoria e moral para viver, que conta a histria da vinda de uma famlia de emigrantes alemes para o Brasil. Esse livro conhece uma longa vida na Frana. Inicialmente traduzido livremente do ale- mo por Mlle. R. Du Puget para a Librairie de L'Association pour la Propagation et la Publication de Bons Livres, tal era a recomen- dao de suas lies de sabedoria e moral para viver. Em 1839, a narrativa alem dos Emigrantes no Brasil inicia sua longa carreira de imitaes francesas (adaptaes livres do texto original) feitas por Louis Friedel para a Biblioteca da Juven- 143 144 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tude Crist dos impressores-livreiros catlicos Alfred Mame, de Tours. A obra devidamente aprovada pelo Arcebispo daquela provncia. Em 1842, alcana a 3 edio, em 1853, est na 7, e em 1870 comemora uma 9 edio de puro sucesso pedaggico e comercial. A partir de 1851, traduzida do alemo tambm em sucessivas edies por F-C. Gerard, para a livraria-editora Mgard, de Rouen. Na nova casa, compe a Biblioteca Moral da Juventude e ganha, em 1862, o ttulo de Robinson Brasileiro. Suas tiragens variam entre 3.000 a 4.000 exemplares, garantindo su- cesso de vendas para os Mgard at 1866. A partir da, a obra publicada at o ano de 1918 pela casa editora Eugene Ardant, de Limoge, no mais como traduo, e sim como imitao de F. C. Gerard, indicando a transao de compra e venda entre os livreiros. O romance Os Portugueses da Amrica - lembranas his- tricas da guerra do Brasil em 1635 (contendo um quadro inte- ressante dos costumes e usos das tribos selvagens, e detalhes ins- trutivos sobre a situao dos colonos nessa parte do Novo Mun- do), de Julie Nicolase Delafaye-Brhier, tem sua trama ambienta- da durante as batalhas da primeira fase da ocupao holandesa em Pernambuco. Obtm aprovao do Arcebispo de Paris no dia 28 de outubro de 1846. Dois meses aps, em dezembro, obtm sua inscrio na Bibliographie de la France - founal Gneral de L'imprimerie et de la Librairie, para ser definitivamente publica- do pela casa Lehuby, em 1847. Classificada como uma obra desti- nada juventude, mais precisamente como uma "Americana ao uso da juventude", chega a trs tiragens no ano de sua publicao. A primeira, publicada em um volume in-8 ilustrado com 12 litogravuras em duas cores, preto e branco, pelos artistas Auguste Lemoine, Janet-Lange e Giraud, vendida aos livreiros a 250 fran- cos (o exemplar custa 6 francos). A segunda, oferece as mesmas ilustraes, mas baixa de preo, custando 175 francos. J a tercei- ra, vem nas cores ouro, vermelho, azul e violeta, num exemplar de charmosa capa e apresenta nova queda de preo: toda a tiragem custa apenas 100 francos. Este artigo analisa o modo pelo qual os livros Os Emigran- tes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha (na verso francesa de P-C Girard), e Os Portugueses da Amrica colocam o problema da colonizao, da nacionalidade, da instruo religiosa e da apli- cao mOfal. O ponto de vista adotado o de uma sociologia Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista histrica das prticas culturais (Chartier, 1990). Associando a ca- tegoria de representao do mundo social aos modos de produ- o, difuso e apropriao dos objetos culturais, essa abordagem privilegia, na anlise do trabalho de construo dos significados das obras, o estudo dos processos a partir dos quais os textos conhecem suas publicidades. N as histrias imaginadas por Amelie e Julie Nicolase, os povos selvagens adquirem o estatuto de modelos e contra-mo- delos postos ao uso dos leitores e de seus pais em todas as eta- pas da educao moral. A popularizao de suas obras, com su- cessivas reedies e imitaes por todo o sculo XIX, produz geraes de leitores europeus que, na onda da expanso do co- mrcio de livraria para a Amrica Latina, acabam encontrando os leitores de alm-mar, como as crianas e os jovens brasilei- ros. Isto supe a existncia de um universo cultural comum en- tre as duas comunidades de leitura, com os mesmos modos de recepo das mensagens, os mesmos preconceitos e categorias de percepo do mundo social da Amrica Portuguesa, configu- rando uma repblica mundial das letras juvenis. Em 1858, mais de dez anos aps a primeira edio parisiense, Os Portugueses da Amrica entram para a biblioteca de obras ins- trutivas e recreativas do catlogo de venda da Livraria de Baptiste- Louis Garnier e passam a ser adquiridos na loja da Rua do Ouvidor. O romance entra no Brasil como obra importada, jamais obtendo traduo para o portugus. Os Emigrantes no Brasil igualmente no foram traduzidos para o portugus e muito menos entraram para as colees de livros importados da livraria francesa. Lies de viagens: o romance moral sobre o Brasil No sculo XIX, a formalizao do Brasil como nao no recurso exclusivo da historiografia ou das narrativas ficcionais de escritores brasileiros. Antnio Candido (1959) nos chama a aten- o para a importncia do pensamento crtico do francs Ferdinand Denis, que, pioneiramente, no livro Rsum de I 'histoire littraire du Portugal suivi du rsum de l'histoire littraire du Brsil (1826), reconhece e confere tratamento literrio aos temas nativistas, natureza e ao ndio brasileiro. A conscincia de autonomia e inde- pendncia da literatura brasileira em relao a Portugal formulada 145 146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 por Denis, que viveu alguns anos no Brasil, acaba por contagiar um grupo de jovens escritores que, entre os anos de 1832 e 1838, morava em Paris. Dentre eles, estava Jos Gonalves de Maga- lhes e Manuel de Arajo Porto-Alegre. Em 1836, Magalhes publica um ensaio sobre a histria da literatura brasileira na revis- ta do grupo denominada Niteri, no qual traa seu programa de renovao esttica fincando os marcos do incio francs do ro- mantismo brasileiro. Ao lado dos homens de letras e de cincias que se forma- vam em viagens pedaggicas a Paris, os livreiros estrangeiros es- tabelecidos no Rio de Janeiro so personagens decisivos para a criao do mito nacional. O projeto intelectual que orienta suas partidas para a Amrica Latina e, uma vez firmado o negcio da livraria, as trocas internacionais possibilitadas pela circulao dos textos, a importao e traduo de obras clssicas, sua distribui- o em funo de categorias especficas - como as idades - para posterior organizao em colees temticas - como as Bibliote- cas Juvenis -, assinalam prticas que vo muito alm da pura e simples relao comercial com os clientes ou da imposio de modelos culturais. A categoria de "brasileiro", com a correlata inveno das tradies nacionais, no se define apenas pelo trabalho estilstico da escrita. A rede de edio sobre a Amrica e, como parte dela, sobre o Brasil, formada em pases como a Frana e a Alemanha, tambm contribui para a inveno nacional. Essa produo toma por base tanto registros descritivos, dos quais os livros de viagens e os compndios de histria natural so bons exemplos, como romances destinados ao pblico juvenil, os quais elegem a vida e a natureza tropical - as florestas com histrias recheadas de herosmos e barbries dos ndios, a escravido negra e a vinda dos emigrantes -, como temas e guias para desenvolver o senso moral dos jovens leitores. A prtica da venda de livros tambm a disse- minao de idias e modelos de escrita. A voga do exotismo tropical na produo literria para a juventude mostra que a conjuntura que antecede a especializa- o e industrializao do mercado editorial francs marcada por um sistema esttico produtor de singularidades, com amplo espao para os pases americanos, e para o Brasil em particular, ao mesmo tempo em que se desenvolvem as apostas do comr- Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista cio de livraria na expanso internacional. Enquanto a livraria francesa se instala no Brasil, a partir de meados do sculo XIX, ou mais exatamente, enquanto os livreiros Garnier desenvolvem o livro na Corte do Rio de Janeiro, o Brasil produzido literari- amente na Frana. No Rio de Janeiro oitol;entista, j podemos vislumbrar um princpio de diferenciao do incipiente pblico leitor. Haja vista a variedade temtica das colees classificadas nos catlogos, por exemplo, de venda da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para os anos de 1857-1858, que vo desde as obras importadas de recre- ao juvenil, as novelas e romances ilustrados franceses, os livros de artes militares, de histria natural e religio, dos dicionrios e compndios escolares em vrias lnguas, at as obras de legisla- o, comrcio ou economia poltica. Esses livros, sados dos pre- los franceses e belgas, podiam ser lidos ou tomados de emprsti- mo nos clubes e gabinetes de leituras de obras estrangeiras. Al- guns anos antes, havia um, de propriedade do francs Cremieux, situado na Rua da Alfndega, que tinha como scio e freqentador assduo o jovem Jos de Alencar. Foi l que o futuro escritor co- nheceu os romances "martimos" de Walter Scott e Cooper, assim como os clssicos de Alexandre Dumas e Balzac, Arlincourt, Frederico Souli e Eugene Sue (Alencar 1998: 54-55). Ademais, sabemos, por intermdio de Mrcia Abreu (2003: 118-131), que de h muito os cariocas apreciavam as leituras de livros importados. Com a abertura dos portos, levas de estrangei- ros, adultos e crianas, passaram a residir no Brasil e, certamente, a se constituir pblico leitor para os clssicos ingleses, franceses e espanhis. Alguns jovens conheciam autores como Berquin, Fnelon ou Mme. Leprince de Beaumont. Mesmo com a fiscaliza- o exercida pelo Desembargo do Passo, entre os anos de 1808 e 1826, aponta ainda Abreu (2003: 124), era expressiva a presena de livros juvenis importados no Rio de Janeiro. Exemplo do ttulo Les escoliers en Vacance, de Mme. Delafaye-Brhier, que teve autorizada sua entrada e permanncia no Brasil. Destaca-se, no perodo, a presena das governantas estrangeiras nos espaos europeizados das famlias - as senhoras professoras. Essas damas tinham como funo a educao sentimental de crianas e jovens (Leite, 1997). Elas modelavam, assim, de acordo com suas refe- rncias culturais e lingsticas, o gosto de seus discpulos. 147 148 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Por isso mesmo, Baptiste-Louis Garnier mantm, num de seus catlogos (1857-1858), quase duzentos ttulos em francs classificados como lembranas, crnicas, anedotas, geografias, viagens e descries. Em muitos deles, o Brasil figura como tema. A literatura de viagem atrai a curiosidade pelo pitoresco da aven- tura, realando a coragem dos marinheiros diante das intempries na travessia, narrando histrias de naufrgios e fazendo descri- es romanceadas dos modos de vida e crenas de povos desco- nhecidos, quase sempre os ndios americanos. Na Frana, as bibli- otecas de educao moral e formao religiosa passam a incluir ttulos que se destacam pelas interpretaes das comunidades di- tas selvagens (indgenas e africanas) oferecendo uma forma de instruo que no representa perigo para a f porque fundada nos ritos da converso, do batismo e do matrimnio. Alm dos romances, as descries metdicas das cinco par- tes do mundo, Europa, sia, frica, Amrica e Oceania, os ma- pas, tratados de geografia, pequenos fragmentos do universo, es- timulam o interesse pela cincia natural, pelas visitas aos museus e o convite aos gabinetes. Mas, aos olhos desembaraados de uma criana, as serpentes, monstros e festins antropofgicos devem em muito mais aguar os medos e satisfazer a curiosidade. Nesse momento, o descobridor Cristvo Colombo entra para o panteo dos heris da juventude e sua histria passa a constar nas biogra- fias de crianas clebres, servindo como modelo cultural. Tanto que o famoso escritor Julio Veme acaba romanceando sua biografia. Com relao aos escritos sobre o Novo Mundo, principal- mente sobre a vida do ndio brasileiro que recai o novo projeto de aplicao das regras morais. Seus costumes, a alegria emanada dos cantos, danas e festins, as caadas e lendas apaixonadas so- bres suas origens, tomam-se motivos para reflexes sobre os ex- cessos provocados pela barbrie, como a condenvel prtica da antropofagia, que at os podia excluir dos domnios da civilidade, mas, ao contrrio do esperado, os elege como preferidos dos lei- tores. A Europa testemunha o nascimento de uma paixo romn- tica e juvenil pelo exotismo tropical. Esses temas constam nas colees de livros juvenis da livra- ria parisiense dos irmos Garnier e, uma vez firmado o gosto do pblico francs pela literatura de viagem, so exportados para o Brasil. Para os leitores europeus, representam o conhecimento da Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista 4 No se pode desconhecer que o sculo XIX foi marcado pela leitura como competncia universal dos franceses e que a extenso da familiaridade com o objetos escrito, impresso e manuscrito, s tenha sido possvel tardiamente aos brasileiros. Mas, estudando os catlogos de venda parna juventude da livraria carioca Garnier, tive a dimenso do leitorado juvenil diretamente educado em francs, que era numeroso o suficiente para justificar a oferta dos quase duzentos ttulos de livros importados. A respeito da leitura no sculo XIX naFrnna, consultei Crubellier (1990) e Hbrard (\990). diferena, mas para os leitores brasileiros, as descries funcio- nam acima de tudo como espelho e memria. Um universo cultu- ral comum liga, por laos de afinidade na leitura, uma elite inte- lectual e juvenil do.Yelho e do Novo Mund0 4 E para os produto- res de textos, "a descoberta da Amrica e os fracionamentos da cristandade tornam-se instrumentos de um duplo trabalho de clas- sificao e conhecimento: a relao com o homem selvagem e com a tradio religiosa" (Certeau 2000: 213). nesse domnio que uma cultura encontra-se com a outra. O gnero classificado como viagem, ainda que composto de textos heterogneos entre si, acaba por fazer parte de um outro gnero de perfil mais ficcional - o romance de formao moral. As descries so apropriadas pelo novo regime literrio e passam a intervir como referncias e contra-referncias nas etapas previstas para a educao. Preferencialmente, o romance moral destina-se aos adolescentes. Seus objetivos so confessos - a aplicao dos princpios cristos atravs das aes modelares dos personagens. Define-se como literatura espiritual, divertida e instrutiva. Seus livros visam a produzir uma sensibilidade engajada na crena e antes de serem publicados necessitam pas- sar pelos comits eclesisticos de leitura, que funcionam como primeiros censores, anteriores mesmo aos livreiros e aos pais. Esses comits inauguram um sistema jurdico-religioso de con- trole dos textos. Os editores Mgard, de Rouen, grandes distri- buidores de livros de colees infantis por toda a Frana e, atra- vs dos Garnier, difusores da literatura francesa para o Brasil, no dispensam o exame prvio das autoridades responsveis pela educao religiosa. Essa prtica assinala uma submisso ao que Jean-Yves Mollier (2000) chama de "lgica da demanda social" - no caso, atendendo aos objetivos da Igreja Catlica -, caracte- rstica do antigo regime da produo editorial. Se a observao dos sentimentos de homens primitivos, quase prximos aos animais, e o estabelecimento de comparaes com os homens civilizados, nutre uma imaginao literria, acaba tambm por suprir necessidades de ordem pedaggica. Uma via- gem para o Brasil mobiliza sentimentos de medo e fascnio, ao mesmo tempo que nutre sonhos de fortuna alimentados pelas no- tcias das terras frteis e das minas de pedras preciosas. o que prope a saga dos Emigrantes no Brasil. Amelie Schoppe, sua 149 150 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 8.9,2006 autora, tira todos os proveitos das situaes de incerteza e perigo, caminhando na tradio pedaggica dos contos de advertncia, prevenindo os jovens europeus contra o fascnio e a cegueira da iluses. Fazer a Amrica era o mesmo que escolher o abandono - a orfandade. A literatura "novomundista" de aplicao moral compara a escravido branca, a qual se vem submetidos os emigrantes no Brasil, com o sistema da escravido negra, levando os leitores a incorporar, ou a manter bem slido, o valor moderno da liberdade do indivduo - principal conquista da Revoluo Francesa. Note-se que o mbito de circulao do romance moral o universo cultural juvenil, no contando ainda essa classe de tex- tos com o estabelecimento da Sociologia como cincia explicativa do comportamento. Os modelos e contra-modelos oferecidos pelos ndios e negros escravos americanos, a antropofagia, as fugas e insurreies, a constituio de uma estrarlha Repblica dos Palmares, entre uns, e os maus hbitos da nudez, entre ou- tros, ambos relacionados heresia, perda do decoro da civili- dade e aos perigos de embrutecimento dos comportamentos, ou, tudo posto ao contrrio, as virtudes da vida natural, deveriam levar a mocidade a voltar-se para o seu interior e, partindo da intimidade, compreender os motivos da ao e fortalecer suas relaes com a crena. O bom e o mau selvagem, figuras do pensamento romntico europeus, entram no projeto moral pedaggico na condio de parmetros de comparao frente s desvantagens e mculas da civilizao. Por isso mesmo, o romance moral pode igualmente surtir efeitos contrrios, uma vez que as prticas e significaes produzidas pela leitura nem sempre correspondem aos anseios e imposies dos autores e livreiros-editores. E, se o novo leitor se identificasse com a vida nas florestas tropicais, livre de bssolas, mapas ou quaisquer constrangimentos morais? Acima de tudo, qual o efeito disso para os leitores brasileiros? Para colocar a moralidade em ao faz-se necessria, acima de tudo, a pronta adeso das mulheres de letras, como Amelie e Julie Nicolase, aproximando-as dos eclesisticos. Observa-se um processo de transferncia de sacralidade dos padres para as escri- toras, nesse momento particular da disputa pela posse do poder legtimo sobre a aplicao da moral, travada entre o conhecimen- 5H uma vasta linhagem do pensamento intelectual europeu sobre o fudio americano, e, por conseguinte, sobre os brasileiros. Destaco as fontes clssicas dos sculos XVI e XVIII; Montaigne eRousseau. UmafillVedeconsulta muito iIqxxtante o livro pioneiro de Afonso Arinos de Melo Franco (2005). Ues de viagens. devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista to cientifico, que j se esboa, e a tradio da velha Igreja Cat- lica, detentora da legitimidade intelectual. Deste modo, as fun- es femininas mais se adequam posio eclesistica. A posi- o dos arcebispos que cumpriam a funo de revisores de tex- tos. Ora, uma autora deveria se situar no curso do processo de civilizao, cabendo-lhe articular da melhor forma possvel um discurso sobre as diferenas. A vida dos habitantes dos trpicos - sempre relacionada a um sistema regulador de censuras e proi- bies - se tornaria mais compreensvel, e, at, mais suportvel, se posta em uma operao escriturria. Lies de sobrevivncia nos trpicos: os emigrantes no Brasil Antes do aparecimento das verses francesas da novela de Amelie Schoppe, a narrativa de viagem pedaggica baseada na imaginao do mundo colonial como mundo naturalizado (selva- gem e preguioso), que, de acordo com Francis Marcoin (1999), experimenta as delcias da geografia atravs da errncia romanes- ca, j havia mostrado toda sua fora aos jovens leitores europeus. Em 1839, Alexis Eymery escreve e publica uma coleo de livros - de pequeno formato e com muitas pginas - sobre aventuras de viagens a vrias partes do mundo, incluindo o continente america- no e, ao sul dele, o Brasil- Universo em miniatura ou as viagens do pequeno Andr sem sair de seu quarto. Utilizando a tcnica do dilogo entre pai e filho, mais que adequada ao estilo confessional do romance de formao, esses livros apresentam quadros instru- tivos e divertidos para guiar a infncia no conhecimento das qua- tro partes do mundo: frica, sia, Amrica e Oceania. A passagem pelo Brasil inicia-se com o elogio ao jovem prncipe, herdeiro da Casa de Bragana. Em seguida, passeia-se pelo enorme bazar no qual se transformara o comrcio do Rio de Janeiro realado pela descrio de ruas estreitas por onde desfi- Iam escravos carregando damas indolentes nas liteiras. Sobressa- em as perucas e bijuterias. Mas o Brasil imaginado por Andr , antes de tudo, um reino de pedras preciosas, rubis. diamantes e com muitos papagaios, situado entre a floresta da Tijuca e o dis- trito de Diamants. ento, o vale do rio Gigitonhonha (Jequitinhonha), metfora de mais uma ilha deserta. No romance 151 152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 de Amelie, o vale porto de salvao para uma famlia de Robinsons oitocentistas perdida no Brasil tropical. As margens frteis do rio Gigitonhonha palco da trama imaginada no livro Os Emigrantes no Brasil. Com uma srie de advertncias aos jovens europeus sobre as ameaas e os perigos da partida para os pases da Amrica do Sul, a narradora tem como objetivo denunciar a experincia das vrias famlias de colonos alemes em princpios do sculo XIX, oferecendo pistas das armadilhas nas quais se viam envolvidas logo no embarque. No porto de Amsterd, de onde partiam os navios para o Rio de Janeiro, capites inescrupulosos propunham a assinatura de contratos de compra e venda da fora de trabalho dos emigrantes, em troca do pagamento da viagem. Entra em cena o drama da escravido branca. Nesse romance, a nfase das via- gens recai sobre a aplicao de uma moral religiosa entre crist e moderna, combinando os desgnios de Deus preservao dos direitos individuais do cidado. Por isso mesmo, a narradora ao tirar o mximo de proveito das advertncias e conselhos acaba por instaurar uma pedagogia do medo. Na tradio dos Robinsons que partem em famlia (Soriano, 1982), Riemann um fazendeiro vivo e arruinado pela seca que assola seu pas. Um dia, ouve trechos de uma cano que diz: o Brasil no longe daqui. Toma, ento, a deciso de partir da Ale- manha em direo ao Brasil, levando sues filhos: Conrad, o mais velho, Anna, Marguerite e Wilhelm. Um deles, entretanto, deveria sacrificar-se pelos outros. Tamanha provao s poderia recair sobre Conrad, o primognito, que vende-se ao capito do navio. A travessia marcada por infortnios, fome e sede, algumas tem- pestades, alm de doenas como o mal do mar . Ao chegar no Rio de Janeiro, uma cidade de ruas estreitas, cheia de Igrejas e magnficas casas (cenrio semelhante ao descri- to por Eymery), o proprietrio do jovem alemo leva-o ao merca- do de escravos negros. A famlia resta petrificada diante de tantos horrores. No mercado, a liberdade de Conrad novamente vendi- da. Desta vez, o comprador o inspetor do jardim imperial, um homem bastante rico. Conrad desaparece das vistas de seu pai e de seus irmos. Enquanto isso, Riemann segue para o Palcio do Governa- dor, a fim de obter os papis que o tomam proprietrio de um Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista terreno no vale de Gigitonhonha, a maior mina de diamantes do Brasil. Antes da viagem, ouve as advertncias de um secretrio alemo do Palcio: no comprar jamais diamantes dos negros que trabalham nas minas, so todos roubados e as penas para esse delito so bastante severas. Esses conselhos, fala a narra- dora, devem servir de regras de conduta, porque as lies de moral prprias ao gnero no qual foi classificado a novela de Amelie devem agir atravs dos personagens. A essa altura, o pai Riemann j se deu conta de que as promessas feitas aos emi- grantes jamais se cumpriam. Ao chegar em Gigitonhonha, a familia de heris descreve a mesma trajetria de Robinson Cruso, o personagem de Daniel Defoe. Riemann e seus filhos so europeus civilizados postos di- ante das aventuras da natureza: alimentam-se de legumes e frutas frescas oferecidas pela terra frtil, e de peixe do rio. Constrem uma cabana, fabricam os utenslios domsticos com a argila do lugar, modelam toscos instrumentos de trabalho necessrios ao cultivo da terra e ousam at reunir troncos de rvores para fabri- car uma canoa. Afinal, como os leitores poderiam se apropriar dos (des )caminhos postos fanu1ia Riemann? Responde a narradora: aprendendo com a experincia e com as situaes de necessidade. Bem adiantada a narrativa, a famlia conhece Claus, um sol- dado alemo que servia no exrcito brasileiro. O novo amigo com- pra, por uma bagatela, o diamante de um negro a quem protegia. O escravo escondera (na verdade, roubara) a pedra de seus feito- res num dia de trabalho nas minas. Claus, ento, oferece o dia- mante a Riemann, que com ele poderia reaver a liberdade do filho. Apresenta-se famlia um dilema moral, ao mesmo tempo que jogo educativo para o leitor: como aceitar a oferta de um roubo? Riemann, ento, parte para o Rio de Janeiro. Chegando l, reencontra o funcionrio alemo, M. Albrecht, que conhecera no Palcio do Governo. Aps narrar suas hericas robinsonadas, o emigrante pede ajuda ao amigo a fim de restituir o diamante Coroa. No foi difcil. Nessa poca, o Brasil possua uma jovem imperatriz da ustria que gostava de proteger os alemes. Triunfa o caminho do bem. Comovida com a histria da escravido bran- ca, a Princesa D. Maria Leopoldina, esposa do Imperador D. Pedro I, restitui a liberdade a Conrad. feita a vontade de Deus e a famlia Riemann funda uma colnia alem no Brasil. 153 154 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n.9. 2006 Lies de devoo religiosa: Os portugueses da Amrica Para alimentar a produo do sistema literrio do qual tra- tamos, havia uma vasta bibliografia sobre o Brasil em disponibili- dade no mercado do livro europeu, que ia desde as sucessivas edies dos relatos dos viajantes do sculo XVI - as experincias de Jean de Lry e Andr Tevet na Frana Antrtica -, passando pelas fontes documentais do sculo XVIII, como o estudo de Rocha Pitta, at chegar s viagens de explorao e misses dos naturalistas contemporneos, como Henry Koster, Spix e Martius e Auguste de Saint-Hilaire, boa acolhida da sociologia dos cos- tumes brasileiros do prprio Ferdinand Denis, ou o clebre com- pndio de histria ptria Histoire du Brsil depuis sa dcouverte en 1500 jusqu' en 1810, de Alphonse de Beauchamp, publicado, em trs tomos no ano de 1815 pela casa de Alexis Eymery. Em Os Portugueses da Amrica, Julie Nicolase Delafaye- Brhier tece uma histria situada em terras do Nordeste brasilei- ro, na cidade de Olinda, e em tempos coloniais, 1635, perodo da ocupao holandesa. Os personagens so colonos portugueses, do sangue azul da casa de Bragana, ndios tapuias, de feroz ori- gem tupinamb, e negros sublevados na Repblica de Palmares. O texto narra a execuo de um plano de vingana - seqestro se- guido de cativeiro na floresta tropical - imaginado pelos ndios contra seus senhores e algozes, os colonos portugueses. Duas damas, lvire e Hlna, so raptadas pelas suas escravas domsti- cas, a velha Mocap - mentora do plano -, e ajovem mestia Yassi- Miri, ama de leite do pequeno Sebastio, filho de lvire. Amiip, escravo pessoal de Dom Aleixo, marido de lvire, tambm adere ao plano. Aproveitando-se da confuso causada no dia da ocupa- o da cidade pelos holandeses, Mocap foge com as duas mulhe- res, Yassi-Miri e Sebastio, tomando o rumo da tribo dos tapuias. S ela, a velha tupinamb, conhece os desvos da floresta e seu retomo para sua tribo acompanhada de duas senhoras cativas era prova maior de triunfo e conquista. Enquanto ocorre o rapto das senhoras brancas, Dom Aleixo segue, com ArraYp, para o forte de Matias de Albuquerque. De- pois de travar longos debates teolgicos com seu escravo - todas as criaturas no so filhas de um mesmo Deus, ento, o que justi- Lies de viagens, devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista "Em vrias passagens, encon- tramos as famosas descries de Jean deLl)' e Andra 1bevet fica a captura e os maus tratos aos ndios?, quer saber Arralp -, o nobre portugus toma-se prisioneiro dos negros-cidados suble- vados da Repblica de Palmares. Testemunha a organizao de uma Repblica tropical, com deveres e direitos, mas, horroriza-se ante as bebedeiras nas festas da colheita do milho, que levavam a excessos. A escravido, para os povos selvagens, brutalmente li- vres, se bem conduzida e cristianizada, poderia ser uma etapa da civilizao, defende a narradora. A imaginao europia do mundo colonial naturalizada, e o desafio maior para a trama do romance moral a cristianizao da raa. Dom Aleixo consegue libertar-se, mas, andando alguns pas- sos, encontra um grupo de ndios ferozes, que o fazem refm. Desta vez, o nobre portugus presa de um festim canibal. Prestes a ser devorado - chega at a jogar pedras nos executores, segundo o costume narrado pelos viajantes do sculo XVI6 - salvo por um missionrio inaciano. Reencontra Arralp e descobre a traio. Abre-se uma via para a inverso de papis entre dominan- tes e dominados - e se os senhores se tomassem escravos e os escravos,senhores? O pano de fundo da narrativa, a ocupao holandesa da ci- dade de Olinda serve apenas como cenrio para o desenvolvimen- to da trama. Todos os personagens se encontram na floresta. Du- rante uma longa jornada pela mata tropical, enfrentando serpen- tes, monstros e rios, as duas damas vo confrontando seus valores aos dos tapuias, afirmando os preceitos da religio catlica, a f nos sacramentos e a inexorvel converso dos brbaros america- nos. Ignoram seus destinos. Ao fim, correm o risco de serem de- voradas. Nesse momento, ameaas e preces no surtem mais o menor efeito, lembram "o vento que sopra em uma plancie deser- ta". As duas escravas fugitivas regozijam-se com a nova situao, movidas por um forte sentimento - selvagem, civilizado ou cris- to? - de vingana, definido pela narradora como "compromisso com a dignidade", perdida nos maus tratos da escravido, o que abre uma discusso sobre a fidelidade e o medo da traio raa. Desenrola-se novo debate teolgico sobre a humanidade dos ndios, suas virtudes e vcios, a condenvel prtica da antropofa- gia, o ressentimento, tanto dos ndios brasileiros em relao aos portugueses, quanto destes em relao aos holandeses, a quem reputavam de povos herticos. Afinal, Deus no se manifesta em 155 156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 todas as coisas? Mas seria preciso cristianizar a barbrie, civiliz- la, ainda que a civilidade fosse representada tambm como corrupo da natureza e frivolidade artificial cortes, revelando a narrativa, a essa altura, um confronto de inspirao tipicamente roussseauniana. Na composio dos personagens esto as propri- edades que definem as figuras do bom e do mau selvagem. Em OI inda, Hlna levava a vida lasciva dos colonos portu- gueses. Nascida no Brasil, filha de um senhor de engenho arruina- do, Dom lvaro Rodriguez, inclemente no castigo aos escra- vos. J lvire, nascida em Portugal, modelo de boa crist. Aos selvagens que a seqestraram, aplica a virtude do perdo. Para embaralhar um pouco esse jogo colonial e colocar o problema da mestiagem, a autora faz os personagens indgenas descenderem de uma pequena tribo que fora governada pelo portugus Diogo lvares Correia, o Caramuru. Eles tambm demonstram, a seus modos, alguma polidez e desvelo para com o sofrimento das cati- vas. Essas senhoras jamais se habituaram aos rigores do trabalho. Entremeando fico e episdios da histria, Mme. Delafaye- Brhier no demonstra medo de se ferir ou perder nessa estrada. As florestas, animais,jibias, festins, caadas e a poligamia selva- gem, bizarros costumes dos ndios brasileiros, so realisticamente narrados aos jovens europeus. No cativeiro das duas damas portuguesas, feitas escravas de suas escravas tapuias, colocam-se dois graves problemas de ordem moral e religiosa. O primeiro diz respeito educao do pequeno Sebastio, que deveria, pelos novos costumes, furar seu lbio inferior e orn-lo com uma pedra azul. Aos olhos de sua me, isto parece uma mutilao. O chefe tapuia, verdadeiro sulto selvagem, apaixona-se pela portuguesa Hlna, desejando-a para sua stima esposa. Como poderia uma crist casar-se com um homem j por seis vezes casado? Na ocasio em que Hlna sai para buscar gua no rio, as outras esposas do chefe, descontentes com a iminncia da perda de posio para uma estrangeira, rap- tam-na, torturam-na, arrastando-a pelos cabelos, para finalmente amarr-la ao tronco de uma rvore perto da qual passa um rio habitado por serpentes venenosas. Hlna desaparece, e o chefe, colrico, expulsa Mocap e sua derradeira cativa, lvire, da tribo. Os personagens seguem mais uma rota de aventuras pelo deserto, desta vez, de volta cidade de Olinda. Mocap morre de sede du- Lies de viagens. devoo religiosa e sobrevivncia nos trpicos: o Brasil no romance juvenil francs oitocentista rante a travessia, no sem antes ser batizada por lvire, que junto com Yassi-Miri e o pequeno Sebastio, acaba sendo encontrada por Dom Aleixo. Anos aps, Hlna tambm reencontrada, vi- vendo no deserto com uma farru1ia holandesa, demente. O cristia- nismo triunfa sobre os vcios e poucas virtudes da vida selvagem. A escravido, de acordo com a moral da histria, , de fato, etapa necessria para o longo e tumultuado processo de civilizao e da converso ao cristianismo. Na composio de seu romance moral, Mme. Delafaye- Brhier se baseia claramente nos clssicos relatos de viagens do sculo XVI - nos textos de Jean de Lry, Viagem terra do Brasil, e de Andr Thevet, As singularidades da Frana Antrti- ca. No consta que ela mesma tivesse feito viagem ao Brasil. Se, como diz Michel de Certeau (2000), os itinerrios dos viajantes so previamente esboados nas operaes da escrita, mesmo em configuraes histricas diferenciadas, Mme. Brhier, Jean de Lry e Andr Thevet acabam compondo um mesmo texto. Por- que os trs tomam posse de um mesmo objeto literrio, a descri- o do ndio brasileiro. A histria dos Portugueses da Amrica conduz seus leitores ao questionamento dos papis sociais, que, mesmo na rigidez emanada pela ordem das coisas do sculo XIX, no esto para sempre fixados. A histria colonial tambm pode ser escrita ao contrrio. As regras de dependncia e assimilao dos coloniza- dos em relao aos colonizadores podem ser deslocadas. A narra- tiva do cativeiro tapuia de senhores portugueses acaba por tecer um sistema de contradies que culmina com uma desmontagem do mundo de certezas da colnia portuguesa no Brasil, ainda que essa desmontagem esteja limitada pelo final triunfante do cristia- nismo. Afinal, a literatura de Julie Nicolase Delafaye-Brhier no poderia contradiz-la. O mais sedutor que toda essa histria foi composta muitos anos antes de Jos de Alencar imaginar O Guarani, com o herosmo do ndio brasileiro e toda nossa mitologia de fundao. Sendo assim, s nos resta imaginar o escritor cearense saindo da Livraria Gamier, ou antes do gabinete de leitura do francs Cremieux, com Os Portugueses da Amrica nas mos. 157 158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Consideraoes finais o modo como se organizava a escrita sobre o Brasil na Fran- a oitocentista deixa evidente uma rede de relaes de interdependncia funcional entre as mulheres de letras, seus tra- dutores e os livreiros-editores responsveis pela classificao e organizao dos livros nas colees juvenis. A novidade pedag- gica representada pelo Brasil como tema do romance moral unia- se ao empreendimento comercial da difuso internacional dos li- vros franceses. Nesse sentido, o empreendimento comercial dos irmos Garnier na Amrica Latina desempenhou papel decisivo. Com a livraria francesa no Brasil intensificava-se o movimento das tro- cas culturais entre o Velho e o Novo Mundo. Enquanto Baptiste- Louis Garnier instalava-se na corte do Rio de Janeiro, em 1844, o Brasil era produzido literariamente na Frana. Os livros analisa- dos demonstram verdadeiro sistema produtor de singularidades que, seguindo a tradio das narrativas de viagem do sc. XVI, alimentava um grosso filo do mercado editorial europeu - as bibliotecas crists e morais dajuventude -, ao mesmo tempo em que dava os rumos da inveno literria do Brasil. Referncias ABREU, Mrcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras, Associao de Leitura do Brasil (ALB), So Paulo: Fapesp, 2003. ALENCAR, Jos de. Como e Por Que Sou Romancista: autobiografia literria emforma de carta. Porto Alegre: Marcado Aberto, 1998. BRINKER-GABLER, Gisela (org). 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Essa "mise en relation" est presente entre a escritura e o suporte, entre as prticas de escritura, entre os suportes, entre os dados e, igualmente, entre as vozes de pesquisadores que, de uma forma ou de outra, so sujeitos participantes da pesquisa do estudioso. Estarei privilegiando a escritura de campo e, enquanto suporte, os cadernos, porque eles esto em relao direta com o meu real objeto de pesquisa. O material selecionado e os contedos privile- giados pela minha pesquisa encontram-se classificados na cate- goria NOTES, na rubrica Notes de lecture et de voyages. do inventrio elaborado pelo Institut Mmoires de L' dition Contemporaine (IMEC), na Frana. 161 162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A escritura de campo de Bastide: o pesquisador - escritor Se Gustave Flaubert deu incio a uma nova gerao, a dos "escritores - pesquisadores"!, podemos dizer que Roger Bastide pertence a uma gerao de "pesquisadores - escritores". Seus manuscritos constituem uma quantidade considervel de notas autogrficas e de notas de trabalho que do a dimenso da fora de investigao e de verificao do antroplogo que, alm de uma curiosidade cientfica sempre presente, fez de seu objeto de estu- do a causa de seu percurso. Segundo suas prprias palavras, "es- crever" sempre retirar das profundezas do "eu" todos os tesou- ros escondidos, todas as flores noturnas do subconsciente, e tambm, por conseqncia, despertar todos os demnios e os deu- ses escondidos, liberar os antepassados". (Bey lier, 1944a: 3-4) 2. Bastide concebe uma problemtica central sobre os conta- tos culturais e sistemas simblicos em um campo bem preciso e que ele jamais abandonar. Seu campo de observao ser a Fran- a, a frica do Oeste e o Brasil. Sua escritura de campo revela sua escolha e confirma seu engajamento e busca constante concernentes a essas questes: Lundi J 8 aotu -lettre n. J 5, Bastide anota em seu Cahier - Mon Journal 3 : COl1versation avec V. sur la comparaisoll entre Eguns Bahia et ici 4 Se em suas pesquisas Bastide privilegia a comparao, ele confere ao mesmo tempo uma importncia considerwl s trocas assimilveis, ao modo assimtrico sobre a forma na qual as coisas se passam, sabendo como levar em conta o resultado de um pro- duto hbrido. Desde o incio de sua produo sobre o Brasil, Bastide procurou conhecer bem as relaes ntimas existentes entre os negros e brancos na sociedade brasileira, marcadas por distanciamentos e reaproximaes mltiplas. Ele se perguntava freqentemente: "Comment penser le contradictoire?" (Beylier, 1978: 221). Para ele o Brasil um exemplo da interpenetrao de civilizaes e o lugar onde se realiza o cruzamento de tradies intelectuais distintas. Segundo o pesquisador, esse cruzamento lhe permitia compreender as especificidades do pas e de seu povo e tambm de onde ele extrairia os instrumentos conceituais neces- srios para a anlise de seu objeto de estudo. Para Roger Bastide I Ver artigo de BIASI, Pierre Marc de. "Notion de carne! de travail : le cas F1aubert". In: Carnets d'crivai/ls. Paris, ditions du Centre National de la recherche scientifique (CNRS), 1990, pp. 23-56. 1 BEYLIER, Charles. "Le sujet et l'objet". In: BASTIDE, Roger. Images du /lordes te mystique e/l no ir et bla/lc. Pandora/Des Socits, Paris, 1978. p. 222. (Bey1ier cite Bastide). (traduo nossa). 3 MO/l ]our/1al estar no texto sempre em itlico, pois esta denominao foi dada por Bastide ao ca/lier I. 4 Neste texto todas as citaes de Bastidc estaro em itlico. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos , Todos os documentos manuscritos de Roger Bastide sobre sua viagem de estudos frica so inditos. 6 Sobre esta experincia, Bastide escreveu um artigo que foi publicado com fotos de Pierre Verger na revista Etnografia, n.18, Museu Nacional de Etnografia e Histria. Junta Distrital do Porto, 1968. (N. O.) e em Verger-Bastide: dimen,w"jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002. No entanto, o texto manuscrito encontrado no caderno de campo ainda indito. 7 VERGER, Pierre. "Roger Bastide". In: LUHNING, Angela (org) Verger-Bastide: dimens(jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, pp.255-257. , LUHNING, Angela (org) Verger-Bastide : dimens(jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, pp. 39- 54. 'Conforme conceito desen- volvido por Paul Ricoeur em Temps et Rcits. Paris, Seuil, 3v. 1985. era necessrio ir ainda mais longe em sua compreenso, por isso quis conhecer as fontes, ver, entender, enfim estar no campo. As- sim, ele parte em viagem para a frica do Oeste (Benin e Nigria) em 1958, por setenta e dois dias. Durante sua permanncia nessa regio africana, ele recolhe um corpus que rene mitos, narrati- vas, rituais, canes, provrbios, danas, expresses tpicas e fa- tos folclricos 5 Ele compartilhou esta experincia com seu ami- go, o antroplogo Pierre Verger 6 , pois, o prprio Verger quem nos informa dizendo que, infelizmente, Bastide no redigiu o livro que queria ter preparado a partir das notas obtidas na frica - e complementa: "Fato lamentvel, pois no h dvida de que ele teria sabido nos transmitir tudo o que havia visto, com aquela mistura de poesia e humor que ele sabia incluir na sua obra de socilogo"7. Em "As mltiplas atividades de Roger Bastide na frica (1958)" 8 , Pierre Verger reafirma ainda: "Bastide, infeliz- mente, no publicou um livro apresentando o conjunto de impres- ses e experincias vividas por ele durante sua estada no Golfo de Benin ( ... )". Alm das articulaes mencionadas, nessa matria manuscrita e indita h outras presentes entre a escritura de cam- po e as notas de leitura, os desenhos, as fotos e os mapas de itine- rrios. Trata-se de uma escritura que acolhe ainda: seleo mais ou menos voluntria dos fatos, deslocamentos, organizaes cro- nolgicas e diacrnicas de acontecimentos que, elaborados den- tro de uma dinmica, sero os responsveis pela construo de uma trama 9 entre os documentos manuscritos. Assim, jogos de interaes constantes so estabelecidos, revelando as interfern- cias entre o "eu" e o "grupo", um "eu" que no sai jamais impune da experincia, pois com Bastide no h de um lado o observador e do outro a realidade que ele estuda. Os manuscritos: articulaes em vrios sentidos 1 - Dos manuscritos com o inventrio Entre os documentos e o inventrio h uma dinmica que absolutamente estabelecida no momento da organizao e da dis- tribuio dos documentos. Isso requer do pesquisador muita aten- o, pois ele deve estar sempre pronto a usar sua experincia para perceber exatamente onde se encontram os pontos nevrlgicos 163 164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 das relaes entre os manuscritos: Como foram estabelecidos? Quais os critrios e caminhos escolhidos pelos tcnicos que os manusearam ordenando-os, com o objetivo de dar-lhes coern- cia? Definir o lugar mais adequado para cada um dos documentos , sem dvida, o primeiro desafio para quem vai realizar este tra- balho, chegar a um conjunto no qual cada pea deve estar em relao corri as outras, respeitando sempre o tempo, o espao, o contexto, a histria dos documentos e a tradio terminolgica, o que no to evidente como pode parecer primeira vista. Nos arquivos do "fundo Bastide" no temos documentos classificados sob a categoria "cadernos de campo" e nem "cadernos de traba- lho", por exemplo. Esses so alguns dados que indicam que o pesquisador tem que construir suas prprias trilhas no inventrio, para isso ele tem que conhecer minimamente o objeto de estudo e a obra do estudioso. Por exemplo: o primeiro ttulo consultado [LE CANDOMBL DE BAHIA ET LA CRMONIE DE aNDO (KOBE)] per- tence "categoria" NOTES, logo "rubrica" Notes de lecture et des voyages. A descrio dos documentos contidos nesse ttulo anuncia, entre outros documentos: Mss - cahier de notes avec quelques dessins. Na realidade, o que havia era um caderno do tipo brochura (50 pginas), com um ttulo sobre a capa da frente: Le candombl de Bahia, escrito por Bastide. Na quarta capa (ver- so), Bastide anotou: Crmonie de Ondo, Kobe, 22 juillet, (fte des Ignames Neuves). O ttulo do inventrio anuncia, mas no explica nem especifica seu contedo. Em um mesmo conjunto (pasta) esto reunidos o candombl da Bahia e a cerimnia de ando. Isso vai exigir explicaes mais precisas, principalmente se considerarmos que nesse caderno h duas prticas de escritura diferentes: uma de trabalho e a outra de campo. Qual percurso dever percorrer o pesquisador para concluir que o caderno em que o antroplogo registrou suas notas de campo da cerimnia de ando corresponde estada de Bastide na frica, em 1958? Sabe- mos muito bem que Bastide esteve na frica diversas vezes. Se as notas de campo correspondem apenas a um dia de observao, o dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente? A data colocada na capa do caderno no traz o ano. Como precisar as datas com tais incertezas se o pesquisador est com esses docu- mentos pela primeira vez nas mos? O ttulo o primeiro entre mais de sessenta existentes nessa categoria do inventrio lO Na 10 Entretanto, a pesquisa que eu estava realizando na categoria Notes, na rubrica Notes de lecture et de voyages, mostrava-me a cada dia que, se os cadernos de campo realmente existissem, havia uma grande chance de eles estarem classificados naquela rubrica. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos rubrica Notes de lecture et de voyages encontramos dois subconjuntos: notas de leituras e de viagens. O caderno em ques- to no se insere nem em notas de viagens nem to pouco em notas de leitura. Ele foi denominado simplesmente caderno de notas, sem qualquer outra especificao. Isso me levou a pensar que havia uma grande possibilidade de o contedo ter sido priorizado na classificao dos documentos, sem levar em conta os suportes e to pouco as prticas de escritura, a no ser aquelas j consagradas, como a correspondncia. Para mim algo estava claro: a nomenclatura 'caderno de campo' estava excluda dessa classificao, at porque o interesse por essa prtica de escritura autogrfica bem recente. Na realidade, Bastide dividiu material- mente esse caderno em duas partes, utilizando aes de escritura diferentes. Na frente, trata-se de um caderno de trabalho e no verso de um caderno de campo. Na frente temos a correo por pgina do livro Le Candombl da Bahia-Brsil: evidentemente no se trata de notas de leitura, nem de viagem, nem de campo, pois estas notas estariam mais prximas de notas de trabalho, ao invs disso, trata-se de correes das provas preparatrias da edi- o do livro. No verso, temos as notas que Bastide tomou durante uma cerimnia de Ondo, a que assitiu em Kobe, frica do Oeste, em 1958, mas isso eu s pude descobrir e confirmar depois de ter avanado bastante na leitura dos documentos. Primeiramente, foi necessrio encontrar o Cahier I - Mon ]ounal e depois de muito trabalho de anlise consegui estabelecer as relaes. Em seu di- rio de campo, no dia 22 de agosto, ele registra o acontecimento, apenas anunciando o fato' e dizendo: voir autre cahier. Essa bipartio da classificao em lecture / voyage assim como a de caderno de notas no foi feita por Bastide. No conjunto em que foi colocado este caderno de "notas", como foi denominado, h, igualmente, um texto manuscrito de Roger Bastide sobre o xta- se. Esse texto se refere provavelmente ao captulo V: "La structure de l'extase", de seu livro Le Candombl de Bahia-Brsil. Nesse sentido, constatamos que essa classificao no satisfatria, nem globalmente do ponto de vista dos ttulos, nem localmente do ponto de vista dos documentos e muito menos do ponto de vista dos suportes. Ressaltamos que se os cadernos de campo encontrados fazem parte da "rubrica" notes de leitura e de voyages, essa "ru- brica" abriga uma vasta nomenclatura: caderno de notas, caderno 165 166 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 de viagem, dirio de viagem, carn de viagem, notas de viagem, notas de visitas e carn de notas. Essas so todas as denomina- es que foram dadas ao suporte cadernos. Nesse caso, percebe- se muito bem que a noo de "caderno" e de "viagem" um tanto quanto ambgua. Inicialmente, preciso esclarecer que ns no podemos misturar caderno de campo, caderno de trabalho, cader- no de viagem se quisermos respeitar a tradio terminolgica. Para o tcnico que elabora o inventrio , sem dvida, difcil reconhe- cer a importncia de certos elementos que caracterizam os ma- nuscritos e as prticas de escritura. Entretanto, para o pesquisa- dor se dar conta, num primeiro contato, de que um caderno utili- zado frente e verso, sem data completa, contendo prticas de es- critura e contedos diferentes possa ser identificado, ao menos em uma de suas partes como um caderno de campo e que possua relao estreita com as anotaes dirias feitas por Bastide no Cahier 1- Mon Journal durante sua estada em 1958, na frica, no tambm nada simples. Um documento s vezes colocado em um ttulo que, de incio, pode parecer revelador, mas que es- conde elementos e, em alguns casos, os mais importantes. A escri- tura de campo desse caderno foi organizada de forma particular, o antroplogo elaborou seu texto respeitando as partes da cerim- nia assistida. ele no se serviu de uma escritura diria. A especificao f suporte. contedo, escritura) dos cadernos est longe de ser estabelecida segundo uma terminologia mais adequa- da e a escolha do ttulo notes de lecture et de voyage no d seno uma indicao muito geral do contedo da rubrica. Assim, um documento manuscrito (reunido em um ttulo especfico) pode pertencer a um "ttulo", que normalmente indica seu contedo, mas ele pode estar, s vezes, em relao mais estreita com outros documentos, ou seja, fazendo parte de outros conjuntos. em ttu- los diferentes. Dessa forma, a leitura de outros documentos colo- cados em ttulos ou at mesmo de rubricas diferentes necessria para se encontrar o fio orientador. Os outros documentos do mes- mo conjunto no so sempre esclarecedores, eles exigem tambm outros percursos mais elaborados da parte do pesquisador. Enfim, o corpus extremamente diverso e heterogneo, por isso traba- lhoso, exigindo conhecimentos especficos sobre os seus conte- dos. Apesar de todos os esforos para se dar certa clareza, um inventrio merece ser sempre retrabalhado, pois h continuamen- Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos te a necessidade de novos ajustes. Com as evidncias que ternos, cabe ao pesquisador descobrir os caminhos nos quais o inventrio foi construdo para poder reorganizar sua busca. Mesmo se a cons- truo do inventrio obedeceu a tcnicas propagadas, preciso saber que as evidncias seqenciais no so sempre credveis, porque as verdadeiras chaves no so encontradas seno aps muito trabalho. Com isso, quero dizer que as rotas apresentadas pelo inventrio so preciosas para que o pesquisador possa come- ar seu trabalho, mas cabe a ele assumir a tarefa de restabelecer um novo caminho onde os documentos manuscritos sero deslo- cados de um lado a outro, para serem recolocados em contato com os seus pares, formando um conjunto coerente. 2 - Dos suportes com a escritura de campo Para Roger Bastide a escolha do suporte urna questo de menor importncia. Folhas avulsas de todos os tamanhos e cores, diversos tipos de papis assim corno materiais destinados a um uso bem preciso, tais corno os envelopes, os calendrios ou as cartas de visita podem ser suportes para os seus registros. Da mesma forma que nos cadernos convivem prticas de escritura diferentes, encontramos a prtica de escritura de campo em urna variedade de suportes. Essa diversidade vai exigir urna disposio considervel para a leitura de documentos que, se primeira vista no se assemelham aos materiais que esto sendo buscados, po- dem, no entanto, conter a chave para certos mistrios. A prtica tem nos mostrado que as classificaes dos manuscritos e seus suportes jamais podem nos dar urna garantia e que os desvios merecem, algumas vezes, mais ateno que a rota bem traada. Deixando de examinar um documento, estaremos arriscando dei- xar para trs algo precioso. Corno selecionar toda essa matria? Talvez seja menos complicado quando se procura o manuscrito de urna obra especfica, mas quando se trata de escrituras prepa- ratrias corno os registros de campo, o pesquisador deve absolu- tamente esmiuar todo o inventrio, pois a ausncia de urna no- menclatura que defina suporte e contedo exige urna busca que v alm da questo da terminologia utilizada e que ultrapasse a questo das evidncias. Exemplo: as folhas azuis avulsas classifi- cadas e descritas no inventrio corno 'algumas notas de leitura' no 167 168 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ttulo [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I] contm, alm das notas de leitura e referncias bibliogrficas, uma classificao e uma descrio com algumas indicaes das pginas dos conte- dos de cada um dos cadernos de campo elaborados por Bastide durante sua permanncia na frica em 1958. A leitura minuciosa dessas folhas levou-me a descobertas preciosas, que significaram um ponto de chegada e ao mesmo tempo um ponto de partida. Nessas folhas, Bastide elabora ndices sobre alguns contedos de seus cadernos, mas onde estariam os suportes com tais conte- dos? Assim uma lista de assuntos com as pginas numeradas do Cahier I continua at a pgina 188, onde ele anota: Yhovisme (sublinhado por Bastide). Nesse Cahier I, o pesquisador ressalta as pginas que abrigam suas notas de leitura. No entanto, quem conhece bem esse caderno sabe que as notas de leitura esto na mesma seqncia em que se encontram a escritura profissional, diria, com dados obtidos no campo e tambm algumas extradas de arquivos documentais, alm da escritura pessoal. Na prtica de escritura de campo no vamos encontrar sempre a linearidade e a seqncia habitual to desejada. No caso de Bastide, podemos dizer que tanto para a classificao dos cadernos quanto para as aes de escritura e para os suportes, as tnicas so a variedade e a diversidade. Seguindo a classificao do antroplogo (na folhas l,4 azuis) saltamos do caderno I ao caderno 111 e mais tarde, ele retorna ao caderno 11. Cahier des Baptmes Agoue 1846 - 1880 n. lll" + [esses sinais esto no manuscrito] p.l - Bres. cath. Bres. Et arm de Franais p. 15 - Bres. cath. (1956) p. 17 - Bres. cath. Histoire + p.l8 (Ftichisme) p. 19 - Les maisons brsiliennes Lagos (articIe) A lista vai at a pgina 29 - cimetieres, inscriptions '2 . Ao lado das pginas acima citadas, Bastide anota entre colche- tes : [Papiers part Brsiliens Porto Novo, liste, mariages etc.] Em seguida e aps o trao de separao habitual h a lista de pginas do caderno 11. "Indicao e descrio do contedo de algumas pginas do caderno UI. 12 Esses contedos das pginas fazem referncias aos dados oriundos de documentos. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos "Indicao e descrio do contedo de algumas pginas do caderno 11. p. 1 - Visite Negres Chacha Mais adiante, ao lado das pginas, ele anota: n.lI 13 p. 13 - Port des esc1aves Ouidah p. 15 - Baptmes Ouidah. 1876 - 1881 / 1866 - 1873 Bastide anota ao lado da p. 15 : Suite carnet ;aune -1880 e embaixo dessa informao: + cahier bleu c1air - 1875. interessante observar que, diferente do Cahier I, os con- tedos das pginas no se referem somente s notas de leitura no Cahier 11 e no Cahier 111, ou seja, encontramos exemplos extra- dos do campo nesses cahiers, por exemplo: p.lO - Visite d' Almeida; e igualmente anotaes oriundas de fonte documental, por exemplo: p.15 - Baptmes Ouidah et p. 87 - Rle Bres. Guerre 1914. Assim, num mesmo caderno convivem notas de trabalho, de campo e anotaes pessoais. Talvez a necessidade de traar um percurso, organizando seus instrumentos de trabalho e seus dados em relao ao seu objeto de estudo que motivou Bastide a elaborar esses ndices dos cadernos. De qualquer forma, para mim, esta classificao foi extremamente til. A partir dessas in- formaes, pude identificar e selecionar alguns dos cadernos exis- tentes no inventrio. Entre os meus achados, eu sabia faltava ain- da encontrar outros cadernos. A variedade de documentos uma constatao, seja do ponto de vista do material, seja em relao ao contedo e ao suporte. No entanto, isso no me impediu de penetrar nesses conjuntos e, assim, tentar analisar a escritura do antroplogo, conhecendo mais de perto suas experincias de tra- balho de campo. Normalmente, a escritura de campo e seus su- portes (cadernos, carns) constituem-se em tomo de uma exign- cia material, da continuidade textual e por isso o pesquisador ten- ta evitar a priori o uso de folhas avulsas, mas isso est claro que para Bastide uma norma que se transgride. Escrever, anotar, registrar so as aes que orientam a conduta do estudioso e isso ocorre sempre dentro de uma dinmica. Freqentemente, ele in- terrompe seus registros para anotar uma questo que ser refleti- da e discutida mais tarde, faz desenhos, esboos diversos, faz re- ferncias a ttulos de obras, menciona trabalhos de outros pes- quisadores, enfim, sua escritura profissional revela um dilogo permanente entre o "aqui" e o "agora", momento performtico da 169 170 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ao do pesquisador e sua experincia acumulada. Bastide elabo- ra inventrios para tudo: sobre seus artigos, leituras, livros, publi- caes, listas de obras lidas ou para serem lidas, correspondnci- as, nomes de pessoas e de amigos e isso tudo pode estar em meio s notas de campo. Apesar de muitas vezes constatarmos a sua falta de interesse por um suporte mais adequado ao exerccio de seu ofcio, ele demonstra, de uma maneira particular, muito rigor nas suas aes de escritura. No entanto possvel que, para esta viagem de pesquisa, ele tenha escolhido alguns cadernos como suporte, pois ele chegou mesmo a elaborar durante a viagem de 1958 um dirio de campo14 - Mon Jounal, como ele mesmo denominou. Eu diria que Roger Bastide, alm do pouco interesse que demonstra pelo suporte, parece preferir os suportes mais sim- ples e os mais acessveis. Prova disso que, entre os cadernos de campo de Bastide examinados, o Mon Journal um simples ca- derno do tipo escolar, dois outros trazem sobre a capa a denomi- nao de caderno de "rascunho" e um outro um caderno de publicidade (Air France). Enfim, todos os cadernos se asseme- lham a cadernos escolares. 3 - Entre as prticas de escritura do Mon Journal Para tratar dessa articulao interna, ou seja, da "mise en relation" que observamos nas aes escriturais de Roger Bastide no interior de um mesmo caderno - o Cahier I - Mon Journal, podemos comear dizendo que ele contm a escritura nmade e a sedentria que pode se efetuar atravs de duas aes e em dois momentos distintos. O antroplogo serve-se desse caderno, en- quanto suporte, tambm em dois momentos distintos e com fun- es distintas: suporte nmade e suporte sedentrio. Entretanto, no que se refere s prticas de escritura, as fronteiras no so assim to delimitadas. Em cada um desses momentos, podemos ter a presena da escritura profissional e a pessoal. Assim, num mesmo dia ou numa mesma pgina, podemos encontrar notas com descries dos dados obtidos no campo, notas de leitura, refern- cias bibliogrficas, registros de comentrios posteriores, resumos de observaes, algumas notas margem e anotaes pessoais. Em meio a esta variedade observei ainda a presena de anotaes feitas aps a observao, frases conclusivas que resumem reflexes, 14Entre os cadernos encon- trados, este o nico que foi construdo com a escritura diria, dia-a-dia, durante os 72 dias que passou na frica, em 1958. Os cadernos de campo de Roger Bas\ide: entrecruzamentos mltiplos 15 Conforme a classificao feita por Bastide, h duas denominaes: Journal ou cahier. novas hipteses, diferentes problemas, lembretes (Ver V. photos), enfim, nada parece escapar da pena do pesquisador que mantm tudo sob controle. Importante ressaltar que, ao lado da escrita di- ria obtida no trabalho de campo, h ainda a presena de outros dados, mas dessa vez oriundos de arquivos (fonte documental) O Cahier I - Mon Journal do tipo quadriculado, brochu- ra, 192 pginas, capa cartonada de cor cinza, formato 22cmx 16, Sem, tipo escolar. As pginas do caderno foram numeradas, elas comportam somente a escritura manuscrita, desenhos e esboos tambm de autoria do antroplogo. Ele preencheu todas as pgi- nas com uma caneta do tipo esferogrfica azul com uma escrita minscula, de leitura difcil. Como j foi dito anteriormente, esto presentes nesse caderno a escritura profissional e a pessoal, distri- budas da seguinte maneira por Bastide 15 : da pgina 1 pgina 182 - escritura de campo - Mon Journal- e as 10 pginas finais foram consagradas quase que exclusivamente escritura pessoal. No entanto, a parte destinada escritura profissional, como j foi bem evidenciado, no contm somente a escritura de campo: Mercredi 27 aout lettre n022 ( ... ) Visite du tombeau du roi Glebe. Enorme mausole, avec son lit au centre et moustiquaire, pour que son me puisse se reposer. ( ... ) Apres visite au cartier des forgerons - bijoutiers. Essas pginas esto entremeadas por notas de pesquisa do- cumental, de leitura e tambm pela escritura pessoal : Puis lu un peu. L'apres-midi ai pris documents potitiques sur Brsiliens la commission des Affaires Politiques du Gouvernement. Pass I' apres-midi et la soire les tire et prendre des notes. s vezes estas interferncias se do de forma ainda mais surpreendentes. Nesse caso, a escritura profissional se justape com a pessoal, intensificando-se mutuamente: Samedi 16 aout lettre n013 Aujourd'hui fait un peu de correspondance. Je ne suis pas sor- ti. V. est un peu fatigu. V. me parle malgr son mal de tte nouveau de Ondo. Lui se demande, tant donn que le rituel. .. 171 172 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ( ... ) Mercredi 27 aout lettre N22 Dpart 11 h30 de Ouidah. Nous passons para Allada, Agun, Bohian. Arrive Abomey, prs de 14h. l'avais mang quelques bananes en route ( ... ). Algumas vezes, quando a escritura pessoal ganha espao, ela sempre entremeada por uma escritura de memria, de agen- da que acaba por remeter de forma mais ou menos direta ao trabalho de pesquisa: Lundi 15 septembre lettre 37 Ce matin course et promenades dans Porto Novo Vendredi - 29 aot - crire Christiane (fille de R.Bastide) Lundi 1 septembre Le soir Cotonou. Diner chez Platonoff. Rentr vers 11h Y2. Bavard avec V. presque vers 1 heure. Dimanche 14 septembre Ce matin rest la maison p. travailler. Un peu de fievre No entanto, a partir da pgina 183, ele anota: Appendices l6 (pginas no numeradas). Desta vez a escritura profissional est menos presente, trata-se sobretudo de uma escri- tura pessoal: contabilidade, listas de compras e de presentes para a famlia. Temos aqui a presena do Bastide organizador de listas interminveis. Entretanto, a escritura profissional entra sorratei- ramente e se mistura escritura pessoal de uma forma menos acen- tuada, mas suficientemente verificvel. 4 - Da escritura profissional com a correspondncia e a fotografia Na obra autogrfica de Roger Bastide h uma forte presen- a de colaboradores, como se houvesse uma sociabilidade de cri- ao. Nos traos da sua escritura autogrfica o coletivo junta-se ao individual. A importncia da correspondncia se faz num dilo- go a quatro mos e confirma uma vez mais o atributo coletivo bem marcado na sua escritura. Em seu dirio de campo - Mon lournal, ao lado da data ele registra o nmero da carta que escre- veu assim como o nmero da foto que certamente est relaciona- 16 Como j explicamos, trata-se apenas de uma diviso material do suporte, pois em matria de aes de escrituras, elas continuam a transgredir as fronteiras das partes material- mente estabelecidas. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos da com as notas ali registradas. Exemplo: p. 25, ele anota: Lundi 28 - Lettre nO 1. p. 27 : Mardi 29 -lettre n02 Vendredi 5 Septembre. Lettre nO 28 (photo 3) Fizemos a leitura de grande parte da correspondncia de Roger Bastide. No que concerne aos destinatrios sei que uma grande parte era de amigos e colegas de profisso; representantes de rgos pblicos interessados em pesquisas cientficas, repre- sentantes de editoras e revistas especializadas. Bastide sempre trocou cartas (profissionais e pessoais) com seus alunos, seus ex- alunos e colegas de profisso. O Cahier I, Mon Journal informa- nos que, alm das cartas destinadas aos amigos e colegas, esto tambm registradas as que ele enviava sua famlia. A carta por definio algo que se compartilha. Ela tem muitos aspectos: enquanto prtica de escritura, um objeto que se troca, um ato no qual esto em cena "eu, ele e os outros". A carta, um texto autogrfico, distanciado de seus atores toma-se documento. Assim, enquanto documento a correspondncia vai, como outros documentos, estabelecer uma rede de relaes, possibilitando interlocues com os destinrios/remetentes, mas igualmente com os dados de campo registrados por Bastide em seus cadernos e seu objeto de estudo. Na frica, em 1958, em Mon Journal, Bastide conserva ainda viva a questo do "desafio popular", discusso mantida com intelectuais brasileiros durante dcadas: Mercredi 27 aout - lettre n.22 Visite du Palais des Rois ( ... ) lmportance du symbolisme. Le symbolisme dict par les proverbes. Ce qui fait que I' objet a la fois 1 sens concret et 1 sens abstrait. II y a l 1 trait de mentalit africaine que je retrouve dans le desafio: la mentalit rbus. A leitura da correspondncia que tomou possvel, primei- ramente, a compreenso mais aprofundada deste registro de cam- po e ainda me deu a oportunidade de acompanhar o debate sobre o "desafio" que durante dcadas Bastide, pacientemente, mante- ve com escritores, poetas e intelectuais brasileiros. l73 174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Uma quantidade considervel de cartas endereadas a Bastide consta do arquivo (de Mrio de Andrade, Cmara Cascudo, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, entre outros). Algumas delas tratam de assuntos bem precisos, discutem conceitos e produes cientficas (17 cartas de Lvis-Strauss 11 ), outras abordam direta- mente a pesquisa, algumas tratam diretamente de questes pesso- ais e h aquelas em que a escritura profissional e a pessoal convi- vem no texto em perfeita harmonia. Nesse sentido, citaramos as cartas de Pierre Verger 18 Das 44 cartas classificadas no ttulo [Bibliographie (Voyage Afrique)], algumas delas tratam especifi- camente da viagem frica, em 1958. Nelas o antroplogo P. Verger coloca-se disposio para receber e acompanhar o ami- go e colega no seu itinerrio de pesquisa. Envia tambm informa- es detalhadas sobre a viagem e a chegada. Sobre a confirmao destas trocas preliminares que antecederam a viagem de Bastide, podemos encontrar algo similar na primeira pgina do M on Joumal, de Roger Bastide. No que se refere s fotografias ali anotadas, elas so na maioria de autoria de Pierre Verger. Isso vai possibilitar, sem d- vida, a produo de uma iconografia das idias, mas tambm dos documentos manuscritos e inditos de Roger Bastide. Uma folha branca avulsa (A4) traz uma lista feita por Bastide sobre sua produo de artigos, os que ele tinha a inteno de escre- ver e publicar. Esta lista nos informa o interesse do pesquisador em divulgar os resultados de seu trabalho realizado durante sua estada na frica com Pierre Verger. Aqui tambm o material fotogrfico, principalmente o de Pierre Verger, integrado a sua produo. 1- Livre? - Remonte aux Sources R.B - Photos V. (10 14) 2- Bulletin Etudes Dahomennes - (pour Lombard) - P.V et R.B Description d'une crmonie religieux - Photos V. 3- Pour Monod - Bulletin IFAN ? - (simple article sur Ies aspects) R.B Une tude sur les Brsiliens 4- Peut tre ultrieurement livre les plus dvelopp sur les Brsiliens d' Afrique qui a dj un diteur si Monod ne Ie prend pas, la VI Secteur va Ie demander 5- Pour le Congres : Rapport Gnral sur Ies Marchs - P.VetR.B 6- Pour Annales de L.Febvre Iong article sur les Marchs - 17 A autorizao para a leitura das cartas foi concedida por Claude Lvi-Strauss atravs de carta manuscrita. 18 Recebi, igualmente, autoriza- o da Fundao Piem: Verger (Salvador/BA) para ler as cartas de P. Verger. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos mltiplos 19 Temos neste caso mais uma prova que a classificao do inventrio considerou mais a pertinncia entre os contedos. P. V. et R.B 2 4 Photos V. 7- Articles Revue de Paris: Ftes d'Oxum ? ou autre ermonie ? R.B 5 - Das viagens com os temas As viagens de trabalho se sucedem na vida de Bastide. Em cada uma delas, o pesquisador carrega consigo os seus temas de estudo, bagagem cara ao estudioso que segue sempre acompa- nhado de suas problemticas e hipteses. E, assim, fazendo parte da mesma trama, os fios se multiplicam (dados), fortificando os laos (relaes e concluses) que a experincia outorga ao estudi- 0so. Os documentos reunidos no ttulo [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I], especificamente uma folha branca avulsa que traz um texto de Bastide sobre o Bumba-meu-boi (Burrinha), ilustra de forma exemplar o que acabo de afirmar. Este texto faz parte do mesmo conjunto do Mon Joumal, dirio de campo de 1958 19 , e est datado: (Dimanche 27 mars 1 9 ~ 6 - Ouidah. Association Francisco da Rocha). Ainda no encontrei mais informaes sobre esta viagem frica feita por Bastide em 1966. Entretanto, os dados de campo obtidos por Bastide confirmam que a viagem de 1966 aconteceu, pois identifiquei em sua escritura de campo uma comparao en- tre os dados obtidos nessa viagem e na viagem anterior, realizada em 1958. A escritura contida na folha avulsa interage com a escri- tura diria, Bastide estabelece relaes entre as viagens, entre os dados, fazendo mais uma vez circular no tempo, no espao e no contexto o seu objeto de estudo: Aujourd'hui dans la mme ville de Ouidah, variation par rapport ee qui j' avais vu la demiere fois = il semble done bien que si mme strueture ou sehma, grand rle de spontanit cratrice des animateurs. ( ... ) Noter aussi variation des masques vu encore mme type, mais le Water mamy, malgr ses 2 serpents, avec sa figure blanche, ses lunettes = 1 vieille danse crole davantage que mythique). Par les bouviers avec son grand chapeau de paille etc. (ver p.2 do dirio de campo, de 1958). O confronto de relaes que assinalamos durante esse tra- 175 176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 balho est mais uma vez presente na variedade das prticas de escritura assumidas pelo estudioso. Para ilustrar o que acabo de afirmar, podemos citar o artigo sobre a "Burrinha" publicado em 2002. Ao l-lo, sentimos a presena da escritura preparatria rea- lizada no campo, fonte imprescindvel para que uma outra ao de escritura desse a luz ao artigo, tornando pblica uma experincia nica e pessoal. Da mesma forma, pude perceber numa leitura em seqncia as relaes estreitas existentes entre as duas produes escriturais, apesar de cada uma estar escrita em uma lngua dife- rente, pois o artigo foi publicado em portugus, e parece dar con- tinuidade ao primeiro, estabelecendo uma relao circular entre a escritura de campo e escritura da obra. No artigo "A Burrinha de Uid", (texte de Roger Bastide et photos de Pierre Verger), publicado no livro VERGERlBASTIDE - Dimenses de uma amizade, temos a revelao de um desejo que ser responsvel por mais uma viagem, e a confirmao da busca permanente de temas que lhe so caros e que circulam nos interstcios da terras do Brasil e da frica. Assim escreveu Bastide: "Foi essa vontade de rever o. Brasil que me levou, nestas frias, a ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os brasileiros de Uid, de Porto Novo e de Lagos, que ele conhece to bem. E o Brasil- esse Brasil importado para a terra africana pelos descen- dentes dos antigos escravos que voltaram para l com a religio, a lngua e os costumes do Brasil - mais uma vez realizou meus de- sejos: no prprio dia em que desembarquei do avio, sem ter tido tempo de desfazer a mala, de me instalar, Verger me arrastou a Ui d para assistir a uma "Burrinha" deliciosamente brasileira." (Bastide, 2002: 77) Primeira pgina do dirio de campo: 13 juillet Arrive Kotonou - Verger m'attend avec camionnette IFAN 20 Beau temps, mais nuages vers le soir. Dpart pour Ouidah 21 (40 Km environ) un dtner chez M. Bisson, ma ire. La maison me rappelle trangement le Brsil " on mange dehors, en se servant soi-mme, parmi les fleurs, les arbres, sous un manguier. Paysage un peu rcifien 22 un peu Apipucos. Plusieurs membres de la colonie franaise , blancs ou Martiniquais, Guyanais - Le matin, visite du march - L' apres- midi, visite du quartier Brsil . Rptition de la 20 IFAN: Institut franais de I' Afrique noire 21 Ouidah = Uid. 22 Os dicionrios Larousse (2002) e Le PerU Roberr (CD 2001-2003) trazem o subs- tantivo rcif e o adjetivo rcital - e - aux. A forma utilizada por Bastide no consta nesses dicionrios. A palavra recifien talvez faa parte das conhecidas adaptaes (francs e portugus) criadas e utilizadas por Bastide. 23 "Burrinha" o nome que recebe em Dahomey a festa popular do "Bumba-meu-boi". Os cadernos de campo de Roger 8astide: entrecruzamentos mltiplos 24 A palavra fazendaire pode ser o mesmo caso da palavra recifien: adaptaes lings- ticas. 25 Escolhi esse sinal (=) para representar as palavras no legveis. 26 Escolhi esse sinal (l1I1I1I/) para representar as rasuras do texto. Burrinha 23 . 2 pandeiros, 2 tambours (plusieurs noms donns, marcha = marcha militaire) - Danses de 2 mas- ques (masques achets chez commerants) ,- apparition de cheval marin , tres bien - La desse des eaux avec son allure de dame fazendaire2 4 , avec ses lunettes, etc., et ses serpents caraibes (quelle peut bien tre l' origine de ce mas- que ?) avec ses 2 dames d'honneur, 1 plus brsilienne d' allure et I' autre plus africaine, avec coiffure africaine, toute jeune est tres jolie, dignit de reine, orgueil. Rptition des sambas. Loi de la mmoire collective .- fragments de phrases brsiliennes et tn::n:::n:(25 phrases dtaches, remplissage ave c de phrases africaines (syncrtisme linguistique), mais intrt I 11111j26 Verger leur copie les chants plus nettement brsiliens de Porto-Novo - La f te tait tombe en dsutude, le nouveau maire qui veut redonner vie Ouidah (peu I' gal Kotonou) IIIII demande de la reprendre. As viagens, os temas, as aes de escrituras, os autores e as experincias colocam-se em relao dinmica onde tambm vo- zes se cruzam. O exemplo mostra como surge da escritura de Verger a escritura de Bastide, desta vez vinda da experincia do campo que ambos compartilharam. Deixando para trs o contato dirio com o campo de pesquisa, muda a ao da escritura, pre- serva-se a experincia vivida, muda-se a ao do olhar, d-se con- tinuidade trama, fios interminveis, "mise en relation" de uma prtica, de uma obra, de uma vida e assim a viagem continua e Bastide quem diz:"Mas outros deveres me esperam em Paris, e eu no verei outra vez as 'ias' de Xang, que me fizeram sonhar em pleno corao de frica, e as suas irms que esto do outro lado do oceano"(Verger:2003, p.SO). 177 178 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Referncias BAKHTIN M. (Volochinov), Marxismo e filosofia da linguagem.- 6e. ed., So Paulo: Huctec, 1992.- 196 p. BARTHES R. O prazer do texto. 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Doravante, S, seguido do nmero da pgina. 2 Longe de qualquer interpre- tao romntica da arte como meio de salvao do artista, importa perguntanno-nos em que sentido a arte pode real- mente ser um anti destino. Se no pode constituir um instrumento eficaz no combate contra a violncia e a morte, pode ao menos, como diria Malraux no prefcio de Le Temps du mpris ''tentar dar aos homens conscincia da grandeza que ignoram em si mesmos" (Le temps du mpris. Paris, Gallimard, 1935, p. 9). Ou, se pensarmos na questo da metamorfose atravs dos tempos, havemos de entender que o antidestino da arte - ou seja: o fato de sempre escapar fixao das formas e do sentido - a bem dizer seu primeiro destino enquanto obra de arte. Da representao do horror ao vazio da representao Edson Rosa da Silva (UFRJ / CNPq) L'horreur, en effet, ne s' annule que par un exces d'horreur. Georges Bataille. L'rotisme* o livro que Andr Malraux escreveu sobre o pintor espa- nhol Goya em 1950, intitulado Satume', sempre me pareceu revelador de sua relao com a idia de sagrado e a idia de mor- te. No com a idia de religio, mas com uma dimenso sagrada . que ultrapassa qualquer crena ou ritualizao dogmtica. a partir desse sagrado que, segundo Malraux, obseda Goya e que nos a..tinge por seu carter negativo (S, 156) que ele analisa a obra ~ t r o z do pintor espanhol. Mas como se manifesta esse sagrado? No seria certamente por uma invisvel presena sugerida pelos mitos ou por uma luz que para ele apontasse, diz Malraux, que acrescenta a seguir: O nico meio que possui a arte de tentar a expresso [de tal sagrado] o de restabelecer o contato com tudo aquilo que transforma o artista apenas num momento de passa- gem: o sangue, o mistrio, a morte (S, 157). Duas idias esto embutidas a: a de que o artista no pode resgatar de forma romntica e nostlgica o que a morte destruiu (o que me leva a contestar uma compreenso ingnua da famosa afirmao de Malraux: A arte um antidestino2 , que no cabe aqui discutir); e a outra idia que afirma que s pelo contato com a morte que o artista conseguir exprimir o sagrado, claro que este sagrado a que me refiro no o sagrado dicotmico do cristianismo: o sagrado pleno, aquele que, etimologicamente, rene puro e impuro, aquele que, no rastro da reflexo de Nietzsche, poderamos chamar de sagrado dionisaco, 181 182 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 em que no h dualismos nem separaes, em que se encontram criao e destruio, prazer e dor. Ao tratar do tema da violncia e do sagrado, Georges Bataille, no sem sugerir a filiao nietzschiana, insiste ao longo de sua obra na ntima relao entre o homem e a animalidade, e acentua a tenso que o abjeto, a souillure, introduz no humano, estabelecendo assim um vazio- fora-da-humano onde as antinomias se esvanecem, onde a expe- rincia (que Bataile chama sempre de experincia interior) con- fronta o que se pensa e o que se vive. nesse timbre que busca conjugar todas as formas do aparentemente humano com as inevi- tveis conseqncias do inumano que diz, em O erotismo, que o horror da morte no se acha unicamente ligado ao aniquilamento do ser, mas ao apodrecimento que lana as carnes mortas na fer- mentao da vida 3 Tento construir, assim, um instrumental conceitual que me permita tratar o abjeto como um cruzamento de sentidos, em que se encena um paradoxo: o do abjeto (ab-jectum) rejeitado pelo humano, mas que do humano provm. O abjeto uma me- tfora da repulsa / atrao da morte. Eis por que a representa- o do horror sempre choca e, ao mesmo tempo, fascina o hu- mano. Eis porque o mal, muitas vezes temido e rechaado, , por vezes, necessrio e desejado. sobre esse jogo antittico - extremamente baudelairiano - que gostaria de discorrer, comparando alguns episdios que me parecem altamente significativos dentro dos romances de Andr Malraux nos quais podemos contemplar a beleza terrvel e sagrada da morte, a fascinao do mal e os processos da abje- o: o primeiro trata do momento em que Claude e Perken, per- sonagens do romance La Vaie royale [A Estrada real, 1930] que se passa na floresta do Camboja, reencontram Grabot, persona- gem prisioneiro de uma tribo selvagem local; e o outro aquele em que Garine e o narrador do romance Les Conqurants [Os Conquistadores, 1928], que trata da guerra de Canto, em 1925, na China, encontram o corpo de um combatente alemo terri- velmente torturado. 3 BATAILLE, Georges, op. cit., p.63. Da representao do horror ao vazio da representao 4 L'hautontimoroumnos , in : Oeuvres completes, t. I. Paris: Gallimard, 1975,78. 5 Todas as citaes dos romances remetem edio coletiva da Pliade: MALRAUX, Andr. Romans. Paris: Gallimard, 1976. A pgina ser indicada entre parnteses, precedida da sigla do romance em questo: VR (La Voie Royale), C (Les Conqurants), CH (La Condition Humaine). As tradues so de minha responsabilidade. * Je suis la plaie et le couteau ! Je suis le soufflet et la joue ! Je suis les membres et la roue, Et la victime et le bourreau ! Charles Baudelaire 4 As primeiras aluses vida de Grabot o fazem mergulhar numa atmosfera de lenda e de mistrio. Enquanto buscamos com Claude, um arquelogo, e Perken, um aventureiro conhecedor da regio, os templos khmers perdidos na floresta asitica, participa- mos ao mesmo tempo da ansiedade de Perken medida que nos aproximamos da regio onde se encontra aquele personagem. A partir da terceira parte do romance, a busca arqueolgica deixa de constituir o centro de interesse da expedio, cedendo o lugar luta do Perken pela libertao de Grabot. Ao partir para a regio dos conflitos na sia, esse persona- gem no o fizera to simplesmente por interesses econmicos ou polticos; buscava, sobretudo, responder a uma necessidade im- periosa de acertar as contas consigo mesmo5 (VR, 219). Volta- se para sua prpria solido. Algo o separa dos outros e o torna diferente: a sua coragem. Esse o germe do conflito que tam- bm vai dominar Tchen, o famoso terrorista da Condio Huma- na. Para esses dois personagens, arriscar a vida um prazer, j que a morte no lhes causa medo; ao contrrio, ela os fascina. Gtabot capaz de ultrapassar todos os limites para expor-se e perder-se, para gozar de um prazer terrvel: o prazer de sua pr- pria dor. nesse sentido que, segundo Bataille, a perda se instala como um meio de aquisio de um poder sobre si mesmo e uma nova fora sobre o mundo. nesse sentido que ultrapassa a di- menso humana para alcanar uma dimenso sagrada, na qual o gesto da morte e o ato do sofrimento participam da fora de um sacrifcio ritual. assim que a mutilao, que Grabot se impe causando a destruio do prprio olho com pus blenorrgico, permite-lhe, na experincia da dor, a vitria da coragem sobre o medo. Diante de um escorpio que lhe causa forte repulsa, sua atitude a mesma: ao invs de fugir, expe-se e deixa-se picar de propsito (VR, 183 184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 245-246). Toma-se assim um agente do mal, um transgressor. Como os reis das comunidades primitivas que, no momento de sua entronizao, transgrediam as leis mais sagradas e eram agre- didos pelos sditos que os sujavam de sangue e excrementos para, assumindo o abjeto, conquistarem o poder de exorcizar a prpria abjeo: contaminando-se com o impuro, absorviam o veneno do mal. A singularidade do gesto de Grabot confirma seu isolamento. Com efeito, no o ato de violncia que lhe impe a marginalizao. Pelo contrrio, sua excluso precede o ato e exi- ge o sacrifcio, pois a excluso a marca da eleio. Enquanto pharmakos, espcie de vtima sacrificial, ele encerra a ambigida- de caracterstica do sagrado: etimologicamente a palavra latina sacer, sacra, sacrum possui dois sentidos que se excluem: sagra- do e maldito, aquilo que no se pode tocar sem sujar e o que no se pode tocar sem se sujar. Carregando no seu prprio corpo o bem e o mal, Grabot se distingue fisicamente do homem comum, tomando-se dessa forma o ponto de convergncia das diferenas, o objeto multiforme, o homem-animal, humano-inumano, resolu- o das antteses. Prisioneiro dos selvagens, Grabot condenado a empurrar a m de um moinho, como num crculo infernal absurdo. Quando Claude e Perken penetram na palhoa sem janelas para libert-lo, eles o reencontram como um objeto aterrorizador, um rosto aviltado (VR, 260), cujos olhos no vem, um corpo brutalizado (por ele mesmo e pelos outros). A reao dos dois traduz o emba- rao angustiante diante do desconhecido que o corpo do escravo ainda misterioso lhes impe. A impossibilidade de aproximar-se dele reside no fato de que suas plpebras esticadas coladas em um osso ausente davam a esse rosto o aspecto de uma degrada- o terrvel. Grabot parecia um cadver, imagem da decadncia humana. Exorcizar o mal , para ele, antes de tudo, encarn-lo, assu- mindo assim uma forma inumana. Assustadora ilustrao do para- doxo da paixo de viver e da intimidade com a morte, contra cujo absurdo luta sem trguas. E o melhor meio de faz-lo antecipar sua forma abjeta, incorpor-la com toda a conscincia, consci- ncia semelhante do Ssifo de Camus, opondo-se dessa forma ao jogo do destino, atacando-o com as mesmas armas. Nesse sentido, o rosto de Grabot que tentei esboar, evoca, Da representao do horror ao vazio da representao . Les Aveugles , BAUDELAIRE, Charles, op. cit,92. a meu ver, a figura do homem em uma espcie de nudez fora do tempo. Sem voz e sem viso, esse corpo assusta e fascina, como se alcanasse o silncio mais eloqente e a viso mais ilimitada. Se aludi anlise que faz Malraux dos desenhos de Goya, que vejo ali, sob a forma de um ensaio, a mesma imaginao que ge- rou os personagens romanescos. Falando dos torturados dos De- sastres da guerra, Malraux afirma: "Quando o que ele pinta tem relao com o atroz - que o tenha visto, que lhe tenham contado ou que ele mesmo imagine - Goya mantm sua ligao com o intemporal. O supliciado, o homem de braos cortados suspensos nos galhos, que evocam a tortura milenar [ ... ] esto nus - fora do tempo." (S, 115). Ora no poderamos evocar aqui Grabot, que acabamos de ver? * Leurs yeux, dont la divine tincelle est partie, Comme s'ils regardaient au loin, restent levs Au ciel ; on ne les voitjamais vers les pavs Pencher rveusement leur tte appesantie. Ils traversent ainsi le noir illimit, Ce frere du silence temel. Charles Baudelaire 6 Garine e o narrador de Les Conqurants encontram em uma sala o corpo do combatente alemo Klein terrivelmente tortura- do, ao lado de trs refns chineses. Diante desses corpos mortos e degradados, os personagens se sentem confusos, como se se encontrassem subitamente face a face com algo misterioso e incompreensvel. Com efeito, a sensa- o de estranhamento que os invade a sbita revelao de um outro mundo. Eis o que diz o narrador: esses corpos de p tm algo, no de fantstico, mas de surreal nessa luz e nesse silncio. Consigo respirar de novo agora, e, com o ar que aspiro, invade- me um odor que a nada se assemelha, animal, forte e inspido ao mesmo tempo: o odor dos cadveres (C, 129). A presena dos mortos transforma inteiramente o espao em que se encontram. A posio ereta dos corpos contra a parede 185 186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 d uma dimenso diferente a esses cadveres que no tm a pos- tura habitual dos mortos, mas que parecem invadir, de certa for- ma, o mundo dos vivos. Donde a reao do narrador que, pene- trando na luz radiante e no silncio, v a algo que ultrapassa os limites do real. Tudo se transformou, como o ar, dominado por um odor animal mais forte do que a presena dos homens. um momento ao mesmo tempo de ruptura e de reencon- tro: ruptura com a vida e reencontro do humano com o inumano. E desse encontro nasce, como uma fora estranha e dominadora, a fascinao. Os corpos torturados de Klein e dos trs chineses projetam na atmosfera silenciosa da sala uma aura sagrada. E, diante dessas vtimas, Garine e o narrador so submetidos a uma experincia mstica: aproximam-se da morte e estabelecem com ela laos de intimidade. Aos olhos do narrador, o corpo de Klein impe-se como a imagem concreta da tortura. E descrio inicial do romance, quando o texto apresenta o militante como um homem grande e forte, vem sobrepor-se a de um corpo mutilado, com uma enor- me mancha no meio do rosto: a boca rasgada com uma navalha)), diante do qual o narrador desvia os olhos: feridas abertas, gran- des manchas escuras de sangue coalhado, olhos revirados, todos os corpos se parecem. Foram torturados ... (C, 130). imposs- vel no se pensar em Goya diante deste quadro! Como Goya, Malraux rompe com a tradio do belo, do real agradvel vista, e descobre em um percurso por outros j trilhado a beleza do mal. Por isso, sua obra pontilhada de quadros atrozes que, como o de Klein e como a produo do pintor espanhol, trazem a revelao ou a seduo do horrvel: A terrvel forma da seduo chama-se fascinao7. Ora, diante de Klein e dos Chineses, achamo-nos diante desse in temporal de que fala Malraux a propsito de Goya - a tortura milenar - que nos transporta para fora do tempo. A chegada da mulher de Klein introduz nesse quadro j to denso e sobrenatural um personagem novo. Imvel diante daque- le corpo, sem chorar, ela o contempla. De sbito, cai de joelhos. No reza. Parece atrada pelas marcas das atrocidades, como se, por elas, e apenas por elas, se lhe revelasse naquele momento a significao mais profunda do sangue: a eterna questo da morte dos homens. E num gesto de amor, essa mulher-sem-nome, essa mulher-sofrimento, toma nos braos o corpo do marido (C, 131), 7 \1ALRAUX, Andr. Dessins de Goya au Muse du Prado. Genve : Skira, 1947, p. XIII. Da representao do horror ao vazio da representao recuperando, assim, no romance (e na obra, onde a presena fe- minina to reduzida) a imagem terna da Piet. A figura da me no incompatvel com o universo cruel e violento que a vive- mos e ainda menos com a mulher do militante alemo. Alis, a Piet ela prpria uma figura plena de contrastes, pois rene para sempre (como um destino petrificado!) a dor e o amor. Ela abraa a morte com um gesto convulsivo: sacode a cabea com um movimento incrivelmente doloroso de todo o busto .... . Esfre- gando-se contra o sangue derramado, maculando o prprio corpo com os restos do humano, essa pobre mulher acentua o carter absurdo da morte: com uma terrvel ternura, esfrega seu rosto, de forma selvagem, sem um soluo, no lenol ensangentado, nas chagas (C, 131). Esse quadro to expressivo que Malraux nos apresenta re- ne tambm - e de forma magistral- pela presena da mulher ama- da ao lado do cadver do marido as figuras de Eros e de Tnatos. Em outras palavras, funde numa mesma imagem dois gestos que se assemelham fundamentalmente: o do amor e o do sacrifcio. E com seu gesto de amor, a mulher confunde-se com a morte, em uma comunho fascinante e terrvel, em um dilogo que, embora mudo, diz muito mais do que qualquer tratado sobre a morte. * Os exemplos que apresentei como formas de pensar e de representar o abjeto so apenas dois momentos dos inmeros que encontramos nas literaturas e nas artes. Nada de novo. A primeira questo que me movia nessa reflexo era delimitar um espao de significao do abjeto que , ainda, a meu ver, e continuar sendo, muito amplo, pois envolve manifestaes diversas de um gesto que lana longe (ab-jecta) aquilo que nos repulsa, mas que, por outro lado, no se pode inteiramente separar do ser humano. A segunda questo referia-se aura sagrada que esse abjeto instau- ra. O terrorista um sacrificador: o homem-bomba imola e Se imola. Por isso, emaranhando vozes como Bataille. Kriste\"3.. Nietzsche, mesmo se nem sempre mencionados. circunscreYi esse abjeto em torno da morte e de seus avatares. A terceira questo pensar a representao do abjeto e in- dagar sobre sua eficcia. inegvel que a arte constitui para o 187 188 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 artista um manancial de vida, um espao de ressurreio onde, apesar da violncia e da morte, reencontra ou tenta reencontrar ainda o equilbrio das coisas. O artista cria, instaura novas rela- es, um novo mundo (mesmo que imaginrio). Seu gesto tem fora demirgica, tem poder contra a violncia. Mas at que pon- to? Em Notas de literatura, onde Adorno discute a funo da obra engajada, essa pergunta assume um lugar de destaque. Refe- rindo-se pea de Sartre, quando algum pergunta em Morts sans spulture se h sentido em viver enquanto existem homens que batem em outros at que os ossos se quebrem, diz que uma per- gunta se impe ao mesmo tempo: a arte ainda pode existir? Em um dilogo com o espanhol Alvear, professor de Histria da Arte, Scali, intrprete de Masaccio e de Piero della Francesca, profes- sor da Universidade de Florena, diz no romance A Esperana, que relata a guerra civil espanhola de 1936: Nas Igrejas do sul, onde combatemos, vi diante de quadros enormes manchas de san- gue. As telas perdem sua fora (E, 835). Ao que responde Alvear: Seriam necessrias outras telas, s isso. O que Alvear queria dizer com isso no fica claro. Creio que cada tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas re- presentaes. Que escritores e artistas venham apresentando cons- tantes protestos contra a violncia que grassa ao nosso redor, no h a menor dvida. O que eu queria arriscar como reflexo ob- servar que, ao lado de inmeras formas concretas de representa- o, a representao do vazio tem cada vez mais lugar e plena de sentido. Temos assistido na literatura e nas artes a uma reflexo cons- tante sobre a ausncia, o vazio, o silncio. A linguagem perfeita do silncio escaparia a toda e qualquer materialidade fsica que a pudesse macular. A ausncia do livro, para Blanchot, parece no querer corporificar a obra, mas alimentar o processo, como se, pela no existncia, nada se pudesse corromper. Penso que h uma migrao da representao concreta para uma representao pela ausncia. Dois exemplos me vm lem- brana. Visitei em julho de 2004 o Judisches M useum em Berlim, construdo pelo arquiteto Daniel Liebeskind. O museu organi- zado a partir de trs eixos que se entrecortam: o da continuidade, o do exlio e o do holocausto. So salas altas, grandes, corredores Da representao do horror ao vazio da representao imensos e tudo quase vazio. H salas com quadros de artistas judeus e outras salas vazias, numa ausncia eloqente de quadros que sumiram, foram destrudos, ou nunca existiram. Talvez se pudesse chamar isso de uma instalao do Vazio da Morte. A sala das mscaras humanas, de ao, sobre as quais somos convidados a caminhar, causando um barulho metlico, agressivo, hostil - barulho abjeto - do humano desumanizado algo que causa dor e repulsa. O segundo exemplo o monumento que, naquele julho, ainda estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg. Tmulos vazios, plenos de lembranas. Era o centro do III Reich. Parece um cemitrio. Mas no h corpos. S pedras. o monu- mento da ausncia. Creio que possvel pensar essa ausncia-plena. Plena de memria, vazia de forma humana. Ainda no sei bem como elabo- rar essa reflexo. Mas parece-me que a forma vazia, tal qual a linguagem do silncio, uma forma de proteger o j desumanizado, ou pelo menos de impedir a sua nova desumanizao. Forma pre- cria, talvez, de preencher o vazio com a memria que no se apagou. Parece um simples jogo de palavras, mas no . Pelo menos para mim no . Cria-se o espao da morte, onde no h morte, porque a morte nada pode contra a morte. Fiquei perplexo como diante do sagrado. Recolhido. Emo- cionado. Muito mais do que diante da exibio abjeta dos cabelos, das malas e dos sapatos de Auschwitz. Estou convencido de que a ausncia uma nova forma de reflexo e de representao da catstrofe e do horror. 189 'Lady Makby, marido Ideal (1895), in Beckson, Karl (Org). O melhor de Oscar Wilde. Traduo Dau Bastos. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 'Ulman, Ellen. Perto da mquina. Traduo Mrcio Grillo. So Paulo: Conrad Editora do Brasil, 200 I, p. 123. lKolata, Gina. Clone: os caminhos para Dolly e as implicaes ticas, espirituais e cientficas. Traduo Ronaldo Srgio De Biasi. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 21. 4Perrone-Moiss, Leyla. Derrida no Rio. Folha de So Paulo, Caderno Mais! So Paulo, 8 de julho de 2001. 'Huxley, Aldous. Admirvel mundo /lOvo. Traduo Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. 26a. edio - So Paulo: Editora Globo, 2000, p. 9-10. 'Kolata, Gina. Clone: os caminhos para Dolly e as implicaes ticas, espirituais e cientficas. Traduo Ronaldo Srgio De Biasi. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 7. A literatura e a virtualizao do texto literrio Rogrio Limo (UnB) Nada mais perigoso do que ser demasiado moderno: corre-se o risco de sair de moda muito rapidamente. Oscar Wilde I Viver virtualmente uma arte. Como qualquer arte, a virtual idade no nem estvel nem segura. Ellen Ullman 2 o ps-moderno e a literatura Frankenstein Chamamos ateno para a seguinte questo: talvez se deva pensar a questo do virtual, ou de sua invaso do territrio liter- rio, enlaando, pelo menos para comear, trs referncias inevit- veis: complexidade, velocidade, interdisciplinaridade. Elas nos proporcionaro, combinadamente, outras possibilidades de refle- xo. E neste momento, diante da polimorfia do virtual, da lenti- do da letra e da velocidade da imagem, a sada jamais ter de ser a clonagem da literatura. Segundo Gina Kolata a clonagem uma metfora e um es- pelho. "Ela nos fora a contemplar a ns mesmos e os nossos valores e a decidir o que importante para ns e por qu."3 Para Jacques Derrida a clonagem se configura como uma repetio calculada da identidade gentica de um indivduo 4 , da mesma for- ma como Huxley denuncia o fato em seu Admirvel Mundo Novo ao descrever a fria racionalidade do Processo Bokanovisky5. A bokanovskizao a metfora de Huxley para a aplicao da li- nha de montagem fordiana reproduo humana. A clonagem implica na produo e no na gerao de um ser 6 ; essa afirmao coloca a literatura em um impasse entre a criao e a produo. 191 192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A clonagem da literatura deve ser interpretada como uma repetio em srie daquilo que j est posto pela prpria literatu- ra. O ps-modernismo opera justamente no sentido contrrio ao da clonagem, que entendemos estar muito mais afeita ao cnone ou prximo do que Barthes chama de texto legveU Os textos legveis "So produtos (e no produes) que constituem a enor- me massa de nossa literatura". 8 Esses so textos da esfera do pos- svel e no do virtual. O ps-moderno trabalha com os signos cristalizados da cul- tura e tem por finalidade questionar valores estabelecidos e elabo- rar um novo objeto artstico, utilizando como material de sua com- posio elementos da prpria cultura. 9 possvel que com esse tipo de ao vissemos a ter uma literatura Frankenstein JO , mas no uma literatura clonada. "A literatura sempre antecipa a vida nunca a copia: ela a molda segundo seus prprios objetivos".!! Os corpos textuais, legveis, produzido pela literatura ps-moderna so corpos fraturados, dotados de virtualidades e virtualizaes (problematizaes) internas ao texto e externas ao seu funciona- mento, enquanto artefato tcnico de comunicao de uma forma de arte em transformao. A literatura e a mdia digital O advento da mdia digital de massa e das recentes tecnologias de informao/comunicao colocou em xeque o pa- pel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadean- do um movimento de autoquestionamento a partir de seus prpri- os fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos aspectos, dentre os quais podemos citar: a noo e concepo de autoria, a fragmentao da narrativa, as novas relaes textuais - criadas a partir do conceito de hipertexto (matriz de textos potenciais), da relao textolimagem, da interatividade, da virtualizao do texto literrio e da introduo do conceito de ciberliteratura. Diante deste quadro, comea a ser esboada uma potica da literatura ps-moderna e de suas relaes com o mundo virtual, atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir e ampliar o estatuto do literrio seja pelo dilogo intersemitico 7Barthes, Roland. SfZ: uma anlise da novela Sarrasine de Honor de Balzac. Traduo Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.38. 'Ibidem, p. 39. 9Lima, Rogrio. O dado e o bvio: o sentido do romance na ps-modernidade. Braslia: Editora da Universidade de Braslia/Editora Uni versa, 1998. 10 termo Frankenstein ou Frankensteinizao tem sido usado por diversos segmentos da crtica e autores como Nzia Villaa e Rosa Maria Rodrguez Magda para desig-nar o texto literrio ps-moderno em suas diversas formas de realizao e elementos textuais integrados por ele. Nzia Villaa com o apelo metfora do termo alude "ao fato de que o texto eletrnico, no complexo infor- mtico/com unicacional, participa de um imaginrio maqunico que, visto a partir de um horizonte do corpo enquanto dado natural, considerado agente de desumanizao, robotizao, controle tecnol- gico." VJllaa, Nzia. "Robinson Cruso, Babel, Prankenstein e outros mitos: corpo e tecno- logia. In Villaa, Nzia.Ges, Fred e Kosovski, Ester (Orgs.). Que corpo esse? Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. Para Rosa Mara Ro-drigues Magda, "Nos encontramos en el seno de la frankensteinizaon de la cultura, de la sociedade y de lavida. Mientras las sociedades avanzadas nos ofrecem un modelo holo- gramtico, retroviral, de redes informticas, de fusin cyborg entre la biologa y la tcnica, el mundo en su conjunto nos retroatrae al territorio preindus- trial do monstruoso, fragmentos distorsionados e irrecic1ables de un sigl0 que se acaba, deformes presencias milenaristas, la A literatura e a virtualizao do texto literrio multiplicidad heterogenia de nuestros fantasmas recientes engarzados en una fisiologa excrescente, descomunal y atroz. Sntesi imposible, monstruosa por tanto, de la historia en nuestro presente, y presencia acechante dei monstruo de lo otro que en vano pretendemos recluir ms ali de nuestros limites de seguridad. Con la denominacin "modelo Frankenstein" pretendo meta- forizarestas dos vertientes: porun lado, la pervivencia de los restos cadavricos de nuestro pasado: teoas, estticas, religiones ... que retornan en una contemporaneidad convulsa, que no compone sin ms un mosaico de datacin diversa sino que lo integra en un dinamismo redivivo y mutante; y, por otro lado, plasmar la presencia y eI horror de lo monstruoso en los limites de nuestra conciencia y nuestrageografa: el extranjero, el fantico, el violento, el marginal, las minoas diferentes y ladiferenciaen suma." Magda, Rosa Mara Rodrguez. El modelo frankenstein: de la diferencia a la cultura post. Madrid: Editorial Tecnos, 1997. 11 Vivian, em "A decadncia da mentira", 1891. In Beckson, Karl (Org). O melhor de Oscar Wilde. Traduo Dau Bastos. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 12 Guattari, Flix. Da Produo da Subjetividade. In Imagem mquina. So Paulo: Editora 34, 1993. 13 Kubrick, Stanley. 2001 Uma Odissia no Espao. MGMI UA HOME VIDEO, VDEO ARTE DO BRASIL, 1968. 63Deleuze, Gilles e Guattari. Mil plats: capitalismo e esqui- zofrenia. Vol. I. Traduo Aurlio Guerra Neto e Clia Pinto Costa. So Paulo: Editora 34, la Reimpresso, 1996, p. 16. do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e representao. No bojo de todas as discusses surgidas em torno da literatura neste final de sculo e que, atualmente, tm merecido lugar de destaque no campo das cincias humanas est, sem dvi- da, a questo relativa ao pensamento e produo literria na era do digital. Diante deste fato, buscamos com este trabalho refletir sobre as seguintes questes: at que ponto, e de que maneira, se diferenciam a forma e a sensibilidade literria da modernidade e da ps-modernidade frente ao avano da tecnologia digital e como se processar a relao leitor/texto diante do novo quadro que se estrutura? Para responder a essas questes trabalharemos com a crtica da cultura que ir nos fornecer instrumental terico- investigativo para que tornemos possvel a formulao de alguns pressupostos tericos acerca de uma nova lgica existencial para o sentido da literatura, num mundo dominado por imagens, velo- cidade, informao em tempo real. Definitivamente, - como diz Flix Guattari 12 - entramos na era da subjetividade maqunica, no de uma subjetividade reterritorializada, mas de uma subjetividade controlada pelas m- quinas: mdias, bancos de dados, a temporalidade dos computa- dores (tempo real), telecomunicaes. No se trata aqui de dizer que as mquinas tomaro o poder e dominaro o homem % a fico cientfica j fez essa previso e ela no se concretizou, no da forma como foi profetizada ou como o computador HAL 9000, de 2001 Uma odissia no espaol3, tentou impor a sua lgica coisificada de mquina. Mas de apenas constatar o fato de que, cada vez mais, e com maior intensidade, a nossa subjetividade est entrando em mquina: esta a era que Guattari classifica como era da idade da informtica planetria. Segundo Freeman Dyson, no h nenhum perigo concreto de que a inteligncia hu- mana venha a ser superada pela artificial, pois est continuar a ser uma ferramenta sob controle humano. 14 O perigo real reside no uso e na conformao que pode ser dada s mquinas abstratas (polticas, econmicas, cientficas, e outros)15 que podem agenci- ar a nossa conscincia e sensibilidade de forma danosa. 193 194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 o virtual como problema Segundo Jean Baudrillard, hoje no pensamos o virtual; so- mos pensados por ele. Baudrillard aborda a questo do virtual de forma bastante negativa. Segundo ele, no possvel imaginar- mos o quanto o virtual j transformou todas as representaes que temos do mundo. O virtual, na sua opinio, caracteriza-se pela eliminao da realidade, mas no s, pois tambm inclui o apagamento da imaginao do real, do poltico, do social "- no somente a realidade do tempo, mas a imaginao do passado e do futuro (a isso chamamos, em funo de uma espcie de humor negro, de "tempo real")."16 O virtual apresenta-se como uma iluso que perpassada e dominada pela entrada em cena da informao, pelo fim do pensa- mento com o surgimento da inteligncia artificial. Para esclarecer o seu pensamento, Baudrillard usa um exemplo bastante delicado, devido ao fato de estar situado ao longo do acontecimento mais assustador e mais incompreensvel de nossa histria moderna: a exterminao dos judeus nos campos de concentrao nazistas e os que negam a sua ocorrncia histrica, os chamados negacionistas. A postura negacionista absurda e aberrante, pois vai contra a realidade histrica e objetiva da exterminao. No tempo histrico os fatos aconteceram e as provas esto ao alcan- ce de qualquer um, que as queira investigar. Mas Baudrillard cha- ma a ateno para o fato de no estarmos mais no tempo histri- co; de agora em diante estamos no tempo real. No tempo real no h mais prova de nada. impossvel verificar a exterminao no tempo real. O negacionismo visto como um absurdo na sua pr- pria lgica, mas ajuda a esclarecer por meio do prprio absurdo o surgimento de uma outra dimenso: % paradoxalmente chamada tempo real, mas onde precisamen- te a realidade objetiva desaparece, no somente a do aconteci- mento presente, mas tambm a do acontecimento passado e a do futuro. Tudo se esgotando numa total simultaneidade que os atos a no acham sentidos, os efeitos no acham suas causas e a histria no pode mais a se refletir. 17 O tempo real visto por Baudrillard como um gnero de 14 Dyson, Freeman./nfinito em todas as direes. Traduo Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 342. 15 Deleuze, GiIles e Guattari, Flix. Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Traduo Peter P! Pelbart e Janice Caiafa. So Paulo: Editora 34, p. 227. 16 Baudrillard, Jean. Tela Total. Porto Alegre: Sulina, 1997, p. 73. 17 Ibidem, p. 73. A literatura e a virtualizao do texto literrio " Lvy, Pierre. O que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 18. buraco negro, onde nada penetra sem sofrer um esvaziamento de sua substncia. Os campos de exterminao - argumenta o fil- sofo- tornam-se virtuais e s tm existncia na tela do virtual. Todos os horrores decorrentes do Holocausto e os testemunhos da sua ocorrncia so lanados, apesar dos negativistas, apesar de ns, no que ele chama de abismo do virtual onde os acontecimen- tos ou os fatos s existem o tempo que existem e nada mais. A viso de Baudrillard em relao ao virtual altamente ctica e desencantada. Ele pressente no virtual a desestabilizao da verdade e a derrota do pensamento histrico e crtico. Com isso ele quer dizer, na verdade, que h o triunfo do tempo real sobre o presente, sobre o passado, sobre toda e qualquer forma de articulao lgica da realidade. O mesmo no pode ser dito de Pierre Lvy que busca nos seus trabalhos uma compreenso diferenciada do virtual. Lvy apresenta uma viso mais positiva, pois v no virtual a sua opo- sio ao atual. Fugindo ao senso comum o autor retira o concei- to de virtual da ordem da iluso, da ausncia de existncia. Des- ta forma, ele passa a ser entendido no como oposio ao real, mas ao atual. Vrtuahdade e atualidade so apenas duas manei- ras de ser diferente. A atualizao pertence esfera da soluo de um problema, inveno de uma soluo para um complexo problemtico; enquanto que a virtualizao pode ser entendida como o movimento inverso da atualizao, ou seja, ela est situ- ada no contexto da problematizao. Porm, no deve ser en- tendida como uma desrealizao (transformao de uma reali- dade num conjunto de possveis), mas como uma transformao de uma identidade, um deslocamento do "centro de gravidade ontolgico" do objeto considerado que, ao invs de se orientar para uma soluo (atualizao), "a entidade passa a encontrar sua consistncia essencial num campo problemtico". Virtualizar uma entidade qualquer deve ser entendido como encontrar uma questo geral qual ela se relaciona: consiste em fazer mover a entidade em direo a essa interrogao e em reorientar a atua- lidade de partida como resposta a uma questo particular. 18 Par- tindo desta conceituao, buscamos virtualizar a construo do sentido na narrativa da chamada ps-modernidade, pois enten- demos que o texto do romance no seu percurso do moderno para o ps-moderno se desterritorializou rumando na sua 195 196 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 virtualizao (problematizao) para uma ressurgncia da cultu- ra do texto. o virtual e suas relaes Devemos fazer aqui algumas observaes acerca de alguns conceitos como real e virtual, possvel e atual, atualizao e virtualizao. Considerando, inicialmente, a oposio entre real e virtual, no seu uso ordinrio, a palavra virtual utilizada para indicar ausncia de existncia, a no-materialidade de uma "reali- dade" tangvel. O real pertence ordem do tenho, o virtual est situado na ordem do ters, estando, dessa forma, circunscrito ao campo semntico da ordem da iluso (ideal, ilusrio, imaginado, imaginrio, irreal, quimrico, utpico, possvel). Esta compreen- so do virtual, produzida no mbito do senso comum, tem como maior conseqncia - advinda da ironia fcil desse pensamento - a produo de um entendimento enganoso e grosseiro da rela- o real-virtual e, conseqentemente, das diversas formas de virtualizao. Ainda que demasiado grosseiro para constituir uma teoria geral, essa maneira de enfocar a questo tem um fundo de verdade que se revelar bastante til, conforme poder ser cons- tatado mais adiante. A respeito das novas relaes pessoais e comerciais estabelecidas ou impostas pelas novas formas de vida mediada pela tecnologia digital e do virtual, Ellen Ullman escreve: Houve um tempo (ainda vivo na memria) em que "virtual" era uma palavra livre no idioma. Significava "quase verdadei- ro" ou "para todos os efeitos, mas no por completo. No de fato". A pessoa podia dizer: "Eu estava virtualmente feliz". Encontrava-se feliz de fato? No, porque junto com o "virtual- mente" havia um qu de falsidade, alguma coisa ausente, um estado inefvel de que a felicidade no era tanta assim. Ento, dizer "tenho uma empresa virtual" deveria significar que tenho uma empresa que no to real assim, algo prximo da reali- dade de uma empresa, mas sem algum elemento essencial. Outras pessoas, por exemplo. Entretanto, a palavra "virtual" j no vaga livre no idioma. Foi aprisionada pelas mquinas. Hoje "virtual" significa viver nesse lugar - que no to aqui assim - do computador e do A literatura e a virtualizao do texto literrio 19 Ulman, ElIen. Perto da mquina. Traduo Mrcio Grillo. So Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001, p. 120. 20 Hollanda, Aurlio Buarque de. Novo Aurlio Sculo XXI: Dicionrio da Lngua Portu- guesa - Dicionrio Eletrnico. Rio de Janeiro: Editora Nova FronteiralLexikon Informtica, 2000. 21 Lvy, Pierre. O que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p.IS. 22 Deleuze, Gilles. Diferena e repetio. Traduo Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.33S. 23lbdem, p. 339-340. software. A palavra conserva um qu de ausncia, daquilo que no real. Mas, de alguma forma, essa negao virou uma coisa boa. Ter vida efmera e vagar nesse lugar indefinvel que agora conhecemos como ciberespao considerado excelente. Os semideuses vivem ali. "Tenho uma empresa virtual" - ti- mo, maravilha, formidvel. 19 o vocbulo virtual na sua origem do latim escolstico virtuale significa aquilo que existe como faculdade, porm sem exerccio ou efeito atual. Suscetvel de se realizar; potencial. Diz- se do que est predeterminado e contm todas as condies es- senciais sua realizao. Ope-se, nesta acepo, idia de po- tencial e atuaPO . "O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, concretizao efetiva ou formal". 21 Exemplificando, a semente contm virtualmente a rvore. Em termos filosficos, e como vimos na acepo da palavra elencada acima, o virtual no se ope ao real, porm se coloca em total oposio ao atuaF2 . As categorias virtualidade e atualidade se configuram somente como dois modos de ser diferente. Conforme escreve Deleuze: o virtual possui uma plena realidade. Do virtual, preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonn- cia: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos", e simblicos sem serem fictcios. O virtual deve ser mesmo defi- nido como uma estrita parte do objeto real- como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e a mergulhasse como numa dimenso objetiva. 23 Deleuze traz luz a distino entre possvel e virtual, cha- mando a ateno para o perigo de se confundir o virtual com o possvel: Com efeito, o possvel ope-se ao real; o processo do possvel , pois, uma "realizao". O virtual, ao contrrio, no se ope ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu pro- cesso a atualizao. um erro ver nisso apenas uma disputa de palavras: trata-se da prpria existncia. Cada vez que colo- camos o problema em termos de possvel e de real somos for- ados a conceber a existncia como um surgimento bruto, ato puro, salto que se opera sempre atrs de nossas costas, subme- 197 198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tido lei do tudo ou nada. Que diferena pode haver entre o existente e o no existente, se o no existente j possvel, recolhido no conceito, tendo todas as caractersticas que o con- ceito lhe confere como possibilidade? A existncia a mesma que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a existncia no espao e no tempo, mas como meios indiferentes, sem que a produo da existncia se faa num espao e num tempo caractersticos. A diferena s pode ser ento o negativo determinado pelo conceito: seja a limitao dos possveis entre si para se realizarem, seja a oposio entre o possvel e a reali- dade do real. O virtual, ao contrrio, a caracterstica da Idia; a partir de sua realidade que a existncia produzida, e pro- duzida em conformidade com um tempo e um espao imanentes Idia. 24 Em segundo lugar, o possvel e o virtual se distinguem ainda porque um remete forma de identidade no conceito, ao passo que o outro designa uma multiplicidade pura na Idia, que ex- clui radicalmente o idntico como condio prvia. Enfim, na medida em que o possvel se prope "realizao", ele prprio concebido como a imagem do real, e o real como a semelhan- a do possvel,25 o possvel, como coloca Deleuze, exatamente igual ao real, j constitudo, porm caracteriza-se como um real fantasmtico, desrealizado, desprovido de existncia, que congrega um conjunto de possveis. Segundo a leitura que Lvy faz de Deleuze, "A realizao de um possvel no uma criao, no sen- tido pleno do termo, pois a criao implica tambm a produo inovadora de uma idia ou de uma forma".26 Sendo a diferena entre possvel e real puramente lgica. Para o narrador deA bibli- oteca de Babel, de Jorge Luis Borges, - em sua busca pelo livro que contivesse todos os livros - o possvel na sua relao com o real a prpria garantia de existncia de um objeto. "No me parece inverossmil que nalguma diviso do universo haja um li- vro total". Em nota a esta especulao ele afirma: Repito-o: basta que um livro seja possvel para que exista. So- mente est excludo o impossvel. Por exemplo: nenhum livro ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dvida, haja livros que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e ou- tros cuja estrutura corresponde de uma escada. 27 24 Ibdem, p. 335-336. 25 Ibid, p. 340. 26 Lvy, Pierre. o que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 16 27 Borges, Jorge Lus. "A biblioteca de Babel" In Fices. 6 edio. Traduo Carlos Nejar. So Paulo: Globo, 1995, p. 90. A literatura e a virtualizao do texto literrio 28 Ibidem. p.16. Na relao das oposies estabelecidas o virtual no se ope ao real, mas sim ao atual. O virtual se configura como um comple- xo problemtico: um n de tendncias ou foras que segue uma situao, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qual- quer, e que aponta para um processo de resoluo que se materi- aliza na atualizao. Desta forma, a virtualidade pode ser entendi- da como uma problemtica inerente a um ser, j a atualizao se caracteriza como a soluo, que no estava previamente enuncia- da, de um problema. Segundo Lvy a atualizao criao, "in- veno de uma forma a partir de uma configurao de foras e de finalidades".28 possvel apontar uma relao entre o ps-mo- derno e atualizao devido s caractersticas desta nova forma de sensibilidade e da atualizao? A resposta a esta pergunta afirma- tiva. Lido pela tica do virtual, o ps-moderno contm em si a virtualizao, que se presentifica sob a forma de problematizao - caracterstica que lhe imanente - e a atualizao, que se esta- belece como resposta s questes impostas pelo ps-moderno. Na relao entre possvel e real, vimos que o possvel o real desrealizado espera de uma dotao de realidade que o re- tire do limbo. O que toma o real semelhante ao possvel. Na cor- relao de foras entre virtual e atual no h nenhuma relao de similaridade, pois se o real anlogo ao possvel, o atual no guarda nenhuma relao de semelhana com o virtual, pois a sua funo responder a ele. A relao entre virtual e atual se configura da seguinte forma: o virtual se apresenta como problema e o atual como soluo para esse problema, resultando da a atualizao. Lvyescreve: Se a execuo de um programa informtico, puramente lgica, tem a ver com o par possvel/real, a interao entre humanos e sistemas informticos tem a ver com a dialtica do virtual e do atual. A montante, a redao de um programa, por exemplo, trata um problema de modo original. Cada equipe de programadores redefine e resolve diferentemente o problema ao qual con- frontada. A jusante, a atualizao do programa em situao de utilizao, por exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica certas competncias, faz emergir outros funcionamentos, de- sencadeia conflitos, desbloqueia situaes, instaura uma nova dinmica de colaborao ... O programa contm uma 199 200 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 virtualidade de mudana que o grupo - movido ele tambm por uma configurao dinmica de tropismos e coeres - atualiza de maneira mais ou menos inventiva. 29 29 Ibid, p.l7. o processo da virtualizao o processo da virtualizao se constri e pode ser definido justamente como um movimento na contramo da relao e do movimento que vai do virtual ao atual: atualizao. Pois, na eco- nomia da virtualizao a ordem dos fatores invertida, alterando substancialmente o produto. O ponto de partida agora a atuali- zao (uma "soluo") na direo de um problema, ou seja, cons- titui-se como uma passagem do atual em direo ao virtual, ge- rando dessa forma a virtualizao. Ao contrrio do possvel (rea- lizao, ocorrncia de um estado pr-definido) a virtualizao no uma desrealizao (a transformao de uma realidade num con- junto de possveis), mas uma mudana de identidade, "um deslo- camento do centro gravitacional ontolgico do objeto considera- do".30 Em lugar de deixar-se conhecer de maneira exata, de ex- por-se com preciso por meio de sua atualidade, ou seja, pelo vis da soluo, a entidade transita para um campo problemtico, onde descobre sua consistncia essencial. 31 Retomando, a virtualizao de uma entidade qualquer se funda no movimento de inveno de um problema geral qual ela esteja relacionada, em fazer transitar o objeto em direo a essa questo e redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questo particular. O virtual tem para si a "realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a realidade de um problema a ser resolvido; o problema que orien- ta, condiciona, engendra as solues, mas estas no se asseme- lham s condies do problema". 32 Para exemplificar o processo da virtualizao Lvy utiliza a transformao do espao de trabalho na era digital: Tomemos o caso, muito contemporneo, da "virtualizao" de uma empresa. A organizao clssica rene seus empregados no mesmo prdio ou num conjunto de departamentos. Cada empregado ocupa um posto de trabalho, precisamente situado e seu livro de ponto especifica os horrios de trabalho. Uma empresa virtual, em troca, serve-se principalmente de teletrabalho; tende a substituir a presena fsica de seus empre- 30 Ibid, p.l7. 31 Ibid, p.18. 32 Deleuze, Gilles. Diferena e repetio. Traduo Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.341. A literatura e a virtualizao do texto literrio 201 JJ Lvy, Pierre. O que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 18. gados nos mesmos locais pela participao numa rede de co- municao eletrnica e pelo uso de recursos e programas que favorecem a cooperao. Assim, a virtualizao da empresa consiste, sobretudo, em fazer das coordenadas espao-tempo- rais do trabalho um problema sempre repensado e no uma soluo estvel. O centro de gravidade da organizao no mais um conjunto de departamentos, de postos de trabalho e livros de ponto, mais um processo de coordenao que redistribui sempre diferentemente as coordenadas espao-tem- porais da coletividade de trabalho e de cada um dos seus mem- bros em funo de diversas exigncias. 33 Constatamos a a ocorrncia da desterritorializao do traba- lho, fato este que tem gerado diversas controvrsias no que diz respeito s rpidas transformaes tecnolgicas que os setores pro- dutivos tm sofrido e as interferncias e mudanas que estas trans- formaes impem organizao do trabalho e aos trabalhadores. A autora e engenheira de software norte-americana Ellen Ullman descreve com perfeio, em seu ensaio autobiogrfico, o que viver essa deriva da empresa virtual e o quanto ela pode gerar de assombro: Mas a vida virtual das empresas tecnolgicas exige algo alm da inspirao. O que se mostra indispensvel passar para o resto do mundo uma idia de existncia real. Devemos parecer uma empresa no sentido habitual da palavra, com a sala cheia daquele zumbido empreendedor. No h nada mais estranho do que estar de cala moletom suja e atender ao telefone dizendo "Ellen Ullman aqui" com voz madura e eficiente. como pro- jetar-me (sic) num outro universo, onde visto um terninho e meu c a ~ e l o est limpo, algum lugar que no tem nada a ver com o mundo que habito de moletom. Enquanto falo ao telefo- ne - com um cliente ou diretor -, tenho a conscincia de que coloquei a voz de maneira correta e de que vem como desejei ser vista: uma mulher inteligente e empreendedora num aparta- mento requintado de paredes de tijolo. Desligar ento quase doloroso. Clique. Volto a mim mesma: criatura a nadar sozi- nha no mar do tempo. Alm de certa entonao de voz, a fachada da realidade construda totalmente eletrnica - e, portanto, virtualizada mais uma vez. Endereo na internet com nome da empresa; fax com nome da empresa saindo do outro lado; secretria eletr- 202 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 nica que atende com voz de recepcionista, no a nossa; nmero de telefone terminado em zero alguma coisa, para pensarem que telefonaram para nossa linha privada, e no para a nica que temos; timbres feitos por impressora a laser; recibos pro- duzidos em Excel, Quattro Pro ou QuickBooks - tudo isso e mais alguma coisa para criar a iluso necessria e inequvoca de existncia padro. meio assustador pensar na facilidade que fazer tudo isso. 34 A desmaterializao dos espaos tradicionais se corporifica sob uma nova forma de localizao no ciberespao: o endereo eletrnico, virtual. A desterritorializao total ocorre com a con- figurao do pontocom: Agora at Wall Street quer deixar Wall Street. Alguns meses depois voltei de Nova York, li um artigo no Wall Street Joumal: a Bolsa de Valores de Nova York precisa de mais espao para equipamentos eletrnicos e j fala em sair da cidade. Sero mais lojas fechadas em Wall Street, na verdadeira Wall Street, o lugar que um dia foi o sustentculo da cidade. Imaginei como se chamaria depois da mudana: www.wallstreet.com? Mas por que a bolsa no deveria se mudar? Por que os profis- sionais da rea no deveriam viver como os diretores, fazendo telecomutao de suas lindas casas em Connecticut? A Nasdaq apenas um grande sistema de informaes. 35 Ento, por que no a Bolsa de Valores de Nova York? O prdio na Wall com a Broad, na esquina do nosso, poderia talvez se transformar em atrao para turistas. Talvez alguns corretores de carne e osso, pudessem ficar ali com suas camisas de corretor e gritar pelo microfone para transmisso de identificao de voz no siste- ma. Por que no? As cidades parecem ter se transformado em franquias de parque de diverses .36 As grandes lojas da Times Square so exatamente as mesmas Virgin, Gap, e Disney da Union Square, em So Francisco, da Praa Catalunha, em Barcelona, ou do Champs lyses. Os mesmos Mickey Mouses, Levis e hamburguesas. Ento, por que no grandes lojas da Bolsa de Nova York?37 A percepo da invaso do campo do real pelo virtual um sentimento que paira sobre todos os que se dispem a uma olhada rpida aos acontecimentos a sua volta. Em meio a tanta velocida- H Ulman, Ellen. Perto da mquina. Traduo Mrcio Grillo. So Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001, p. 123. " Grifo nosso '" Grifo nosso. 37 Ulman, Ellen. Perto da mquina. Traduo Mrcio Grillo. So Paulo: Conrad Editorado Brasil; 2001, p. 71. A literatura e a virtualizao do texto literrio 38 Auster, Paul e Wang, Wayne. Sem Flego. Produo: Peter Newman/lnteral Production em associao com NDFIEURO SPACE "BLUE IN THE FACE" com Harvey Keitel - Madona - Michel J. Fox - Jim Jarmusch - Lou Reed - Roseanne - Mira Sorvino - Lily Tomlin . Elenco: Heidi Levitt, figurino: Claudia Brown, Di-retor de Fotografia: Adam Holender . A.S.C, editor: Christopher Tellefsen. 1995, tempo aproximado 89 minutos, EUA. 39 Jean-Claude Carriere em entrevista a Catherine David in David, Catherine et al. Entrevistas sobre () fim dos tempos. Traduo de Jos Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. de preciso diminuir a marcha e andar mais devagar. Assim como o personagem criado por Paul Auster para o filme Sem Flego 38 , Auggie Wren. Wren, ao mostrar um lbum de fotografias para Paul Benjamin, e logo aps este reclamar que eram sempre as mesmas fotos tiradas de um nico ngulo e de um mesmo lugar, responde para Benjamin "V mais devagar ou voc no entender nada". Guardadas as devidas propores, esta a mesma postura adotada por Jean-Claude Carriere em seu elogio da lentido: "O principal talvez no ter um relgio digital, domar cada dia, to- mar o seu tempo em vez de ser tomado por ele". 39 Baudrillard, tomado pela sensao de canibalismo do real pelo virtual, alerta para a disneylandizao dos espaos comerci- ais e industriais produtivos invadidos pelo virtual apontada por Ulman: No comeo dos anos 80, quando a metalrgica Lorena entrou em crise definitiva, os poderes pblicos tiveram a idia de ate- nuar esse desabamento criando um parque europeu do lazer, parque de temtica "inteligente", destinado a dar flego re- gio: foi chamado de SchtroumpfIand. O diretor da siderurgia defunta tornou-se diretor do parque de atraes, e os metalrgicos desempregados foram recontratados como "Schtroumpfmen" no quadro desse novo SchtroumpfIand. In- felizmente, quando o parque teve, por razes diversas, de fe- char as portas, os ex-metalrgicos convertidos em "Schtroumpfmen" acharam-se desempregados. Destino Som- brio que, depois de ter feito as vtimas reais do trabalho gerou os fantasmas do lazer, e finalmente os desempregados de am- bos. Mas SchtroumpfIand era apenas uma miniatura. O empreendi- mento Disney tem outra dimenso. Para se ter uma idia, preciso saber que Disney "Illimited", depois de ter anexado uma das maiores redes de televiso americana, est prestes a comprar a rua 42, em Nova York, a parte "quente" da rua 42, para fazer uma zona de atrao ertica, sem mexer em nada, ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um palco sagrado da pornografia em sucursal da Disneyworld. Transformar os empresrios da pornografia, as prostitutas, como os metalrgicos de SchtroumpfIand, em figurantes de seu prprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados. Como foi que o general Schwarzkopf, estrategista da guerra 203 204 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 do Golfo, comemorou a sua "vitria"? Com uma gigantesca party na Disneyworld. Digna concluso, com essa alegria co- letiva no templo do imaginrio para uma guerra virtua1. 4o Desterritorializao e identidade A questo da desterritorializao do trabalho e a perda da identidade so os temas principais do filme A rede 41 , filme que segue a tradio das produes de entretenimento no sistema dos grandes estdios hollywoodianos. Em A rede a personagem prin- cipal, ngela Bennett - uma experta em encontrar defeitos (bugs) em programas de computadores, que tem o seu escritrio de tra- balho em sua residncia - aps receber de um colega de trabalho um arquivo contendo um programa de computador se v no meio de uma conspirao. A conspirao envolve a segurana de siste- mas de informao do governo americano e uma grande corporao que pretender monopolizar o mercado de programas de segurana informatizada do pas. Como Bennett tem acesso ao plano da conspirao, por meio de um disquete de computador, que supostamente conteria um programa defeituoso enviado por seu amigo, a corporao busca elimin-la substituindo a sua identidade pela identidade de uma criminosa perigosa, procurada pela polcia. Devido ao fato de ngela Bennett viver totalmente em funo de seu trabalho - sempre em casa conectada Internet -, desterritorializada e virtualizada, apenas mantendo vnculos mnimos com o mundo real e sem existncia exterior at mesmo para a vizinhana, no consegue provar a ningum, quando confrontada pela polcia, que ela quem diz ser. Isto ocorre devido ao fato de nem mesmo os seus vizinhos mais prximos nunca a terem visto, ou de a terem visto muito poucas vezes para que pudessem fixar uma identifica- o segura da personagem. A nica pessoa que poderia provar que ela quem diz ser sua me. Porm, essa sofre do mal de Alzheimer, ou seja, no tem memria (funo cognitiva), melhor dizendo portadora de uma memria em runa, num processo crescente de "desconexo cortical"42. A me de Bennett no capaz de estabelecer a relao dialtica entre recordao e esque- cimento, principal caracterstica da memria 43 e, dessa forma, garantir o reconhecimento e a confirmao da identidade da per- '" Baudrillard, Jean. "Disneyworld Company" in Tela Total. Traduo Juremir Machado da Silva Porto Alegre: Sulina, 1997,p.l22. 41 Winkler, Irwin. A rede (The Net). Sandra B ullock, Jeremy Northam, Denis Miller Rot, John Brancato e Michael Ferris. Produzido por Irwin Winkler e Rob Cowan. Cor. Aprox. 105 minutos. Aventura. Copyright 1995 Columbia Pictures Industries Inc. Distribuio Columbia Tristar Home Vdeo, LK-TEL Vdeo. Sony Music Enterteinement (Brasil) Ind. e Com. Ltda (Distribuio Exclusiva). 4'Leibing, Annette. "O homem sozinho numa estao: a doena de Alzheimer e as prticas do esquecimento no Brasil". In Leibing, Annettee Benninghoff-LhI, Sibylle (Orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o pas sem memria. So Paulo: Editora Mandarim, 2001. 43 Humberto Eco em entrevista a Catherine David in David, Catherine et a!. Entrevistas sobre o fim dos tempos. Traduo de Jos Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. A literatura e a virtualizao do texto literrio 205 44 Winkler, Irwin. A rede (The Net). Sandra Bullock, Jeremy Northam, Denis Miller Rot, John Brancato e Michael Ferris. Produzido por Irwin Winkler e Rob Cowan. Cor. Aprox. 105 minutos. Aventura. Copyright 1995 Columbia Pictures Industries Inc. Distribuio Columbia Tristar Home Vdeo, LK-TEL Vdeo. Sony Music Enterteinement (Brasil) Ind. e Com. Ltda (Distribuio Exclusiva). 45 Lvy, Pierre. O que () virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 25. 46 Integrante da Escola de Crtica Alem juntamente com Erich Auerbach, Leo Spitzer e Frederic Gundolf. A crtica alem, inicialmente em 1915, no interior da universidade, depois em processo de imigrao sob o regime nazista, produziu trabalhos fundamen- tais que, por seu mtodo e esprito de sntese - herdeiros de vasta tradio - renovaram o panorama dos estudos literrios. sonagem. No filme, identidade est diretamente ligada memria, que estacionada em bancos de dados oficiais tornou-se um objeto frgil e passvel de todo o tipo de ataque digital, podendo, por essa via, vir a ser alterada a qualquer momento conforme adverte ngela Bennett: Pense. O mundo todo est dentro de um computador ... Tudo. A sua carteira de motorista, registro da Previdncia ... Carto de crdito, histrico mdico, est tudo l ... Tudo est l ... Tudo est guardado numa sombra eletrnica que todos temos ... Im- plorando para ser alterada. Eles fizeram isso comigo e faro com voc tambm. 44 Ao longo de toda a trama da narrativa de A Rede a persona- gem busca recuperar a sua identidade roubada e provar a sua ino- cncia em crimes que no havia cometido. A questo da identida- de um dos temas que passou a dominar a cena das discusses crticas no final do sculo XX, impulsionada pelo avano das no- vas tecnologias de comunicao e conseqente desenvolvimento do ciberespao, lugar onde as identidades se diluem e se transfor- mam de maneira vertiginosa. Pierre Lvy escreve: As coisas s tm limites claros no real. A virtualizao, passa- gem problemtica, deslocamento do ser para a questo, algo que necessariamente pe em causa a identidade clssica, pensa- mento apoiado em definies, determinaes, excluses, inclu- ses e terceiros excludos. Por isso a virtualizao sempre heterognese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Convm evidentemente no confundir a heterognese com seu contrrio prximo e ameaador, sua inimiga, a alienao, que eu caracterizaria como reificao, reduo coisa, ao "real". 45 No mbito da crtica literria, entre tantas, h algumas ques- tes que apontamos como exemplos de processos de virtualizao do entendimento da literatura: a primeira delas se refere ao crtico Ernst-Robert Curtius 46 e a sua proposio de procedimento crti- co de apagamento de todas as fronteiras temporais e espaciais, que configuram o impedimento da proliferao de uma viso universalista no estudo crtico-literrio. Ainda que Curtius tenha 206 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 elaborado as bases do seu procedimento crtico tendo em mente a preservao e guarda da literatura europia, numa clara manifes- tao do mais puro eurocentrismo, ignorando at mesmo a litera- tura norte-americana, no momento em que o mundo j havia se fragmentado por causa do avano totalitarista do nacional socia- lismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial. 47 Ao propor a eliminao das fronteiras temporais e espaciais, Curtius virtualizou a questo da crtica e da teoria literria, em sua poca, assim como Albert Bguin 48 que via com grande desconfiana as categorias li- terrias' os estilos, as zonas geogrficas: "A fixao da vida do es- prito em categorias estveis no benfica inteligncia dessa vida". A segunda questo diz respeito ao romance Iracema, de Jos de Alencar. O romance de Alencar considerado uma das obras mais importantes da literatura brasileira, e responde pela representao da construo da nacionalidade brasileira em sua narrativa. Esta uma questo que coloca o romance numa posi- o de acomodao na srie literria brasileira, representada pelo Romantismo e sua realizao no Brasil. Analisado pelo vis da virtualizao possvel reinvestir o romance de uma problematizao que o recoloca na cena da crtica no como obra cannica da literatura brasileira, mas como obra que carrega con- sigo questes que no foram tocadas, e por isso mesmo, no fo- ram resolvidas ao longo da narrativa, devido ao fato de no se configurarem como preocupao do autor, poca em que foi escrito o romance, ou de a figura feminina e os problemas que suscita no encontrar ecos substanciais, no crculo de leitores e intelectuais do sculo XIX, relativos sua condio perante a crtica. Uma das questes em Iracema que validam uma leitura pelo processo de anlise da virtualizao refere-se identidade da personagem situada no mbito da expresso objetiva da natureza. Como conseqncia desta opo na elaborao das caractersti- cas da personagem se cria condies para a sua dominao pelo colonizador branco e sua conseqente perda de identidade. Desta forma, teremos a sua destruio em favor da manuteno do status quo do branco dominador que, para a personagem, no seu primei- ro encontro, aparece como sedutor e depois como "marido". O processo de esvaziamento, perda e destruio da identi- dade de Iracema, levam-na a romper com as leis de seu povo, da prpria natureza, e instaura uma desordem absoluta, restando 47 Tadi, Jean-Yves. A crtica literria no sculo XX. Traduo Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992, p. 53 48 Albert Bguin (1901-1957) integrante da escola de Genebra juntamente com Marcel Raymond, George Poulet. Jean Rousset e Jean Starobinski; fazia a chamada crtica da conscincia cujas bases de trabalho critico seguiam o itinerrio do sentido e buscavam dar, com esse mesmo movimento, sentido literatura, ao mundo e a ns mesmos. A literatura e a virtualizao do texto literrio 49Balandier, Georges. A desordem: elogio do movi menta. Traduo de Susana Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 50Lvy, Pierre. O que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 25 51 Silva, Anazildo Vasconcelos da. Semiotizao literria do discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984. 52Maranho,Haroldo. Memorial do fim: a morte de machado de Assis. So Paulo: Marco Zero, 1991. 53 Deleuze, GilIes e Guattari. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. VaI. 1. Traduo Aurlio Guerra Neto e Clia Pinto Costa. So Paulo: Editora 34, la Reimpresso, 1996, p. 25. personagem a fuga. A fuga o movimento49 que encaminha a personagem para a recomposio da ordem, ainda que ela mesma no saiba disso. Quanto mais Iracema se afasta de seu povo mais se aproxima do abismo no qual ir cair. Com a quebra dos laos tribais e familiares, a personagem lanada em um no-lugar, um territrio vazio. Desterritorializada resta personagem apenas o sofrimento e a morte. Iracema passa a ter uma existncia virtualizada (problematizada e no-presencial), pois a sucesso de seus atos a transforma em um problema para a sua tribo; pesa sobre a personagem uma fatalidade: "O guerreiro que possusse a virgem de Tup morreria", e, conseqentemente, a sacerdotisa, pela quebra de seus votos. A virtualizao se configura na passagem do ser para a ques- to que pe em demanda a identidade clssica, idia baseada em definies, determinaes, excluses, incluses e terceiros exclu- dos. 50 A questo do no-lugar se adequa muito bem ao caso de Iracema, pois diferentemente do limbo que a colocaria no reino do possvel-j que limbo significa esquecimento, e o que es- quecido est desrealizado e, a qualquer momento, pode ser lem- brado - garantindo, desta forma, a sua possibilidade de sobrevi- vncia. O no-lugar no oferece condies de sobrevivncia ao personagem, pois este se encontra em total desconformidade com o seu mundo. A perda da identidade ser cobrada pelo espao e todas as suas convenes sociais, no momento de imposio da sua lgica narrativa; como conseqncia da imposio da lgica do espao, a nica sada para o personagem est na sua morte. 51 O conceito de no-lugar est relacionado a outro conceito que o de no-presena. Com o exemplo de Iracema, inserimos a ques- to do no estar presente ou da virtualizao como xodo. Outra obra na qual podemos exemplificar a ocorrncia da virtualizao como forma problematizadora Memorial do fim: a morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranho 52 Memorial do fim integra a categoria de escritura que pode ser classificada como rizomorfa 53 e hipertextual. O hipertexto que a obra traz consigo construdo por fragmentos da fico machadiana e por elementos culturais e histricos do mundo no qual essa obra este- ve e est imersa. Memorial do fim virtualiza pontos importantes da literatura machadiana e da leitura da obra machadiana, do pr- prio fazer literrio e das relaes do autor com as figuras histri- 207 208 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 cas do seu tempo, atualizando-as. Tomando a atualizao como criao e inveno de uma forma, partindo de uma estruturao dinmica de foras e de finalidades, possvel afirmar que o ro- mance na ps-modernidade produz e introduz qualidades novas na narrativa, produz uma transformao das idias, um verdadei- ro devir que realimenta o virtual, enquanto fora problematizadora. 54 Questes da mesma ordem aparecem no ro- mance A laranjeira, de Carlos Fuentes. A Laranjeira formada por cinco novelas, frutos de uma mesma rvore, que simbolicamente significa a fecundidade para vrios povos e est intimamente ligada histria da conquista do continente americano e formao do imaginrio dos espanhis conquistadores e dos povos conquistados. A narrativa de A Laranjeira bastante sedutora, apesar de carregar consigo o tema da morte como fio condutor de suas cin- co novelas. As duas margens o ttulo da primeira das cinco no- velas que narrada por Jernimo de Aguilar, espanhol que parti- cipou da Conquista da Amrica como lngua (intrprete castelhano/ nhuatle) de Hernn Corts. Jernimo de Aguilar, machadianamente, faz um balano amargo da grande empresa martima espanhola e das traies dos conquistadores e dos con- quistados. O narrador de As duas Margens, a mais importante das cinco novelas, ao longo de sua narrativa toca em questes funda- mentais da cultura. Com a sua autoridade de morto ele passeia pela crnica his- trica, por uma discusso sobre o uso da lngua como instrumento de dominao e traio, levantando questes acerca da validade da narrativa e sobre a moralidade do conquistador e do conquistado. Histria e fico se misturam ao longo das cinco novelas, sempre mediadas por um narrador morto, ou que logo estar morto, como ocorre ao personagem Vince Valera, narrador de Apolo e as putas. As putas so sete ans que trabalham para uma cafetina conhecida como Branca de Neve, que no sabem o que fazer com seu cliente morto em pleno mar, durante uma orgia sexual, num caque que no sabem conduzir e sem comida. Em meio a essa situao tragicmica, s o que lhes resta, para resolver o proble- ma de comida, usar o pnis de Vince Valera como isca para pescar. Enquanto se deteriora, Valera pode perceber a verdadeira ,. Lima, Rogrio. O dado e o bvio: a significao no romance da ps-modernidade. Braslia: Editora Universidade de BraslialUniversa, 1998. A literatura e a virtualizao do texto literrio alma dessas mulheres do Mxico, mas no a si prprio. Ele no sabe o que representa, e nem pode saber verdadeiramente quem , pois como morto est impedido de olhar-se no espelho. Em Os filhos do Conquistador h um embate cido entre os dois filhos de Corts: Martin I, filho do conquistador com espa- nhola Juana de Zfiga, e Martin 11, com a ndia Malinche. Num dilogo longo, provocativo e cheio de rancor aparecem as contra- dies da Conquista, as traies da Coroa a Corts e o menospre- zo pelos filhos de espanhis nascidos na Amrica. A morte apare- ce como espetculo e o sentimento dominante o de nostalgia de " Numncia, antiga cidade da um pas que no chegou a nascer. Espanha (a modema Sria). Em As duas Numncias 55 o tema da narrativa e da verdade da histria aflora, a dualidade surge como problema, o duplo se apresenta como uma questo que atormenta filosoficamente o narrador. A narrativa discutida como uma inveno que satisfaz a curiosidade daquele que no consegue saber o que se passa alm dos muros da cidade sitiada. O espelhamento e o estilhaamento do eu e da narrativa so temas caros em As duas Numncias. A ltima novelaAs duas Amricas fala de um paraso des- coberto por Colombo, que nele permaneceu e se estabeleceu, lanando apenas uma garrafa ao mar com a sua descrio e loca- lizao, com a finalidade de dar conta da sua descoberta Coroa espanhola. Colombo permanece no seu paraso durante anos, at que finalmente chegam os japoneses e suas grandes corporaes e globalizam a Amrica, transformando-a em um no-lugar, num grande parque de diverses do turismo interna- cional, tendo Colombo como seu testa-de-ferro e gerente. O destino da Amrica na viso de Carlos Fuentes extremamente irnico e trgico, pois na busca de sua identidade no h espelho que lhe sirva para lhe mostrar quem ela verdadeiramente. Fuentes se comporta como o personagem Polbio, narrador de As duas Numncias, que imagina o que se passa dentro da cida- de cercada para, perversamente, diz-lo ao general romano con- quistado. Imaginar e narrar a Amrica fundamental. Esse ges- to perverso, mas tambm caridoso, pois sem a fico no saberamos o que aconteceu Amrica. Lvy chama ateno para o fato de que: Fazer de uma coero pesadamente atual (a da hora e da geo- 209 210 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 grafia, no caso) uma varivel contingente tem a ver claramen- te com remontar o inventivo de uma "soluo" efetiva em di- reo a uma problemtica, e, portanto, com a virtualizao ( ... ). Era, portanto, previsvel encontrar a desterritorializao, a sa- da da "presena", do "agora" e do "isto" como uma das vias rgias da virtualizao. 56 Assim como Albert Bguin via com grande desconfiana a fixao de categorias literrias, estilos ou zonas geogrficas como ao no benfica inteligncia dessa vida, e por este motivo pro- punha a eliminao destes entraves conceituais, o ps-moderno impe s categorias histria e fico o mesmo que o virtual opera em relao a espao e tempo, ou seja, transforma-as em um vari- vel contingente que remonta uma "soluo", que remete a uma problematizao da forma de narrar na ps-modernidade e dos elementos que so motivadores da fico ps-moderna, sendo, por esse motivo, uma virtualizao, rigorosamente nos padres que foram definidos anteriormente. Vetores de virtualizao A literatura o campo do virtual e da virtualizao por ex- celncia e so os seus representantes modernos, entre tantos, Jor- ge Lus Borges, com seu Pierre Menard autor do Quixote, Tlon Uqbar Orbius Tertius, Franz Kafka, com a sua Metamoifose, James Joyce, com o Ulisses. O virtual irrompe na cena literria por con- ta do no-lugar da literatura, do nomadismo que ela incorpora ao migrar de um leitor para outro, de uma poca para outra, de um significado para outro. Por mais que parea estranho fazermos tal afirmativa a literatura, a nosso ver, no tem a existncia fsica que o objeto livro tenta lhe conferir. Enquanto livro, a literatura no tem existncia, pois o livro no passa de um objeto, "um amonto- ado mudo de palavras estreis, o que h de mais insignificante no mundo", conforme avalia Maurice Blanchot57 ,jazendo, s vezes, empoeirado em alguma prateleira de alguma biblioteca. A realizao da literatura s concretizada por intermdio da leitura, que, por sua vez, se processa num no-lugar - lugar virtual, problematizador. Referimo-nos aqui no a um espao fsi- co e material determinado onde possvel localizar o ato da leitu- 56 Lvy, Pierre. o que o virtual. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleo Trans) p. 21 57 B lancho!, Maurice. O espao literrio. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 13. A literatura e a virtualizao do texto literrio 211 58 Banhes, Roland. "Escrever a leitura" in O Rumor da lngua. Traduo Mario Laranjeira. So Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42. '9 Mcluhan, Marshall. A galxia de Gutenberg: a formao do homem tipo- grfico. Traduo de Lenidas Gontijo e Ansio Teixeira. So Paulo: Cia. Editora Nacional, Editora da USP, 1972. 00 Barthes, Roland. "Escrever a leitura" in O Rumor da lngua. Traduo Mario Laranjeira. So Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42. 61 Wachowski,Andye WacIDwski, Larry . Matrix. Cor. EUA. Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishbume, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Joe Pantoliano, 1999. 136 minutos. ra. Esse espao pode conter o corpo do leitor, mas no garante que o leitor, propriamente dito, esteja contido nele. Pois, de modo algum, possvel afirmar que esse espao contenha o leitor, a literatura e sua virtualidade (a leitura enquanto ato problematizador). A questo : em que ponto da conexo leitor- obra ocorre a realizao da leitura e da literatura? Barthes - ques- tionando a localizao da letra - afirma que a leitura resulta de formas transindividuais: as combinaes produzidas pela letra do texto nunca so - no importando a atitude que seja tomada- anrquicas; "elas so sempre tomadas (extradas e inseridas) den- tro de certos cdigos, certas lnguas, certas listas de estereti- pOS".58 possvel afirmar que a realizao de um autor se d em sua obra, mas permanece a questo onde se dar a realizao da obra? Na sua virtualidade e na virtualidade da sua leitura. A reproduo tcnica do livro proporcionada pela Galxia de Gutemberg 59 permitiu a disseminao da obra de arte literria e do objeto livro mundo a fora, mas no garantiu a realizao da leitura e, conseqentemente, da literatura. Pois, como vimos ante- riormente, a literatura s se realiza no ato da leitura, o que exige contato fsico com o objeto livro. No ocorrendo esse contato no h literatura, somente a persistncia do objeto. Barthes escreve: Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, no apenas pedir e mostrar que podemos interpret-lo livremente; princi- palmente, e muito mais radicalmente, levar a conhecer que no h verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verda- de ldica; e ainda mais, o jogo no deve ser entendido como uma distrao, mas como um trabalho - do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler trabalhar o nosso corpo (sabe-se desde a psicanlise que o corpo excede em muito nossa memria e nossa conscincia) para o apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamaltada das frases. 60 o livro somente o meio, a porta de entrada para a virtualidade da literatura. Funciona como as plulas vermelha e azul ofertada por Morpheus ao personagem Neo no filme MatriX'1 , que colocam para o personagem o problema da escolha. Uma vez aberto o livro possvel ter acesso a uma "verdade ficcional" que, 212 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 no retorno da leitura, faz com que lidemos com a realidade de maneira alterada, assim como a personagem Clair Torneur, em At o fim do mundo 62 , aps ser curada do vcio das imagens. Aqui introduzimos a seguinte questo: existe a possibilidade da fundao de uma pertinncia da leitura? Qual a funo do desejo no estabelecimento dos protocolos de leitura? possvel uma rela- o recalcada entre o leitor e o livro? Qual o lugar do sujeito na cena da leitura na era do virtual? O seu lugar so todos os lugares escrevveis: a deriva, as multiplicidades rizomticas 63 , o virtual. 62 Wenders, Wim. At o fim do mundo. Majestic Films. Produo: Jonathan Taplin e Anatole Dauman. Distribuidor: Top Tap Horne Vdeo. Willian Hurt - Solveig Dommartin - Sam Neill - Max Von Sydow - Rdiger Vogler - Emie Dingo - Jean Moreau - Fotografia: Robby Mller. Msica: Graerne Revell. Edio: Peter Przygodda. 1990. 6' Deleuze, Gilles e Guattari. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Traduo Aurlio Guerra Neto e Clia Pinto Costa. So Paulo: Editora 34, la Reimpresso, 1996, p. 16. A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais Ana Cludia Viegas (UERJ / PU C-Rio) 213 As interseces entre literatura e informtica suscitam di- versas questes tericas, no necessariamente inditas, mas redimensionadas pela reconfigurao do circuito de produo, circulao e consumo da escrita pela internet: intercruzamento das figuras do leitor e do autor, atravs do modo de leitura hipertextual e das prticas de criao coletiva de textos; discusso das noes de autor e obra, a partir da disseminao da colagem, montagem, apropriao e recriao como processos de criao artstica, dando-se mais um passo no deslocamento da aura da obra de arte; delicadas questes sobre a autoria e seus direitos jurdicos de propriedade sobre o texto, cuja legislao necessita revises e atualizaes, de acordo com esse novo modo de circu- lao do texto literrio; redefinio dos critrios de atribuio de valor ao texto literrio, dada a sua circulao em meio a uma multiplicidade de tipos de textos, imagens e sons. Pensar as mudanas sociais trazidas pelos novos meios im- plica no pens-los como fontes de inovaes em si, mas, sim, a interao entre essas novas prticas de comunicao e as transfor- maes sociais. Ou seja: deslocar a anlise dos meios at as medi- aes sociais (Martn-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em seu clssico texto sobre a "reprodutibilidade tcnica", aponta para a historicidade tanto dos valores estticos como da percepo humana, indicando que novos meios significam transformaes nos corpos, conscincia e aes humanas, e no somente novas formas de expresso. Na virada do sculo XX para o XXI, a articulao dos cir- 214 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 cuitos de produo, transmisso e recepo da literatura com ou- tras esferas da mdia e a apropriao de recursos expressivos des- tas pelos textos literrios lanam novos desafios para essa prtica tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje hibridizada com gneros no-literrios e meios de comunicao audiovisuais. Afinal, a difuso desses meios, sobretudo a televiso a partir dos anos 1950, e, j no final da dcada de 1970, os com- putadores, marcaria um novo limite nas transformaes das re- presentaes e dos saberes. Para autores como Pierre Lvy, vive- ramos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configurao tcnica, "um novo estilo de humanidade inventa- do" (Lvy 1993: 17). Uma concepo dinmica de leitura embaralha as funes de leitor e autor, na medida em que aquele, na posio de navega- dor, edita o texto que l, participando da estruturao do hipertexto, criando novas ligaes. O questionamento da noo de identida- de autoral vista como uma subjetividade integrada, responsvel pela doao de sentido ao texto, tambm encontra eco na leitura- escrita hipertextual, na qual a condio do texto singular, propri- edade de um autor nico, cede lugar ao texto em constante trans- formao pela participao das mltiplas vozes autorais. A conexo em rede permite ao internauta navegar atravs de sites e links diversos, fazendo da leitura da tela um deslizamento entre superfcies, acompanhado da montagem fragmentria de novos textos, num processo semelhante ao ato de "zapear" entre imagens de diferentes canais de tev. Trata-se de duas experinci- as cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimenso corprea, sensorial identificada como tpica da modernidade por autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, ao tratarem, res- pectivamente, da caracterizao do homem da metrpole e da "experincia do choque". A base psicolgica do tipo metropolitano de individualida- de consiste, segundo Simmel, na intensificao dos estmulos ner- vosos, resultante da alterao brusca e ininterrupta entre estmu- los exteriores e interiores. Esses estmulos contrastantes, rpidos, concentrados e em constante mudana levam atitude blas, cuja essncia consiste no embotamento do poder de discriminar. "O significado e valores diferenciais das coisas, e da as prprias coi- sas, so experimentados como destitudos de substncia. Elas apa- A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais recem pessoa blas num tom uniformemente plano e fosco; ob- jeto algum merece preferncia sobre outro." (Simmel 1979: 16). As diferenas qualitativas se traduzem pela quantidade, dentro da "filosofia do dinheiro" (Simmel 1978), o maior dos niveladores, pois expressa todas as diferenas qualitativas das coisas em ter- mos de "quanto?". Ao analisar o tema da multido em Baudelaire, Benjamin define como "se conquista a sensao da modernidade: a dissolu- o da aura atravs da 'experincia' do choque" (Benjamin 1975: 70). A morte da aura na obra de arte nos fala, mais do que da arte, dessa nova percepo, dessa nova sensibilidade das massas, a da aproximao, mesmo das coisas mais longnquas e sagradas, com a ajuda das tcnicas. Quando Benjamin elege o cinema como o cenrio privilegiado da ateno distrada e fragmentada, sintoma de transformaes profundas nas estruturas perceptivas, no se trata de um otimismo tecnolgico ou da crena no progresso, mas de um modo de pensar as transformaes da experincia que o tornam um pioneiro, ao "vislumbrar a mediao fundamental que permite pensar historicamente a relao da transformao nas condies de produo com as mudanas no espao da cultura, isto , as transformaes do sensorium dos modos de percepo, da experincia social" (Martn-Barbero 2001: 84). A indiferenciao e a mudana na percepo, caracterizada pela "ateno distrada" solicitada por meios de massa como o cinema e a televiso, nos parecem ferramentas teis para se pen- sar o modo de leitura hipertextual. A leitura em computador pode ser definida como uma edio, uma montagem singular, atravs da qual uma reserva de informao possvel se realiza para um leitor particular. Pierre Lvy distingue os pares real/possvel e atual! virtual, de modo que o virtual no se ope ao real, mas ao atual. O possvel se define por ser como o real, apenas sem existncia, latente. Estando j todo constitudo, ao se realizar, no implica criao. A atualizao do virtual, ao contrrio, constitui a inven- o de uma soluo exigida por um complexo problemtico. No se trata de ocorrncia de um estado predefinido ou escolha entre um conjunto predeterminado, mas de produo de qualidades novas, inveno de uma forma a partir de uma configurao din- mica de foras e finalidades. Seguindo estas concepes filosfi- cas, as imagens digitais no so virtuais, mas imagens possveis 215 216 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sendo exibidas. A dialtica virtual/atual s se d com a interao entre os sistemas informticos e as subjetividades humanas, "quan- do num mesmo movimento surgem a indeterminao do sentido e a propenso do texto a significar, tenso que uma atualizao, ou seja, uma interpretao, resolver na leitura" (Lvy 1996: 40). O ato de leitura se define, assim, como uma atualizao das significaes de um texto, sendo o hipertexto uma virtualizao dos processos de leitura. A organizao do texto escrito em par- grafos, captulos, sumrios, ndices, notas, remisses contribui para sua articulao alm da leitura linear, fazendo do ato de ler um processo de seleo, esquematizao, construo de uma rede intertextual. A estruturao do hipertexto em uma rede formada por ns e pelas ligaes entre esses ns no o restringe ao suporte digital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo j pressupem o texto como tecido de mltiplas textualidades, as- sim como a leitura de uma enciclopdia j do tipo hipertextual. O que se apresentaria como novo na digitalizao seria a rapidez da passagem de um n a outro e a associao, no mesmo media, de textos, sons e imagens em movimento. Pierre Lvy, em suas reflexes sobre o que o virtual, afir- ma que "o texto continua subsistindo, mas a pgina furtou-se" (Lvy 1996: 48), apagando-se esta sob a inundao informacional, indo seus signos, no mais cercados pelas margens, juntar-se torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamor- fose constantes, apresenta-se nas telas como a atualizao de um hipertexto de suporte informtico. Os textos literrios brasileiros produzidos nos anos 90 do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XXj foram estu- dados a partir de sua interao com as invenes modernas: o bonde eltrico, o aeroplano, o automvel, a fotografia, o telefone, o fongrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a mquina de escrever. Escapando das frgeis e oscilantes classificaes em pr, ps ou neo alguma coisa, Flora Sssekind aborda, na fico brasi- leira desse perodo, "um trao que lhe ser bastante caractersti- co: o dilogo entre forma literria e imagens tcnicas, registros sonoros, movimentos mecnicos, novos processos de impresso" (Sssekind 1987: 18). Partindo da representao desses artefatos industriais na literatura da poca, a autora analisa como o contato com essas inovaes deixa de ser apenas objeto de descrio ou A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais discusso, para enformar a tcnica de certos autores. Interessa-nos agora pensar como essa interao literatura- tecnologia vem se dando nas ltimas dcadas, na passagem do sculo XX para o XXI. Se a mquina de escrever foi a imagem privilegiada pela autora de Cinematgrafo de Letras para pensar esse dilogo na virada do sculo XIX para o XX, quais as marcas deixadas pelo computador na escrita das ltimas geraes? As chamadas "novas tecnologias", digitais e virtuais, compem o cenrio contemporneo, participando tanto do cotidiano quanto do imaginrio atual. Se esses novos meios caracterizam novos modos de pensar, sentir e perceber, como sua presena se faria notar nos textos contemporneos? Esse dilogo, assim como no caso dos autores que antece- deram a Semana de Arte Moderna em 1922, se d de diversas formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como ob- jeto de representao quanto como influncia sobre as estratgias retricas utilizadas na escrita atual. No primeiro caso, temos a paisagem urbana repleta de telas, imagens, celulares, computado- res e toda uma parafernlia tecnolgica utilizada por personagens e narradores das fices contemporneas. Quanto a marcas dei- xadas no fazer literrio, podemos citar a fragmentao, a forte visualidade, a utilizao de mltiplos recursos grfico-visuais, os microrrelatos. Sem falar, claro, em toda a produo de textos no impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo meio de circulao, caractersticas especficas, constituindo, tal- vez, uma retrica prpria. Ao pensarmos a literatura brasileira contempornea em di- logo com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado, de que modo o uso destas se traduz em inovaes estticas nas narrativas atuais, ou seja, como se d o trnsito entre pgina e tela, de que modo a primeira, tendo-se "furtado", se recompe para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como o novo suporte enforma os textos produzidos para nele circularem. 217 Ao longo da histria da literatura, tem havido propostas inovadoras de narrativas no lineares, assim como a imprensa vem criando diversos mecanismos opostos ao poder da linha. Tais de- safios, contudo, ganham nova dimenso ao disporem de uma nova tecnologia textual que no tem por base a linearidade. Tambm ns, leitores, ao lermos um livro de forma no seqencial, pulan- 218 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 do captulos, buscando a informao desejada atravs de ndices remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados de obras diversas, desafiamos a linearidade do texto impresso, lendo-o como um hipertexto. Colocamos em prtica, na produ- o ou recepo de textos, uma das trs linhas evolutivas identificadas por Benjamin nas interseces entre arte e tcnica: "em certos estgios do seu desenvolvimento as formas artsticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tar- de sero obtidos sem qualquer esforo pelas novas formas de arte" (Benjamin s/d: 185). Narrativas literrias contemporneas fazem uso de procedi- mentos e tcnicas que parecem provir de gneros no-literrios e meios de comunicao audiovisuais e digitais. So exemplo das estratgias retricas utilizadas por essa gerao de escritores que troca a mquina de escrever pelo computador as obras eles eram muitos cavalos (2001), Mamma, son tantofelice (2005) e O mun- do inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano, a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve o cotidiano de So Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem nenhuma espcie de continuidade, nenhum enredo como fio con- dutor, apenas a "montagem efervescente"l de doses que se entrecortam e justapem. Trata-se de um mosaico de diversos ti- pos de textos - um cabealho, previses meteorolgicas, anncios classificados, oraes, cartas, cardpios, conselhos astrolgicos, simpatias, lista de livros, recados de secretria eletrnica, duas pginas com um retngulo preto - dispostos com diferentes diagramaes, formatos de letras, sinais tipogrficos. Traduz-se, de certa forma, na pgina impressa, a diversidade textual das p- ginas da web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto, tambm circula. A leitura pode comear em qualquer ponto e seguir qual- quer direo, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tro- pea e se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espa- os virtuais, "em vez de seguirmos linhas de errncia e de migra- o dentro de uma extenso dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte" (Lvy 1996: 96). As vrias pistas intertextuais tambm nos levam a uma leitura labirntica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Memri- as sentimentais de Joo Miramar, e Ceclia Meireles, Romanceiro 'Nstor Garca Canclini define a cidade contempornea "como um videoclipe: montagem efervescente de imagens descontnuas" (Canclini 1995). A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais 219 'Sergei Eisenstein (1990) a define como o "fato de que dois pedaos de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevi- tavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposio". O cineasta russo reitera, ainda, a importncia do "princpio unificador", isto , do princpio que deve "determinar tanto o contedo do plano quanto o contedo revelado por uma determinada justaposio desses planos". Nos atos de "zapear" e navegar na internet, no entanto, a montagem ganha um novo perfil: revogando o princpio unificador, que predetermina a escolha e combinao das cenas mon- tadas, e a hierarquia de planos (cf. Eisenstein 1990), jus- tapem-se, ao acaso, imagens de diferentes origens. O excesso de imagens de baixa densidade semntica e sua repetio em srie permitem cortes e colagens em qualquer ponto, pois todos se equivalem. Este novo tipo de montagem aproxima-se, por- tanto, da conceituao de Simmel para a atitude b!as: dificuldade de discriminar devido ao excesso de infor- mao. da Inconfidncia, esto virtualmente presentes no hipertexto de Ruffato, podendo ser atualizados pelo leitor. O ttulo, reiterado pela epgrafe ("Eles eram muitos cava- los, / mas ningum mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem ... " - Ceclia Meireles) e pela dedicatria ("Para Ceclia"), nos remete obra de Ceclia Meireles, Romanceiro da Inconfi- dncia, abrindo tambm um link no texto de Ceclia, que pode nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano no tm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vo - s captamos, no ritmo vertiginoso da narrativa, pedaos de cenas -, tambm as palavras, "testemunhas sem depoimento, / diante de equvocos enormes" (Meireles 1983: 228), galopam em torveli- nho, sem origem, reapropriadas, ressemantizadas. Impossvel no ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos. Os fragmentos tambm numerados e intitulados de Memrias sen- timentais de Joo Miramar, nos quais se misturam vrios gneros textuais e se ressalta a materialidade grfica, esto virtualmente presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor. Parece, no entanto, que os cortes cinematogrficos e a escrita telegrfica de Oswald de Andrade se aceleraram ainda mais, des- fazendo-se at mesmo a tnue trajetria da personagem que per- passa aquelas memrias descontnuas. O ritmo do texto de Ruffato acompanha a acelerao da vida urbana desde o incio da industri- alizao de So Paulo, objeto da obra modernista de 1924. A montagem cinematogrfica 2 cede lugar ao zapping, imagens que surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente da linguagem televisiva, nem as imagens tm baixo teor semntico, nem os cor- tes so aleatrios. A pgina, ao assimilar um trao caracterstico da esttica televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ter- nura, a violncia, a ingenuidade, a esperana, a decepo, expe feridas, tenses, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante da cidade contempornea, expresso num texto em permanente movimento, leva a urna "ateno distrada", esta, ao focalizar-se instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa. Pierre Lvy identifica, na passagem de tcnicas anteriores de leitura em rede (ndices, sumrios, notas remissivas) digitalizao, urna "pequena revoluo copernicana", na qual no mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso 220 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 do livro de Ruffato, o leitor ainda se movimente fisicamente no hipertexto, virando pginas, buscando os livros de Ceclia Meireles, Oswald de Andrade ou outros na estante, tambm o texto gira, dobra-se e desdobra-se, caleidoscpico, diante do leitor. Nele, a interpretao no remete mais exclusivamente a uma inteno autoral. "O sentido emerge de efeitos de pertinncia locais, surge na interseco de um plano semitico desterritorializado e de uma trajetria de eficcia ou prazer." (Lvy 1996: 49). Os dois outros livros de Ruffato, Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo, fazem parte do projeto de uma srie de cinco volumes com o ttulo de Inferno provisrio. Atravs de textos fragmentados, passveis de serem lidos separadamente, mas, ao mesmo tempo, complementares, ambos narram a desestruturao da vida rural frente modernizao. Seus personagens, pequenos agricultores, imigrantes italianos pobres, sofrem as conseqnci- as sociais e emocionais do processo de industrializao ocorrido no Brasil a partir dos anos 1950. As histrias de um e de outro volume retomam e entrelaam personagens e situaes, fazendo da leitura e da construo de sentido um efeito da interseo de planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de mem- ria, encaixando peas de um "quase-romance desestruturado" (Nina 2005). Mudanas tipogrficas chamam a ateno do leitor para os diferentes tempos e vozes presentes nos textos. Nota-se no segundo volume, no qual alguns personagens comeam a migrar para as cidades grandes, uma acelerao do ritmo da linguagem, que, assim como em eles eram muitos cava- los, acompanha o aumento da velocidade e da intensidade de est- mulos, caracterstico da formao das metrpoles. Podemos ima- ginar nos prximos livros da srie a continuidade desse processo, como se o cotidiano de So Paulo, descrito nos fragmentos do livro publicado em 2001, fosse o destino desses personagens. Uma nota ao fim de cada volume adverte que alguma passa- gem pode ser reconhecida, j que a se encontram histrias narra- das em outros livros do autor, "reembaralhadas". Assume-se a criao pela repetio, anunciada pelo enfraquecimento das no- es de autntico e original na era da reprodutibilidade tcnica. Observamos, assim, nas obras de Luiz Ruffato, uma das vertentes das relaes entre a cibercultura e a fico brasileira publicada a partir da dcada de 1990. Utilizando-se de estratgias A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais 221 retricas dos meios digitais, sua pgina se faz tela. Discutiremos, a seguir, de que modo algumas tendncias dessa fico podem estar relacionadas ao uso por escritores deste novssimo sculo da internet como importante estratgia de insero no circuito arts- tico-literrio. *** Se, na virada do sculo XIX para o XX, o jornal reconhe- cido como o caminho mais curto para chegar-se ao editor, atual- mente, a internet tem sido usada como uma espcie de vitrine do texto para o pblico em geral e/ou os editores. Estes, quando de- sejam apostar em novos autores ou organizar antologias que bus- cam mapear um perfil da fico contempornea, tm essa ferra- menta como fonte. o caso de Paulo Roberto Pires, diretor da Editora Planeta, e das obras Paralelos: 17 contos da nova litera- tura brasileira, Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro e das antologias de textos escritos por mulheres organiza- das por Luiz Ruffato. Di versos jovens autores tambm utilizam os blogs como oficina criativa para seus primeiros romances. Pode- mos citar, a ttulo de exemplo, os livros de Clarah Averbuck www.brazileirapreta.blogspot.cOITI Mquina de pinball, Das coi- sas esquecidas atrs da estante e Vida de gato; e Corpo presente,de Joo Paulo Cuenca.www.carmencarmen.blogger.com.br. Se os livros de Averbuck so montados a partir de fragmentos selecio- nados em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line uma espcie de making of de seu livro, depois de receber a pro- posta da editora Planeta para public-lo, afirmando em seu blog que seu livro no um exemplo de blog que vira livro, mas exata- mente o inverso: seu blog que sobre o livro e seus processos. Em Das coisas esquecidas atrs da estante, Clarah Averbuck discute o papel e o valor da literatura hoje e sua relao com os blogs. A autora, entretanto, discorda da idia de que os blogs cons- tituam um gnero especfico: 10/9/2003 Coletnea de um bloooog? Sim, amiguinhos, coletnea de um blog . Existem livros de contos. De poesia. De crnicas. Por que no uma coletnea de textos publicados em um blog? Afi- nal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo 222 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 porque nunca param de perguntar, blog apenas um meio de publicao para o que quer que o autor, dono e soberano do blog, queira escrever. www.brazileirapreta.blogspot.com o uso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto: Vocs notaram que eu desencanei completamente de usar par- grafos neste post? Parei. Parei de usar pargrafos na minha cabea tambm. Notaram tambm que estou perdendo meu so- taque e falando coisas completamente paulistas como desencanar? Tambm tenho falado me amarro e demor, por causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sota- Que pelo ICQ. (Averbuck 2003: 46) A interao com o pblico leitor e a influncia deste sobre o texto escrito, caractersticas dos blogs, so tensionadas pela auto- ra, que afirma, em alguns momentos, sua voz como nica e a po- sio do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve aceitar o pacto que lhe proposto. 2/9/2003 A internet no como uma televiso aberta, onde voc zapeia e passa por canais indesejados e v coisas que no queria. Para entrar aqui, no meu blog, preciso digitar o endereo no browser, ou entrar em algum link, ou seguir seu prprio bookmark. Ou seja, tem que Querer entrar aqui. uma escolha. E por isso que eu no entendo esses leitores Mark Chapman que vm aqui s pra torrar minha pequena e delicada pacincia e encher minha caixa postal com suas opinies no solicitadas. www.brazileirapreta.blogspot.com> ) No livro Das coisas esquecidas atrs da estante, a primeira orientao ao leitor a epgrafe de Charles Bukowski, uma das referncias constantes da escritora. "se voc for tentar, v at o 1 fim. 1 seno, nem comece." Aceite o pacto, leitor. As citaes (Paulo Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragdias etc.) compem a rede hipertextual, afirmando, tambm no texto im- presso, a multiplicidade do sujeito que escreve: "Eu estou de frias. Agora s vou falar pelas palavras dos outros at recuperar as minhas prprias, que aspirei nariz aden- A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais tro em uma nota de um dlar. Vou me internar dentro de mim mesma at saber quem quem. Esse negcio de ser duas ainda vai me matar." (Averbuck 2003: 108). Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que "o meio a mensagem", podemos afirmar que esse novo modo de circulao do literrio faz surgir um novo tipo de escrita? A constituio do termo "blog" j traz em si idias contraditrias: web (pgina na internet) + log (dirio de bordo) = "dirio ntimo na internet". Como um dirio "ntimo" pode ser exposto na rede para quem qui- ser acessar e, alm de ler, comentar, rasurar, participando do pro- cesso de criao? Se os dirios sempre trouxeram em si um interlocutor, ~ que toda escrita se dirige a algum, agora esse ou- tro, ainda que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza o pro- cesso ativo de toda leitura. Os papis do autor e do leitor so, assim, compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve. 223 O "pacto autobiogrfico" realizado entre quem escreve e quem l "escritas ntimas" se fundamenta, segundo o clssico es- tudo de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identidade se- lado pelo nome prprio, que resume a existncia do autor, pois aquele seria a nica marca no texto de um fora-do-texto, remeten- do a uma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciao do texto escrito. No caso dos blogs, essa identidade se fraciona tanto pela parceria com os leitores como pela pluralidade de no- mes assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas opinies, no h no texto, necessariamente, essa marca que "re- mete pessoa real", podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter vrios blogs, identificados por diferentes apelidos. Ao caracterizar o narrador ps-moderno, em contraponto aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter Benjamin, Silviano Santiago questiona: "S autntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autntico o que eu narro e conheo por ter observado?" (2002: 44). Mais adiante, conclui: "O narrador ps-moderno sabe que o "real" e o "autnti- co" so construes de linguagem." (idem: 46-7). Nesse contex- to, a noo de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas telas se relativiza: "a intimidade era teatro", como disse a poeta dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50). O segredo uma das questes fundamentais para os dirios 224 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ntimos, redimensionada quando esses dirios se voltam para o pblico numa pgina da web. Ainda que expostos na internet, os blogs no excluem o segredo. H diversos nveis de segredos: aqueles que se contam aos amigos mais prximos, famlia, ape- nas a algum muito ntimo ou que no se revelam a ningum, nem a si mesmo. Essas diferenas se mantm nos dirios virtuais. Ao contrrio do que se pensa, a exposio na internet no anu- la a possibilidade de se criar um segredo, mas estabelece novas formas de compartilh-lo. ( ... ) O diarista virtual determina quem pode se aproximar de seus segredos mais ntimos e quem no deve suspeitar deles atravs de senhas, do texto cifrado e do acesso restrito ao blog. ele que estabelece o c.uanto o leitor comum deve saber de sua vida particular e o que deve ser man- tido em sigilo. (Schittine 2004: 19-21). o "contrato de cumplicidade" com o leitor se modifica, po- dendo a confiana ser reforada pela distncia e o desconheci- mento quanto aos leitores ou ser questionada, j que essa mesma distncia facilita o uso de mscaras, fantasias, mentiras. Formam- se "redes de segredos": pequenos grupos que dividem segredos entre si, com alguns ns em comum. A sinceridade da enunciao "torna-se um falso problema", como j anunciara Barthes em relao ao "autor de papel": "a sua vida j no a origem das suas fbulas, mas uma fbula concor- rente com a sua obra" (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua autobiografia: Este livro no um livro de "confisses"; no porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de on- tem, esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca a ltima palavra: quanto mais sou "sincero", mais sou interpretvel, sob o olhar de instncias diferentes das dos anti- gos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma nica lei: a autenticidade. (Barthes 1977: 130). Se o que escrevo sobre mim pode mudar de um dia para o outro, os blogs podem registrar essas mudanas a qualquer momento, sendo o intervalo de tempo da escrita menor que um dia. Os dirios nas telas permitem que, a cada releitura, o texto seja alterado ou as "falhas da memria" preenchidas, sem dei- A fico brasileira contempornea e as redes hipertextuais xar marcas dessas rasuras. Ao contrrio dos dirios de papel, que guardam a caligrafia individual e diferentes materialidades da memria - ptalas, papis de bombom, recortes etc. -, a tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, soma- dos possibilidade de falha dos dispositivos de memria das novas tecnologias, levam a um registro imperfeito da memria pessoal, apesar da sua imensa capacidade de armazenamento de uma memria artificial. (Schittine 2004: 117-8). Na "escrita de si" via internet, o trnsito entre documento e fico, vida real e virtual, constri uma intimidade meio encena- da, meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual da literatu- ra, vida e obra tornam-se difceis de distinguir. A figura do autor aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num confessional fingido. Tanto nos blogs como nos livros, podemos constatar uma tendncia para o uso da primeira pessoa em textos que no so autobiogrficos, mas que apresentam pistas da identidade autoral. No ltimo romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, o personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros e desencontros com Joana, uma leitora com quem mantm inicial- mente contato via internet at se conhecerem pessoalmente num hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. V - rios traos biogrficos de Mirisola presentes na narrativa - as ini- ciais M. M., a publicao de crnicas via internet, os livros Azul do filho morto e Heri devolvido, a transformao de escritores seus amigos em personagens e at o nmero da conta no Ita - tornam indecidveis as fronteiras entre autor e narrador, vida e fico. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma autoexposio, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos nar- rados tm uma referncia real ou so completamente ficcionais: "No se tratava apenas de fico" (Mirisola 2005: 10), "Fui eu quem a inventei" (idem: 14), "Ningum vai saber que voc, Natrcia." (idem: 48). A criao de diferentes identidades, caracterstica das pgi- nas virtuais, extrapola seu suporte tcnico, apontando um trao da subjetividade contempornea: plural, ambgua, ficcionalizada. Sabemos que em qualquer relato autobiogrfico o compromisso com a verdade sempre relativizado pelas falhas da memria e a 225 226 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 contaminao desta pela imaginao. Parece-nos, no entanto, que, num tempo em que a realidade se define como um cruzamento de imagens e no como dados objetivos representados por elas, es- ses textos contemporneos investem na inveno biogrfica, for- mulando "autofices". Referncias ANDRADE, Oswald de. Memrias sentimentais de Joo Miramar. 14ed. So Paulo: Globo, 2001. AVERBUCK, Clarah. Das coisas esquecidas atrs da estante. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003. AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. In: Encontro Regional da Abralic, 10, 2005, Rio de Janeiro. Anais eletrnicos ... Rio de Janeiro: Uerj, 2005. 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Essa distino muito definitiva da esttica tradici- onal, "qual o campo da fico, qual o campo do real?", se dissolveu. Vai da que, para mim, esse o tema que est inscri- to na relao entre a literatura e a realidade. Observou ainda: Essa relao [literatura/realidade/verdade] seria para mim o ponto a partir do qual surgem as histrias, as tramas, as ques- tes que devem ser narradas. As consideraes de Piglia so instigantes e recuperam tam- bm para a demanda da narrativa a idia de destino: fatos sucessi- vos ocorrem na vida dos homens e constituem a sua vida, inde- pendentemente da sua vontade. Dessa maneira, observaremos, em tais narrativas, modos de vida em formas literrias que nos apontaro uma cifra a desdobrar-se tanto na direo dos enigmas 229 230 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 do comportamento da vida contempornea representada, como em desafios de leitura dessa literatura contempornea. Percebemos, no momento, pela mdia ou internet, uma oferta diversificada de textos, que notamos, divisamos e pouco sabemos diante do tanto que vemos. Vivemos num mundo no qual nosso olhar encontra-se refm do espetculo miditico. A leitura uma atividade da vida civilizada, da vida social, coletiva, processada diariamente no mbito dos conhecimentos individuais e coletiva- mente preparados. Diante disso, e da pletora de textos que nos envolve no dia-a-dia, a pergunta que nos fazemos pela situao, condio, categoria ou natureza do texto literrio, aquele que, de forma linear, rene uma situao discursiva, no caso, operada pela obra literria, para o leitor de uma realidade textual, que, para ns, constitui-se naquele que l o verbal de maneira singular, na e com a singularidade do texto literrio. Trata-se do leitor de um gesto rapidamente esgotado, sem reiteraes, sem os mltiplos suportes: visuais, eletrnicos; sem vnculos, links, portanto, com um hipertexto; trata-se de um leitor voltado para o texto literrio, que volta a sua intencionalidade para a realizao da arte literria, prtica contemplada, inclusive, dentro das ousadias das configu- raes do texto literrio contemporneo, pelo hipotexto. Ajuste- mos, assim, nossa discusso, a mais este contraste. Compreendemos que os tempos atuais, os que esto em atos, transfiguram-se, tanto em narrativas compostas em hipertextos sustentados pela intertextualidade, por mltiplos textos, como em narrativas compostas por hipotextos, sedimentados pela interdiscursividade, que incorpora percursos temticos e ou figu- rativos, valores, de um discurso em outro. Estas ltimas, em espe- cial, explicam-se nas observaes novamente de Ricardo Piglia (2000, p.123), agora, de outra fonte: "La inspiracin se construye a partir de lo que se h escrito antes, cada vez se inscribe com toda la literatura". O leitor do hipotexto, do nosso ponto de vista, constitui-se no leitor que l o literrio, o singular, como salientamos acima; esse leitor consiste naquele que no sustenta a sua leitura no po- tencial, no virtual, no desmesurado, caractersticas do hipertexto. O hipotexto volta-se para o pontual, para o momentneo, a medi- da de uma hesitao, momento em que "os espaos ficcionais in- vadem a vida cotidiana e a sociedade moderna", conforme Piglia o hipotexto de NoU I Analisaremos, da coletnea, o conto Bispo da madrugada, que, ao lado dos outros, constitui-se no que o seu autor nomeou como instantes ficcionais: uma srie de contos ultracurtos publicados na Folha de S. Paulo, numa pequena coluna, Relmpagos, mantida pelo autor de agosto de 1998 a dezembro de 2001. Analisaremos aqui o conto Bispo da madrugada, publicado em 20/12198, que, depois, ao lado de todos os outros, foi reunido pela Editora Francis, em 2003, em livro intitulado Mnimos, mltiplos, comuns, numa edio que recebeu o Prmio Jabuti de melhor capa e o segundo lugar para livro de contos, alm do Prmio ABL de Fico 2004. 231 (1990, p.3), caractersticas, convenhamos, que sempre demarca- ram a demanda das narrativas literrias. O que lemos, ento, em um hipotexto? Observamos uma histria por meio de um discurso, de um cdigo, o literrio, elabo- rado por uma organizao e configurao particulares da lingua- gem. O nosso objetivo, agora, o de explorar o literrio num conto de Joo Gilberto NolI, Bispo da madrugada, um hipotexto, escrito, inicialmente, para um projeto editorial da Folha de S. Pau- lo, conforme as rpidas intenes da reportagem da poca: "A Ilustrada passa a publicar, a partir de hoje, uma coluna literria diria, na pgina 2, ao lado de Horscopo". (ILUSTRADA, 1997, p.l) Nesta reportagem, a F olha anunciou tambm os titulares da coluna: Heloisa Seixas, Voltaire de Souza e Fernando Bonassi. Joo Gilberto NolI substituiu Heloisa Seixas, em agosto de 1998. Patrcia Decia (1998, p.l), reprter da Folha, noticiou o ingresso do ficcionista na coluna literria do jornal, ocasio em que comen- tou com mais nfase o projeto da Ilustrada, referendando-o com Walt Whitman: "quanto mais leitores tocando no tecido do texto, mais prazeroso e completo o ato literrio". A reprter tambm entrevistou NolI (1998, p.l), que exps, literariamente, suas in- tenes: Eu quero ter o direito tambm de fazer pequenas liturgias, pe- quenos momentos de. elevao a partir do barro da histria. No acho que homem seja anjo, mas bom a gente exercitar esse desejo de superao, de transcendncia. A palavra liturgia, no grego, significa funo pblica. E isso mesmo. Noll (1998, p.l) acredita na funo pblica da sua fico, textos com "coisas que dizem respeito vida cotidiana da grande maioria das pessoas". Essa funo pblica na fico de Joo Gilber- to Noll est nos valores que o escritor reitera, presentes, visveis, agora, no projeto grfico de Mnimos, Mltiplos, Comuns l , na interdiscursividade, valores com a equivalncia de denominadores comuns, que perpassam seus 338 hipotextos orientados por uma lgica editorial. Segundo o autor, poderemos ler narrativas que tri- lham valores bblicos, "divididos em cinco grandes conjuntos que pressupem uma cronologia da Criao: Gnese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retomo". (NOLL, 2003, p.23). Bispo da 232 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 madrugada compe As Criaturas, que, segundo o contista, consti- tui, ao lado dos cento e setenta do mesmo segmento, o [ ... ] mais complexo entre os conjuntos. Parte da uma definio dos Corpos, que se mostram Despidos; depois unidos carnal- mente como Amantes; unidos perante a lei e a sociedade em Casamento; constitudos em Famlias; gerando Crianas; re- partindo espao e destino com os Animais; vagando e povoan- do o mundo como Andarilhos; penando de escapar fria dos vencedores como Fugitivos. Os corpos so Feridos e cobrem- se de cicatrizes; recuperam-se ou no como Convalescentes; e colocam-se parte do mundo e das coisas, viventes do outro plano, como Artistas. (NOLL, 2003, p.23) Como se l, o corpo mostra-se como o lugar de resistncia do sujeito, que no cede e defende sua emoo. O corpo, na fic- o de Noll, constitui-se numa macrofigura - a figura maior que se envolve com um conjunto de situaes que motivam a narrati- va. Ele constitui-se num motivo que se combina com outros e que do apoio temtico ao conto, no caso: o corpo como o lugar de vigor fsico, que se esvai; o corpo como o lugar da ira, que se anuncia; o corpo como o lugar que aproxima, de forma grotesca, o homem do comportamento animal. Joo Gilberto Nolljoga ima- gens contra imagens, numa situao em que elas substituem o contato do homem com o outro, Com uma narrativa ultracurta, o ficcionista quer um clmax e procura, para isso, moviment-la com situaes de vigor fsico e emocional, o que reverbera na metfo- ra do corpo, o lugar, a figura dessas manifestaes. Abaixo, o conto anunciado para anlise: De madrugada me ajoelhei na beira do rio. Sentia-me sangrar. Procurei pelas pernas, peito, barriga, pescoo, cabea: nada. Pensei: " hoje ou nunca, vou sim, eu vou matar". Voltei para casa e a primeira coisa que fiz foi no acender a luz. Peguei as cobertas, de p me enrolei nelas. Eu era um bispo, um rei, um indigente em trapos. Havia outra alma ali, meu filho pequeno. Ele ressonava. Em minutos amanheceria e eu faria caf. Passei as unhas pela parede fria, como se querendo me testar. Ao acor- dar, a criana me contava sempre o mesmo sonho: cobria com uma toalha de mesa o amigo albino sob o sol do meio dia. (NOLL, 2003, p.216). :' hipotexto de Noll A palavra configurao, que desde o incio nos orienta nos fundamentos desse artigo, chama-nos ateno para dois aspectos: o primeiro, atinente ao aspecto visual do texto, sua mancha; o segundo, o propsito do texto, sua forma, que ele sustenta, pre- ponderantemente, com figuras. A configurao, quer de um hiper ou de um hipotexto, est, de maneira nodular, na idia de texto: uma seqncia de enunciados encadeada e tramada. Texto trama, como nos lembrou Ricardo Piglia. A partir dessa condio fundante do texto, poderemos divisar, ento, suas diferenas nos registros da sua comunicao, no seu suporte, na configurao do suporte. Um hipotexto um texto muito curto. A brevidade, quer para a prosa ou para a poesia, provoca numa narrativa uma forte tenso interna. A brevidade intensifica, no caso de uma narrativa em prosa, uma coero interna para o estabelecimento da sua tra- ma. Bispo da madrugada tem, como vimos, 112 palavras, que nos envolvem numa circunstncia emblemtica que invade o destino de uma personagem frentica, sem identidade, perdida na sua in- dividualidade, sem que o seu pensamento delirante esteja voltado para um acontecimento. No houve, para a narrativa, um aconte- cimento; no h sequer a pressuposio de um acontecimento. O conto narra uma situao, algo localizado. Bispo da madrugada um conto de situao; elptico, multiforme, polissmico. A elipse, que omite as seqncias do acontecimento, instala o enigma, sua atmosfera. Exige a partici- pao do leitor, que, em rpidas cenas, l o enfraquecimento de um sujeito: de um pai, esgotado, exausto. O filho, a segunda per- sonagem, encontra-se em situao oposta: tranqilo, desperto de um sono. O pai um errante, irado; o filho, fixo num nico sonho, um solidrio. Deparamo-nos com uma tenso que condensa, da parte do pai, vazio, fracasso e, da do filho, redeno, salvao, plenitude. Defrontamo-nos, sempre, com condensaes e elipses; indefinies, como a figura do tempo: madrugada, momento en- tre a meia noite e as seis horas da manh; tempo fluido: corrente, espontneo. Ou como na figura espacial do rio que flui e de forma semelhante como o sangue que a personagem sente correr em profuso, pelas pernas, peito, barriga, pescoo, cabea. As figuras espaciais mostram-se externas e internas. Externas quando beira do rio e internas, quando focam o interior da casa. A casa encon- tra-se fechada. Pai e filho encontram-se com a proteo das co- 233 23-f Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006 bertas e da casa. O pai, de esgotado, irado, beira do rio, agora, no interior da casa, dividido - um bispo, um rei, um indigente. O filho, enquanto dorme e sonha no seu quarto, uno - um princpio de vida unificado, de individualidade, de personalidade, de cons- cincia, de solidariedade. O filho encontra-se tranqilo e ressona numa cama. Inspira no pai, que far caf ao amanhecer, um alen- to. O pai crava as unhas na parede: certifica-se. O sonho do filho ser sua certeza sob a luz do sol do meio-dia; num gesto de soli- dariedade para o desamparo de seu pai. Nesse sonho, o filho co- bre um albino com uma toalha, como o pai, dentro da casa, cobre- se com uma coberta. Na elipse, na condensao, uma oposio possvel - o desamparo de um diante do amparo do outro. O pai encontra-se em desamparo, na beira do rio ou em casa; o filho, em casa, enquanto dorme e sonha, ampara, ajuda, auxilia, socorre. A leitura de um hipotexto intrincada e intensa. Ler (do latim legere ou do grego analegein) significa escolher. Ler, nesses sentidos, interpretar, atribuir sentido, sentir alguma coisa que reconhecida pela leitura: algo singular e que exige, do leitor, uma descrio da ao lingstica que produz o texto, numa determi- nada situao que pressupe um gnero, um tipo de discurso me- diador da construo de um tipo de conhecimento. O leitor preci- sa entender o texto, saber o que est lendo e compreender algo importante e atinente demanda de uma narrativa: ela no tem tamanho, constitui-se de um enunciado total. Do enunciado total que uma narrativa, o conto, do latim computu, uma conta, um cmputo, um nmero (uma represen- tao de cada um dos quadros ou cenas de uma narrativa, de um espetculo; representao de uma grandeza mensurvel; repre- sentao de um conjunto dado), preciso, harmnico, regular na cadncia e disposio de suas palavras. Nesse sentido, conto tem o significado semelhante a canto. H, em ambas as composies, a modulao de uma voz que, no caso do conto, narra, mas tam- bm, como no canto, entoa, dentro de um tom (contnuo ou descontnuo), com escalas (consonantes ou dissonantes). A comparao que fazemos entre as manifestaes do can- to e do conto tem uma sintonia com a potica de Joo Gilberto Noll. A natureza da forma da sua narrativa em prosa, conforme entrevista que concedeu a Miguel do Rosrio, passa pela musicalidade, apreendida, desde a sua infncia, tanto na audio o hipotexto de NolJ 235 da composio musical, como na leitura da poesia. NoU, nessa entrevista, revela-nos que mais leitor da poesia do que da prosa e que, ao. escrever, v-se "arrastado por ritmos, realmente por ritmos, por voltagens musicais ... ". (NOLL, 2004, pA) Dessa maneira, Gilberto Noll (2004, p.5) definir, nessa mesma entre- vista, a sua prosa como "uma prosa potica" e que est "radicalizando cada vez mais isso". Acreditamos que a edio de Mnimos, mltiplos, comuns, de 2003, contempla aquela radicalizao referendada na entrevista concedida para Miguel do Rosrio em 2004 e sinaliza para os anos em que o autor exerci- tou-a na Folha de S. Paulo. Desse modo, uma prosa com o ritmo da poesia, em primeira pessoa, diante de um temrio que celebra situaes convulsivas vividas pelas suas personagens, possibilita a Joo Gilberto NoU construir uma atmosfera em que o,potico aproxima-se do mtico e permite que a narrativa represente, conforme o autor, "uma certa pulso por um ethos". (2004, p.8) Juntamos s consideraes uma reflexo sobre o conceito de conto, o de enredo tambm nos ser interessante. Pode-se ressaltar do conceto de enredo uma diferena entre uma situa- o inicial e uma final da narrativa. O conto de enredo modu- lado numa escala dissonante, a fim de que seu enunciador cons- trua um tom descontnuo entre comeo, meio e fim, uma relao de causa e efeito, um princpio de causalidade. J o conto de atmosfera modulado dentro de uma escala consoante, num tom contnuo, a fim de que sua enunciao elabore uma consonncia entre o seu incio e o seu final. Um enredo mostra-nos descontinuidade; uma atmosfera, continuidade, circularidade. No enredo a nfase transita entre seqncias (e entre elas um epis- dio ser fundamental, ter seu desenlace). O conto de atmosfera fixa-se num estado, numa situao em que temos a atmosfera, o ambiente, a situao de uma ao. O conto que lemos configura-se como um conto de atmos- fera, distante da estrutura do conto de desenlace; trabalha a narra- tiva de forma vaga, diluda, indefinida; as seqncias da sua narra- tiva no se opem, elas se neutralizam. O procedimento de neutralizao sustenta o conto de atmosfera, numa relao de agre- gao entre seqncias; a proximidade entre seqncias imedia- ta, sem mediao. Essa a relao nica de aproximao entre 236 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 suas situaes; o seu objetivo diluir contrastes e evitar um desen- lace. O conto de atmosfera tende a narrar, mais e precisamente, um estado mental, um estado de esprito, do que uma ao genrica. Esse conto, como um enunciado total e no modo de tensionar essa totalidade, qualifica sua narrativa de maneira catica, heterc1ita; faz paralelos, coordenaes; intercalaes, transies, regresses, seguindo o fio da narrativa e os perfis das personagens. Voltemos agora a nossa ateno funo do narrador de Bispo da madrugada. O narrador o organizador da ao narra- tiva; a voz que narra. Nesse conto, temos um narrador e perso- nagem que organizam, com palavras e imagens, a verdade textual; como se sua presena afastasse a do sujeito da enunciao, sem- pre implcita, mas, muitas vezes, forte, mais organizadora, mais racional. O narrador do conto semi-onisciente: no invade a mente da personagem, com quem contracena, na busca de explicaes para os acontecimentos. No temos, como vimos, um aconteci- mento. O que que aconteceu? Esse narrador capta emoes, sensaes simultneas. Bispo da madrugada, como lemos, constitui-se num conto estranho. Trata-se de uma narrativa sem heri e sem adjuvante, em torno de algo que ocorre, de maneira nica e persiste. O continuum do mundo, do ponto de vista do protagonista, no se deixa recortar. A percepo das coisas do mundo, pelo sujeito, no conto de atmosfera, contnua. O sujeito, assim, no chega, com o que percebe, a uma concepo do mundo. Como exprimir as reas do inconsciente num conto ultracurto? A construo de uma inconscincia no admite uma expresso verbal direta e, assim, de maneira indireta, dedutiva, leremos, em Bispo da madrugada, como que dados do inconsciente expressos, com elipses, condensaes, como ndices de uma sintaxe do inconsciente, por meio do solilquio. O solilquio procura exprimir emoes, sensaes - a vida interior da personagem fundida exterior. Ele conforma interpe- laes deliberativas (um jogo, no necessariamente explcito, en- tre perguntas e respostas). A palavra base que nomeia solilquio colquio. Colquio define-se como a fala entre dois. Solilquio uma palavra derivada de colquio; significa fala de um s, fala de algum consigo mesmo, monlogo. Na verdade, no monlogo, algum interlocutor da prpria fala - um arranjo literrio, uma o hipotexto de Noll figura, algo sem lgica - traduz, representa, uma condio do homem, de solido. Situa-se num nvel menos profundo da cons- cincia. Pode aparecer combinado com o monlogo interior. O solilquio, por sua vez, procura exprimir emoes, sensaes - a vida interior relacionando-se com a exterior. Bispo da madruga- da configura-se com o veio do solipsismo, na movimentao de um eu em nica realidade do mundo; de um eu que tem nas suas condies subjetivas a nica forma da realidade; de um narrador sem interlocutor. As aes estranhas no se justificam do ponto de vista do reconhecimento; no as reconhecemos pela nossa memria de leitura, nem as reconhecemos pelos antecedentes da narrativa, derivados da prpria intriga. Nos acontecimentos ve- rossmeis e necessrios, o contexto exerce um controle na coe- rncia do texto. Pode ser uma coerncia de temas e figuras, em que o tema suporta a rede de figuras; o que prprio de um texto que trama, tece relaes. Em um texto tramado por meio de aes estranhas, a continuidade fica merc de si mesma e formula a sua prpria condio paradoxal. Em uma narrativa estranha, a personagem no sabe compreender o que ocorre e nem alterar tal situao. O seu adversrio no conhecido e, portanto, no pode ser reconhecido. O estranho algo que ocorre "fora da ao", da ao verossmil, sem necessidade. O necessrio consiste no que inevitvel, requerido, foroso; o que no pode deixar de ser; uma condio imposta, normativa, que impede escolhas; a necessidade fundamental. O necessrio o oposto do voluntrio, daquilo que procede livremente. O jornalista Jos Castello (2003a, p.74), em dois momen- tos, observa a chamada nova gerao de escritores brasileiros, que Joo Gilberto NoU integra. No primeiro momento, nas pgi- nas da revista Bravo, e no incio de suas observaes, enfatiza: As melhores fices so aquelas que parecem desprovidas de laos com o seu tempo e com o seu meio, provocando o des- conforto de destoarem tanto dos hbitos dos intelectuais ilus- trados como das expectativas amestradas do leitor comum. Jos Castello, nesse artigo, comenta a maneira como, entre os novos ficcionistas, h aqueles que no se reconhecem como parte de uma "nova gerao" que no fazem manifestos ou experimentalismos. Apresentam-se, antes, como uma gerao sem 237 238 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tendncia e que, simplesmente, elaboram uma narrativa tensa e tendente para o inesperado, o novo, uma nova realidade, uma su- pra-realidade. O segundo momento das observaes de Jos Castello (2003b, p.l0-13) ocorreu onze meses depois, no jornal Valor, em que ele retoma o mesmo vis da questo acerca da lite- ratura contempornea. Notamos que essa ltima discusso mais densa, e alinha-se s ponderaes j destacadas de Ricardo Piglia. Para o jornalista, o "novo realismo" domina a produo da prosa brasileira atual, e, sobre ele, observa: Lidar com a realidade no tarefa fcil para ningum, no s para os escritores. At porque a realidade muito mais com- plexa e enigmtica do que supem essas paisagens simplificadas e superficiais mostradas pelo "novo realismo". Nas circunstncias dessa afirmao, Castello considera Joo Gilberto Noll um escritor: [ ... ] interessado nesse abismo que separa o sujeito da realida- de, [e que] prefere, ao contrrio [daqueles "de paisagens simplificadas"], agarrar-se potncia dos sentimentos e ener- gia dos estados primitivos. (Castello, 2003b, p.l 0-13) Com Jos Castello depreendemos que Joo Gilberto Noll produz uma fico a partir da realidade, delimitando suas perso- nagens no campo do imaginrio humano, ocasio em que as ence- na em situaes de crua realidade. Divisamos, assim, nesses dois artigos de Jos Castello, com base em seu ponto de vista sobre o literrio e em sua impresso sobre o texto de Joo Gilberto Noll, que a nova narrativa no copia objetos, mas substitui a referencialidade ordinria por outra, extra- ordinria, por um novo conjunto de significantes. Ou, conforme o ficcionista, Joo Gilberto N 011 (1999, p.l 00) j observara: Eu gosto de ver a matria objetiva, de um corpo determinado. Eu preciso ver um personagem, um corpo com nimo. Esses personagens esto um pouco desvinculados de uma instituio que possa centr-los. So muito perdidos. Por isso, eles preci- sam andar cata dessa coisa que no os faa pura evaso ( ... ) O que me encanta na existncia a forma. Isso no desgua no o hipotexto de Noll formalismo, na palavra como artefato. O que gera a palavra, potica ou no, o drama, a incapacidade do homem de dar um sentido mais vertical existncia. o prprio autor, posteriormente, manifestou-se contrrio tendncia realista: "Eu no sou um escritor realista. Eu sou um escritor de linguagem, a linguagem que move os contedos, que estrutura os contedos". (NOLL, 2004, p.6) O realismo de Joo Gilberto NoU est na modulao da sua narrativa, no seu tom que sustenta uma situao em movimento. A narrativa de NoU tende, assim, a partir do papel do indivduo na fico, a redirecionar o quadro da referencialidade, alterando a maneira usual da repre- sentao, mudando o carter da composio da subjetividade, maneira de abordagem da subjetividade. O imaginado ajusta-se forma em que imaginado, na disposio em que imaginado, para ficarmos com Gianotti (2005, p.3): o referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, s ve- zes, trabalha com semelhanas, mas cujo valor esttico no depende delas. Segundo Gianotti (2005, p.3), desde a Antigidade, "a ima- gem tem sido posta como aquela faculdade de ter presente uma coisa ausente", uma figura procura da referncia. Algo que te- mos bem distante da estratgia ficcional de Noll (1999, p.lOl): No tenho pendor para as grandes narrativas. Gosto do mist- rio. O mistrio humaniza. No uma perdio para as foras sociais, as foras da luz. Eu quero luz, tambm, como todo indivduo. O meu movimento no antiiluminista. NoU, entre os novos ficcionistas, no se afasta da compre- enso da realidade, da tentativa de apreend-la; busca, porm. visualiz-Ia, incorpor-la realidade humana, labirntica, visceral e tal estratgia passa pelo perfil do intelecto da personagem. pelo seu nvel de percepo da existncia e pela representao da sua conscincia, da sua subjetividade. A diegsis, assim, mais que a mimese, d a direo da trama. No conto de Noll em questo, mostram-se os assombramentos de uma personagem diante da serenidade da ou- 239 240 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tra. Sombra e luz - figuras alegricas da verdade; nelas, o mundo sensvel aparece como alegoria de um contedo espiritual "imper- ceptvel". Conforme afianou Jos CastelIo, nessa alegoria, Joo Gilberto NoU mostra o "abismo que separa o sujeito da realida- de", prxima da "potncia dos sentimentos e energia dos esta- dos primitivos" e distante de "paisagens simplificadas e superfici- ais". (2003, p.lO-13) Percebemos, dessa maneira, pela fico de NoU, que qua- dros novos do mundo so pensados e nos ampliam as imagens que temos do mundo. A mmesis, como vemos, no mais se realiza como a expresso que presentifica, representa, algo que est au- sente, reconhecido pelo processo da leitura. Essa fico de Joo Gilberto NoU elimina a revelao e afirma a percepo. Na narra- tiva, parece-nos, a memria nada revela. o casual que desenca- deia os processos de conscincia e constitui-se na forma de apro- ximao do texto com a realidade imediata, a maneira como o mundo interior da personagem transparece no mundo exterior. H um veio, um caminho, mostrado no engendramento do conto que, ao nosso ver, passa sim por um novo realismo, ao lado de um novo naturalismo. O naturalismo est na transcrio de uma realidade imediata, no imediatismo, no instintivo, na deter- minao do imediatismo, que propicia, no texto em anlise, o apa- recimento, por exemplo, da ira, dos estados primitivos. A rea- lidade, assim, sonho, esquizofrenia, vises, o objeto misterioso da fico. O realismo de Joo Gilberto NolI realiza-se com o ob- jetivo de vasculhar o obscuro. E, assim, o tempo faz-se perptuo, contnuo, tenso, como na lrica. O conto analisado e os demais de Mnimos, mltiplos, co- muns, mostram construes, configuraes que buscam novas referncias, novas figuras, um novo "imageado", como quer Gianotti. Os hipotextos de NoU expressam situaes mltiplas, dispostas em unidades temticas, por meio de uma ao intensa da interdiscursividade e num estilo vigoroso, excessivo, elabora- do. Dessa maneira, com imagens tensas, ambguas, narram-se si- tuaes transcendentes que aproximam os momentos da histria aos momentos do discurso. A prpria obra como medida e pro- cura de um leitor? Borges, Cortazar, Bioy Casares fizeram contos curtos com esses parmetros. Joo Gilberto NoU no o primeiro na ousadia. Aqui tambm, conforme observa Joo Alexandre Bar- o hipotexto de NoU bosa (2003, p.17): "a experincia que se representa tambm, ou sobretudo, uma experincia de leitura". Essa referncia, dedicada crtica da literatura atual, ajuda-nos a explicar a narrativa de Noll- a teatralizao de gestos, o momento do impulso biolgico do corpo, os movimentos entre o homem e o mundo - como a representao dos: [ ... ] os movimentos de inadequao atravs dos quais o potico se expande na criao de um espao e de um tempo capazes de romper com os estreitos limites de uma diacronia evolutiva de causa e efeito. (2003, p.15) A originalidade na construo dos textos de Joo Gilberto N 011 est na busca de um efeito casual, com intensidade e brevida- de; sua originalidade est, enfim, em tensionar a narrativa para o imprevisto. Vm-nos lembrana, como numa situao diametralmente oposta s de No11, as intenes literrias de Edgar A11an Poe. O tom potico procurado por NoU no o da melanco- lia, preferido por Poe. Alm disso, o estranho, nas narrativas de NoU, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. Poe, que tudo prev, constri a estranheza de uma dada situao dentro de uma combinada unidade de efeito, para a impresso do seu leitor. O estranho, nas narrativas de No11, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. A originalidade de Joo Gilberto No11 est em elaborar o imprevisto, com imagens diludas que traz do mundo, apagadas da sua referencialidade. Desse modo, NoU afasta-se do mimtico. A representao do mundo no seu texto faz-se pela sobreposio de observaes sobre o observado, porm, por meio de imagens imprevisveis, constitudas por metforas sem previsibilidade, que elidem a cadeia do sentido para o seu reco- nhecimento, distanciando-se da retrica de "atualizao de uma diferena" (COSTA LIMA, 2000, p.303), a que reconhece, para o leitor, aquela diferena. As imagens que Joo Gilberto NoU traz do mundo para a literatura so verdadeiramente singulares e no procuram "a equi- valncia subjetiva de uma cena externa e objetiva" (COSTA LIMA, 2000, p.24), ou conforme as intenes do autor: "O que me inte- ressa o gesto, a projeo de coisas sobre as quais no tenho tanto controle assim" (NOLL, 1998, p.102). 241 242 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Referncias BARBOSA, Joo Alexandre. Literatura e sociedade do fim do sculo. In: Alguma crtica. So Paulo: Ateli Editorial, 2002. CASTELLO, Jos. Dissonncia e atrito. Bravo, So Paulo, v.6, n.64, p. 74- 79, jan. 2003a. CASTELLO, Jos. Inventado a realidade. Valor, So Paulo, p. 10-13, 12 dez. 2003b. COSTA LIMA, Luiz. Mmesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. DECIA, Patrcia. Joo Gilberto Noll estria hoje coluna "Relmpagos". Folha de S. Paulo, So Paulo, 24 ag. 1998. Ilustrada, Coluna Literatura, p.l. ILUSTRADA passa a publicar coluna literria todos os dias: reportagem local. Folha de S. Paulo. Ilustrada, So Paulo, 26 set. 1997, p.l. GIANNOTII, Jos Arthur. O construtor de inverses. Folha de S. Paulo, So Paulo, 22 maio 2005. Caderno Mais, p.3. NOLL, Gilberto. Bispo da madrugada. Folha de S. Paulo, So Paulo, 20 dez. 1998. Ilustrada, Coluna Relmpagos, p.8. NOLL, Gilberto. Bispo da madrugada. In: -. Mnimos, mltiplos, comuns. So Paulo: Francis, 2003. NOLL, Gilberto. O boxeador da fico [setembro 1999]. Entrevistador: Michel Laub e Pedro Maciel. Bravo, So Paulo, v.2, n.24, p.98-113, set.1999. NOLL, Joo Gilberto. A literatura muito perigosa. Entrevistador: Miguel do Rosrio. Arte e poltica, Rio de Janeiro, ano 7, n.20, p.4-8, 2004. Disponvel em: <www.arteepolitica.com.br>. Acesso em: 15 maio 2006. PIGLIA, Ricardo. Piglia discute relao entre literatura e verdade [agosto 1990]. Entrevistador: Marco Chiaretti. Folha de S. Paulo, So Paulo, 11 ago. 1990. Letras, F 3. PIGLIA, Ricardo. Crtica Y jiccin. Buenos Aires: Editorial Planeta Argentina, 2000. Outras Palavras:o Catatau de Paulo Leminski em trs tempos Marlia Librandi Rocha (UESB) Este texto versa sobre o romance Catatau (1975), de Paulo Leminski (1944-1989), tendo em vista discorrer sobre o modo como o experimentalismo de vanguarda insere-se e, simultanea- mente, desloca a tradio do narrador de prosa de fico no Brasil desde sua constituio no sculo XIX. Busca-se saber de que modo um romance como Catatau liga-se tradio do narrador oitocentista corrompendo-a por dentro, minando seus pressupos- tos, ao mesmo tempo em que os re-atualiza. Um desses pressu- postos, talvez o principal, respondia pela adequao de uma fic- o atrelada documentao e que se legitimava por sua mestra, a Histria, pelo desejo de fundar um pas, a busca da cor local e a descrio da paisagem baseada nos relatos dos viajantes estran- geiros (cf. SUSSEKIND, 1990). O mesmo viajante, que constitui a imagem do narrador de romance no Brasil oitocentista como paradigma do conhecimento e descrio do pas, tambm se en- contra aqui s que posto do avesso. "No Catatau", diz Leminski, "quase nada acontece. No sentido da narrativa do sculo XIX, claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece quase tudo" (Leminski, 1975, p.11). No livro, Leminski ficcionaliza Ren Descartes, que foi oficial da Guarda de Maurcio de Nassau e poderia ter integrado, juntamente com naturalistas como Marcgravf e pintores como Franz Post e Albert Eckhout, a comitiva que acom- panhou o Prncipe em sua vinda ao pas na poca do domnio holands no Nordeste (1630-1654). Como uma floresta tropical de palavras que no compe proposio vlida segundo o critrio de Verdadeiro ou Falsa, mas uma simultaneidade de frases que se autodesfazem, unidas emjus 243 244 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 taposio mais do que na subordinao de sintagmas como "Pen- so, logo existo", no h, em Catatau, o "logo", pois nele o lagos cartesiano delira e ensandece: "muito baralhado esse negcio braslico!" (LEMINSKI, 1975, p.63), o que, de outro modo, man- tm a figurao de um Novo Mundo em oposio ao Velho. As- sim, o livro abre com o famoso ergo sum, imediatamente corrigi- do para "alis, Ego sum Renatus Cartesius, c perdido, aqui presen- te, neste labirinto de enganos deleitveis" (LEMINSKI, 1975, p.13). Em um livro que se quer todo espacial, este estudo, como abordagem inicial de pesquisa, tem o intuito de mostrar que em Catatau se cruzam trs temporalidades distintas: 1) a do sculo XX, em um livro escrito entre 1966 e 1975, no Brasil, segundo os parmetros da vanguarda do Concretismo, filiado s experi- mentaes de James Joyce, Guimares Rosa, Haroldo de Cam- pos, e retomando a linha do projeto modernistaJantropofgico de Oswald de Andrade; 2) a do sculo XVII, com o tema da presena fictcia de Descartes em Pernambuco, o texto parodia o pensamento clssico, sua ordem geral dos signos, sua mathesis e taxinomia, para defender a idia de sua impossibilidade em terras locais; 3) entre esses dois tempos - os sculos XX e o XVII - queremos mostrar que o livro de Leminski desfaz em negativa as bases que constituram o narrador de fico no Bra- sil no sculo XIX, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, mantm, com outra palavras, os mesmos pressupostos romnti- cos de um pas ednico, lugar incomum, terra "em branco"; ques- tes essas que discutiremos a partir dos estudos de Flora Sussekind, O Brasil no longe daqui (1990), e de Roberto Ventura, Estilo Tropical (1991). De modo que, no livro, as di- versas temporalidades no apenas se cruzam, mas coincidem: "Se nossas pocas coincidirem, nossas conversas sero contnu- as" (LEMINSKI, 1975, p.l11), o que conduz indagao: "A que poca atribuir nossos tempos" (LEMINSKI, 1975, p.38). Podemos tambm dizer que em Catatau ocorre o confron- to de duas epistemes que o romance encenaria: a episteme do sculo XVII europeu, que tem Descartes como pilar e que se caracteriza pela confiana na representao e no cogito, e a episteme que na passagem do XVIII para o XIX inaugura a "cri- se da representao", segundo M.Foucault (1966), e que se es- tenderia at uma obra de vanguarda e experimentalismo dos anos Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos de 1970 no Brasil, a qual acentua ou desloca a crise da represen- tao numa incurso pela linguaviagem. o viajante em trnsito, pensamento em transe Renatus Cartesius, personagem, encontra-se sentado som- bra de uma rvore do horto de Maurcio de N assau no palcio de Vrijburg (1642): "a cidade livre, a Olinda batava, onde em Pernambuco (paranimabuca, em tupi), Nassau organizou o pri- meiro zo e horto botnico s com plantas e animais tropicais" (Leminski, 1975, p.13). Fumando uma "erva de negros" e com uma luneta a seu lado, o pensamento claro e distinto do filsofo perturba-se, dissolve-se e aquece-se sob o sol dos trpicos. A ra- zo dorme ou sonha e o que ele v so monstros, como diz paro- diandoPascal, "O silncioetemo desses seres tortoseloucos me apavora" (LEMINSKI, 1975, p. 15). Comer esses animais h de perturbar singularmente as coisas do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e fIora: o estalo de coi- sas, o estalido dos bichos, o estar interessante (LEMINSKI, 1975, p. 15) Descartes aguarda Artyczewski (1592-1656), general da Companhia das ndias Ocidentais, que s aparece ao final do li- vro, embriagado. o ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartsio o fiel retrato, em termos de realismo, do estado de esprito do colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, at- nito: alienado (Leminski, 1989b, p.212) Descartes perde a razo e se metamorfoseia nos animais que observa. Assim, se "A bicharada, com que comea o Catatau, emblematiza o pasmo do Europeu (esse desbestializado)" (LEMINSKI, 1989b, p.212) , no livro o personagem se toma literalmente besta: Sinto em mim as foras e formas deste mundo, crescem-me hastes sobre os olhos, o plo se multiplica, garras ganham a 245 246 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de fera, renato fui. Se papai me visse agora, se mame olhar para c!" (LEMINSKI, 1975, p.36) Assim, se para o Descartes real o que diferencia os homens dos animais serem aqueles "capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de comp-las num discurso pelo qual faam entender seus pensamentos; e que, ao contrrio, no existe outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser, que faa o mesmo" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.61), Leminski faz entrar em curto-circuito essa capacidade: vingana contra o cartesianismo, sua lgica e a da colonizao. Assim tambm, se para Descartes "a razo um instrumento universal, que pode ser- vir em todas as espcies de circunstncias" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.60), para Leminski trata-se de defender a tese contrria. Uma frase de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropfa- go: " ... nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns", pare- ce estar na base de Catatau. A inteno do livro, nas palavras do autor, : "mostrar como, no interior da lgica todo poderosa, esconde-se uma inautenticidade: a lgica no limpa, como pre- tende a Europa, desde Aristteles. A lgica deles, aqui, uma farsa, uma impostura. O Catatau quer lanar bases de lgica nova". (LEMINSKI, 1989b, p.211). Segundo a Grammaire gnerale et raisonne (1660) e La logique ou l'art de penser de Port-Royal (1662), como aplicaes do pensamento cartesiano, toda proposio representa o pensamento que j representao da apreenso do mundo, portanto, represen- tao da representao, que caracteriza a idade clssica e sua con- fiana no cogito. Em oposio a essa concepo de transparncia da linguagem em relao a um pensamento que a lngua deve ape- nas traduzir sem interferir nem perturbar, Leminski compe um li- vro no qual a proposio, ao invs de representar o pensamento, o dilui, o desfaz, o liquefaz. Cada frase um desmentido da anterior. No h o desenvolvimento de uma idia em uma cadeia de proposi- es compondo pargrafos, mas uma sucesso de provrbios, fra- ses-feitas desfeitas, citaes, pardias, idiotismos, estrangeirismos. ::\o h sequer uma lngua nica no livro, mas uma mescla: Seu polilingismo o reflexo do polilingismo do Brasil de ento onde se praticavam as lnguas mais desencontradas: o Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos tupinamb da Costa e centenas de idiomas gs/tapuias, diale- tos afros, portugus, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita, holands, alemo, flamengo, francs, idisch e at hebraico (LEMINSKI, 1989, p. 212) Tudo no livro colabora para a confuso bablica em oposi- o clareza. Nesse sentido, Leminski compe um no-livro, como uma coleo de frases que pode ser lida em qualquer seqncia, texto ciberntico ou hipertexto. o no-livro para no leitores o livro se abre com uma inverso: ao invs da tradicional "Captatio Benevolentiae", o autor repele os leitores com uma "Repugnatio Benevolentiae": "Me nego a ministrar clareiras para a inteligncia deste catatau que, por oito anos agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se". Prope-se, assim, como o oposto da clareza e do bom senso, recusando o leitor comum visado por Des- cartes em seu Discours de la mthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verit dans les sciences, escrito em francs para po- pularizar o mtodo em 1637. Esse propsito manifesto de repelir os leitores insere-se n.o projeto do livro escrito para poucos, no dilema de leitores recusados-e-buscados, "ego-trip" como qualificado, no qual a comunicao com o outro (quer este outro seja o estran- geiro, o nativo, o "civilizado", o "brbaro" ou o prprio leitor) atin- ge um estado de entropia: "Mensagem afetada de elevado coefici- ente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau est distribu- da de maneira irregular" (LEMINSKI, 1989b, p.213). Como diz ainda o prprio autor, a informao absoluta, sempre nova, acaba por produzir redundncia, logo, informao nula, da "que a expec- tativa permanente no Catatau acaba por se tornar um estado 'mo- ntono' (cageno)" (LEMINSKI, 1989b, p.210). No Catatau, a expectativa sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar: rompe-se a lgica e as passagens de frase para frase so regidas por leis outras que no as normas da sintaxe discursiva 'normal' . Existe literalmente um abismo de frase para frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como na TV, entre ponto e ponto) (LEMINSKI, 1989b, p.21O). 247 248 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Na segunda edio de Catatau, em 1989, Leminski classifi- ca seu livro como um "romance-idia" aproximando-o, assim po- demos entender, de um tratado filosfico. Como efeito de leitura, diria que o livro parece ser mais interessante para estudar como "idia" do que para ler como "romance". Mesmo assim, est mais prximo de um "projeto de prosa" do que da forma de um "poe- ma em prosa", como define Haroldo de Campos: "Uma prosa que pende mais para o significante do que para o significado, mas que regurgita de vontade fabuladora, de apetncia pica, de estratage- mas retricos de dilao narrativa" (CAMPOS, 1989, p.217,18), e completa: "de um comedimento neobarroco, de um ensaio de liquefao do mtodo e de proliferao das formas em enormida- des de palavra, que se trata" (CAMPOS, 1989, p.214). Trata-se, diz Leminski, "de um caso textual de 'possesso diablica': um texto 'clssico' possudo por um monstro 'de vanguarda'" (LEMINSKI, 1975, p.211), chamado Occam (Ogum, Oxum, Egum, Ogam). Quando ele aparece no texto, as letras das palavras se alteram, mudam de lugar, "aconstrece": "Occam, aca- ba l com isso, no consigo entender o que digo, por mais que persigo". (LEMINSKI, 1975, p. 18) Fico/histria Foi como professor de Histria do Brasil, durante uma de suas aulas, que Leminski teve a idia que orienta o livro. Referi que, na Europa, o Prncipe Maurcio cercava-se de um sqito de ilustres. O filsofo francs Ren Descartes (que, moda do tempo, latinizava o nome para Renatus Cartesius) era fidalgo da guarda pessoal de Maurcio. De repente, o estalo: E SE DESCARTES TIVESSE VINDO PARA O BRASIL COM NASSAU, para a Recife/Olinda/Vrijburg/Freiburg/ Mauritzstadt, ele, Descartes, fundador e patrono do pensamento analtico, apopltico nas entrpicas exuberncias cipoais do trpico? (LEMINSKI, 1975, p. 207) Catatau compe-se assim como uma fico que refaz a his- tria dos holandeses no Brasil e sua interpretao incorpora na materialidade da escrita o fracasso desse empreendimento, pois a fala dissonante do personagem que faz desabar a razo cartesiana, Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos assim como desabou o projeto batavo nos trpicos. Deste modo, os Estados Gerais tinham planejado fazer do Bra- sil uma repblica muito rica, bela e poderosa, sem as lutas que ali se verificam presentemente. Pretendiam tomar-se o povo mais florescente e estimvel do mundo ( ... )". "( ... ) por fim, pensando ter tudo ganho, tinham perdido tudo. (MOREAU, 1651, p.88). 249 governo de Maurcio de Nassau no Recife (1637-1644) tido como a Idade de Ouro do domnio holands, correspondendo aos seis anos de paz relativa (1641-1645) dentre os vinte e quatro anos da guerra do acar (cf. MELLO, 1975, p.13). Por qu esse episdio histrico, o poder holands que se estende do Cear ao So Francisco durante vinte e quatro anos se reveste de importn- cia e interesse para o caso que aqui nos interessa, o de sua incorpo- rao pela fico? Destacamos dois aspectos. Primeiro, a questo do "nativismo". Segundo a historiografia, o domnio holands e os problemas envolvidos na guerra do acar favorecem uma primeira organizao especificamente brasileira, manifesta numa guerra de guerrilha que termina por expulsar os recentes invasores. O epis- dio estaria assim na origem de um sentimento nativista posterior, pois que s tomar corpo a partir de 1710 com a guerra dos masca- tes, como analisa estudo de Evaldo Cabral de Mello (1975). Assim, se a resistncia inicial aos holandeses marcadamente europia, com tropas portuguesas, castelhanas e italianas, a guerra de restau- rao assumir caractersticas brasileiras, com 2/3 de ndios e ne- gros como parte do efetivo luso-brasileiro, sendo financiada pela sociedade colonial do Nordeste. Como diz Jos Guilherme Merquior comentando o estudo de Evaldo Cabral de Mello: tanto o custeio da guerra quanto o recrutamento e abastecer das tropas, o seu comando e a sua estratgia se tomaro crescentemente locais e nativos. Exibindo com plena mincia fundamentos materiais, econmicos, logsticos e tecnolgicos, desse abrasileiramento da campanha contra o invasor, EeM realiza uma autntica sociologizao do nexo, que a historiografia precedente apontara sem demonstrar, entre o domnio holands e o sentimento nativista. (MERQUIOR apud MELLO, 1975). 250 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Podemos dizer que ao ficcionalizar Descartes nos trpicos como emblema da colonizao batava, Leminski opera, no tex- to, uma "guerra de guerrilha" contra o pensamento cartesiano, minando-o na estrutura de sua fala ininterrupta, e a questo do nativismo, importante para a prosa de fico que se fixa no s- culo XIX, acaba por ser incorporada, pelo avesso, com outras palavras, no Catatau, como discutiremos adiante. De outro lado, trata-se de um episdio histrico que se caracteriza como uma possibilidade no realizada: e se os holan- deses tivessem sido vitoriosos e permanecido no Brasil? Nesse sentido, arriscamos dizer que o romance de Leminski d corpo ficcional anlise de Srgio Buarque de Holanda, em Razes do Brasil (1936), em relao ao fracasso do projeto da Nova Holanda, ("Seu empenho em fazer do Brasil uma extenso tro- pical da ptria europia sucumbiu desastrosamente ( ... )", HOLANDA, 1936,p.34). Dentre os motivos elencados por Sr- gio Buarque para esse fracasso estariam o pouco "contato nti- mo e freqente com a populao de cor" (HOLANDA, 1936, p.34), as dificuldades fonticas dos idiomas nrdicos para os ndios e negros e a pouca aceitao do protestantismo: o insucesso da experincia holandesa no Brasil , em verdade, mais uma justificativa para a opinio, hoje corrente entre al- guns antropologistas, de que os europeus do Norte so incompa- tveis com as regies tropicais (HOLANDA, 1936, p.34). Assim tambm se manifesta Leminski em relao ao pro- jeto de seu livro: "O Catatau o fracasso da lgica cartesiana branca no calor, o fracasso do leitor em entend-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trpico". (LEMINSKI, 1989b, p.216). Como disse Antonio Risrio: "Fracassou, por motivos vrios, a colonizao holandesa, o projeto-Nassau. Leminski d conta de um outro fracasso: pensar o Brasil em pensamento europeu" (RISRIO, p.220, 1976). Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos A "Sensao de no estar de todo" e o "Estilo tropical" A partir dos estudos de Flora Sussekind e de Roberto Ven- tura desenvolveremos algumas hipteses na leitura de Catatau. Em seu estudo O Brasil no longe daqui (1990), Flora Sussekind assinala os "retornos em diferena da imagem do viajante na pro- sa brasileira" (SUSSEKIND, 1990, p. 155). Seu estudo parte dos anos de 1830 e 1840, mostrando como o narrador de fico no Brasil se institui como um narrador-viajante, um narrador- cartgrafo, baseado em dois gneros no ficcionais: o relato de viagens e o paisagismo ("sobretudo o que tematiza vistas e exube- rncias tropicais", SUSSEKIND, 1990, p.20). Esse narrador, li- gado ao anseio de fundar uma literatura nacional diversa da euro- pia, tem como modelo e "certido de verdade" o olhar do via- jante estrangeiro, o do naturalista que classifica o que v e o do paisagista que desenha e mapeia. Como ela demonstra, esses nar- radores-cartgrafos sofrem uma primeira transformao entre 1869 e 1880, "em direo s mscaras do historiador e do cronista de costumes" (SUSSEKIND, 1990, p. 155), e seu estudo conclui-se com a anlise da viagem auto-reflexiva dos narradores de Macha- do de Assis, que desarmam as idias fixas de natureza e cor local. Encerrando-se aqui, no deixa, contudo, de apontar para outras transformaes histricas desse narrador ligado viagem: E, na prosa modernista dos anos 20 deste sculo - vide Macunama, Memrias sentimentais de Joo Miramar, Serafim Ponte Grande, Path Baby - se reinterpretariam viagens e nar- radores-em-trnsito. Assim como fariam em fins dos anos 60 textos to diversos como Quarup, de Antnio Callado, e Panamrica, de Jos Agrippino de Paulo; na dcada de 70, o "Descartes com lentes" perdido no Brasil holands do Catatau, de Paulo Leminski, ( ... ) e um livro que se autodefine como uma "ao lu viagem" como Galxias, de Haroldo de Campos ( ... ) (SUSSEKIND, 1990, p. 154,155). 251 o livro de Leminski apresenta uma ego-trip, o pensamento- fala de Descartes ininterrupto; um viajante estrangeiro em terra recm-conquistada e que tenta descrev-lo e compreend-lo; a descrio da fauna local compondo um bestirio. No entanto, o que ocorre uma inverso: o novo mundo impede as construes 252 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 do velho mundo, sendo necessrio um outro pensar-dizer, de modo que o autor desconstri os pressupostos que orientaram a consti- tuio do narrador de fico no Brasil oitocentista a partir mesmo de suas bases. Ao chegar ao Novo mundo cabe ao sujeito nome-lo, descrev-lo mape-Io, transformar a natureza em "civilizao", desenhar, pintar, escrever sobre essa terra em branco (cf. SUSSEKIND, 1990, p. 13). Trata-se do papel do conquistador nos livros de viagem, modelos da prosa de fico que "passa a se oferecer no propriamente como literatura, mas como mapa unificador, tratado descritivo, paisagem til" (SUSSEKIND, 1990, p.22). Nessa prosa de fico estar sempre presente, a partir do pensamento de Ferdinand Denis, "a crena na fora selvagem da natureza nos trpicos" (SUSSEKIND, 1990, p.27). Assim, mais do que relato, tem-se o inventrio, a classificao naturalista, a expedio cientfica, a paisagem pitoresca a ser estudada: "Se ao viajante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista caberia classificar, ordenar, organizar em mapas e colees o que se encontra pelo caminho" (SUSSEKIND, 1990, p.45). Como vimos, Leminski define seu livro como "sem mapas", opondo-se, portanto, imagem do narrador-cartgrafo-e-paisagis- ta, assim como ridiculariza o "desejo de ao mesmo tempo represen- tar e colecionar a paisagem" (SUSSEKIND, 1990, p. 119), quan- do, por exemplo, citando Marcgravf e Spix, faz Descartes dizer: Por eles, as rvores j nasciam com o nome em latim na casca, os animais com o nome na testa ( ... ), cada homem j nascia escrito em peito o epitfio, os frutos brotariam com o receitu- rio de suas propriedades, virtudes e contraindicaes. (LEMINSKI, 1975, p. 34) o instrumento ptico, a luneta, que acompanha o persona- gem Cartsio em Catatau, tambm figura nos relatos analisados por Flora: "essa verdadeira representao hiperblica do olhar armado do viajante naturalista que o telescpio. Como se v em Spix e Martius. Ou luneta, como se v na tela O morro de Santo Antnio no Rio de Janeiro (1816), de Nicolau Antnio Taunay" (SUSSEKIND, 1990, p. 126). No caso de Catatau, a luneta est presente quando faz aumentar as prprias letras do texto em mai- sculas, no entanto, mais cega o personagem do que o esclarece: Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos 253 "E os aparelhos ticos, aparatos para meus disparates?"; "Esta lente me veda vendo, me vela, me desvenda, me venda, me revela. Ver uma fbula - para no ver que estou vendo"; "A figura figurada. Desvidro-me. No representa o que apresenta. Em ou- tras palavras, so outra coisa." (LEMINSKI, 1975, p. 16, 17,19). Para opor-se racionalidade matemtico-cartesiana, Leminski cria, assim, um personagem que como um viajante que perde totalmente os parmetros de sua cultura de origem, sofren- do uma espcie de "bloqueio" e "trauma". Ao identificar o que ela chama de a "sensao de no estar de todo", Flora cita dois exem- plos que encontram paralelo no livro de Leminski: o livro de Jlio Veme, O eterno Ado, no qual os nufragos sobreviventes che- gam em um continente desconhecido, mas, ao invs de civiliz-lo, "no so os 'nufragos' que conquistam o continente descoberto; este que parece lentamente devor-los" (SUSSEKIND, 1990, p. 14). Assim tambm em Quarup, de Antonio Callado, o persona- gem que finca a bandeira nacional no centro do pas coberto por milhes de savas, imagem esta retomada ao final de Catatau: "e as formigas me comendo e me levando em partculas para suas monarquias soterradas" (LEMINSKI, 1975, p.205). "Livro-limite", na expresso de Haroldo de Campos, a hi- ptese que lanamos a de que Catatau seria o ponto extremo desse modelo analisado por Flora, seguindo uma linha que se ini- cia nos decnios de 1830 e 1840. Transgresso mxima desse modelo, o livro ainda se encontra dentro do mesmo paradigma, como se o rompimento total no deixasse de ser tambm o ponto de chegada dessa tradio. Dubiedade que faz o sucesso/fracasso do livro. Nesse sentido, o fracasso programtico coerente, pois trata de desfazer pelo avesso os postulados que orientaram a fic- o no Brasil. Dbio, porque, ao negar com tanta radical idade essa tradio, acaba, de outro modo, por afirmar o que nega, ou seja, apesar de sua fora contestadora, o livro mantm em outras bases noes como a de "natureza exuberante", territrio parte no domesticvel, e, inclusive, a idia de um "estilo tropical". Como mostra o estudo de Roberto Ventura (1991), alis contem- porneo do de Flora, "A crtica e a histria literrias brasileiras foram marcadas, at 1910, pelas noes de raa e natureza. As origens do 'estilo' literrio eram atribudas ao diferenciadora do meio ambiente ou da mistura tnica" (VENTURA, 1991, p.18). 254 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Assim Araripe Jnior, em 1888, escreve sobre o estilo tropical, a partir da adaptao do naturalismo no Brasil, dizendo: Emigrando para o Brasil, o naturalismo no podia deixar de passar por uma migrao profunda. Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real aqui. (JNIOR, 1888, apud VENTURA, 1991, p. 17, 18) No poderamos traduzir essa mesma frase para o caso de Catatau, alterando apenas os nomes? Emigrando para o Brasil, o cartesianismo no podia deixar de passar por uma migrao profunda. Descartes, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real aqui. Ou seja, no se trata da mesma idia com outra roupagem? E ainda diz Araripe: "A nova escola, portanto, tem de entrar pelo Trpico de Capricrnio, participando de todas as alucinaes que existem no fermento do sangue domstico, de todo o sensualismo que queima os nervos do crioulo" (JNIOR, 1888, apud VEN- TURA, 1991 ,p.I8). Tambm no de alucinao e delrio que se trata no caso da ficcionalizao de Descartes, sofrendo a influn- cia do meio no corpo de seu pensar, como revelam as poucas frases pinadas a seguir? "Este mundo o lugar do desvario, a justa razo aqui delira"; "Este calor acalma o silncio onde o pensamento no entra, ingressa e integra-se na massa" ; "Nestes climas onde o bicho come os livros e o ar de mamo caruncha os pensamentos" (LEMINSKI, 1975, p.17, 28), dentre muitas ou- tras que poderiam ser citadas. Ainda seguindo o pensamento de Araripe Jnior, ele assim define a tropicalidade do estilo: "h estilo que resista, h correo que se mantenha? O [estilo] tropical no pode ser correto. A cor- reo o fruto da pacincia e dos pases frios; nos pases quentes, a ateno intermitente" (JNIOR, 1888, apudVENTURA, 1991, p. 18). Assim tambm intermitente a fala de Descartes em Catatau: "Pensamento, aqui, susto";"Tudo o mais que sei no cabe no que digo, j no h mais o que eu havia dito, j h s o Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos que nunca se soube. Os sintomas. Os sintomas de tudo, os siste- mas totais." (LEMINSKI, 1975, p.19). Retomando a hiptese levantada: com toda a inverso demolidora que faz Leminski, no se trata, mesmo que do avesso, de propor a mesma coisa? A idia de uma radical diferena dos trpicos em relao Europa? O verso e reverso de uma mesma moeda-idia? No se trata ainda de uma obsesso pela natureza exuberante? A mesma que est na "constituio do narrador de fico na prosa romntica brasileira e de algumas de suas trans- formaes histricas" (SUSSEKIND, 1990, p.19)? Portanto, o li- vro de Leminski insere-se como transformao histrica desse mesmo modelo inicial, s que problematizando-o em negativa. Se prosa de fico romntica cabia o desejo de mapear o Brasil, o que faz Leminski apagar as linhas do mapa, buscando no um comeo histrico, mas a origem entendida como originalidade absoluta, apagando todas as escritas calcadas na lgica e no modo europeu de apreenso do Novo Mundo. Espcie tambm ele de Marco Zero. Assim, no haveria tambm em Catatau a afirmao de uma "essncia original", no da nacionalidade, mas de uma noo de territrio parte, trpicos indomveis, no domesticveis, regio inconsciente na qual conscincia alguma pode dar conta, como um resto, um resqucio a perturbar a razo? Espcie de pensa- mento selvagem versus o cogito cartesiano, ou o cogito cartesiano confrontado com o pensamento selvagem, bricoleur, a destruir a lgica dos viajantes invasores. Ao mesmo tempo, o livro foi es- crito entre 1966 e 1975, em pleno perodo de ditadura, nesse caso, seu desejo de falncia manifesta, seu afastamento voluntrio dos leitores, sua ilegibilidade programada, no se ligariam tambm a um projeto de contestao poltica? Espcie da autofagia da lite- ratura que se devora a si mesma at desaparecer do mapa ou fazer desaparecer qualquer mapa. Se, antes, busca-se a nacionalidade, aqui parece haver o desejo voluntrio de perder-se, sumir do mapa, tornar-se inencontrvel. Busca-se apagar os rastros do j dito, re-fundar uma terra em branco, justamente o inverso do desejo que movimentava os narradores de fico nos decnio de 30 e 40 do sculo XIX, como a imagem em negativa desse anseio fundador, cartogrfico, des- critivo, de expedio cientfica. Tudo vai abaixo em Catatau 255 256 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9. 2006 (onomatopia tambm para queda). Mesmo assim, com todo esse grau de negativas, ainda se trata de uma transformao desse mesmo narrador-viajante, situando-se nesse paradigma, apesar de apontar pra um ponto de no-retomo: o que escre- ver depois disso? A falncia programtica do livro, a nosso ver, viria de um dilema no resolvido em uma tenso que permanece: a de um livro de vanguarda que repete com diferena as bases da prosa de fico no Brasil e que prope um rompimento radical com a re- presentao de moldes romnticos, realistas, naturalistas, mas que, paradoxalmente, mantm seus pressupostos, tais como a natureza exuberante ou a influncia do clima. O dilema no resolvido viria da juno ou justaposio de desconstruo formal unida a uma ideologia conservadora de um mesmo ideal romntico. Por no poder mant-las juntas - a rebeldia, a pardia, a descontruo e a manuteno de um mesmo ideal do avesso - sem gerar um choque auto-contraditrio, coerente tambm ele com a proposta do livro, o fracasso faz-se inevitvel, podendo ento ser lido como um caso- limite, de fato, da fico do estilo tropical chegada a um ponto de no-retomo. A par do atrativo pela idia-mor do livro: a dissoluo do pensar cartesiano em solo e selva tropical e do cmico da situao em que coloca Descartes, a par desse interesse e amor que o livro desperta em ns, leitores, digamos assim, nativos, como uma vin- gana tropical-concretista-antropofgica, ele se manteria ainda nas categorias do pensamento romntico. Quer dizer, h um efeito misto na leitura de Catatau, ou naquilo que no livro podemos tentar ler j que ele mesmo se apresenta sem mapas nem coorde- nadas, de atrao e recusa. Aqui tambm "a sensao de no estar de todo" atinge a leitura e este texto. Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em trs tempos Referncias BONVICINO, Rgis. Com quantos paus se faz um Catatau (1979). In LEMINSKI, P. Catatau. Um romance-idia. 2 a ed. Porto Alegre: Sulina, 1989, p.224-226. CAMPOS, Haroldo de. Uma Leminskada Barrocodlica (1989). In __ _ Metalinguagem & outras metas. 4 a ed. revista e ampliada. So Paulo: Perspectiva, 1992. pp.213-220. CAPISTRANO, Paulo. Descoordenadas Cartesianas em trs ensaios de quase filosofia. Natal: Ed. Sebo Vermelho, 200l. CARVALHO, Tida. O Catatau de Paulo Leminski, (ds) coordenadas cartesianas. So Paulo: Grupo Editorial Cone Sul, 2000. DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. (1637). Introd. Gilles-Gaston Granger; prefcio e notas Gerard Lebrun; traduo de 1. Guinsburg e Bento Prado Jr. 3" ed., So Paulo:Abril Cultural, 1983, pp. 25-7l. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das Cincias Humanas (1966) Traduo de Salma Tannus Muchail. So Paulo, Martins Fontes, 2000. HOLANDA, Srgio Buarque de. 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Desde o Pentateuco, passando por Xavier de Maistre at, muito particularmente, "a forma livre de um Sterne", este primeiro romance moderno da literatura brasileira, como divisor de guas entre o romance oitocentista anterior e a descen- dncia que, ento, funda, proclama a "loucura da leitura" como a maior evidncia de nossa radical impossibilidade de ser realistas e ou professar a crena num mundo objetivo acima de qualquer suspeita .. "Autor incerto de incerto romance"! ,Brs Cubas funda uma realidade trpega e deslizante, na qual a "louca leitura" da vida pelo privilgio da morte, como ponto de vista, transforma-a num espetculo desmesurado, arbitrrio e absurdo. Tal "ambivalncia na relao entre a verdade e a fico", radicalizada pela sndrome da condio colonizada de nossa cultura, permanece, desde en- to, no horizonte do romance hispano-americano, como a mais radical estratgia de modernidade: o exerccio autoconsciente da forma como inveno tcnica capaz de problematizar a realidade e desestabilizar o dogmatismo do que . Hoje, no incio do sculo XXI, a invaso do real pelas ima- gens da ltima revoluo tecnocientfica renova e aprofunda a persistente pergunta ibero-americana sobre quem somos ns. que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente cole- tivo pela Histria, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma um outro: 259 260 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 O bovarismo uma chave do mundo moderno: a fonna em que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma me- mria impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de massas uma mquina de produzir lembranas e experincias 2 2 PIGLIA, 1980, p.48 Partindo da borgiana concepo da memria como citao mltipla e renovvel, numa infinita espiral de tradues, Piglia concebe sua literatura tambm na contracena entre a heterogeneidade de uma herana hbrida e o vazio de uma tradi- o amnsica e falhada. A cidade ausente 3 , a este respeito, ab- 3 Idem, 1997 solutamente modelar. Na contrapartida mquina da cultura de massas em sua aliana s fices do imaginrio do Estado, o es- critor concebe uma espcie de poderosa alegoria da narrativa como espao de resistncia e de desrealizao das trampas do poder. Numa homenagem Macedonio Fernndez - "el escritor de la nada" - precursor de Borges, Piglia fabula o universo de uma estranha Buenos Aires conflagrada pelos "efeitos ilusrios"4 4 Ibidem, p.80. de uma mquina replicante, capaz de "tornar viva a memria" e a lembrana da mulher amada, atravs da produo de um relato desdobrvel e infindo, "que retoma eterno como o ri0 5 ". A at- 'Ibidem,p.126. mosfera onrica e fantasmagrica do implausvel confronto entre a mquina de Macedonio e as "fices eletrnicas 6 " do Estado fi Ibidem, p.117. dissemina um clima irrespirvel, numa cidade em que "os contro- les (so) contnuos", "a ltima palavra () sempre da polcia" e, estranhamente, "todo mundo concorda em sonhar o mesmo so- nho", vivendo "confinado numa realidade diferente"7 . 7 Ibidem, p.73. Assim, a narrao em 3 a pessoa do priplo de Jnior oferece uma estranha sucesso de enredos nos quais o jornalista itinerante, obsedado por enfrentar-se com o passado, entra e sai dos relatos e em que tambm o leitor submerge, em meio inconsistncia geral dos enredos e dos personagens. A incerteza da seqncia narrativa, plena de intersees e recorrncias, reitera-se pela pr- pria incerteza do narrador impessoal que, provavelmente, ser a prpria mquina desarranjada, com a palavra na ltima etapa do relato: "Eu sei que me abandonaram aqui, surda e cega e meio imortal, se pudesse apenas morrer ( ... ) deixar de ser esta memria alheia, interminvel, construo a lembrana e SS". 8Ibidem,p.137. Enquanto resposta poltica e televiso, espelhos em que Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes caras e mais caras aparecem e se olham e se perdem, a mquina concebida pelo seu criador, segundo o "princpio construtivo" me- 9 Ibidem,p.116. diante o qual, "tudo possvel, basta encontrar as palavras"9 . A busca do passado para preencher o vazio do prprio nome, faz de Jnior uma espcie de detetive, to perdido e atnito quan- to o leitor, e transforma a narrativa numa investigao, j que 10 Ibidem,p.129. "todo relato policiapo" e tudo aquilo que escapa "tendncia II Idem, 1980,p.54. generalizada de uniformizar a experincia 11" merece ser criminalizado. Justamente esta ntima conexo entre narrativa e poder se explicita na ltima parte do romance, quando a mquina interditada reconhece: A narrao ( ... ) uma arte de vigias, sempre esto querendo que as pessoas contem seus segredos, dedurem os suspeitos, falem dos seus amigos, dos seus irmos. Ento, ( ... ) a polcia e a assim chamada justia fizeram mais pelo avano da arte do 12 Ibidem,p.129. relato que todos os escritores ao longo da histria 12
A despossesso pela linguagem ou a linguagem como m- quina de despossesso, alm de atualizar nossa histria autorit- ria, enseja a reflexo sobre a porosidade das mentes e coraes s mquinas, na medida em que o espelho miditico invade e formata todas as cenas. Entretanto, se "a rvore do bem e do mal a rvo- re da linguagem", tal ambiguidade fundamental, ao manifestar "a 13 Ibidem,p.l04. forma incerta da realidade"13 ,pode confundir fico e confisso ou ainda embaralhar os limites entre narrar e ser narrado. No outro o motivo do peculiarssimo romance de Srgio 14SANT'ANNA, 1997. Sant' Anna, Um crime delicado 14 .. Sua trama de "escorpio encalacrado", fazendo deslizar as fronteiras entre arte e vida, re- presentao e experincia, crtica, criao ou mistificao, bem po- deria merecer como epgrafe mais uma das falas da Mquina de Macedonio sobre o vnculo entre narrativa, identidade, e investiga- o: "Todo relato policial ( ... ) S os assassinos tm alguma coisa 15 PIGLlA, 1997, p.130. para contar, a histria pessoal sempre a histria de um crime"15 . A intrigante histria do crtico de teatro Antonio Martins 16SANT'ANNA,1997,p.22. escrita por ele como "pea de natureza quase processuaJl6" para defender-se da acusao de estupro, e entender-se "intelectual, afetiva e criticamente" constitui, sem dvida, um eloqente teste- munho da ambigidade entre confisso, culpa e encenao. 261 262 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Seu envolvimento com Ins, mulher estranha e manca, mo- delo de um artista plstico de meia idade, desencadeia uma "nar- rativa autobiogrfica 17" que, apesar de invocar para si "a meticu- l7lbidem, p.85. losidade e os rigores da escrita I8 ", termina por reconhecer a ver- 1" Ibidem, p.l04. dade como "ideal fugitivo e inalcanvel"19 . 19 Ibidem, p.l26. Qual um detetive, o narrador dispe-se ao relato, na "busca apaixonada .( ... ) da verdade 20 ", atravs de uma auto-investigao 20 Ibidem, p.30. fluida e escorregadia, vazada numa espcie de estilstica da inde- ciso. Primeiro porque sua prpria experincia com Ins comea sob a aura do esquecimento e da privao de sentidos: "Sofro de amnsia parcial, s vezes quase total, depois que bebo em exces- so, e era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus temores eram mais justificados do que a euforia 21 ". Depois pela 21 Ibidem, p.22. relao indefinida e ambivalente entre Vitrio Brancatti e sua modelo, projetada numa obra, espcie de instalao performtica, que constitui um absorvente work in progress, capaz de engolfar Ins, e o prprio narrador-crtico com ela envolvido. Apaixonado pela "modelo e personagem da pintura 22 ", An- 22 Ibidem, p.103 tonio Martins, aps envolver-se em nebulosos eventos que termi- nam por lev-lo a julgamento pela acusao de estupro, resolve dedicar-se "narrativa autobiogrfica", conduzida como "uma investigao interrra 23 ", em que, segundo ele, "mais do que 23 Ibidem, p.27. (se)defender de acusaes controvertidas e tortuosas, tent(a) ex- plicar-(se) e entender-(se), intelectual, afetiva e criticamente 24 ". 24 Ibidem, p.102. Acontece que, conforme a todo o momento o reconhece o crtico, sua "escrita minuciosa 25 "jamais consegue matizar sentimentos 15 Ibidem, p.97. contraditrios , ou o ntimo "caos de emoes 26 ". O poo sem 26 Ibidem, p.95. fundo da prpria subjetividade segundo ele, "uma caixa ilimita- da 27 " ou ainda o "palco interior", de um teatro onde culpas reais "Ibidem, p.20. OU imaginrias e afetos dspares podem duelar sem trgua, numa proliferao incessante de hipteses e possibilidades. Nesta intrincada correlao, um "texto cheio de curvas", "pleno de interrogaes 28 " encena a mstica da subjetividade como 28 Ibidem, p.50. fingimento, na prpria medida em que, a cada passo, se debrua sobre a reversibilidade entre experincia e representao, ou ain- da entre memria e imaginao. Assim o biombo da tela-instala- o de Vitrio Brancatti , de certa forma, a metfora deste relato que, como ele, constitui um anteparo, mais capaz de velar do que esclarecer a experincia atravs da escrita. Como bem o reconhe- Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes 29 Idem. I A leitura que aqui desenvolvo baseia-se livremente nas interpretaes de Antonio Quinet, em seu livro citado na bibliografia, e no clebre Foucault de As palavras e as coisas. ce O crtico-narrador, no seu infindvel "mise en abime": Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, das coisas reais, se que existe uma realidade humana que no seja a sua representao, ainda quando apenas pelo pensamento, como numa pea teatral a que no se deu a devida ordem, alis inexistente na realidade 29
o carter ambguo e construdo da confisso como fico comea sugerido desde as composies das capas, concebidas por Joo Baptista da Costa Aguiar, como uma montagem de dois qua- dros. Na primeira capa, o "Pigmaleo e Galatia" de Jean-Lon Grme, contornado por grossa moldura de um dourado acobreado, contm, substituindo o adorno cnico do fundo, o emblemtico "As Meninas" de Velsquez. A quarta capa reproduz este ltimo quadro, tambm contornado por moldura idntica da primeira capa, e contendo ao fundo, no lugar da imagem refle- tida do casal real espanhol, o quadro de Grme. A mtua implicao entre essas duas clebres pinturas cons- titui o cerne do universo ficcional desta novela, habilmente conduzida para diluir fronteiras e desterritorializar premissas so- bre a suposta distncia entre arte como inveno e vida como experincia concreta. A obra de Grme trata do mito sobre a paixo do criador por sua criatura, a esttua da bela mulher, ento animizada por artes da deusa Afrodite. Por sua vez, o quadro de Velsquez constitui um clssico metacrtico l , espcie de "tuming paint" em que o barroco pensa a perspectiva clssica e representa a representao, na medida em que encena a diviso do sujeito e a disperso da interioridade atravs da duplicao do pintor. Assim, o pintor-sujeito, em seu auto-retrato, no nvel do quadro desdo- bra-se explicitamente como um duplo: o pintor diante de sua tela, olhando em frente, a observar seus modelos, o casal real do lado de fora da tela; e no ponto de fuga, ao fundo do quadro, seu pri- mo, Don Jos Nieto Velsquez,. Mas, alm disso, o pintor tam- bm se projeta para fora do quadro, situando-se no ponto infinito, direita do espectador, numa diagonal com o pintor que visto na tela, como o pintor-sujeito que a olha. A dramatizao abissal, j que o sujeito dividido comparece vendo o quadro, sendo visto vendo o quadro ou ainda, numa infinita seqncia, vendo-se ser visto vendo o quadro e por a sucessivamente. 263 264 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Por outro lado, a cena pictrica desborda-se num outro que simultaneamente modelo e espectador imaginrio. Trata-se do casal real, includo no quadro como imagem difusa, refletida no espelho ao fundo, para quem, supe-se, toda a cena est montada. O entrecruzamento de olhares e pontos de vista - do pintor que olha de fora a prpria tela, dos reis, ao mesmo tempo modelos e espectadores e, portanto, lugar-tenente de quem contempla a obra - figura, numa leitura psicanaltica, o inapreensvel do sujeito no campo escpico, dividido entre o ver e o olhar, o pensar e o ser, como significante sempre elidido e continuamente diferido. A importncia da montagem dessas telas, nas duas capas do livro reside na figurao que oferecem do jogo impalpvel opera- do pela narrao entre verdade biogrfica, memria e fico, num constante deslizamento indecidvel entre arte e vida. Da mesma forma que as telas deslizam de seu suporte, invadindo o mundo do espectador, e transtornando os limites entre construo pictrica e existncia, no enredo do romance, a obra de Brancatti confun- de-se com a vida do pintor e sua figurante, absorvendo o crtico, com ela envolvido e por fim includo na obra. Nesse sentido, o momento em que Antonio Martins, o crti- co-narrador, se depara, pela primeira vez, com o quadro de Brancatti emblemtico . ... mostrava Ins, sentada num tamborete, atrs do biombo ne- gro, capturada no ato de vestir ou despir um penhoar ou quimono, de modo que se via um de seus seios - um belo, firme e pequeno seio - enquanto sua perna rija se descobria inteira- mente, por estar naturalmente esticada, deixando que se entre- visse, mais acima, a penugem de seu sexo. Sobre a borda do biombo, num naturalismo ostensivo, estavam jogadas uma calcinha e um suti. Tive um choque, porque era exatamente a materializao da minha fantasia na manh posterior bebe- deira, e que, portanto, deixava o terreno da fantasia para entrar no da realidade 30
A viso da tela pelo narrador-personagem, no s relativiza as fronteiras entre o impreciso da recordao e a suposta nitidez da vivncia, mas, sobretudo, concretiza a idia da fantasia como um quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do dese- jo do Outro 2 No momento em questo, o quadro pintado de 30 Ibidem, p.55. 2 Leia-se a respeito do valor cnico da fantasia o captulo "Quadro da fantasia" de Um olhar a mais ver e ser visto na psicanlise de Antonio Quinet Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes 265 31 Ibidem, p.119. Brancatti revela-se inteiramente confundido ao quadro mental composto pelo crtico, na nvoa da noite anterior, em profundo xtase desejante por Ins. Nesse sentido, o carter cnico da fantasia, tomado como endereamento ao Outro, fundamenta a narrao do crtico tanto em sua constante ftica de apelo ao leitor, quanto na prpria con- cepo do narrador sobre o carter teatral da subjetividade como "palco interior", ou ainda na inter-relao estreita atravs da qual conjuga e compreende as linguagens artsticas, como a literatura que produz, o teatro e a pintura. Assim a natureza hbrida da obra de Brancatti, entre a pin- tura, a representao teatral ou perforrntica, bem como a ambi- gidade de que se reveste como produto das relaes particulares vividas entre a modelo e o artista, amplia-se pela incluso, em seu mbito, do prprio relato de Antonio Martins, conforme ele mes- mo o reconhece: E se eu pretendia - embora meus atos e atitudes perante a jus- tia no pudessem assegurar-me disso - ser absolvido, era em meus termos, que incluam essa posse conquistada de Ins, ele- vando-me da mera condio de fantoche manipulado pelo pin- tor e sua modelo de ator consciente dentro da obra, apesar de eu no ter uma certeza cabal disso, procurando ilumin-lo um pouco melhor em minha prpria obra: este relato3l Por sua vez, o prprio relato, no espelhamento que promo- ve entre suas mltiplas dimenses - a crtica, autobiogrfica e a ficcional - pode tornar-se, da mesma forma que a obra do pintor que o inspirou, passvel de desconfiana, como uma espcie de engenhosa mistificao. ainda a loquacidade do prprio narrador que o reconhece: ... no poder uma obra ser ao mesmo tempo pssima e provocativa, vulgar e estimulante, tomando relativo, para no dizer intil, todo juzo de valor? O que, por sua vez, remetia e remete a uma outra pergunta: no poder uma pea crtica tor- nar-se uma obra de criao to suspeita e arbitrria quanto A modelo de Vitrio Brancatti? O paradoxo da arte diante do ecletismo ps-moderno, em 266 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sua fome de celebridades instantneas e descartveis em que lixo e purpurina se misturam, aqui vem sintetizado pelo histrionismo do crtico-narrador, hbil em efeitos especiais e labirintos retricos. A m-conscincia dos torneios e o brilho da argumentao, afiada em jogos antitticos e afeita ao absurdo, na cooptao do leitor, escora-se no reconhecimento de que, neste final de sculo, "as fronteiras dos valores acabaram por se diluir 32 ", e os parmetros 32 Ibidem, p.90. escasseiam. Da, a radical estetizao da vida cotidiana e a escorregadia confuso entre as construes artsticas ou miditicas e o efeito de realidade que produzem. Quando a vida invadida pelo simu- lacro, o cho da experincia falseia e o desejo passa a ser siderado pela imagem, desrealizando o mundo sua volta .. Como na inusi- tada des-experincia de Antonio Martins: ... eu verificava magnetizado, que, com o deslocamento da luz, a tela, o estudo, a instalao, a pea, enfim, de Brancatti, com a muleta, ia adquirindo, independentemente do valor que se lhe pudesse atribuir, cor, vida, movimento, sob a luminosidade do dia agonizante ( ... ) que, aos poucos, em seus estertores, aca- bou por incidir tambm em ns, em Ins, como se a modelo e personagem da pintura que eu vira na exposio houvesse salta- do da obra para estar em meus braos, naquele cenrio com seus mveis e adereos, fazendo de ns imagens de um quadro em movimento, uma cena para dentro da qual eu fora tragado ... 33 33 Ibidem, p.103. Aqui, ao invs do nascimento de Galatia da tela para a vida, tem-se, ao contrrio, a absoro de seu amante, um Pigmaleo rebaixado, ao quadro da fantasia que os engolfa e desmaterializa. O narrador, feito imagem de si mesmo, acolhe nos braos a Galatia que no criou e, por isso mesmo - "tanto autor quanto mero ator"34 - passa a considerar o processo criminal a que subme- 34 Ibidem, p.106. tido como "um processo esttico, um jogo de xadrez 35 ", entre ele 35 Ibidem, p.121. e o pintor. Por sua vez, Brancatti, porque "dera luz um enigma plstico e pictrico, ao colocar o real sob suspeita num tipo de obra total", termina por desrealizar a vida como "teatro", afinal, to bem consumado com a interlocuo do narrador-rival. Piglia, ao palmilhar teoricamente o caminho ficcionalizado por Sant' Anna, reconhece que "em mais de um sentido o crtico Narrar ou perecer: Srgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes o investigador e o escritor o criminoso", o que o leva a pensar o romance policial como "a grande forma ficcional da crtica liter- 36 PIGLIA, 1994, p.72. ria"36 Neste "crime delicado", a prpria identidade indecisa do narrador-crtico, manifestada em sua escrita confessional e sinuo- sa, coleciona os atributos. Ele ser tanto o detetive que investiga, quanto o criminoso que escreve. No por outro motivo que, apesar da absolvio judicial, 37SANT'ANNA,1997,p.27. na "investigao interna"3? que se auto-impe, Antonio Martins conclui pela prpria culpa, "uma culpa visceral e atvica, um ver- ]R Ibidem, p.118. dadeiro pecado originaPS ". Com mal disfarado prazer, o narrador assume, no s a imputao de "estuprador da arte", como tam- 39Ibidem,p.l31. bm ajornalstica caricatura de "vampiro" que lhe fazem 39 . E mais, como bom personagem de romance noir, ainda se- 4PIGLIA, 1994, p 78. gundo a lgica apontada por Piglia 40 , o narrador-detetive, quanto mais investiga, mais crimes produz. assim que, despedindo-se dos leitores, no se peja em confessar a ativa participao que passa a ter na instalao itinerante e ento, internacionalmente famosa de Brancatti, considerada pelo prprio crtico como "vul- 41 SANT'ANNA,1997,p.1l8 garidade \'oyeurstica"41 . Aos desavisados informo que entrada da instalao itinerante de Vitrio nunca se deixa da afixar cpias do material de im- prensa sobre o caso Ins, com tradues para o alemo, o in- gls e o francs. Desses recortes, naturalmente, alm dos retra- tos do artista e sua modelo, constam alguns deste crtico, inclu- sive a foto que o capturou no instante em que contemplava a pintura de Brancatti em Os Divergentes. E tambm a caricatu- 42 Ibidem. ra do crtico enquanto vampiro 42
43 PIGLIA, 1997, p.l14. De um lado, ambivalente e sinuosa, a mquina de Antonio Martins, ao contrrio da de Macednio, no romance de Piglia, procura esquecer o desalento diante da constatao de que: Um relato no outra coisa seno a reproduo da ordem do mundo numa escala puramente verbal. Uma rplica da vida, caso a vida fosse s feita de palavras. Mas a vida no feita s de palavras, infelizmente tambm feita de corpos, ou seja, dizia, Macedonio, de doena, de dor e de morte 43 . De outro, pelo brilho retrico, ou ainda pelo verniz de cinis- 267 268 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 mo que a envolve, a mquina crtica de Antonio Martins mobiliza o arsenal da mistificao ps-moderna, e em sua ftil tagarelice, termina por mimetizar o bovarismo das fices eletrnicas, infenso ao penoso reconhecimento da finitude que, certamente daria s palavras um outro peso, bem diferente do que hoje tm. Referncias FUENTES, Carlos. "O milagre de Machado de Assis". Folha de So Paulo, So Paulo, 01 out 2, p78.000. Mais, p.4-11. PIGLIA, Ricardo. (1980) "Fico e Teoria: O escritor enquanto crtico". In: Travessia 33 Revista de Literatura A esttica do fragmento. Curso de Ps- Graduao em Literatura, Ed. da UFSC, nOI, pp.47-59. --o A Leitura da Fico. In: -. O laboratrio do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. So Paulo: Iluminuras, 1994. p.67-76. --o Sobre o Gnero Policial. In: -. O laboratrio do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. So Paulo: Iluminuras, 1994. p.77-80. --o A cidade ausente. Trad. Srgio Molina. 2 a edio. So Paulo: Iluminuras, 1997. QUINET, Antonio. Um olhar a mais ver e ser visto na psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002. SANT' ANNA, Srgio. Um crime delicado. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti Maria Luiza Berwanger da Silva (UFRGS) Iluminadas iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p.81). Esta a imagem lapidar com que Haroldo de Campos, poeta, crtico, tradutor e terico da traduo configura a potica de Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanncia no Brasil, de 1936-1942, revitalizou o imaginrio nacional. Sob esta sntese lcida de Haroldo, dois caminhos cruzam-se que encontram na traduo o lugar da memria residual de duas ln- guas, duas estticas, duas culturas. Desdobr-las, distendendo-Ihes as fronteiras geogrficas, textuais e simblicas, em gesto que, ao traduzir, reinventa e transcria, eis o que guarda intacto o fundo do olhar do tradutor brasileiro Haroldo de Campos e de que a recente publicao: Ungaretti - Daquela Estrela Outra faz-se amostragem exemplar. "Si l' amiti projette son espoir au-del de la vie, un espoir absolu, un espoir incommensurable, c'est par ce que l'ami est [ ... ] son double idal, son autre soi-mme, le mme que soi en mieux", diz Jacques Derrida em Politiques de ['Amiti (1999, p.20), fi- xando na amizade literria o arquivo inapagvel dos fios e das imagens a retecer, das afinidades desenhadas entre os dois poetas-tradutores. Aproxima-os a visualidade, o efeito da luz como "paisagem primordial" do mundo a ser decifrado; como se a produtividade do ato tradutrio restitusse poeticidade do ver a emergncia da palavra potica, ampliada e ressimbolizada. As- sim, "Iluminadas iluminuras ungarettianas" tanto remetem ao re- gistro de uma amizade memorvel, quanto traam o caminho a 269 270 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006 ser percorrido por Haroldo de Campos na retraduo de Ungaretti para o contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a pr- pria dedicatria em italiano a Haroldo como epgrafe Daquela Estrela Outra: "AI caro Haroldo de Campos / per ricordo di / qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre / nuova e sempre / poesia" (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/ 1967), j demarca para Haroldo o conceito da poesia auto-referencial que tenta nomear o indizvel, pela luminosidade do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo da letra sobre o branco da pgina, da poesia, em uma palavra, que impri- me no ato de transladar o de transcriar. "Faz, na area paisagem com que eu possa / Ressilabar as ingnuas palavras" (WATAGHIN, 2003, p.l59), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a fora potica da reconfigurao. Em espaos rompidos, em distncias redimensionadas, em novas cartografias redesenhadas pelo brilho das estrelas, disper- sas em novas constelaes, nesta difrao luminosa captada do poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do "Odi Melisso" de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla poeticidade da luz a do escutar, mesclas e ressonncias de som e de cor que evidenciam para o tradutor a musicalidade do exerc- cio de "ressilabar", na base do projeto potico nomeado de Ungaretti: marcas aproximam-se mas no se diluem no trnsito de alteridades revisitadas. "A alteridade , antes de mais nada, um necessrio exerccio de autocrtica" (CAMPOS, 1983, p.125), afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produtivi- dade do Outro para o Mesmo como decifrador de lnguas, lingua- gens e imaginrios vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a prpria intimidade. Singular este retorno do sujeito sobre si mes- mo do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os gros semi- nais com que reescrever e ampliar o significado original. Leitor-crtico maior dos poetas modernistas representati- vos do Movimento Antropofgico, compreendera o tradutor bra- sileiro que a travessia da leitura articulada pela devorao do Outro mostra ao Mesmo, (ao tradutor visto como Mesmo), o ajuste e a aclimatao de imaginrios como marca primeira da subjetividade que v e que se v concentrando na paisagem uma das figuraes exemplares da intimidade lrica. (Exemplar, na medida em que a paisagem se faz solo comum, territrio sensvel onde o texto tra- Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti I Refiro-me, especialmente, ao legado do pensamento francs sobre o ato tradutrio sintetizado pelo desejo de distanciamento e pela recusa da "fidelidade" em traduo. Poetas-tradutores e tradutores franceses, como Paul Valry no ensaio Traduction en vers des Bucoliques de Virgile (1944), a prpria obra Sous l'invocation de Saint Jrme de Valry Larboud (1946), a reflexo luminosa de Maurice Blanchot em L'amiti (1971), Henri Meschonnic com a Potique du tradu ire (1999), sntese dos demais percursos tradutrios deste autor, do mesmo modo La Communaut des traducteurs de Yves Bonnefoy (2000), paralelas contribuio definitiva de lacques Derrida para a traduo de textos e de imagens nas Tours de Babel celebrada em "Ni passeurs ... ni passants", esta amostragem exemplar constitui marcas evidentes do ncleo duro da reflexo haroldiana sobre o exerccio tradutrio como transcriao. 2 "Teremos [ ... ] em outra lngua, uma outra informao esttica, autnoma, mas ambas estaro ligadas entre si por uma relao de isomorfia: sero idnticas enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-o dentro de um mesmo sistema" (Apud CAMPOS, Haroldo de (1992). Da traduo como criao e como crtica. In: Metalinguagem e Outras Metas. So Paulo: Perspectiva. p.31-32). duzido, tradutor e discurso tradu trio harmonizam-se em vozes que se consolidam na recepo crtica da traduo, hoje ).1 Em Haroldo, a busca obstinada do visual, manifestando-se no desejo de "ir ms all", incide na prpria necessidade de dessimbolizar ou desconstruir para ressimbolizar ou reconstruir o novo, o diverso, o mltiplo captados do movimento da travessia, no caso em questo, da Itlia-brasileira de Ungaretti. Se o atra- vessar recompensa a prtica do olhar com o desenho de "para- gens" (DERRIDA, 1999), estes espaos sulcados no s rememoram a territorialidade do Mesmo (do texto na lngua ma- terna do tradutor), mas tambm relocalizam e o fazem gravitar em configuraes, lnguas e imaginrios outros. Transblanco intitula-se o poema de homenagem de Haroldo de Campos a Octavio Paz, em jogo intertextual que estabelece com o poema Blanco do poeta mexicano, mediante este fio do atravessar, "transluminao", denomina Haroldo a esta operao que prolonga e difrata o poema Blanco: Numa traduo como esta, que se passa entre lnguas to pr- ximas e aparentemente solidrias como o espanhol e o portu- gus os avatares obsessivos do mesmo se deixam, no obstante, assaltar pelos azares pervasivos da diferena [ ... ] que pulsa, passional, para alm da resignada traduo servil [ ... ], a voca- o dialgico-transgressora de toda traduo que se proponha responder a um texto radical entrando no seu jogo tambm pela raiz: arraigando-se nele e desarraigando-se num mesmo movi- mento de amorosa duplicidade (PAZ; CAMPOS, 1994, p.185-186). Assim, Transblanco legitima o conceito da traduo transcriadora como ato crtico (ou transcrtico), posio que rei- tera ao longo de sua produo, entretanto j presente na reflexo inaugural de Metalinguagem e Outras Metas (de 1967), mas que reescrever ao longo de sua produo terico-crtica. 2 Dito de outro modo: traduo e transcriao constituem duas atividades convergentes na produo haroldiana, "[nela] a intertextualidade se converte em intervivencialidade", diz Emir Rodrguez ~ l o n e g a l (1986), para assinalar em Haroldo a produtividade do eixo tradu- o / intertextualidade / crtica para o transcriar. Mas na tradu- o dos versos A Alegria (1914-1919) de Giuseppe Ungaretti, 271 272 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 nico conjunto, dentre os demais apresentados, que se faz acom- panhar de notas crticas, nas quais Haroldo sistematiza as reconfiguraes transcriativas por ele efetivadas. Substituies lexicais, de rimas e ampliaes do significado constituem a base das operaes assinaladas para acentuar o efeito musical; como se a musicalidade modulasse, retraduzindo, o visual insupervel. Neste sentido, uma figura desta prtica tradutria se desenha em A Ale- gria, a qual, tomando como ponto de partida a brevidade e o despojamento dos versos de Mattina, "M'illumino d'immenso", figuram a inundao do sujeito lrico pela luz que o difrata sob forma de movimentos intermitentes. Luz voltada sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, luz de forte irradiao, Haroldo percebeu com uma clareza surpreen- dente esta dupla figurao do visual em Ungaretti, expressando a busca do sentimento de fraternidade: "De que regimento / irmos? / Palavra que treme / na noite / Folha neonata / No ar de espasmo / involuntria revolta / do homem presente sua / fragilidade / Fraternidade" (WATAGHIN, 2003, p.47). justamente esta per- cepo dilatada do luminoso que evidencia para Haroldo a substi- tuio de "m'illumino" no poema Mattina, "m'illumino d'immenso" por "Deslumbro-me de imenso" (WATAGHIN, 2003, p.57), deslumbrar-se como condensao e expanso ilimitadas da luz e da clarividncia no espao da subjetividade. Com igual lucidez o tradutor-brasileiro tambm percebeu que a celebrao do fraterno, no poeta italiano, deixa-se articular pelo desejo de compor uma comunidade simblica de forte resis- tncia potica melancolia existencial. "Balaustrada de brisa / para apoiar noite adentro / a minha melancolia" (WATAGHIN, 2003, p.4I). Concebido por esta poeticidade da luz prismtica, o "recueil" intitulado A Alegria representa o arquivo do lirismo ungarettiano, tal como uma voz seminal soprando ao tradutor Haroldo o poder de escuta do Outro, filtrando-lhe ressonncias e ecos do imagin- rio estrangeiro. Assim, os demais livros de Ungaretti, traduzidos e apresentados nesta ltima publicao de Haroldo de Campos, tais como Sentimento do Tempo, O Caderno do Velho e ltimos Dias, configuram-se propagao luminosa que encontra, em A Ale- gria, a matriz potica do ato tradutrio. Nela, a angstia de expri- mir o inexprimvel, atenuada pela prpria nomeao deste confli- to do dizer pelo recurso transcriao, garante a retrao do Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti 3 CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Dcio (1987). Teoria da Poesia Concreta: Textos Crticos e Manifestos 1950-1960. So Paulo: Brasi- liense. intraduzvel do texto original. Agregar, substituir e deslocar sinte- tizam o esforo da voz tradutora do Mesmo para diminuir o efeito de estranhamento provocado pelo imaginrio do Outro; como se a iluso de decifrar uma lngua distante devolvesse ao tradutor o prazer do eterno retorno ao texto primeiro, mas retorno revitalizado. Restituir ao Mesmo a certeza crescente e ininterrupta de avanar e de penetrar na paisagem cifrada de Ungaretti atravs do efeito do visual, eis, em uma palavra, a prpria "alegria" da operao tradutria como transcriao experimentada por Haroldo de Campos. Vista deste ngulo, a traduo do poema Perfections du Nair, escrito em francs por Ungaretti, permite ao leitor evi- denciar uma reconfigurao singular da transcriao. Se imagem desdobrada da Alteridade a reinventar, Perfei- es do Negro aproxima-se do projeto visual da poesia concreta brasileira 3 por marcas tipogrficas mltiplas, se rumor ou musicalidade quase inaudvel prope ao leitor-tradutor o desafio de tornar convergente a disperso grfica sobre a pgina, median- te a escuta de uma paisagem matricial articuladora do dilogo tecido e retecido com A Alegria, ento este poema sinaliza para a transcriao o itinerrio de uma sublimao captada da poeticidade da ausncia: certas representaes visuais permitiro ao tradutor brasileiro a retraduo dos bastidores desta visualidade. Conheci- dos e desconstrudos os mecanismos de fabricao das imagens deste poema como lugar disseminador do nascimento do potico em Ungaretti, Peifections duNoirentrecruza o trao da visualidade ao da negatividade: ecos rudos nos chegam s vezes estamos to longe de tudo (WATAGHIN, 2003, p.IOS) 273 274 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sem morada sem famlia sem famlia sem amores sem amigos sem lembranas sem esperana o que vem fazer aqui (WATAGHIN, 2003, p.113) Reduz o espao a uma pedra, a apenas uma pedra da qual o impacto sobre o sujeito, gerado pelo ato de ser lanada no rio, provoca o movimento de mergulho na interioridade. Mas nos versos de concluso, na identificao do sujeito a pedra deixada margem do rio e recuperada por algum, que a transpoetizao efetuada por Haroldo de Campos, manifesta-se: il est nu comme la nuit comme une plerre au/it d'unfleuve polie comme une pierre de volcan ronge quelqu'un l'a cuellie dans sa fronde ou suis-je tomb mettez I doncl de ct cet objet perdu (WATAGHIN, 2003, p.114) Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti nu como a noite como uma pedra no leito de um rio polida como uma pedra de vulco roda onde fui eu tombar algum a colheu em suafunda pe de lado este objeto perdido (WATAGHIN, 2003, p.115) Nestes versos, a supresso do articulador "donc", na passa- gem do francs para o portugus, reconfigura o texto de Ungaretti: a presena do "donc" no texto original, significando a tomada de deciso de no mais recuperar o objeto perdido, uma vez o sujeito transmutado em pedra e jogado ao rio, esta deciso subvertida pela ausncia do "donc" no texto traduzido, imprimindo no sim- bolismo da pedra o trao de objeto de memria que remete ao lugar de nascimento do poema. Peifeies do Negro, deste modo, concede ao leitor um certo efeito de continuidade do momento liberado da ordem do tempo e do espao: redesenha a fisionomia do sujeito-pedra, transformando-o em gro textual e forma dan- ante captados da visualidade. Decifra, de certo modo, o enigma da paisagem lrica ao mostrar o dentro exterioridade, respon- dendo ao conflito da expresso potica figurada por Eterno, pri- meiro poema de A Alegria: "Entre uma flor colhida e o dom de outra o nada inexprimvel" (WATAGHIN, 2003, p.23). Embora breves, estes versos permitem vislumbrar o grau zero do dizer o indizvel, cifrando-se no prazer de resgatar, pela traduo, a potencialidade da palavra potica de ressignificao inesgotvel. A suavidade, contudo, modula o processo tradu trio da poesia ungarettiana por Haroldo: compreende o tradutor, que toda prti- ca do transcriar inicia pela percepo e pelo exame dos eixos arti- 275 276 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 culares do texto a traduzir. Deste modo, princpios como o da indeterminao como trao do inexprimvel, o do "efeito de fratu- ra abissal", assim denominado pelo prprio Ungaretti, para mar- car tonalidade ou mudana de intensidade agregada a uma palavra em determinada linguagem e, sobretudo, a configurao do frag- mento como gnero e como imagem da significao potica ml- tipla, estes traos da poeticidade ungarettiana encontram a resso- nncia perfeita na pgina retraduzida por Haroldo, traos que do a ver, na prtica, a composio de "formas significantes em um horizonte mvel, num virtual ponto de fuga" no rastro da "dispersion volatile de Mallarm" (CAMPOS, 1987, p.60); como se a leitura simblica do fazer potico demarcasse para Haroldo o caminho do transimaginar, ou, como o dir em uma nota introdutria a uma obra compartilhada com seu irmo Augusto de Campos: "Traduzir e trovar so dois aspectos da mesma realida- de. Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir reinventar [ ... ] O carter concluso da obra feita fica provisoria- mente suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na di- menso nova da lngua do tradutor" (CAMPOS, 1987, p.56). Trata-se de visualizar a operao transcriativa como uma das formas de retrair, relativizando, o efeito de estranhamento experimentado pelo tradutor. Assim, resistir ao impacto da dis- tncia a ser atravessada entre duas lnguas, dois imaginrios e duas subjetividades de sentidos apenas insinuados no texto a ser traduzi- do, eis o primeiro gesto que o ato de transcriar concede ao Mesmo e ao Outro. Se desbabelizado e transgredido, todo texto estrangei- ro provoca a iluso da completude, difratado e ampliado restitui ao texto original aquele efeito de sublimao de que se reveste toda cumplicidade, no fundo inapagvel de duas memrias aproximadas. Mais ainda, entrela-las, tomando-as "metfora viva" da potica do dom e da doao mtua, eis o segundo gesto a que remete o exerccio da transcriao de Ungaretti por Haroldo de Campos. Plenitude tradutria ou novos itinerrios que o prazer do texto ressimbolizado vislumbra para o leitor-tradutor? Amostragem exemplar de uma paisagem transcriada, Daquela Estrela Outra, como ltima publicao de Haroldo de Campos, no s transparece este "bonheur du traducteur", mas tambm tece, a seu modo, um dilogo singular com a produo potica e crtica haroldiana. Vis- ta deste ngulo, a interseco de La Educacin de los Cinco Sen- Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti 4 Ver referncia e citaes em SANTAELLA, Lcia. Trans- criar, Transluzir, Translu- ciferar: a teoria da traduo em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenrio da (Org.) (2005). Cu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. So Paulo: Pers- pectiva I FAPESP. (Coleo Signos, 45). p.221-232. tidos (traduo, 1990), imagem-sntese da potica de Haroldo com artigos periodsticos (Para alm do princpio da saudade, Folha de So Paulo, 1984, e A transcriao do Fausto, Folha de So Paulo, 1981, entre outroS)4 j traz em grmen o projeto da pro- funda ressonncia onde partes e fragmentos reflexivos harmonizam-se transiluminando-se reciprocamente_ E, em voz que nomeia, mostrando, os lugares tericos, crticos e poticos por que faz transitar seu processo de transimaginao, a matriz haroldiana rememora a presena francesa, por vezes inconfessa; convoca-a por constituir a constelao de marcas, traos e sinais colhidos da traduo/retraduo do Coup de ds de Mallarm, ver- dadeira arte tradutria com que Haroldo brinda a poesia brasileira: recorta da lembrana francesa o prprio dom da visualidade transgredida pela potica da escuta, dos modos de escuta a que a escritura da Educacin de los Cinco Sentidos lhe permitiu ascender. Visto sob a transparncia francesa, se a recente publicao de Paul Ricoeur, intitulada Sur la traduction (2004), sublinha a superao do sentimento do "deuil" pelo tradutor, inserindo-se, pois, este intelectual na comunidade de pensadores-transcriadores franceses, considerados como "relles prsences" da reflexo de Haroldo de Campos j evocadas, , contudo, na leitura simblica e cristalina de Paul Ricoeur pela crtica uruguaia Lisa Block de Behar (2005) que a operao tradutria de Ungaretti por Haroldo encontra a luz e a legitimao definitivas: Si uma obra puede cambiar el curso deI mundo, tal vez no seria demasiado exagerado afirmar que tambin una palabra puede cambiar el discurso deI mundo o el discurso, tout court. Y, en esta situacin de hoy, esa palabra sera travesa o los movimientos que su accin implica. Ambivalente o contradictorio, el trmino no puede sustraerse a ciertas duplicidades lexicolgicas que no eluden los pliegues, que no ocultan una significacin excntrica - o varias - que se presta a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la pluralidad deI diccionario avaIa (BEHAR, 2005, p.99-1 00). Por sua vez, esta imagem do "atravessar" como figura do transcriar guarda, retida, em seu ncleo, um outro gro do pensa- mento (sempre iluminado e iluminador) de Lisa Block de Behar, expresso ao longo de sua produo terico-crtica e sintetizado 277 278 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 na obra sobre Haroldo de Campos, Don de poesa (2004), sob sua organizao, quando diz na Introduo: Sus escritos tericos afines a su obra potica, las convergencias de sus transcreaciones, la caligrafa ideogramatical que confi- gura la visualidad y verbalidad en una misma emergencia relevan la previsin proftica que Haroldo, el poeta que sabe, emblematiza en escritura en un verso que se ve: "escrever uma forma de 'ver'" (BEHAR, 2004, p.20). Dom do visual, pois, como dom da traduo potica, em Mestre Haroldo, o incessante desejo de legar ao nacional e ao transnacional este "don du poeme" faz retornar a La Educacin de los cinco sentidos, onde Le don du poeme, ao evocar um poe- ma de Mallarm, configura a seduo de abrir o prprio ouvido deixando-se invadir pelo ouvido do Outro: un poema comienza all donde termina: el margen de la duda sbito inciso de geranios ordena su destino [ ... ] domo de signos: y el poema comienza mansa locura cancergena que exige estas Ineas aI blanco (all donde termina) (CAMPOS, 1990, p.73) Se o dilogo estabelecido com Mallarm constitui o solo comum da atividade tradutria tanto de Giuseppe UngarettP quan- to de Haroldo de Campos, a travessia do texto ungarettiano pelo poeta-tradutor brasileiro e a conseqente confluncia na pgina mallarmaica desenham um espao outro, alm dos laos de ami- zade, um territrio do imaginrio em que duas poticas revitalizam-se pela certeza do texto do Outro transcriado. No fundo das "Iluminadas iluminuras ungarettianas", a luz concentrada como 5 Ver: Conferncias e ensaios crticos de Giuseppe Ungaremi, compilados por: WATAGHIN, Lucia. Raz[jes de uma poesia. So Paulo: EDUSP, [s.d.]. Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti medida da distncia entre estrelas, expressa a singularidade do gesto de transubstanciar como homenagem maior que Haroldo de Campos doa ao poeta italiano, a quem dedica o poema Transiderao: Transideraco Ungaretti conversa com Leopardi 1984 Um leo: ruivando arde - na voz do leo - Leopardi (cu noturno em Recanati) virando constelao: Odi, Melisso ... E o leo resgata a um fausto de estrelas cadas, a lua jamais cadente e a Ursa, magas centelhas. Depois, o leo (a Leopardi tendo dado o que lhe cabe) passa a medir o infinito ou desmedi-Io: do longe daquela estrela (to longe) ao longe daquela estrela. (CAMPOS, 2003, p.194). Neste poema, a evocao de Leopardi tanto celebra o fio memorial da paisagem ungarettiana, quanto a transgride. No ver- so final, o gesto de "medir o infinito" significando a passagem de constelaes nomeadas e conhecidas (asa, Ursa Maior) a desco- nhecidas retoma ao Don du Poeme da Educacin de los Cinco Sentidos. Em Transideracin, Haroldo investe no gesto de "atra- vessar" o ato de transcriar para "medir el infinito", representando, atravs deste ato, no s a figura do tradutor-ressimbolizador ou "le maitre secret de la diffrence des langues" como o vira Maurice Blanchot (1971), mas, sobretudo, como aquele que, ao emprestar seus "cinco sentidos" visualidade da paisagem transiderada pela dana de estrelas como dana de palavras: "O tradutor de poesia um coregrafo da dana interna das lnguas tendo o sentido [ ... ] no como meta linear de uma corrida termo-a-termo, [ ... ], mas 279 280 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 como um bastidor semntico ou cenrio pluridesdobrvel dessa coreografia mvel" (p.230), d a ver, alm da homenagem, no texto transcriado ou transubstanciado, o lugar de transferncias estticas e culturais. Cu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos (2005) como a mais recente publicao no Brasil, composta por uma constelao de vozes nacionais e transnacionais, restitui ao transcriador Haroldo a prpria homenagem que este tradutor bra- sileiro prestara a Ungaretti. O prefixo "trans" de "transcriao", simbolizado pelo ttulo "Cu acima", recolhe o poema que lhe dedica o poeta paulista Horcio Costa, discpulo dileto de Haroldo de Campos, a continuidade da "transideracin" inapagvel: - Conecta com isso. E uma pedra. - Conecta com isso. terra. - Conecta com isso. nuvem. Tem a forma do drago. - Conecta com isso. onda. Tem a forma da onda. - Conecta com isso. chip. Parece Shangri-Iah. No slica. Nem silncio. Nem palavra. Conecta com isso" (COSTA, 2005: 307). Iluminadas iluminuras horacianas. Transcriar. transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti Referncias BEHAR, Lisa Block de. Contradictorias aventuras y desventuras de la travesa. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre: Abralic, n.7, 2005, p.91-101. CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provvel. So Paulo: Perspectiva, 1977. --o Da razo antropofgica: dilogo e diferena na cultura brasileira. Boletim Bibliogrfico, v.44, n.14, 1983, p.107-125, jan.-fev. --o Da traduo como criao e como crtica. In: --o Metalinguagem' e Outras Metas. So Paulo: Perspectiva, 1992. --o Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora. In: SANTAELLA, Lcia; OLIVEIRA, Ana Cludia. Semitica da Literatura. So Paulo: EDUC, 1987. (Srie Cadernos PUC, 28). p.53-74. --o La educacin de los cinco sentidos. Trad. de Andrs Snchez Robayna. Barcelona: Ambit Serveis Editorial, 1990. --o Ungaretti: O Efeito de Fratura Abissal. In: WATAGHIN, Lucia (Org.) Ungaretti - Daquela estrela outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateli Editorial, 2003. p.187-195. CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Dcio. 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Cotia: Ateli Editorial, 2003. --o Razes de uma poesia. So Paulo: EDUSp, [s.d.]. As ironias da ordem em Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa Maria Esther Maciel (UFMG) o que no est ordenado de um modo definitivamente provisrio o est de modo provisoriamente definitivo. (Georges Perec) A palavra inventrio designa, como se sabe, a "rela- o dos bens deixados por algum que morreu", "o documento ou papel em que se acham relacionados tais bens", "lista discrimi- nada, registro, relao, rol de mercadorias, bens, etc.", e, em sen- tido lato, "descrio ou enumerao minuciosa de coisas". Para alm das demarcaes do dicionrio, possvel ainda identificar uma afinidade explcita do termo com as palavras "inventolinven- o" (coisa imaginada, criada, feita, engendrada), o que o levaria a se aproximar - por vias oblquas - tambm dos campos do fazer potico e ficcional. precisamente enquanto combinatria desses senti- dos possveis da palavra que se pode falar de uma "potica do inventrio" na poesia de Carlos Drummond de Andrade, visto que esta se presta tanto ao gesto taxonmico de inventariar coisas quanto o de inventar formas poticas alternativas, hbridas, a par- tir de suas inmeras listas, catlogos, recenseamentos e enumera- es. E mais: de reinventar ironicamente os dispositivos institucionalizados de classificao, evidenciando que os sistemas de organizao das coisas e do conhecimento - no obstante aten- dam necessidade humana de dar sentido multiplicidade e ao caos do mundo - so tambm mecanismos legitimados pela lgica burocrtica do mundo moderno e contemporneo, com a funo de ordenar, controlar, hierarquizar e rotular nossa vida cotidiana. Sob esse prisma, so exemplares os poemas drummondianos que recriam - por vias muitas vezes inslitas - inventrios jurdicos, receitas e bulas de remdio, instrues para uso de produtos, ca- dastros e listas administrativas, aplices, classificados das pginas 283 284 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 amarelas, levantamentos estatsticos e descries imobilirias, com o propsito de criticar tais formas de controle e, ao mesmo tem- po, desestabiliz-Ias pela fora da poesia. Soma-se ainda a esse exerccio irnico que Drummond faz das classificaes um outro gesto taxonmico, de ordem um tanto distinta: o de registrar/catalogar as coisas e lembranas do passado, conferindo-lhes o papel de "testemunhos" (aqui, no sen- tido arqueolgico do termo) de um tempo irrecupervel, de modo a faz-las durar, como diria Jorge Luis Borges, "para alm do nosso esquecimento". Isso confere a muitos dos inventrios e ca- tlogos drummondianos tambm um trao afetivo, dado que eles acabam por compor uma espcie de narrativa ntima da histria do prprio poeta e de seus diversos "eus" ou personagens poti- cos. Nesse sentido, pode-se dizer que tais inventrios configurari- am o que Philip Blom, no livro Ter e manter- uma histria ntima de colecionadores e colees, chamou de "teatro da memria, uma dramatizao e uma mise-en-scene de passados pessoais e coletivos, de uma infncia relembrada e da lembrana aps a mor- te". 1 Isso porque eles garantem a permanncia dessas lembranas ao fixarem em um espao comum os objetos que as evocam. Um olhar diacrnico pela vasta produo potica de Drummond permite-nos identificar esses procedimentos em vri- as fases de sua poesia, o que atesta o impulso catalogador drummondiano como uma das linhas de fora de sua obra. J em Alguma poesia, de 1930, o levantamento de objetos que circun- dam existncias ou definem paisagens ntimas de pessoas se faz ver, como no poema "Famlia", no qual a listagem de todos os elementos que fazem parte do universo prosaico de uma faml ia o que justifica a existncia das prprias pessoas da casa. Papa- gaio, gato, cachorros, galinhas, mveis, aparelhos, cigarros, bi- lhetes integram o espao da casa, convertidos em referncias vi- tais de um pequeno grupo composto de trs meninos, duas meni- nas, uma cozinheira, uma copeira e "uma mulher que trata de tudo". Procedimento esse que, em A rosa do povo (1945), se mostra de maneira mais clara, haja vista a enumerao catica de tudo o que, segundo o poeta, define o presente do mundo de "homens partidos", no poema "Nosso tempo"; a bela seqncia dos traos que restam do medo, do asco, dos gritos gagos e da rosa, em "Resduo"; os registros administrativos da "Noite da repartio", lBLOM, Philipp. Ter e manter - uma histria ntima de colecionadores e colees. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 219. As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Pemando Pessoa 2GOODY.Jack.The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University Press. 1995. p.74-111. dentre outras enumeraes de coisas e palavras variadas. Isso, para no mencionar o rol de palavras do poema "Isso aquilo", de Lio de coisas (1962), que coloca em evidncia a lista como um dispositivo taxonmico importante, capaz de reforar o car- ter parattico da linguagem potica. Vale lembrar que o ato de inserir palavras, objetos, animais, eventos e nomes de pessoas em listas foi uma das primeiras prti- cas taxonmicas de que se tem notcia nas civilizaes alfabetiza- das, figurando como o procedimento arquivista mais elementar advindo da influncia da escrita nas operaes cognitivas. Como explica Jack Goody2 , a histria documentada dos primeiros scu- los das culturas escritas mostra que as listas floresceram exata- mente nesse perodo, tomando a forma de longas tiras feitas de madeira, pedra, argila, pedaos de pano ou qualquer outro mate- rial slido, nas quais eram gravadas as palavras em srie, com diferentes propsitos: desde a simples nomeao das coisas at um levantamento mais exaustivo destas. Listas administrativas, funerrias, literrias, religicsas e lexicais so encontradas em vri- as culturas antigas, sendo que algumas j funcionam como uma espcie de protodicionrios ou enciclopdias embrionrias. Mui- tas cobriam um vasto campo de observaes astronmicas, clim- ticas, medicinais. Outras, de carter ldico ou didtico, j consis- tiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas comeados com uma determinada letra do alfabeto. Ao adotar a estrutura de lista/catlogo em alguns de seus poemas, como o "Isso aquilo", Drummond confere um sentido ldico ao ato de listar, ao mesmo tempo em que deste subtrai a dimenso meramente pragmtica, de ordenao, inserindo-o no espao mvel e cambiante da poesia. Alm disso, cria uma confi- gurao alternativa para o poema, assentada em princpios paratticos e que tem no jogo continuidade/descontinuidade a sua base. Se toda lista contnua, isso acontece porque enumera, apre- senta as palavras em seqncia. Mas por no oferecer nexos sint- ticos entre as palavras listadas, caracteriza-se tambm pela descontinuidade. Seus traos constitutivos so, portanto, parado- xais, como aponta ainda Goody, ao arrolar em um pargrafo as principais caractersticas de uma lista: A lista aposta mais na descontinuidade do que na continuidade; 285 286 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ela depende de um lugar fsico, de uma local; ela pode ser lida em diferentes direes, de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita e vice-versa; ela possui um comeo bem marcado e um fim preciso, ou seja, uma margem, uma borda, como uma tira de pano. E o que mais importante, ela estimula a ordenao dos itens de que se compe, atravs de nmeros, pelo som inicial, por categoria, etc. Alm disso, a existncia de margens, externas e internas, traz grande visibili- dade para as categorias, ao mesmo tempo em que as toma mais abstratas 3
Pode-se dizer que a lista, como dispositivo paradoxal, foi usada de diferentes formas por Drummond em A falta que ama (1968) -livro em que a potica do inventrio (em todos os sentidos apontados no incio deste texto) se d a ver de forma mais explcita. Basta citarmos o poema "Bens e vria fortuna do padre Manuel Rodrigues, inconfidente'''' ,que apresenta uma espcie de assemblage de objetos, ou como disse Jos Guilherme Merquior, "um ready- made lrico tipicamente surreal-modernista", em que a listagem dos bens materiais de um clrigo ("inimigo da Rainha / a perptuo degre- do condenado") mantm as coisas em um estado de concretude ir- nica, para no dizer inusitada, como se pode ver no fragmento de um dos dois inventrios dos bens do padre inconfidente: 3 manustrgios 1 corporal 1 brinco com olhinhos de mosquito 2 sanguinhos 3 amitos 1 casaca de lemiste forrada de tafet roxo 1 ngulo 3 tomos de Cartas de Ganganelli 2 chapinhas de ouro de pescocinho 4 manpulos 2 casulas 1 lacinho de prata com pedras amarelas 1 leito grande de pau preto torneado 1 mantelete 1 bacia grande que ter de peso meia arroba 1 dita pequena de urinar 1 tomo de Obras Poticas de Garo ( ... ) (p.357) 'Idem,p .. 81. "Todas as citaes de poemas de Drununond foram extradas de: ANDRADE, Carlos Drununond de. Poesia eprosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa 'ARTIERES, Philippe. Arquivar a prpria vida In: Arquivos pessoais. Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, vol. 11, n. 21,1998, p.3. Disponvel em: http://www.cpdoc.fgv.br/ revistaJarQ/234.pdf (ltima consulta: 30/03n006). Sem dvida, se o conjunto dos bens do padre diz algo de quem os possui, dado o sabido poder que as coisas tm de evocar nossas referncias e gostos particulares, a seleo e a ordenao dos objetos na lista funcionam como formas de arquivamento da prpria existncia do "personagem", j que, como apontou Philippe Artieres em suas reflexes sobre a constituio de arquivos parti- culares, "a escolha e a classificao dos acontecimentos determi- nam o sentido" que se deseja dar a uma vida. 5 Por outro lado. a estranheza das palavras que nomeiam muitos dos objetos da lista acaba por funcionar como elemento de humor, capaz de abalar a funo pragmtica (ou burocrtica) do inventrio, inserindo-o na esfera da inveno. Em muitos outros poemas de livros subseqentes ao AJalta de ama, h inumerveis listas de objetos, como a dos trastes "para no serem consertados" (tamborete, marquesa, catre, selins, ca- ambas, embornais, cangalhas, etc.) em um compartimento de uma loja fechada, no poema "Depsito"; o extenso rol de coisas (que vo de sedas ajornais e ronds parnasianos) que constitui o que o poeta chama, no sem certa ironia, de "Imprio Mineiro"; os arte- fatos que circundam e definem a "vidalvidinha" de uma solteiro- na; a lista das mais de cem namoradas mortas no poema "Retrolmpago de amor visual"; alm da srie de selos de uma coleo (no poema "O prazer filatlico"), a qual capaz de per- manecer apenas at que chegue ao colecionador "o tdio de pos- suir". Registre-se ainda o poema "Escaparate", de Boitempo (1968) no qual a relao de objetos dispostos sobre um armrio sugere toda a atmosfera de doena que predomina no quarto antigo de algum na iminncia da morte: Sobre o escaparate preto o vidro de leo de rcino a caixinha de cpsulas o copo facetado e a colher inclinada. Sobre o escapara te o relgio de algibeira o bentinho vermelho e o tero da aflio a chama 287 288 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 da vela de espermacete vigiando no castial de prata. Dentro do escaparate o gate expectante do penico. Em volta do escaparate a negra clica da noite - Estou morrendo. (p.490-491) No caso especfico desse poema, o inventrio de coisas atesta a vida (e tambm a morte) do sujeito que as possui ou a que elas se subordina, reiterando, por vias poticas, aquilo que Jean Baudrillard afirmou a propsito dos objetos de uma coleo, ou seja, que os "distintos do modo como deles fazemos uso em um dado momento, representam algo muito mais profundamente re- lacionado subjetividade 6. O que, inclusive, j havia sido, muito antes, atestado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre a arte de colecionar, ao mostrar que o colecionador aquele que instaura "uma relao com as coisas que no pe em destaque o seu valor funcional ou utilitrio, a sua serventia, mas as estuda e as ama como o palco, como o cenrio de seu destino" 7. Creio ser esta a relao de Drummond com muitos dos objetos que ele ar- rola em sua poesia, como se estes tivessem a potencialidade de narrar uma vida, a qual tambm pode ser compreendida pelo uso ou desuso que se faz dela. E nesse sentido que caberia aqui uma breve referncia ao escritor francs Georges Perec, exmio "cole- cionador", para quem os objetos da vida cotidiana narram a hist- ria das pessoas e lhes servem de memria. Afeito a verbetes de enciclopdia, levantamentos estatsti- cos, glossrios, dentre outras modalidades c1assificatrias, Perec - que foi um dos mais ativos integrantes do grupo francs OULIPO (Ouvroir de Littrature Potentielle), surgido nos anos 60 - reinventou esses procedimentos em seus romances, a partir de critrios incomuns de ordenao. Alm disso, desenvolveu uma instigante teorizao no-convencional dos sistemas de classifica- o no livro Penser/Classer, evidenciando "o quo tentador o af de distribuir o mundo inteiro segundo determinados cdigos capazes de reger o conjunto dos fenmenos" 8, embora saibamos que "lamentavelmente no funciona, nunca funcionou, nunca fun- cionar". Ou seja, ele reconhece o fascnio do ato de classificar ao 6BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. So Paulo: Perspectiva, 2000, p. 94. 'BENJAMIN, Walter. Desem- pacotando minha biblioteca. Obras escolhidas 11 - Rua de mo nica. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 28. PEREC, Georges. Penser/ classer. Paris: ditions du Seuil, 2003, p. 153. As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa 289 9 Idem, p. 190. IOPEREC, Georges. A vida - modo de usar. Trad. Ivo Barroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. IICf. MACIEL, Maria Esther. A memria das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plsticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, p. 97-\09. mesmo tempo em que proclama a instabilidade dos critrios classificatrios. Mas admitir tal instabilidade, segundo ele, "no impedir que sigamos durante muito tempo classificando os ani- mais pelo seu nmero mpar de dedos ou por seus chifres ocos" 9 . E a conscincia desse paradoxo que o leva a adotar o humor e a ironia para subtrair da classificao suas funes utilitrias, liber- tando-a para usos imaginativos. No romance Vida modo de usa rIo ,o escritor conta a vida de seus personagens a partir das coisas que os rodeiam, detalhando tudo o que define e compe o prdio que habitam, alm de se valer de vrios recursos taxonmicos como base da narrativa. Cadeiras, armrios, cabides, estantes, livros, cmodas, objetos de arte, relquias, malas, latas, utenslios domsticos, produtos de lim- peza, dentre inmeros outros artefatos que confirmam o triunfo da civilizao da propriedade e do consumo, so exaustivamente listados e descritos por ele, compondo um inventrio que - pelo excesso de ordem - acaba tambm por perder sua prpria eficcia ordenadora diante da proliferao excessiva dos objetos e deta- lhes. Para o escritor, se, por um lado, a vida foi reduzida a manu- ais de instruo, as coisas, por outro, em seu poder de se integrar ao mundo humano, so capazes tambm de funcionar como regis- tro slido e incontestvel de nossa presena na terra. O que, como j foi dito, tambm se confirma na poesia de Drummond. Alis, a descrio de objetos cotidianos que constituem o espao de uma casa ou de um edifcio tambm se faz presente em vrios poemas drummondianos, como j tive a oportunidade de mostrar em um ensaio de 2004"\1 . Sob esse prisma, vale a pena citar aqui o poema "Torre sem degraus", um poema em prosa que encerra o A falta que ama, totalmente estruturado enquanto uma sucesso de fragmentos enumerados, cada um correspondendo ao andar do prdio que nos apresentado. Lembrando, ainda que obliquamente, o edifcio de Perec, a torre infinita de Drummond funciona como um catlogo de objetos, pessoas, animais, aconte- cimentos, textos, documentos, dentre outras coisas, aparentemente organizado pelos caracteres numricos. Entretanto, o absurdo que dele emerge acaba por arruinar' a ordem da enumerao, conver- tendo-a em uma espcie de "deri va aleatria", para usar aqui uma expresso de Flora Sussekind. Classificar converte-se, assim, em uma forma paradoxal de 290 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006 o poeta burlar os prprios procedimentos legitimados de classifi- cao, j que para ele, se as coisas podem ser postas em ordem segundo certos princpios reconhecidos cientificamente, elas po- dem tambm deixar-se reger internamente por uma "ordem muda", movida por regras estranhas ou regra nenhuma. preciso desconfiar das classificaes, ele parece...,-os di- zer. Sobretudo quando elas so colocadas a servio do poder eco- nmico e poltico, como os classificados de jornais e pg:nas ama- relas, os recenseamentos, os anurios estatsticos e as fichas cadastrais. Isso se explicita em poemas como "Jornal de servio- leitura em diagonal nas 'pginas amarelas' , composto de nove lis- tas de produtos venda, sejam eles pessoas (a exemplo dos "peri- tos em exames de documentos ou em imposto de renda"), sejam doenas, condimentos, mquinas e fogos de artifcio. Em "Recei- turio sortido", a vez das receitas mdicas, com listas ldicas e irnicas de remdios para os tensos, insones, pssicos e ansiosos do Brasil moderno. O tom pragmtico, prprio dos boletins metereolgicos e estatsticos, o que predomina tambm em "Diamundo - 24h de informao na vida do jornaledor", em que so arrolados nomes e temperaturas de vrias cidades do mundo, ndices de poluio, anncios imobilirios, indicadores econmi- cos, censos de casos de afogamento, previses astrolgicas, numa ntida aluso pardica aos clichs taxonmicos dos dirios, bole- tins e informativos institucionais do mundo contemporneo. Inventariar aqui todos os poemas em que Drummond burla, com suas classificaes paradoxalmente antitaxonmicas, os dis- cursos oficiais e os clichs do discurso burocrtico-institucional seria um trabalho exaustivo. O fato que ele, ao construir sua potica do inventrio, no deixa de se inserir em uma instigante linhagem de escritores modernos/contemporneos, como Borges, Calvino e Perec, que se valem dos sistemas de classifica%rde- nao para criarem seus prprios anti-sistemas, os quais desestabilizam a prpria lgica ordenadora que os define. Uma linhagem na qual poderia se inserir tambm, em certa medida, o portugus Fernando Pessoa que, ao adotar ostensivamente em seus ensaios e contos esquemas de c,.tegorizao cientfica, converte o excesso de ordenao no que Philip Blom chamaria de "caticas conflagraes de curiosidades". 12 Para no falar nas listas heterclitas que compem os longos poemas de lvaro de Cam- As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa l' BLOM, Philipp. Ter e manter - urna histria ntima de colecionadores e colees. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.1 07. 13 PESSOA, Fernando. Obra potica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1982, pp. 706-708. pOS, que feio da poesia de Walt Whitman, estariam naquela categoria definida por Leo Spitzer como enumerao catica. Alis, ao criar toda a sua constelao heteronmica, com descries, de- marcaes, mapas e classificaes, no estaria Pessoa tambm criando um inventrio dos outros de si mesmo? No que se refere especificamente sua prosa, impressio- nante a proliferao de dispositivos classificatrios metodicamen- te ordenados em caracteres alfanumricos e com divises/subdi- vises em vrias categorias. Em praticamente toda a sua teorizao do Sensacionismo, esse aparente rigor na formulao dos pressu- postos estticos do movimento se impe, como que dando um revestimento cientfico, racional, a idias e dizeres muitas vezes inslitos e paradoxais. O que se repete de forma mais explcita no Herstrato, um verdadeiro tratado sobre a celebridade, o talento e o gnio, cheio de tipologias, divises e triparties que, pelo acmulo, acabam por beirar a desordem, como, por exemplo, a classificao que ele faz dos homens clebres, considerando os tipos frustrados e os tipos imperfeitos. Mas no interessantssimo fragmento "Um paranico com juzo" 13, tido como um texto pre- paratrio da "novela policiria" O caso Vargas, que o rigor exces- sivo das categorizaes levado aos limites (ou deslimites) do llOllsense. Com o propsito de descrever e analisar a patologia de um criminoso, Pessoa constri o retrato de um assassino, com base em uma detalhada pesquisa taxonmica do comportamento humano, que inclui: "(1) Tipo de inibio: a) receio (no), b) moral (no), (c) fra- queza de vontade (sim). (2) Fraqueza de vontade: (a) da vonta- de impulso (sim), (b) da vontade de inibio (no), (c) da von- tade de coordenao (no) - disposio s avessas destas (isto , b, c, a). (3) Fraqueza da vontade do impulso de fraqueza: (a) por debilidade mrbida, como no idiota ( ... ) (b) por debilidade constitucional, como no vadio ... (c) por excesso de atividade mental. ( ... )" (p. 706-707) As subdivises se seguem vertiginosamente, apresentando modelos de "atividade mental que produz a falta de vontade de impulso", tipos gerais de concentrao, tipos de concentrao emotiva, de emoo repulsiva, de emoo defensiva, etc., at che- gar a uma espcie de emoo que "tem o temperamento parani- 291 292 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 co no fundo com o ocasional na superfcie". 14 E o narrador expli- ca esta ltima categoria como "um paranico inteiramente lcido, isto , tem todos os caractersticos da parania, menos o delrio central, que de fato constitui a parania." E, entre parnteses, acres- centa: "(Se me permitido usar de um paradoxo, direi, em con- cluso desta srie de raciocnios, que o autor deste crime um paranico com juzo)" .15 Os limites desse texto inclassificvel - que aparece como um "conto de raciocnio", mas prescinde de um enredo e se furta s demarcaes do gnero narrativo - se cir- cunscrevem unicamente a essa classificao inusitada, a qual aca- ba por instaurar o caos dentro da prpria ordenao que a define. Em decorrncia da proliferao dos detalhes e subdivises, as pr- prias categorias cientficas (ou falsamente cientficas) perdem a eficcia enquanto procedimento taxonmico e revelam sua inevi- tvel arbitrariedade. Assim, movido pelo "demnio da classifica- o", Pessoa opta por categorias que se sucedem, mas sem que delas o leitor deduza com claridade nenhuma idia de sistema. nesse sentido que, em oblqua convergncia com a potica drummondiana do inventrio, Pessoa atesta ironicamente o dizer de Walter Benjamin, segundo o qual "toda ordem uma situao oscilante beira do precipcio" 16. Ou - poderamos acrescentar, parafraseando Perec - que a ordem e a desordem, em seus limites, no deixam de ser duas palavras que designam por igualo acaso. 14 Idem, p. 708. !5 Idem, p. 708. 16 BENJAMIN, Walter. Desem- pacotando minha biblioteca. Obras escolhidas II - Rua de mo nica. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 28. Esse artigo faz parte da pesquisa de ps-doutorado financiada pela Capes em 2003/ 2004. I Como no h, em Portugus, um correspondente para "heritage film", o termo ser conservado no original ingls. A palavra "heritage", entre- tanto, est sendo traduzida, no texto, por "patrimnio". 2 Um objeto, costume ou qua- lidade que perdura por muitos anos dentro de uma nao, grupo social, ou famlia, considerado importante e de valor, e pertencente a todos os membros. 3Existe uma organizao britnica, a "National Heritage", cuja responsa-bilidade destinar recursos da National Heritage Memorial Fund aos museus e outras instituies, com o fim de ajud-los a adquirir obras de arte e edificaes de interesse histrico, ou conserv-los em boas condies. O dinheiro usado vem da Loteria Nacional do Reino Unido. Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado* Tha"IS Flores Nogueira Diniz (UFMG) 293 Esse trabalho visa estudar as relaes entre o filme de John Madden, Shakespeare in Love - traduzido no Brasil por Shakespeare Apaixonado - e o passado histrico da Inglaterra, o que o caracteriza como um "heritage film"l , Segundo o Longman Dictionary of English Language and Culfure, o termo" heritage" significa "an object, cus tom or quality which is passed down over many years within a nation, social group, or family, and is thought of as something valuable and important which belongs to all its members"2, De acordo com essa defini- o, qualquer coisa estaria situada dentro do conceito de "heritage", Em 1983, quando o contexto deixava implcito que o que se que- ria preservar eram monumentos, grupos de construes e locais de valor universal, importantes do ponto de vista da Histria, da Arte ou da Cincia, uma outra conceituao, proposta pela First National Heritage Conference, estabeleceu que o termo deveria referir-se ao que a gerao passada preservou e transferiu para a nossa gerao do presente, e que um grupo significativo da popu- lao deseja transmitir para a do futuro. A partir de ento, o termo ganhou reconhecimento oficial, sendo a criao de duas entidades - a Historic Buildings and Monuments Commissionfor England ou "English Heritage" e a National Heritage Memorial Fund - exemplo concreto desse reconheciment0 3 O que se vem preservando para as geraes posteriores tor- nou-se um dos objetos de interesse da sociedade moderna. Gasta- se muito tempo hoje olhando para trs, na tentativa de recapturar o passado, muitas vezes considerado superior ao catico mundo atual. Esse interesse, uma espcie de nostalgia, deu origem ao 294 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 desenvolvimento da "heritage industry", ou "indstria do patrimnio histrico", cuja atividade, que vem se tornando lucra- tiva desde os anos 70, propiciou a multiplicao dos museus, a popularizao dos "Centros de Tradio" em locais histricos, o entusiasmo crescente pela recuperao de velhas mquinas, e um aumento visvel das visitas anualmente realizadas a abadias, man- ses e re-construes do passado. Sua posterior adoo pelo tu- rismo e lazer serviu como um meio de renovao e valorizao das atraes tursticas. O objetivo do estudo da "heritage" investigar a maneira pela qual o passado est sendo usado, apropriado e consumido na cultura contempornea. Sua abrangncia vai desde os desenhos animados do Pato Donald, as expectativas dos visitantes de mu- seus, a representao da "Englishness" nas eleies de 1996, at a formao da identidade nacional e a preocupao com o currculo das escolas. Entre as inmeras iniciativas tomadas na Inglaterra para esse fim, esto a reconstruo do teatro The Globe, em local prximo ao seu lugar de origem, e o projeto de reconstruo do The Rose. Algumas outras, menos visveis, se resumem na mu- dana de enfoque das obras de arte, entre elas, os filmes. O cinema ingls nas duas ltimas dcadas se concentrou numa espcie de cinema baseado no filme de costumes, compro- metido com a maneira como a herana e a identidade da Inglater- ra, ou a chamada "Englishness", deve ser compreendida. Esses filmes, encenados no passado, em reconstrues de perodo deta- lhadas e visualmente espetaculares, contam a histria da vida e do passado da Inglaterra (HIGSON, 2003, p. 1). Nos anos 80 e 90, diferenciados pelo assunto, fonte, pessoal de produo e elenco, e com nfase na identidade cultural nacional, foram rotulados de "heritage films". O termo emergiu, pois, num contexto cultural particular recente para servir a um propsito especial: a mercantilizao do passado, produto de uma economia que veio a se denominar "indstria do patrimnio histrico". Segundo estudiosos, o termo "heritage film" refere-se ao cinema de costumes, produzido nos ltimos 20 anos, baseado em clssicos populares, inclusive Shakespeare. Mesmo no sendo originrios de obras literrias, os filmes assim denominados re- correm a uma herana cultural popular que inclui figuras e mo- mentos histricos, e tambm msica e pintura. Normalmente pro- Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 295 4Veraesserespeito: HIGSON, 2003; MONK, 2002. 'Ver bibliografia adequada: HIGSON, 2003; MONK, 1995; MONK, 2002; VINCENDEAU, 200 1; MURPHY, 2000. duzidos com oramento elevado, por diretores famosos que usam no elenco astros tambm famosos, apresentam trabalho elabora- do de cmara e iluminao e recorrem a muitas mudanas de ce- nrio, a design de interior bem pesquisado, e msica clssica ou nela inspirada. A mise-en-scene abundante expe a burguesia ou aristocracia. Para Vincendeau (2001), esse tipo de filme no cons- titui propriamente um gnero. Exceto pela presena de vesturio da poca, no se define por uma iconografia unificada, nem por um tipo definido de narrativa ou de efeito, podendo incluir ele- mentos de outros gneros como comdias, nmeros musicais e caractersticas gticas ou de romance. Apesar dessa variedade, "heritage film" se transformou em um termo crtico que tem des- pertado debates importantes 4
Com base na definio provisria acima, compilada a partir de trabalhos de alguns estudiosos5 , pode-se classificar o filme de John Madden como um "heritage film" por vrias razes. Primei- ro, porque retoma, em verso mais moderna, o estilo dos filmes de poca, revigorando-o e procurando atrair novas audincias. Segundo, porque, em vez de simplesmente investigar o passado, tem como objetivo principal celebr-lo. Finalmente, porque o fil- me est recheado de aluses visuais e textuais, ao descrever as- pectos da era elizabetana, particularmente o teatro, com seu per- sonagem principal, Will/William Shakespeare. No filme, so usadas vrias estratgias para retomar o pas- sado, entre elas, a reconstruo do cenrio, as citaes a obras anteriores, a atualizao de figuras histricas e, principalmente, a referncia aos mitos em tomo da figura do dramaturgo. O cenrio do filme permite aos espectadores uma reconstituio impressionante da cidade no sculo XVII, especifi- camente da margem do Tmisa, com seus teatros e habitantes. Os produtores descartaram a filmagem em Stratford-upon-Avon e construram sua verso da Londres de 1593, num jardim ao fundo dos estdios. Os cento e quinze homens que trabalharam na cons- truo do cenrio levaram oito semanas para edificar os dezessete prdios, incluindo dois teatros, um bordel, uma taverna, uma pra- a e o sto onde vivia Shakespeare. So realmente esplndidas essas rplicas de ruas, estalagens e teatros que recapturam, de maneira bastante viva, o alvoroo da Londres de Shakespeare. Outros locais onde as filmagens aconteceram foram o Broughton 296 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Castle em Oxford, para a manso de Viola, o Hatfield House, para o Palcio de Greenwich e o Great Hall, em Middle Temple, para o Banqueting Hall, em Whitehall. Por outro lado, as cenas no Tmisa foram todas filmadas no prprio rio, e a praia, onde Viola consegue chegar sobrevivendo ao naufrgio, ao fim do fil- me, a de Holkham, em Norfolk 6 Assim, construes e locais de valor universal importante do ponto de vista da Histria foram convincentemente usados na modernizao dos fatos. A segunda estratgia para a retomada do passado a aluso a obras anteriores. Para realiz-la, Madden estiliza vrias cenas, apropriando-se de aspectos de coreografia, cenrio e interpreta- es de filmes anteriores. A citao do filme de Laurence Olivier, Henry V (1944), se d quando uma tomada panormica nos leva at os detalhes do teatro, que vo surgindo gradualmente, fazen- do-nos reconhecer o The Rose, teatro irmo do The Globe. Entre as cenas do filme de Franco Zeffirelli, Romeu e Julieta, (1968), a escolhida foi a do memorvel salo de baile, onde os jovens se encontram pela primeira vez. Porm a mais efetiva a que d incio ao filme de Trevor Nunn, Twelfth Night, (1996), que retrata o naufrgio do navio a caminho do Novo Mundo, cena inserida ao final de Shakespeare Apaixonado. Ela sugere que a continuidade da verdadeira histria do casal de amantes se encontra na comdia Twelfth Night, que Will, a mando da Rainha e na tentativa de tor- nar Viola imortal, se prope a escrever. "Voc jamais envelhecer para mim, nem murchar, nem morrer (Norman 150)" diz Will 'a amada, antes de se despedirem. "Escreva-me bem", (NORMAN, 1999, p. 151) responde Viola, chorosa. Nesses exemplos, o ato de metanarrao lembra ao espectador o lugar que a obra de Madden ocupa na tradio flmica, "criando nele um senso de prazer irni- co, pela reduo da distncia entre a audincia e o texto". (DA VIS , 2004, p. 156) O mesmo prazer causado por outras imagens, aluses textuais de natureza visual. A audincia no pode deixar de pensar, por exemplo, nos fantasmas de Macbeth e Hamlet, quando Lord Wessex, na catedral, v o que ele pensa ser o espec- tro de Christopher Marlowe. Do mesmo modo, o episdio em que Richard Burbage atingido por uma caveira, durante a briga no teatro, leva o espectador a recordar-se do monlogo "Alas, Poor Yorick", de Hamlet7 . Alm dessas imagens, linhas de diversas peas - Hamlet, 6ANONYMOUS. In: Heat, 1999, p. 10-11. 7Yer a esse respeito: GRAHAM, 1999. Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 'Para um estudo sobre todas as citaes a obras de Shakespeare no filme, ver: ALBERGE, 1999 e tambm KLETI, 200 I 9 Para um estudo dessa passagem no filme, ver: ROTHWELL,1999. Antnio e Clepatra, Romeu e Julieta - e aluses a seus persona- gens so incorporadas, em contexto bem diverso ao de origem, como convm a uma obra ps-modernista que abdica da respon- sabilidade tradicional de diferenciar os nveis de culturas e textos. Temos "a plague of both your houses", palavras de Mercutio, na boca do pregador, referindo-se, no s casas Montechio e Capuletto, como em Romeu e Julieta, mas aos dois teatros, Rose e Curta in. Outras, ainda fora de contexto, merecem ser mencio- nadas: "To be in love, where scorn .... nights (L i)" e "What light is light... ofperfection (IH, i)", ambos de Two Gentlemen ofVerona; "Doubt the stars are fire, doubt that the sun move" e "Words, words, words", ambos de Hamlet (H, ii), e "Give me to drink mandrgora", de Anthony and Cleopatra 8
Entretanto, sobressaem e assumem papel crucial no filme o "Soneto 18" e alguns trechos inteiros de Romeu e Julieta. Embo- ra Shakespeare tenha dedicado o referido soneto ao seu patrono, no filme, Will o dedica a Viola. Sua incluso determina o tema do filme: os amantes, mesmo obrigados a se separar pelo casamento de convenincia, permanecero inseparveis para sempre, miste- riosamente unidos, atravs do milagre da arte 9
So long as men can breathe, or eyes can see, So long lives this, and this gives life to thee. ("Sonnet 18", 13- 14) Os trechos de Romeu e Julieta, incorporados s falas dos personagens do filme/atores da pea, fluem em dois nveis dife- rentes, o real (diegtico) do filme, e o literrio, da pea que est sendo ensaiada/encenada. De acordo com o filme, a pea Romeu e Julieta tomou sua forma final graas Musa de Will, a jovem e nobre Viola, amante devotada do teatro, que trabalha em cena e atrs dela, dando origem a uma verdadeira comdia existencial surgida dessa interao entre a "vida real" - dos personagens do filme - e a emocional- dos personagens da pea que Shakespeare vai criando. Quando Will e Viola encenam Romeu e Julieta no palco, esto apenas consumando, em termos estticos, o que vm fazendo j h algum tempo no quarto. como se Will traduzisse para o palco do The Rose o love affair que acontece na vida real, e alimentasse, no palco, o amor que ele sabe impossvel. O roteiro 297 298 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 se vale da montagem, ao intercalar, durante as falas, cenas da vida e do ensaio, sugerindo a relao entre o amor arrebatador e a criao artstica. Assim composto, o script se beneficia da estrat- gia ps-moderna de citao e pastiche em aluses textuais e visu- ais que emprestam ao filme uma sensao de dj-vu, que apela para o desejo da audincia pelo reconhecimento cultural. Trazer para o presente fatos e figuras histricas, a terceira forma pela qual o filme tenta recapturar o passado, pode ser ob- servada logo na seqncia inicial, quando uma tomada panormi- ca vai at o interior do teatro. Aps exibir os detalhes da rplica- o telhado de palha, as galerias com os assentos para os espectado- res abastados, o palco com suas portas para os bastidores, os al- apes, os dois pilares de suporte do telhado do palco, e o cho empoeirado da arena - a cmara focaliza finalmente um cartaz impresso, j rasgado e manchado, onde se l: 7 &8 de setembro ao meio dia O sr. Edward Alleyn e o grupo Admiral's Men No Teatro The Rose, Bankside A Lamentvel Tragdia do Agiota Vingado (NORMAN, 1999, p.7) Essa introduo funciona quase como parte de um workshoplO sobre o teatro elizabetano, referindo-se ao horrio dos IOA idia de "workshop" apa- espetculos, localizao dos teatros e a um deles especificamen- rece no artigo de Mary Murphy. te, a um grupo de teatro e a um de seus atores mais famosos. A essa tomada se segue uma outra, onde a cmara, em movimento rpido atravs do palco, chega aos bastidores, onde o dono do teatro, Henslowe, est sendo torturado, como se fosse uma con- tinuao da "oficina" de teatro, quando os espectadores so infor- mados sobre os preos cobrados. No desenrolar do filme, outras figuras e fatos da poca elizabetana ainda so indiretamente apre- sentados: Burbage, o ator famoso, Chamberlain, o outro grupo de teatro, o modo de composio em equipe, sugerido pelo papel de Christopher Marlowe e da prpria Viola, a proibio para mu- lheres se apresentarem no palco, origem de muito do humor no filme, o fechamento dos teatros por causa da peste e outros. Esses sugerem, a princpio, que o filme seja realmente baseado em fatos histricos. Entretanto, quando o personagem Will que encarna William Shakespeare apresentado, vestindo umajaqueta de couro, Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado "Segundo dados histricos, a colnia da Virgnia, assim nomeada em aluso rainha Elizabeth, foi fundada em 1607, por John Smith. 11 Para uma atualizao sobre o estado das pesquisas sobre Shakespeare, consulte MC- DONALD,2001. 13 Em um de seus artigos, Groatsworth of Wit,Greene exortava seus contemporneos, Marlowe, Lodge e Peele a parar de escrever para os atores, e estendia sua crtica a Shakespeare, acusando-o de pavo vaidoso e plagiador. l4Em seu livro, Pierre Pelllliless, his supplicatioll to the Devil, Nash faz referncia a Talhot, o herideHenryVJ. tentando soletrar seu nome, jogando papis amassados na cesta de lixo e desenhando o ttulo do filme, percebemos algo ahistrico, o que confirmado pelo close-up numa caneca com a inscrio: "Lembrana de Stratford-upon-Avon". Assim, apesar de tratar de fatos histricos, o filme tambm apresenta incorrees e incon- gruncias, numa mistura de fato e fico, como convm a uma obra ps-moderna. Como exemplos de incorrees e anacronis- mos, citamos o "psicanalista" estilizado, Dr. Moth, "consultando" Will; o barqueiro que se diz escritor; o garon do bar, anunciando o prato do dia, totalmente contemporneo, "p de porco tempera- do com vinagre de zimbro, servido com uma panqueca de trigo sarraceno" e o fato de o pretendente mo de Viola ter planta- es de fumo na Virgnia, antes mesmo que a colnia na Amrica tenha sido fundada 11
Quando consideramos a simultaneidade desses dois aspec- tos-mincia no tratamento dos fatos histricos e anacronismos- fica claro que o filme estabelece uma relao dialtica original entre passado e presente, relao recorrente ao longo do filme, mas principalmente na referncia que faz biografia de William Shakespeare e aos mitos que circundam sua existncia. O dramaturgo nasceu em Stratford em 1564. A construo, em estilo Tudor, apontada como o lugar de seu nascimento, foi comprada pelo pai e legada ao filho. Hoje, recuperada para servir "indstria do patrimnio histrico" e constituindo um emblema para os problemas da biografia de Shakespeare, ainda permanece em Halley Street aberta visitao. A maioria das pesquisas apon- ta que Shakespeare viveu em Stratford at 1585. No existem relatos sobre os sete anos que se seguiram, at sua chegada a Londres por volta de 1592, quando os teatros pblicos estavam comeando a florescer. possvel que, nesse intervalo, ele se te- nha juntado a um grupo de atores que percorria as provncias e assim tenha aberto seu caminho para o mundo do teatro centrado em Londres l2 A partir de 1592, sua presena registrada numa cena de teatro em Londres, o que indica ter ele estado ativo por algum tempo. Alm disso, algumas poucas provas de sua atuao esto contidas no ataque a Shakespeare em um folhetim dessa data, pelo famoso escritor Robert Greene l3 , e tambm na refern- cia ao heri da pea Henrique VI, feita pelo dramaturgo e panfletrio Thomas Nashe l4 Essa escassez de registros, por sua 299 300 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 vez, incentivou a criao de mitos em torno da figura de William Shakespeare como escritor e como homem. Estimulado pela qua- se total ausncia de dados biogrficos relacionados a esse perodo denominado "the lost years", o cineasta/roteirista ficou seduzido pela esfera da inveno e deu asas imaginao, permitindo um tratamento livre aos mitos, sem ferir a autenticidade histrica. Entre os mitos a que alude o filme, destacam-se o mistrio de sua sexu- alidade e a controvrsia sobre a autoria das obras 15. O mistrio sobre a sexualidade de Shakespeare um dos principais mitos que rondam a figura do dramaturgo. Entre suas obras, apenas os sonetos sugerem detalhes amorosos e sexuais, que podem ser interpretados como referncias a sua vida pesso- a1 16 Logo aos o fechamento dos teatros devido peste, os poe- mas Venus and Adonis e The Rape oi Lucrece, dedicados ao con- de de Southampton, patrono de Shakespeare, foram publicados. A lenda diz que o conde recompensou-o com 1.000 libras. A natu- reza do relacionamento entre o poeta e o patrono no muito clara. Porm, qualquer que sejam os termos da ligao, esse fato d um colorido aos mitos sobre a sexualidade de Shakespeare. A seqncia dos 154 sonetos, segundo historiadores, se divide em dois grupos, de 1 a 126 e de 127 em diante. Nos ltimos sonetos, a voz potica confessa sua paixo por uma jovem infiel, a Dark Lady, cuja identidade permanece envolta em mistrio. A primeira srie, porm, dedicada a um jovem, que alguns estudiosos iden- tificam com o Conde de Southampton. Se ele no for o jovem desses sonetos, quem seria? Existem controvrsias acerca desse assunto e questes relacionadas so acompanhadas por outras, sobre a ordem dos poemas, as circunstncias da publicao, as tendncias sexuais do poeta e, sobretudo, a especulao a respei- to da narrativa: a seqncia representaria poeticamente as experi- ncias vividas por pessoas reais? O tema da sexualidade de Shakespeare tornou-se tabu a ponto de estudiosos tentarem escond-lo. Em seu artigo, Margreta De Grazia explora esse tema mostrando as adulteraes feitas nos sonetos para "por um fim a esse segredo, alterando o sexo da pessoa amada e assim convertendo uma paixo homossexual ig- nominiosa em uma paixo respeitvel heterossexual, mesmo que adltera (36)". O filme tambm participa da tradio de enterrar o "segre- " Para uma referncia aos outros mitos que rondam a figura do dramaturgo, ver: ROSENTHAL,1999. 16 Algumas peas contm detalhes amorosos que, entre- tanto, no podem ser tomados como referncias vida pessoal do escritor. Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado do de Shakespeare", mudando o destinatrio do Soneto 18. No filme, esse destinatrio Viola e no o jovem a quem, na verdade, ele foi dedicado. Embora Viola esteja vestida de homem no mo- mento em que l o poema, o filme deixa ambga a possibilidade de homossexualidade do poeta, ao retrat-lo como umjovem co- mum, perdidamente apaixonado pela linda e rica Viola De Lesseps. Assim, apesar de algumas aluses a esse mistrio, como a atrao de Will por Thomas Kent - Viola disfarada - que culmina com um beijo no barco, o amor retratado no filme se assemelha ao manifestado nos ltimos sonetos, permitindo assim que a ambi- gidade, parte do charme do filme, persista. As narrativas mticas que se acumularam atravs dos scu- los levaram muitos a descartar os fatos que os pesquisadores esta- beleceram sobre a vida de Shakespeare em Londres e Stratford. Embora no se saiba muito sobre o homem, o que se conhece sobre a obra torna convincente a histria do filho de Warwick que vai para Londres quando jovem e encontra seu caminho no mun- do teatral, encenando, escrevendo e produzindo peas e poemas que capturaram a imaginao do mundo. Assim, ao acreditar nas narrativas coloridas e sentimentais que se referem aos anos que se seguiram sua morte- que ele fazia discursos inflamados, que deixou Stratford fugido, que comeou a trabalhar em Londres cuidando de cavalos e s mais tarde se juntou companhia de teatro e se tornou seu principal dramaturgo- possvel dar uma face humana e celebrar a figura desse autor oriundo de uma cultu- ra e um passado distantes. Porm dois fatos recentes entram em considerao quando discutimos a questo da autoria. Primeiro, um volume, que merece ser examinado quanto legitimidade, publicado pelos que propem que o Conde of Oxford seja o autor da obra de Shakespeare. Segundo, a reformulao recente do con- ceito de autoria, que nos lembra, a todo momento, que as obras de arte so produtos no do gnio de escritores individuais mas da cultura que produziu esse escritor. Embora no se negue a existncia de Shakespeare em seu papel como ator, questiona-se seu papel como escritor. Ser que aquele homem do povo, com pouca instruo, seria capaz de pro- duzir os textos que ele produziu? O argumento usado que seria necessrio algum com cultura universitria para escrever as obras que tratavam do abuso do poder real, da hipocrisia poltica, da 301 302 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 vaidade da Corte, da loucura dos monarcas e at de regicdio. Esse questionamento preconceituoso resultou na proposio de candidatos mais adequados para figurar como autores das obras que lhe so tradicionalmente atribudas. Muitos nomes foram co- gitados, desde Christopher Marlowe at a prpria Rainha Elizabeth, porm Francis Bacon e Edward de Vere, o conde de Oxford, so os favoritos. O que eles tm em comum serem ambos aristocra- tas e, conseqentemente, mais cultos. O mito diz que o Conde Oxford, por ser um aristocrata, no permitia que seu nome apare- cesse frente do teatro popular e que Shakespeare teria sido seu "testa de ferro". Porm, assim como h argumentos em favor de Oxford como autor, outros negam essa autoria. O principal deles sua morte ocorrida em 1604, anterior produo de Macbeth e de The Tempest, escritas respectivamente em 1606 e 1611 e cujos en- redos dependem de eventos ocorridos tambm depois da sua mor- te: a inveno da plvora (1605) e a circulao de panfletos sobre o Novo Mundo (1610). Quanto a Francis Bacon, escolhido no sculo XIX como o "verdadeiro" autor das obras, apesar da fundao de um jornal onde as obras eram meticulosamente estudadas com o fim de se encontrar pistas secretas que levariam a origem das peas a Bacon, no se chegou a uma concluso convincente. Essa discus- so ainda se encontra inconclusa nos meios acadmicos. O acontecimento que alimentou ainda mais essa questo foi a reviravolta sobre o conceito de autoria, ocorrida nas ltimas trs dcadas, que trouxe mudanas na teoria e na crtica, afetando o estudo da literatura. A imagem romntica do artista como um gnio individual e transcendente foi substituda por um modelo de autoria mais amplo, baseado na cultura. Tem-se dado muita aten- o s filiaes institucionais e sociais do escritor, com o objetivo de identificar as condies e detalhes de sua participao numa comunidade discursiva. Sob essa nova luz, produes literrias de um autor como Shakespeare, por exemplo, so vistas como con- dicionadas e determinadas pelas aes das foras histricas e so- ciais, o que descarta as noes simplistas de autoria e de respon- sabilidade artstica. No passado, os estudiosos tentavam identifi- car os livros que o escritor teria lido ou os debates de que teria participado. Hoje descarta-se a noo de influncia artstica e con- sidera-se, juntamente com as teorias relativas re-escrita embuti- da em todos os textos, que so as figuras polticas e as prticas Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 303 sociais especficas que contribuem para a criao do texto liter- rio, mesmo quando essa relao no seja evidente. Essa a anli- se que faz o "New Historicism". Essa corrente crtica procura en- contrar a reciprocidade entre o campo cultural e o artefato literrio. Nesse sentido, tenta investigar como o texto dramtico trabalha para transformar a cultura que o produz, insistindo na disperso da responsabilidade pela criao da obra de arte. O autor toma-se um canal para o fluxo das foras culturais. Essa evanescncia da agn- cia individual coincide com uma verdade sobre o teatro: a sua natu- reza colaborativa, princpio pertinente a muitas reas artsticas, cujo produto final resulta de um processo que envolve escritores, copistas, atores, censores, audincia e at a imprensa. O filme participa tambm desse debate na medida em que apresenta a pea que est sendo escrita como um trabalho colaborativo. Christopher Marlowe que, numa conversa de bar, d suporte ao argumento de que foi ele o autor da maioria das peas, sugerindo o tema: "Romeu ... italiano. Sempre se apaixo- nando ( ... ) At que ele conhece a filha do seu inimigo. Seu melhor amigo morre em duelo com um irmo ou parente de Ethel" (NORMAN, 1999, p. 36). A cena sugere ainda que os dramatur- gos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros, num verda- deiro trabalho de equipe. Ned Alleyn, o ator, prope a insero de uma nova cena, entre o casamento e a morte de Julieta. Nesses e em vrios outros momentos do filme, o processo colaborativo de criao ilustrado e implicitamente defendido. Mas o filme partici- pa ainda da idia de um autor evanescente. Quando Will comea a escrever a cena da sacada, suas linhas so declamadas em voice- over enquanto somos transportados alternadamente para o quarto de Viola e para o palco, durante o ensaio.O modo como essas cenas se fundem sugere a indefinio dos limites entre a arte e a vida. Para o casal, as linhas vo adquirindo um sentido duplo, medida que o poeta escreve a histria de ambos. Assim como Romeu e Julieta, Will e Viola esto condenados a se separar tragicamente, o que pr-figurado quando Viola, ao ler as linhas de Romeu, ao fim da seqncia da montagem, reconhece tristemente: Receio que ... Por ser noite, tudo isso no passe de um sonho. bom demais para ser verdade. (NORMAN, 1999, p. 87) 304 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Diferentemente da maioria dos filmes denominados filmes de Shakespeare, que prioritariamente traduzem para o meio cine- matogrfico o texto das peas, o filme de John Madden tenta ser uma biografia dos "anos perdidos" da vida do dramaturgo, qual so acrescentados elementos de imaginao e inveno para a for- ma em que se d o processo de criao artstica durante esses anos. Mas, a despeito de contemplar essa viso romntica, o filme sutilmente volta-se para a questo contempornea de que todo texto produto de um processo complexo de criao, realizao e transmisso, mesmo que exista um autor solitrio escrevendo. Na realidade hoje conta menos quem escreveu as peas do que o fato de que essas foram escritas e so admiradas. Seguindo a tendncia que imprimiu uma mudana nos fil- mes histricos, tornando-os parte da "indstria do patrimnio his- trico", Shakespeare Apaixonado tambm tentou criativamente re-escrever o passado, usando, nessa escrita, os artifcios de intertextualidade e de pastiche, com o objetivo de criar novas for- mas de histria para contar a histria no conhecida do "homem do milnio". Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado Referncias ALBERGE, Dalya. A beginner's Guide to Bard Spotting. The Times, New York, p. 21, 23 jan. 1999. ANONYMOUS. Shakespeare: always knew he'dmake it. Heat, v. 13-19, p. 10-11, fev. 1999. 305 DAVIS, Todd E, WOMACK, Kenneth. Reading (and Writing) the Ethics of Authorship: Shakespeare in Love as Postmodern Metanarrative. Literature/ Film Quarterly, Salisbury, v. 32, n. 2, p. 153-162,2004. DE GRAZIA, Magreta. The Scandal of Shakespeare's Sonnets. Shakespeare Survey, Cambridge, v. 46, p. 35-49, 1994. GRAHAM, Trey. Finding Laughs Between the Lines. 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Em tal festa, no caso especfico do ficcionista angolano, as palavras, as frases, o trabalho discursivo, para alm do relato, so os principais convidados. Vale a pena citar textualmente, j agora, o misto de poeta e ensasta francs, que Barthes, para dizer que, com Luuanda, "corro, salto, ergo a cabea, torno a mergulhar" (1977, p. 19). Nasce daum impasse fundante: o que escrever, se tudo se faz, nessa minha leitura to "colada", um ato de puro gozo e prazer esttico? Nada que penso ou digo parece servir. O texto no se deixa prender; escapa como ser- pente esperta que resiste a qualquer investida de captura. Assim, vou tentar sair do impasse, correndo atrs da cobra, sempre mais rpida do que eu, procurando, nessa quase caada, depreender um pouco das cores de Luuanda, seus sinais, sua "significncia", enfim (BARTHES, idem). Em princpio, para comemorar os quarenta anos da publi- cao da obra, embora com certo atraso, creio ser pertinente lembrar ter sido LUllanda publicada em 1964 em Angola, rece- bendo, ento, o Prmio Mota Veiga na ento colnia. Tambm em Portugal, em 15 de maio de 1965, atribudo obra o Gran- de Prmio de Novelstica pela Sociedade Portuguesa de Escri- 307 308 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tores, prmio este retirado quando se conhece a identidade da- quele que se assinava Luandino Vieira. No dizer de Manuel Ferreira, ento "se inicia a montagem da gigantesca encenao poltico-repressiva que vai desenvolver-se, em todas as frentes, contra a atribuio do Prmio e a Sociedade Portuguesa de Escri- tores." (1980, p. 112). Como sabemos, a Sociedade dissolvida em 21 de maio do mesmo ano, por ato do Ministro da Educao do governo fascista portugus. Luuanda, desde sua apario, em 1964, representa uma rup- tura na srie literria angolana, primeiramente, no que concerne espacialidade fsica e simblica nela figurada, ou seja, a da cidade de Luanda. Tal cidade deixa de ser um espao colonial branco, para transformar-se em um lugar angolano por excelncia, como to bem analisa Tania Macdo. Sua areia vermelha se faz metonmia explcita do sangue da prpria terra que em suas veias geogrficas corre, de modo mais rpido e tenso, nesse momento poltico em que, citando Macdo, "a colnia comea a tornar-se sujeito de sua histria" (2002, 70). De outra parte, a ruptura tambm - ou sobretudo - se d no universo discursivo, quando, com grande senso de seu ofcio ar- tstico, Luandino cria um texto que - se se faz uma abordagem de leitura mais ligeira - parece muito simples, em termos de expres- so lingstica, mas, na verdade, representa um produto literrio altamente sofisticado, em termos de elaborao esttica. Por tal exerccio discursivo, a territorialidade fsica da cidade amada se transmuta em uma territorialidade humana por excelncia. De novo, recorro a Barthes para melhor explicitar que os trs contos da obra criam, no leitor, um efeito de fruio esttica que "faz vacilar [suas] bases histricas, culturais, psicolgicas [ ... ], a consistncia de seus gostos, de seus valores e de suas lembranas, faz entrar em crise sua relao com a linguagem." (1977, p. 22) O presente gesto de leitura, partindo desses pressupostos, se debruar sobre os caminhos imagsticos e discursivos de Luuanda tentando pensar, de um lado, a questo espacial e, de outro, a esttica. Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas 1. Uma cidade e a resistncia do fio da vida Desde o sculo dezenove, o imaginrio de alguns autores buscou os locais no urbanos como uma forma de reforo identitrio. Pela projeo ficcional desses locais, os produtores artsticos procuraram resgatar a fora simblica dos modos de vida autojustificativos do sujeito etno-cultural e scio-histrico angolano, contrapondo-os aos do sujeito metropolitano, tanto t- nica, quanto scio-culturalmente. H um missosso recuperado por scar Ribas, "Quimalauezo" (1961, v.1, p. 41-64), bastante revelador do sentido desse jogo espacial. Nele, Lau, o protagonista, filho de um soba, obrigado a ir para Luanda por determinao do governador europeu, en- cantado com sua beleza. Todas as aes subseqentes se originam nessa mudana forada da personagem para o espao do outro no qual recebe novo tipo de educao, sem jamais, contudo, esque- cer suas ancestrais tradies, como revela sua volta ao "Sobado dos Estreis". Esse conhecimento e a fora da fico oral, a que Lau sempre recorre, se tornam os elementos responsveis por sua vitria contra a prfida madrasta. Misogenias parte, o missosso significa um modo de resgate da importncia do saber ancestral nas comunidades de origem. Podemos levantar, ainda, vrios outros exemplos desse re- foro identitrio. Lembro, a propsito, a negra quissama cantada por Cordeiro da Matta (1889), cuja seduo totalmente distinta daquela das "europias damas". Tambm Ndreza, depois trans- formada em Nga Mutri, na narrativa de Alfredo Troni (1882), vem do interior, sendo obrigada a desfazer-se de seu "lindo pente- ado seguro pelo ngunde e tacula [ ... ] tirando-lhe as missangas e os bzios e todos os enfeites" (1973, p. 34). Assis Jnior centrali- za as aes de O segredo da morta (1935) no Dondo, enquanto Castro Soromenho escolher a Lunda para palco de contos e ro- mances por ele escritos, s vezes at em forma de reescrita de lendas ou narrativas tradicionais. Antnio Jacinto, por sua vez, estabelece, com Vv Bartolomeu (1952), um corte entre sua criao esttica e o modo de representao colonial, seja pela estria contada, seja pela lin- guagem nova que a sustenta. No entanto, ele permanece ainda "apostando" na fora espcio-simblica do mundo rural, em oposi- 309 310 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 o ao que se d nas cidades litorneas, cobertas pelas marcas da cultura do colonizador. Por isso mesmo, as aes se passam em uma senzala e Luanda mostrada como um espao branco e em branco na narrativa. Por sua vivncia em tal espao, no resgatada diretamente, tia Mariquinhas, a lavadeira, se trans- forma em uma assimilada "com a mania de pessoa fina e a dizer que j no sabia kimbundo". E continua o texto, afiando a l- mina de sua faca: Uma vez comeou de chover e a tia Anica disse: - Eu! Nvula uiza! e a tia Mariquinhas repreendeu: - Ai dona! No fala assim, na lngua de pessoa se diz: est chovar! (1979, p. 25) o trabalho de recomposio imagstica de Luandino Vieira em Luuanda, de certo modo na esteira do conto de Jacinto, con- siste, justamente, em recobrir o corpo da cidade-sede da ento colnia, com outros sinais, sempre postos de lado pelos mode- los estticos hegemnicos da colonialidade poltica e literria. Transforma a cidade num espao coberto pelos "mximos si- nais" da alteridade, aqui usando uma expresso de Lourentinho, sua personagem em outra obra (1981, p. 23). Tambm Joo Vncio, dir, sem rodeios, a seu mudo interlocutor, na priso onde se d a longa conversa, base do projeto discursivo articulador da prpria ficcionalidade: Muadi: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, cu e nuvias, ilhinha pescadrica. Beleza toda eu no escoio. Eu digo: Luanda - e meu corao ri, meus olhos fecham, sdade. (1987, p. 81). Nasce, nessa geografia imaginria feita de "casas, ruas, paus, mar, cu e nvias, ilhinha pescadrica", desde Luuanda, uma es- pcie de nova ancoragem simblico-cultural cujo motor um gesto, mais que tudo, amoroso. Por ele, no caso da coletnea, a prpria palavra nomeadora do lugar de pertena do sujeito ganha uma espcie de prolongamento gozoso, com a letra dobrada pela qual se suplementa. No apenas Luanda, mas Luuanda. Aninha-se, nessa repetio da letra, as marcas do amor por tudo que na cida- Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas I Todas as citaes de Luuanda so da edio brasileira de 1982 e, a partir de agora, s sero marcadas as pginas da obra. de descala se institui e a constitui, a comear pelos elementos de uma natureza animizada cujas aes, sentimentos, formas de ser, enfim, duplicam os traos caractersticos dos seres humanos que, na comunidade formada na obra, ela ampara e sustenta. A nuvem, por exemplo, mostrada, na abertura de "Estria da galinha e do ovo", como tendo "braos" e com "malucas fi- lhas"; a "mulemba velha" possui at "barbas compridas"; os relm- pagos "riem" igualmente "compridos e tortos [ ... ] falando a voz grossa de seus troves" (1982, p. 99)1 . A natureza ganha vida hu- mana, pelas palavras mais velhas que lhe descobrem os segredos, assim como Beto e Xico, no mesmo conto, o fazem com relao fala dos animais, seguindo o que lhes ensinara o velho Petelu. o que nos mostra seu entendimento do cdigo no-verbal da galinha Cabri, recuperada nesta cena de traduo que resgato: E ento Xico, voz dele parecia era canio, juntou no amigo e os dois comearam cantar imitando mesmo a Cabri, a galinha estava burra, mexendo a cabea, ouvindo assim a sua igual a falar mas nada que via . ... ngjile kua ngana Bina Ala ki ku kuata kua ... kua ... kua ... kuata, kuata! (p. 108) A vida humana em expanso transforma a paisagem da ci- dade, dela fazendo um espao quase sacralizado, da a ligao fundante entre os tempos, erigida pelos contos. O "antigamente", em todos os sentidos, percebido como o tero onde o presente se gera e, para alm disso, a gnese de qualquer promessa de futu- ro. Vale citar o gegrafo e humanista brasileiro Milton Santos, quando enfatiza a vida e seu poder de transformao infinito: a sociedade, isto , o homem, que anima as formas espaciais, atribuindo-lhes um contedo, uma vida. S a vida passvel desse processo infinito que vai do passado ao futuro, s ela tem o poder de tudo transformar amplamente. (2004, p. 109) Essa cadeia temporal da vida, assim posta por Santos, se metaforiza e ganha especial relevo imagstico em Lllllanda, mais exatamente no conto intitulado "Estria do ladro e do papagaio". Tal estria, por sua dimenso discursiva e por seu arcabouo 311 312 Revista 8rasiieira de Literatura Comparada, n.9, 2006 temtico - ao deixar apenas a representao da vida em direto do musseque e escolher o espao da priso como principal cen- rio ~ confere ao texto um dos seus simblicos e ideolgicos ali- cerces. No conto, tal alicerce se projeta na imagem do "cajuei- ro", metfora do fio jamais partido da vida. Por isso mesmo, ou seja, por sua resistncia e teimosia em renascer sempre, apesar de todas as violncias e tentativas de destruio por que passa, "o pau de caju" se faz o "fio da vida que [ ... ] mesmo que est podre no parte. Puxan- do-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princpio num stio qualquer, mesmo que esse princpio o fim doutro princpio." (p. 52) A crena na possibilidade de transformao e na fora da indestrutibilidade do "fio da vida" enlaa a obra, dela prpria fa- zendo, no todo, uma palavra mais velha. Tal palavra indica a ne- cessidade de movimento da parte do leitor, convocado a buscar, ele tambm, a raiz dos casos contados sob os quais se esconde a violncia da agresso do dominador europeu, empenhado, desde sempre, em cercear Angola, no a deixando viver a aurora de sua prpria liberdade. A resistncia do "pau de caju" e das outras r- vores espalhadas nas terras da prpria textualidade de modo qua- se obsessivo - mulembas, sape-sape, accias, mandioqueiras, paus de fruta, etc. - se fazem a marca por excelncia da territorialidade cartograficamente expressa em letra e papel e, tambm, uma for- ma de resistncia do prprio imaginrio recuperado pela fico. Os contos, de maneira recorrente e quase fsica, nos fazem ver essas velhas rvores, obrigando-nos a pensar no que se escon- de sob a terra, sempre me, na cosmogonia banta. Por isso, somos convidados por Luandino, pela voz do narrador dos seus casos, a pensar no e com o cajueiro, a fim de entender que ningum mata o fio da vida. Para tanto, temos de deixar o pensamento correr no fim, no fruto, que outro princpio e [ir] de encontro a com a castanha, ela j rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijo e um peque- no pau est nascer debaixo da terra com beijos de chuva. O fio da vida no foi partido. Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas E O texto continua, com empenho, a exercitar a ancestral sabedoria, marca da cultura de Angola: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabea vai aparecer a castanha antiga, me es- condida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterra- da doutro pau. (p. 52) Eis a uma possvel epgrafe ou mote para Luuanda, por sua vez tambm uma espcie de longa epgrafe das obras de Luandino que lhe sucedero. O corpo ideolgico dos textos se sustenta na metfora da castanha, projetada tambm para Angola nesse mo- mento histrico em que, na luta por sua libertao, ela pode ser lida como uma "castanha antiga, me escondida" da "rvore", s na aparncia cortada, mas igualmente "filha enterrada doutro pau". isto que Luuanda encena: a certeza da renovao da fora incontrolvel da vida humana e poltica de uma nao por vir. Vejamos um pouco como e/ou por qu. Comecemos pelo rosto marcado de duas velhas: Xxi e Bebeca, cuja pele - principalmente a do rosto - pintada como "seca e escura", como a da castanha de caju. Por essas duas mulhe- res-castanha, tanto em "Vav Xxi e seu neto Zeca Santos", quanto em "Estria da galinha e do ovo", mostra-se a energia e a inteireza do fio da vida. No por acaso ambas as velhas so plasmadas artis- ticamente de uma mesma forma, ou seja, como uma espcie de guardis comunitrias, cuja magreza do corpo esconde a corpuln- cia da solidariedade; da f no futuro; da confiana na amizade; do sentido coletivo e do empenho na afirmao do amor pela terra, pela sua terra angolana. Elas so, respectivamente, para alm de castanha, o sape-sape e o ovo, este, no caso, primeira fonte da vida. O sape-sape descrito assim: "sem mais gua, s mesmo com a chuva que vivia e sempre atacado no fumo preto das cami- onetas" (p. 25). Elas, como ele, enfrentam a privao e o ataque de uma ordem social injusta, demonstrando, a exemplo da rvore, coragem e fora para pr uma sombra boa, crescer suas folhas verdes sujas, amadurecer os sape-sapes que falavam sempre a frescura da sua carne de algodo [ ... ] guardando na sua som- bra massucas pretas de fazer comida de monangambas (idem) 313 314 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A sombra por Xxi e Bebeca projetada, como a do sape- sape, era "boa, fresca, parecia era gua de muringue" (idem). Por isso mesmo, as duas vavs so peas importantes na organizao dos seus espaos do viver nos quais representam e defendem as leis das autoridades locais, em detrimento das estabelecidas pelo poder branco vigente. De outra parte, so os cimentos da arga- massa discursiva formadora do edifcio da prpria textualidade, organizada, ela tambm, como um exerccio da sabedoria mais velha de Luandino Vieira, seu criador. Por outro lado, Vav Xxi e Dona Bebeca so a possibilida- de de instaurao de um futuro, cuja marca pode ser encontrada em seus risonhos e gozonos rostos. Elas so o ovo onde a vida igualmente se guarda, como na castanha de caju. Enquanto esta se gera, rebenta e reproduz dentro do ventre da terra, o ovo o faz, ora dentro de Cabri, a "humana" galinha tambm protagonista dos casos, amiga dos midos Beto e Xico, ora dentro do tero de Bina, cujo corpo de mulher o duplo explcito daquela mesma terra. Xxi e Bebeca, empenhadas na manuteno do fio da vida nunca partido, carregam dentro de si a teimosia da castanha, a coragem do sape-sape e a fora simblica do ovo. No por acaso, a descoberta do grande ovo carregado por Bina feita por Xico, uma daquelas crianas a quem caber bus- car, africanamente, o futuro, como ensina o missosso antigo e reensina Dario de Melo na modernidade de seu conto renovador do texto dos antigamentes - Quem vai buscar o futuro? (1986). Vav Bebeca, por sua vez, como algum que traz em si o "ovo" da esperana e f na vida, sorrindo, no quase fechar-se da narrativa e "segurando o ovo na mo dela, seca e cheia de riscos dos anos, o entregou para Bina", respeitosamente perguntando dona da galinha "- Posso, Zefa? ... ". Nesse momento, o leitor v os "olhos admirados e monandengues de mido Xico" fazerem a grande descoberta, ou seja, que "a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande ... " Cp. 123). Eis o ovo da vida, pois, a mostrar-se como outro fio jamais partido. Os trs contos de Luuanda funcionam metaforicamente como uma espcie de rito de iniciao pelo qual os nefitos leito- res, sobretudo se no angolanos, como no presente caso, ingres- sam nos segredos e mistrios comunitrios. Tais segredos e mist- Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas rios foram sempre elididos na viso dos antigos senhores da letra, com seu saber redutor. Como ensina Cames, tais senhores mos- traram-se sempre perplexos diante da estranha gente cujos costu- mes, leis e reis se fizeram absolutamente enigmticos, desde o tempo dos navegantes por ele cantados. No por acaso tais navegantes se perguntam sobre tal gente, em um dos primeiros encontros dos dois grupos tnicos, nas costas de Moambique, encontro assim sintetizado pelo poeta: - Que gente ser esta? (em si diziam) Que costumes, que lei, que rei teriam? (1972, I, 45. p. 71) nesses costumes, nessas leis e, no em reis, mas na fora dessas rainhas mais velhas, que Luandino, como um mestre da cerimnia de iniciao dos seus textos, faz seu leitor imergir. Por isso mesmo, a relao entre mais velhos e mais novos um dos traos mais expressivos nos trs contos, como se sabe: Vav Xxi e o seu neto Zeca Santos; Dosreis e Garrido e mesmo, na inverso dos papis, Xico Futa e Dosreis ou Garrido e Joo Miguel, inver- so surgida sempre que um mais novo demonstra sabedoria maior que um mais velho. Tambm o trao ressurge na interao de Vav Bebeca com as mulheres do musseque, principalmente Zefa e Bina, e, mais que tudo, em sua relao e na de Vav Petelu, no conto apenas referenciado, com a semente do futuro representada pelos midos Beto e Xico. Evidencia-se, na esttica da privao, base imagstica dos trs contos, a presena utpica da esperana to bem metaforizada por tais mais novos e pelo sol que sempre atravessa os espaos textuais e copula, s vezes, com o vento, s vezes com o mar. Os mais novos so duplos desse sol e devem ser iniciados para fazer frente aos tempos marcados pelas chuvas, ventanias e ribombar dos troves, como se d na abertura da obra com o primeiro con- to em que "sai", metonrnica e metaforicamente, no apenas a chuva avassaladora, mas "o grande trovo" a fazer tremer "as fracas paredes de pau-a-pique e despregando madeiras, papeles, luandos". Depois dele, chega "o brilho azul do raio que nasce no cu, grande teia d' aranha de fogo" Cp. 6). Tal raio nos faz lembrar aquele que, caindo na cubata onde se guardara o milho, para livr- lo da chuva, destri, em Vv Bartolomeu, o sonho do narrador, 315 316 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 mostrado como um mais novo no corpo da estria. O importante, e Jacinto refora isso, no se dobrar frente aos obstculos inter- postos entre o sujeito e seus sonhos, da a necessidade de se man- ter acesa a chama da esperana. Tambm a chuva devastadora, nos passos da trajetria inicitica dos trs contos de Luuanda, a exemplo do que ocorre no de Jacinto, cessa. No segundo deles, tal chuva se transforma em "chuva de cacimbo" (p. 82), a entrar pelas janelas da priso de modo suave e fresco. Por sua vez, o vento deixa de ser uma ame- aa, para transformar-se em "vento frio do cacimbo [que] corria s gargalhadas, com os papis pelo musseque fora" (p. 76). No ltimo conto, de modo amigo e apaziguado, esse mesmo vento ressurge "a soprar devagar as folhas das mandioqueiras" e igual- mente "devagar e cheio de cuidados e amizade, [ ... ] o vestido gasto [de Bina] contra o corpo novo" (pp. 123 - 124). Enfim, a hora de paz, pois o leitor j compreendeu. De certo modo iniciado, ele no teme mais a violncia do primeiro vento. Acredita que a esperana, angolanamente, no se deixa morrer e a fome, a misria, a privao perdero a fora no mo- mento da chegada do sol da liberdade. O espao espremido e tor- to das ruas e cubatas dos musseques, na geografia instigante do texto - Rangel, Sambizanga, Lixeira, Braga, So Paulo, Maral, etc. -, a exemplo do cajueiro, no ser destrudo pela ordem erigida na Baixa, espao somente referido no texto e entremostrado como despido das cores da vida vivida com alegria, no obstante toda a falta e privao. Os meninos, por sua vez, j sem suas fogueiras, ainda dis- pem da sombra amiga das velhas rvores e aprendem a lingua- gem das gentes e dos bichos de sua terra. De nossa parte, ns, leitores, como eles, pelo menos no tempo histrico da enunciao do texto, entendemos ser possvel sonhar, acreditando na veraci- dade do vo de uma galinha, cuja gordura no a impede de ir em busca do canto amigo de um companheiro a cham-la. Picando e arranhando fundo os braos-grade da ordem outra, repressora por excelncia, do venal sargento, Cabri nos ensina que, pela resis- tncia ao dominador, se pode voar "na direo do sol" Cp. 122). Hoje, quase cinqenta anos depois do momento de escrita do texto (segundo conversa com Luandino), aprisionados nos bra- os-grade da globalizao neoliberal, no podemos deixar de lem- Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas brar O verso de Drummond - "E agora, Jos?" (1955, p. 196). Perguntamos, ento, ao outro Jos, angolano: Cabri continua a voar? Xxi e Zeca Santos podem pescar o peixe hoje para com-lo amanh? Beto e Xico construram o futuro? E Garrido, Dosreis e Xi co Futa? Por onde andaro? Teimosamente, s a esperana es- condida na castanha, no sape-sape e no ovo ser capaz de, revi vida, poder responder. 2. Uma festa linguajeira e sua beleza frra No preciso explicar onde busquei a expresso "beleza forra". Joo Vncio o seu "dono", doando-a, a ns, leitores, na frase pela qual expressa seu medo de rebentar o fio, no mais da vida, mas da construo da estria, pensada como a resultante de uma parceria autoral entre ele e seu letrado companheiro de priso: Ia rebentando o fio - a missanga espalhava, prejuizo. Que eu no dou mais encontro com um muadi como o senhoro para orquestrar as cores. Comigo era mistura escrava; no senhoro a beleza forra (1987, p. 81) Desse segundo fio que, como o da vida, no se pode deixar partir, gostaria de falar brevemente e de modo bastante esquemtico. Trata-se do fio da escrita artstica ou da elaborao esttica da obra, pensada, tambm ela, na esteira das imagens re- correntes da castanha, do sape-sape e do ovo, como uma possibi- lidade de interligao de cada princpio com seu fim e vice-versa. Essa interligao se d quando o artista inventa cada nova frase, palavra, imagem, sonoridade, ou mesmo busca o exato movimen- to dos sentidos expressos na e pela obra artstica. A escrita assim concebida transforma-se tambm em rvore, fazendo-se forma de resistncia frente fala impositiva do outro, muitas vezes empe- nhado em "derrub-la" por total desconhecimento da eficcia es- ttica de sua fora ancestral. Ela , sobretudo, a responsvel pelo nascimento de outra forma de vida, a ficcional. O discurso literrio de Luandino, por ser rvore, oferece a sombra sob a qual nos assentamos ns, seus leitores. Como artis- ta, voltando a Barthes, j agora em seus Fragmentos de um dis- curso amoroso, ele faz "da forma um contedo" (1981, p. 132). 317 318 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Nasce, por esse seu gesto, a "beleza forra", tal como pensada por Vncio, superando-se, assim, qualquer possibilidade de escravi- do ou aprisionamento. Volto a lembrar o cajueiro, j agora pro- jetando, para o fio da vida narrativa, o que se d com o outro fio, o da vida humana. Para se construir tal fio, j sabemos - " preciso dizer um princpio que se escolhe: costuma se comear, para ser mais fcil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas" (p. 54). Tanto na vida, como na fico. No caso desta ltima, tal como a concebe VnciolLuandino, ela se esconde no mgico encontro do "fio" e das "missangas" e na possibilidade de ambos se acamaradarem, dando origem quele "colar de cores amigadas" que a obra, tal como nos chega s mos e aos olhos. A meu ver, para conseguir seu "arco-ris" de palavras, Luandino aciona dois movimentos que passam, respectivamente por dois procedimentos discursivos distintos, assim como por dois - s vezes at mais - cdigos lingsticos. Tais procedimentos e cdigos se atravessam e se suplementam, combinando, de um lado, no plano discursivo, as cores das missangas, que s o literrio conhece e sabe orquestrar, com o fio da oralidade no qual tais missangas se sustentam. De outra parte, o atravessamento encon- tra sua raiz no manejo da lngua portuguesaj acamaradada com as lnguas nacionais, em uma clara e nova demarcao do limite das fronteiras entre dois cdigos que, durante muito tempo, se fizeram astros excludentes e em franca rota de coliso. Pelo encontro quase genesaco da ancestralidade angolana da voz com a modernidade europia da letra, tambm o passado se convoca em Luuanda para alimentar o presente e assegurar o futuro. O texto, como um todo, se faz uma maka, seguindo a classificao de Chatelain (1964). Nela se encadeiam casos e ca- sos e mais casos. Forma-se, desse modo, um elo instigante de contos contados ou de textos "falados ouvidos vistos", para usar uma expresso de Manuel Rui (1985). Tais estrias se aninham no colo da letra literria, criando um texto suplementado por diver- sos tempos, matrizes, memrias, saberes. O narrador da escrita como que veste a pele dos contadores de sua terra, ritualizando seu dito artstico pelas palavras mais velhas que sua prpria sabe- doria pe em circulao. A raiz dos casos, das conversas, enfim, o fio da vida narrativa l esto, intratveis, sustentados pela voz que tudo semeia e sedimenta, como castanha partida de cuja casca Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas seca e escura nasce o pau de caju do texto literrio, arquiteturalmente to bem edificado pela letra em festa: Minha estria. Se bonita, se feia, os que sabem ler que dizem. Mas juro me contaram assim e no admito que ningum que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos [ ... ] E isto a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado. (p. 96-97) A "verdade" assegura o carter de maka do contado, na melhor tradio da oralidade. Por sua vez, o fato de os aconteci- mentos nunca se terem passado garante a eficcia da fico, cum- prindo-se a tradio literria do ocidente. Entre esses dois parmetros discursivos, Luuanda com seus contos se equilibra, ela mesma um "papagaio" sem poleiro fixo ou a sombra amiga de um sape-sape sob o qual nos abrigamos, ns, seus leitores, para ouvir as estrias de um "mais velho" contador que sabe como poucos inventar estrias sobre estrias. Quanto questo da lngua, penso que Luandino, como Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas (1968), por exem- plo, dobra a lngua em que o texto se escreve, o portugus, fazen- do-a aceitar o uso da terra, nica forma possvel para que esta terra ela prpria possa falar nos textos. D-se, em todos os senti- dos, uma forma de traduo, como fazem Beto e Xico com a lngua de Cabri. Conforme eu mesma afirmei, em ensaio de 1988, mas s publicado em 1995, Luandino tenta recuperar o fio partido da imposio da fala alheia, a fim de tambm torn-la sua. Nesse af, desimobiliza sua fala artstica, fazendo com que ns, seus leito- res, vejamos, ouamos, sintamos os cheiros e os tatos dessas pala- vras engravidadas fono-morfo-sinttica e semanticamente no corpo de sua textualidade. O quimbundo se faz o smen que possibilita a criao nova, genesiacamente concebida como diferena. 319 Como sua personagem Joo Vncio ensina, surge, ento, de acordo com o j afirmado, uma "beleza forra", construda por esse atravessamento linguajeiro no qual tudo serve para extrair a macia sumama das palavras prprias e alheias. H uma cena nar- rativa, no segundo conto, recuperada pela memria de Xi co Futa, que d bem a dimenso desse atravessamento de lnguas e da cri- ao literria luandina, pelo que o autor se faz, novamente, uma 320 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 espcie de experiente mestre de cerimnias do rito inicitico que s o bom texto literrio capaz de poder assegurar. Eis a cena: quando o auxiliar da cadeia de Luanda, Zuz, segundo o relato de Xi co Futa, chegava s celas pela manh, cum- primentava os presos, dizendo, dentro da melhor norma da lngua portuguesa: "- Bom-dia, meus senhores!" E completa o amigo de Dosreis: Nem nazekele ki-nazeka kiambote, nem nada, era s assim a outra maneira civilizada como ele dizia, mas tambm depois ficava na boa conversa de patrcios e, ento, a o quimbundo j podia assentar no meio de todas as palavras, ele at queria, porque falar bem-bem portugus no podia (p. 44) A citao recupera de forma explcita, no, como querem tantos, o "drama" lingstico do colonizado, mas a natureza de sua fala prpria, construda pelo atravessamento de seu legado lingstico ancestral e a lngua trazida pelo outro, quando viu concretizado seu af de singrar os mares nunca dantes navegados, chegando frica e Amrica, dentre outros lugares. As lnguas europias viajantes se encontraram com o quimbundo, o umbundo, o ronga, o macua e tambm com o tupi, o quchua, o guarani e tantas outras guardadas no cofre das memrias culturais dos povos de origem. O trabalho esttico de Luandino - na esteira de outros que o precederam em Angola, desde Cordeiro da Matta em "Kicla!"; passando por Viriato da Cruz com "Makez" ou mesmo Jos Craveirinha, em Moambique, com o seu "Hino a minha terra" - consiste em revolver, na quinda simblica, as missangas, j agora lingsticas, misturadas em denso e festivo colorido. Com elas, entrecruzadas, em alegres jogos linguajeiros, o j senhor da letra encontra os elementos de que necessita para criar os colares das estrias produzidas por esses mesmos prazeirosos jogos. Acamaradam-se as lnguas, como se dera com a voz e a letra e tudo se harmoniza, apontando o caminho da esperana. Para concluir essa minha corrida atrs de uma to gil ser- pente colorida e esperta, chamada Luuanda, s me resta dizer que Jos Luandino Vieira consegue, nesta e em outras obras por ele assinadas, desenhar, com palavras, um belo e surpreendente arco- ris, imagem que parece encant-lo de modo especial. Esse arco- ris se inventa com os seguintes elementos: a maestria do artista Luuanda 40 anos: a fora das palavras mais velhas da vida real; a sabedoria dos narradores criados por ele; a fora, a coragem e a solidariedade dos seus seres de papel chamados per- sonagens e, soldando tudo, o amor por sua terra, Angola, metonimizada por Luanda, talvez, pura e simplesmente, o amor do amor. Terminamos, por isso, com Vncio, dizendo de Luuanda, de Luandino Vieira: esta obra "beleza forra"! E ponto final. Referncias ANDRADE, Carlos Drummond. Fazendeiro do ar e Poesia at agora. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1955. ASSIS JNIOR, Antnio de. O segredo da morta: Romance de costumes angolenses. 2 ed. Lisboa: Edies 70, 1979. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. So Paulo: Perspecti va, 1977. --o Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortncia dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. CHATELAIN, Hli. COrg.). Contos populares de Angola. Ed. 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ROSA, Joo Guimares. Grande Serto: Veredas. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1968. RUI, Manuel. Fragmento de ensaio: Eu e o outro - o Invasor ou em poucas trs linhas uma maneira de pensar o texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana frica. So Paulo: Epopia / Secretaria de Estado de Cultura, 1987, p. 308-310. SANTOS, Milton. A natureza do espao: Tcnica e Tempo. Razo e Emoo. 4 ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2004. TRONI, Alfredo. Nga Mutri: Cenas de Luanda. Prefcio de M. Antnio. Lisboa: Edies 70, 1973. VIEIRA, Jos Luandino. Luuanda: Contos. So Paulo: tica, 1982. --o Lourentino, dona Antnia de Sousa Neto & eu. Lisboa: Edies 70, 1981, --o Joo Vncio: Os seus amores. 2 ed. Lisboa: Edies 70,1987. Dom Quixote: Utopias Andr Trouche e Lvia Reis, (orgs.) Niteri: EdUFF, 2005. Rodrigo F. Labriola (UERJ) Poucas palavras esto hoje to depreciadas de sentido como "Quixote" ou "Utopia": ao que parece, durante as Celebraes Centenrias o mercado simblico sofre um surto inflacionrio que atinge com singular virulncia a cultura li vresca. Depois dessa emis- so incontrolada de significantes, geralmente certas obras literrias remanescem ainda mais longnquas do que j eram para os leitores no especializados. Tudo isso, caso fosse admissvel uma teoria da economia poltica dos signos ... Mas talvez seja tempo de nos afas- tar dos modelos econmicos sobre-impressos literatura em dire- o de outras configuraes capazes de agir melhor sobre esse fe- nmeno de esvaziamento nos discursos do cotidiano. Da o desafio implcito no ttulo da compilao Dom Quixote: Utopias, organiza- da por Andr Trouche (UFF) e Lvia Reis (UFF). Sem aditamentos nem prevenes, essas poucas palavras previsveis ganham uma nova complexidade quando considerarmos a forma e o contedo do li- vro, neste caso feliz e inextricavelmente relacionados. Com o apoio da Prefeitura de Niteri, a edio se apresenta cuidada tanto nos textos como na reproduo das imagens que complementam alguns dos captulos. No se trata, porm, de uma obscena edio de luxo para glorificar costumeiros atos de gover- no ou de verbas universitrias. A tentativa refletir sobre a obra de Cervantes sem apagar nem sua escrita nem seus possveis leito- res contemporneos. Nesse sentido, um acerto indiscutvel a incluso, no mesmo nvel dos trabalhos crticos, de quatro frag- mentos chaves do Dom Quixote em espanhol, e tambm das suas respectivas tradues livres para o portugus, a cargo de Magnlia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF), Antonio Esteves (UNESP- 323 324 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Assis), Susana Planas (UFF) e Heloisa Costa Milton (UNESP- Assis). A presena das duas lnguas deve ser destacada se levar- mos em conta o apoio governamental edio e a sua espervel distribuio nas bibliotecas escolares, pois indica uma vontade no de uma mera difuso mas da procura do ensino efetivo do espa- nhol no Brasil. Os claros comentrios dos tradutores que seguem aos fragmentos de Cervantes reforam este objetivo, porque se verdade que a boa literaturaj no de ningum mas da memria ou da tradio, ento toda lngua pode tambm ser uma forma extremada das literaturas. Certamente, recuperar o Dom Quixote uma ilustre compensao da banalidade de certos materiais di- dticos; mas, por outro lado, as tradues junto ao original pro- pem uma hiptese problemtica para a tecnocracia lingstica: que a vitalidade de uma lngua depende em grande medida do contato com as outras e, sobretudo, da sua apropriao literria. A liberdade para traduzir, e o conseqente sinal aberto para que muitos leitores amadores se atrevam a realizar suas tradues, constituem de fato uma prazerosa indstria para produzir ou re- encontrar sentidos na prpria lngua, abalando o vazio dos luga- res-comuns. Ler no outra coisa seno isso; nesse ponto, a cul- tura audiovisual ainda leva fraldas, ou pior. De maneira complementar, outro mrito da compilao no ocultar as tenses decorrentes do catico estado da questo em torno da significao atual do Dom Quixote e das utopias. Percebe-se em todos os autores a preocupao por esse assunto para alm das homenagens oportunistas. Por isso, os textos crti- cos trabalham por vezes enfoques tericos que resultam contradi- trios entre si, mas a vantagem do livro reside precisamente nessa pluralidade, que libera o leitor e o autoriza a escolher alguns de- les, ou qui nenhum. Entre (s temas mais relevantes para a lite- ratura comparada se encontram as mltiplas relaes do Quixote com a obra de Machado de Assis, grande leitor de Cervantes. Maria Augusta da Costa Vieira (USP) mapeia com rigorosidade a recep- o do.Quixote no Brasil, e sua sntese evidencia a necessidade de aprofundar os estudos das conexes entre o manco de Lepanto e o bruxo do Cosme Velho, ainda pouco exploradas pela crtica. Embora limitado aos problemas de gnero, o trabalho de Eurdice Figueiredo (UFF) serve a tal propsito e adiciona ao quadro a perspectiva de Flaubert. A mexicana Mara Stoopen Galn (UAM) analisa a fico e a lngua no Quixote a partir dos discursos sobre o corpo e a subjetividade, no sem estimulantes surpresas: conse- gue driblar as fartamente repetidas (e maiormente mal lidas) cita- es de Michel Foucault e Norbert Elias. Por sua vez, a atualidade irrompe por duas vias diferenciadas nos textos de Gustavo Bernardo Krause (UERJ) e Mrcia Paraquett (UFF). No primeiro, o ceticis- mo se alia ironia em defesa da fico: possvel que cada metfo- ra quixotesca carregue a semente estril de sua prpria destruio (como nas Vanguardas), mas o mago da literatura goza e faz gozar disso, entanto o discurso da poltica a aproveita para fins medo- cres: o presidente venezuelano Chaves, e tambm outros polticos, so prova disso segundo o autor. Por sua vez, o texto de Mrcia Paraquett estuda com singular nfase o paradigma de recepo con- temporneo fora da literatura, seguindo o modelo da anlise do discurso. As suas observaes sobre uma charge do desenhista N ani arriscam uma leitura poltica do (ltimo?) escndalo no governo do presidente Lula em tomo do ex ministro Palocci. 325 Meno aparte exigem os artigos de Lygia Rodrigues Vianna Peres e de Paulo Bezerra, ambos professores da UFF, devido a sua originalidade. A primeira descreve a "memria literria" do personagem de Dom Quixote, que dependendo das circunstncias e das impresses visuais ao longo da histria vai lembrando frases que poderia ter lido na sua biblioteca ou ouvido dos romances populares; assim, Alonso Quijano (em tanto leitor fantico) com- partilha com Cervantes "a memria como registro especfico da expresso literria". A concluso instigante: o Quixote um de- lrio motivado pelo temporal e simultneo esquecimento do autor e dos seus personagens. Quanto ao trabalho de Paulo Bezerra, a figura de Sancho Pana focalizada luz da carnavalizao de Bakhtin. O deslocamento da leitura para o parceiro lhe permite estabelecer os diferentes tipos de dilogo do fidalgo com os ou- tros, inclusive com o apcrifo de Avellaneda. O jogo de duplica- es reconstri com sucesso a figura do Quixote como um perso- nagem artificial, plural e polifnico, afastado dos esteretipos tanto da loucura como do herosmo. Cada um dos textos do livro, por vias diferenciadas, tenta trazer para terra o problema das utopias. Isto : procura que Dom Quixote seja um livro destinado atividade civil da leitura, e que os leitores pensem sobre o mundo que os rodeia e nas suas possi- 326 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 bilidades. Esse seria um bom exerccio para fazer tambm em ou- tros casos, como o daquele homem que em 1965 escreveu "otra vez siento bajo mis talones el costillar de Rocinante" no incio de uma carta dirigida a seus pais, antes de ir rumo Bolvia. A ele devemos, tambm, adjudicar uma leitura da obra de Cervantes talvez bem mais sutil do que cremos. Conceitos de literatura e cultura Eurdice Figueiredo (org.) Juiz de Fora: Editora UFJF, Niteri:EdUFF, 2005. 327 Maisa Navarro (Universidade Federal do Par) o propsito deste livro o mapeamento de conceitos identitrios e literrios que surgiram desde as vanguardas e transi- taram pelas Amricas at o final do sculo XX a fim de lhes rastrear o sentido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a superposio de noes. Esses conceitos atentam para realidades culturais s vezes semelhantes, s vezes diferentes, e foram cria- dos e utilizados por tericos e crticos em vrias partes do conti- nente americano e no Caribe. Resultado de um amplo trabalho de pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Trabalho (GT) da ANPOLL, o livro "Relaes lite- rrias interamericanas", organiza-se em forma de um glossrio em que constam 20 ensaios, referentes a 20 conceitos fundamentais do comparativismo interamericano. Os conceitos e os respectivos autores so os seguintes: Americanidade e Americanizao - Zil Bernd Antropofagia - Helosa Toller Gomes Barroco e neo-barroco - Helosa Costa Milton Boom e ps-boom - Andr Trouche Crioulidade e crioulizao - Magdala Frana Vianna Entre-lugar - Nubia Hanciau Heterogeneidade - Graciela Ortiz Hbrido, hibridismo e hibridizao - Stelamaris Coser Identidade cultural e identidade nacional- Eurdice Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha Indigenismo - Silvina Carrizo Literaturas migrantes - Maria Bernadette Porto e Sonia Torres 328 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Mestiagem - Silvina Carrizo Negritude, negrismo e literaturas de afro-descendentes - Eurdice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos, Ana Beatriz Gonalves e Mrcia Pessanha Multiculturalismo e pluriculturalismo - Arnaldo Rosa Vianna Ps-colonial - Elona Prati dos Santos Ps-moderno - Gisle Manganelli Fernandes Realismo mgico e realismo maravilhoso - Antonio Roberto Esteves e Eurdice Figueiredo Regionalismo - Dilma Castelo Branco Diniz e Hayde Ri beiro Coelho Textualidades indgenas - Cludia Neiva de Matos Transculturao e transculturao narrativa - Lvia de Freitas Reis Trata-se, portanto, de uma obra de referncia, que conta com a participao de especialistas das vrias literaturas nas qua- tro principais lnguas das Amricas (ingls, espanhol, francs e portugus), que podem dar conta da circulao destes conceitos, com as referncias bibliogrficas das fontes, as diversas significa- es que eles foram assumindo ao longo do tempo e do espao percorridos. Muitas destas noes tentam definir o estatuto da cultura americana e, sobretudo, latino-americana, s vezes mais particularmente a literatura dos pases das Amricas em oposio literatura europia. Os termos tm origens diversas, ora antro- polgicas, ora literrias, ora miditicas. O estudo das literaturas nacionais, de maneira estanque, s vezes impede a compreenso de que tendncias surgidas em um pas ou rea lingstica tm correlao com outras muito mais amplas que atingem outras regies da Amrica e especialmente da Amrica Latina. Assim, as interrelaes que os autores dos dife- rentes ensaios revelam na presente obra devem suscitar outros desdobramentos a fim de se possam detectar os movimentos por que passam as literaturas do continente. Os autores ressaltam que, como um pensamento se inscreve na histria de cada pas, preci- so ter o cuidado de, ao usar um conceito surgido em outro espao de enunciao, refazer todo o seu percurso a fim de no homogeneiz-Io, eliminando as nuances que constituem a riqueza e a produtividade que ele tinha em seu surgimento. A literatura comparada no Brasil pode tirar partido das con- tribuies que os estudos culturais e ps-coloniais proporciona- ram, sobretudo nas pesquisas sobre as questes identitrias, naci- onais e transnacionais. 329 330 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Jacques Derrida: pensar a desconstruo Evando Nascimento (Org.) S. Paulo: Estao Liberdade, 2005. Carla Rodrigues (PUC-RJ) Numa entrevista que se manteve indita at a sua morte, realizada pelo jornal francs Le Monde} e publicada em caderno especial pstumo, o filsofo Jacques Derrida responde questo que atravessou todo seu pensamento: o que a desconstruo? Ele diz: "Se eu quisesse dar uma descrio econmica, elptica da desconstruo, eu diria que um pensamento da origem e dos limites da questo 'o que ?', a questo que domina toda a hist- ria da filosofia. Cada vez que se tenta pensar a possibilidade de 'o que ', de colocar uma pergunta sobre essa forma de questo, ou de se interrogar sobre a necessidade dessa linguagem dentro de uma certa lngua, uma certa tradio, isso que se faz nesse mo- mento no se presta seno a um certo ponto da questo 'o que "'2. Em outra entrevista, a psicanalista Elisabeth Roudinesco quem afirma: "s vezes tenho a impresso de que o mundo atual se parece um pouco com o senhor e seus conceitos, que nosso mundo est desconstrudo e que se tomou derridiano a ponto de refletir, como uma imagem num espelho, o processo de descentramento do pensamento, do psiquismo e da historicidade que o senhor contribuiu para pr em prtica"3 O raciocnio de Roudinesco indicaria que a desconstruo no seria obra de Derrida, mas algo que, como o prprio filsofo afirma, acontece. Esse acontecimento, no entanto, no se daria sem traumas. em tomo do acontecimento da desconstruo que gira a coletnea Jacques Derrida: Pensar a desconstruo, organizada por Evando Nascimento e editada em 2005 pela Estao Liberda- de. O principal texto do livro o indito "O perdo, a verdade, a reconciliao: qual gnero?", ntegra da conferncia 4 do filsofo I A entrevista foi realizada em 30 de j unho de 1992. Em edio especial pstuma, o jornal publicou apenas a resposta para a pergunta: "o que a desconstruo". Le Monde, 12 de outubro de 2004, p. 3. 2 "Si je voulais donner une description conomique, elliptique de la dconstruction, je dirais que c' est une pense de I' origine et des limites de la question 'qu'est-ce que? .. .' ,Ia question qui domine toute I'histoire de la philosophie. Chaque fois que I' on essaie de penserla possibilit du 'qu'est- ce que? .. .', de poser une question sur cette forme de question, ou de s'interroger sur la ncessit de ce langage dans une certaine langue, une certaine tradition, etc., ce qu' on fait ce moment-I ne se prte que jusqu' un certain point laquestion 'qu'est-ceque? ... "'. Traduo minha. J DERRIDA, Jacques e ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanh ... Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 11. 4 Conferncia proferida durante o Colquio Internacional "Jacques Derrida 2004: pensar a desconstruo - questes de poltica, tica e esttica", realizado na Maison de France, no Rio de Janeiro, em agosto de 2004, e promovido pela UFJF em parceria com o Consulado Geral da Frana. 5 DERRIDA, Jacques. Papel- mquina. So Paulo: Estao Liberdade, 2004, p. 348. no colquio internacional realizado no Rio de Janeiro em agosto de 2004, dois meses antes de sua morte. Derrida foi um pensador engajado. Sobretudo, um filsofo interessado nas questes con- temporneas. Foi esse interesse que o levou, ainda em meados da dcada de 1980, a acompanhar o processo de fim do apartheid na frica do Sul e suas conseqncias. A partir de 1994, ano em que Nelson Mandela instituiu a Comisso de Verdade e Reconcilia- o, que pretendia alcanar a "verdade" como condio para o perdo, Derrida acompanhou de perto o funcionamento da co- misso sul-africana, parecendo particularmente interessado no mecanismo de vir tona, identificando a um movimento oposto ao do recalque que tudo esconde e oprime. Ainda que em contextos diferentes, as reflexes de Derrida remetem o leitor brasileiro para a inegvel pertinncia do seu pen- samento sobre o perdo num pas como o Brasil, que escondeu a escravido e o racismo de tal forma que imensa a quantidade de pessoas que cr firmemente viver num pas sem discriminao ra- cial. Derrida interroga os objetivos da comisso sul-africana: tra- zer tona o trauma e promover a reconciliao, ideal no qual ele localiza uma expectativa de transcendncia (p. 61). Numa discusso sobre as condies de possibilidade do per- do, Derrida mais uma vez desloca o foco. Ao invs de perder-se no debate sobre o mrito do perdo, afirma que s se pode perdo- ar o imperdovel. desse paradoxo que surge a possibilidade de responsabilidade em relao ao perdo. Num dilogo. filosfico amplo, que vai de Kant a Hegel, Derrida guia o leitor pelos cami- nhos da desconstruo tambm na poltica, o que remete ques- to sobre o tipo de contribuio que o pensamento da desconstruo tem a dar no questionamento sobre os impasses da vida contempornea. 331 Conciliar o pensamento dessa desconstruo que acontece e que aponta os limites da questo "o que ?" com prtica poltica era um desafio para o filsofo, como ele mesmo explicou: "Ob- tendo xito de maneira irregular, mas nunca o bastante, tentei, portanto, ajustar um discurso ou uma prtica poltica s exignci- as da desconstruo. No sinto um divrcio entre os meus escri- tos e os meus engajamentos, apenas diferenas de ritmos, de modo de discurso, de contexto, etc." S Os engajamentos a que ele se refere so sua militncia contra a pena de morte, sua defesa dos 332 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sem-documento, sua adeso causa das minorias como mulheres, homossexuais, e sua luta contra o apartheid, essa que o levou a escre- ver sobre a experincia dos tribunais de perdo da frica do Sul. Na explorao da desconstruo a que o livro se prope desde seu ttulo, o texto de abertura, "O perdo, o adeus e a he- rana em Derrida: atos de memria", assinado pelo organizador Evando Nascimento, serve de timo fio condutor para quem de- seja caminhar pelo pensamento de Derrida. Uma forma de dar as boas-vindas aos que esto chegando agora, mas tambm um desbravamento pelo trabalho do filsofo em relao a questes contemporneas. Evando nos guia pelas trilhas, pelos rastros que nos levam ao ltimo Derrida, aquele que esticou at o limite sua definio para filosofia: "Pensar em ao, fazendo algo". 6 Hospitalidade e acolhimento Jacques Derrida: Pensar a desconstruo tambm uma demonstrao do acolhimento que o pensamento de Derrida teve no campo da Literatura. So dezenove artigos que, de alguma forma, esto relacionados ao tema. O livro agrupa textos por afi- nidade temtica: "Polticas da desconstruo", "Desconstruo, hospitalidade e tradio de pensamento", "Derrida e a traduo" e "Querer acreditar. Nas mos do intelecto". do pioneiro Silviano Santiago, a quem cabe o mrito de ter sido um dos primeiros a trazer a leitura de Derrida para os departamentos de Letras no Brasil, nos idos da dcada de 1970, um texto que explora a diffrance derridiana como a subverso de uma letra. O incmo- do a que, acrescentado palavra francesa diffrence, impede a diferenciao entre o vocbulo escrito e falado, confundindo as regras que deveriam separar claramente phon e escrita. Esse in- cmodo Santiago identifica tambm na proposta de responsabili- dade, trabalhada por Derrida sobretudo em Donner la mort,? e discutida por Santiago em "O silncio, o segredo, lacques Derrida". Tambm no campo das Letras esto artigos como "Aquele que desprendeu a ponta da cadeia", de Leyla Perrone-Moiss, que aproxima Derrida do pensador francs Roland Barthes, e o belo trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield sobre Machado, Rosa, Musil e Clarice Lispector. 'Entrevista publicada em httpJ /indymedia.aI12all.org/ mail.php?id=83l23. Endereo consultado em 20 de maio de 2005. 'DERRIDA, Jacques. Donner la morl. Paris: Galile, 1999. 8 DERRIDA, Jacques. This strange institution called Iiterature: interview. In: ATTRIDGE, Derek (Ed.) Jacques Derrida: acts of literature. Nova YorkJLondres: Routledge, 1992. 9 NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. Niteri: EdUFF, 1999, p. 274. 10 DERR1DA, Jacques. A escritura e a diferena. So Paulo: Editora Perspectiva, 2002. 11 DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Derrida e a escritura. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (Org.). s margens da filosofia. Rio de Janeiro: Editora PUC-RJlEdies Loyola, 2002. verdade que Derrida soube retribuir a ateno merecida nos departamentos de Letras. Detrida definiu a literatura como o lugar onde se pode dizer tud0 8 , o lugar mais interessante do mun- do, talvez mais interessante do que o mundo. Menos por preten- der criar algum fetiche em torno da literatura 9 e mais para salva- guardar o espao literrio como esse lugar de abertura. Quando diz que "o sujeito da escrita um sistema de relaes em cama- das: da lousa mgica, da psique, da sociedade, do mundo" e que, "no interior dessa cena, a simplicidade pontual do sujeito clssica impossvel de ser encontrada lO ", Derrida est mais uma vez ti- rando o fundamento do solo no qual deveriam florescer conceitos slidos para a compreenso do mundo. No entanto, na Literatura, pode-se afirmar que esse abalo parte constituinte, o que seria uma das razes para a valorizao que Derrida faz da Literatura como lugar de abertura. Esse descentramento que destacou na escrita ou na psican- lise, o filsofo tentou espalhar para o campo do poltico at o limite mximo, sempre propondo deslocamentos. Seria seguro afirmar que so justamente esses deslocamentos, esses reenvios de sentido que fazem com que Derrida seja mais lido nos departamentos de Letras ou entre os tericos da Psicanlise do que na Filosofia? O livro uma demonstrao de como esse processo tambm se deu no Brasil - e importante ressaltar que o fenmeno se reproduz em todos os pases do Ocidente que se puseram a ler Derrida. Entre os vinte e um artigos publicados, h apenas um filso- fo brasileiro, o professor da PUC-RJ Paulo Cesar Duque-Estrada. A solido filosfica poderia indicar um certo apego da Filosofia ao pensamento da verdade como fundamento, numa perspectiva que Derrida trabalhou para desconstruir. em "Derrida e a crtica heideggeriana do humanismo" que Duque-Estrada explora o pos- tulado humanista de volta ao sujeito. O autor lembra que Derrida desconstri a noo de identidade para substitu-la por identifica- o, esta mais prxima de um processo, de um movimento, de um devir permanente que nunca se d completamente, do que a rigidez da identidade fixa, prpria e apropriada. Para Derrida, o que forma uma identidade aquilo que j a desloca, num processo que se re- pete indefinidamente ll . J naqueles que reivindicam a volta ao su- jeito da tradio haveria o desejo de ancorar a questo do ser em portos supostamente mais slidos do que os indecidveis derrianos. 333 334 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Duque-Estrada demonstra que a desconstruo est sendo posta sob suspeita Cp. 247) porque, no seu descentramento do sujeito, acusada de no ter nada de substancial a oferecer diante de um quadro poltico marcado pelo recrudescimento do fundamentalismo religioso, pela violncia urbana crescente, pela globalizao que tudo entrega s mos invisveis do mercado. A crtica da insistncia no humanismo, que Derrida '2 identifica in- clusive no pensamento de Heidegger, poderia ser o ponto fraco no qual os postuladores da volta ao sujeito percebem a desconstruo como o pensamento que "no tem nada a dizer." No entanto, Du- que-Estrada lembra que a clausura pode estar no pensamento que insiste no homem Cp. 254). Ainda no mbito da filosofia, no artigo "Mal de hospitali- dade", da filsofa portuguesa Fernanda Bernardo, que o leitor encontrar de maneira precisa a ligao entre desconstruo e hospitalidade, para demonstrar como o acolhimento ao estrangei- ro, ao outro que se apresenta a partir da desconstruo, a esse outro que emerge quando a desconstruo acontece, como esse incondicional sim ao estrangeiro, essa hospitalidade a todo e qual- quer outro que "define a desconstruo como movimento de pen- samento" (p. 193). Etapas e deslocamentos H quem pretenda dividir o pensamento de Derrida em duas etapas - a primeira, a da descontruo do signo, presente em tex- tos do final da dcada de 1960, dos quais Gramatologia (1967) o mais exuberante. A categoria compreenderia tambm A diffrance (1968), Afarmcia de Plato e A Disseminao, ambos de 1972. J o ltimo Derrida seria aquele filsofo que ousou abarcar na sua obra questes polticas contemporneas e, por isso, teria vindo ao Brasil, meses antes de morrer, falar sobre pena de morte e perdo. A diviso, creia-se nela ou no, serve os crticos tanto do primeiro quanto do ltimo Derrida. De uma proposta de desconstruo que estaria apenas "lendo textos de outro modo", ele teria passado a discutir temas supostamente alheios filosofia. Por isso, perguntam os filso- fos dogmticos, para usar uma expresso derridiana, o que perdo tem a ver com a filosofia e com a questo primeira - "o que "? Quando, em Gramatologia, Derrida comea a questionar o 12 DERRIDA, lacques. os fins do homem. In: DERRIDA. largues. Margens dafilosofia Campinas: Papirus, 1991, p 161. signo como portador de uma unidade natural entre significante (palavra) e significado (sentido), pe tambm em questo a tradi- o metafsica que estaria implicada na idia de que a linguagem carrega a possibilidade de expresso de uma verdade transcendental. Ao desfazer a estrutura binria significante/signi- ficado, ele aponta para o "carter arbitrrio do signo" e questiona a existncia da ligao natural entre significante e significado, o que equivale a suspender esse conjunto de supostas oposies entre sensvel/inteligvel, dentro/fora, presena/ausncia. Da em diante, h um longo caminho a percorrer at chegar abordagem poltica do "ltimo Derrida", que parte da ausncia de fundamen- tos para identificar violncias, que joga com os indecidveis para questionar verdades, mesmo - ou principalmente - aquelas ditas em nome do Bem. Pode-se reconhecer que Derrida foi um pensador em ao, que trilhou o tnue fio entre desconstruo e prtica poltica. Com isso, teria ele contaminado o pensamento filosfico, desviando-o da questo "o que "? Ao questionar os limites dessa pergunta to cara filosofia, Derrida abriu-se perspectiva de no apenas no ter as respostas prontas, mas ousar diz-lo. Pensar a desconstruo um livro que, no seu espectro amplo de abertura a diferentes leitores de Derrida no Brasil e no exterior, monta um mosaico de como o pensamento da desconstruo acontece, para alm do jogo de ausncia/presena do ltimo Derrida entre ns. 335 336 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Histria. Fico. Literatura. Luiz Costa Lima So Paulo: Companhia das Letras, 2006. Srgio Alcides (UFOP) Histria. Fico. Literatura, como outros livros de Luiz Costa Lima, parte de uma questo aparentemente simples, por trs da qual o terico surpreende todo um labirinto de conexes e impasses da maior relevncia para diferentes setores das chama- das "humanidades". Foi assim com seus primeiros estudos sobre a mmesis dos gregos: seria ela o mesmo que a sua contrapartida no mundo romano, a im ita tio , subordinada ao primado do real? E assim foi com a trilogia do Controle do imaginrio: que estatuto reservado ao ficcional na modernidade, em face do tipo de razo triunfante no Ocidente? Desta vez a questo de partida est ligada a uma constatao: tem sido superficial demais, desde a Antigidade, a reflexo com- parativo-contrastiva entre a histria e a poesia. A carncia de um aporte terico mais conseqente a esse respeito adquiriu aspectos de emergncia desde os anos 1970, quando veio tona com toda a fora a polmica sobre a dependncia da escrita da histria fren- te a procedimentos e recursos ficcionais (tais como a narrativa e as figuras de linguagem). Costa Lima tem participado do debate h mais de uma dcada - mas s agora apresenta uma verso cabal e mais desenvolvida de seus argumentos. O ttulo do livro j d boas indicaes do posicionamento do autor: como termos separados por pontos, histria, fico e literatura no se confundem, nem so intercambiveis. As trs partes da obra teorizam sobre os termos separadamente, tratando das especificidades de cada um, mas sem deixar de investigar suas relaes com os outros dois. O longo prefcio procura expor a questo e apresentar uma espcie de roteiro seguido pelo terico na sua abordagem. pro- vvel que esta venha a ser a parte do livro mais consultada nos cursos universitrios, sobretudo na rea de histria (pelo menos num prognstico talvez otimista demais). No contexto de um de- bate que j dura mais de trinta anos, escassamente conhecido no Brasil, esse texto apresenta uma das crticas mais conseqentes e originais j feitas obra de Hayden White, o autor de Metahistory (1973). Por meio da anlise literria de textos historiogrficos cls- sicos, o terico americano procurou demonstrar que a escrita da histria se constitui mais propriamente numa srie de fices ver- bais, cujo contedo to inventado quanto achado, e que tm mais em comum com a literatura do que com as cincias. importante frisar que a crtica de Costa Lima nada tem de reacionria - como tem sido, em geral, a pequena recepo da obra de White no Brasil. Longe de fazer tabula rasa do chamado linguistic tum que inspirou o trabalho de White nos anos 1970, Costa Lima ressalta vrios aspectos favorveis trazidos por essa virada de perspectiva epistemolgica. Ao invs de negar in limine toda e qualquer contribuio que venha dessa corrente, como tem feito, por exemplo, Carlo Ginzburg, Costa Lima dialoga com ela e assim encontra seus reais limites. Para alm destes se encontra o campo terico novo, no qual ele procura fundar sua reflexo. Para retomar a distino entre histria e fico, o autor cha- ma a ateno para as "metas discursivas" de cada gnero, e ainda acompanha a concepo de Reinhart Koselleck de uma camada pr-verbal a ser considerada na escrita da histria. Em outros momentos deste livro, ficar clara a maior proximidade de Costa Lima com autores alemes do que com os americanos tambm na rea da teoria da histria - assim como, na teoria literria, ele nitidamente se identifica, desde finais dos anos 1970, com a cons- telao de autores formados sob o impacto da "esttica da recep- o", de Hans Robert Jauss - sobretudo Karlheinz Stierle e Wolfgang Iser; a este ltimo, presta um importante tributo na se- gunda parte do livro. tambm marcante nesse prefcio o trio de apoio terico que Costa Lima montou - totalmente inesperado e original- para enfocar toda obra: um artigo esquecido de William J ames ("The Perception of Reality", de 1889), outro de Alfred Schtz ("On Multiple Realities", de 1954) e a obra capital de Erving Goffman 337 338 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 sobre a "anlise por molduras" (de 1974). Partindo de trs auto- res "fora de moda", ele traa uma maneira prpria de considerar a "construo social da realidade" (livrando-nos da rotina de Berger e Luckmann a esse respeito). O leitor que conhecer bem a obra de KoseIleck (ou a de Jauss, neste caso), no ter dificuldades em notar como Costa Lima l aqueles trs autores de um ngulo "ale- mo", fortemente marcado pela nova hermenutica - sendo o melhor sinal disso o uso recorrente da dupla de categorias experi- ncia/expectativa, qual se recorre para explicar, por exemplo, o conceito de frame ("moldura") do canadense Goffman. Em J ames, Costa Lima busca uma interessante definio de "crena" como estado emocional de conhecimento da realidade que estabelece as condies para o consentimento e assim provo- ca a "cessao da agitao terica". Para se acrescentar aos mui- tos sinais de ceticismo espalhados pela obra de Costa Lima, ele conclui: "o oposto da crena no a descrena, mas sim a dvi- da". Esse indcio, aparentemente banal, ganhar maior importn- cia medida que o leitor vai se dando conta do cerne do livro, que diz respeito ao contraste entre o ficcional e o historiogrfico. Seja como for, o artigo de J ames afasta desde o princpio a reflexo do terico brasileiro de qualquer rano positivista: "a fons et origo de toda a realidade", afirma o americano, " subjetiva, somos ns mesmos". Para quem ainda supe ser possvel trabalhar em cin- cias sociais dentro de parmetros tericos mais simplrios, ser inquietante acompanhar a concluso desse pensamento, segundo a qual "a prpria palavra 'real' , em suma, uma fmbria". Ao que Costa Lima acrescenta: "Ser, do ponto de vista humano, a realida- de uma fmbria significa que no a vivenciamos como um territ- rio contnuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos rgos dos sentidos". E continua: "Quando, portanto, nos dize- mos que realidade o que se pe diante de ns e provoca reaes, empregamos uma tosca lgica a posteriori, pois convertemos em experincia passiva o que, na verdade, depende da participao ativa da subjetividade". A contribuio encontrada em Schtz serviu para dar mais consistncia, como objeto terico, a essa fmbria heterognea sub- jetivamente construda. Para tanto, recorreu-se concepo des- se socilogo acerca das "provncias finitas de significao" que cada um estabelece, na vida prtica, diante das prprias experin- cias, gerando um "estilo cognitivo" especfico. A realidade, assim, torna-se ainda mais fragmentria- desde a "fmbria" subjetiva at as "provncias" intersubjetivas. Goffman ajuda Costa Lima a aprofundar ainda mais o problema, atravs das "molduras" delineadas por cada interao discursiva na vida cotidiana, que trazem implcitos um conjunto de expectativas e um padro sele- tivo de percepo do mundo e dos outros. Isso desvia Costa Lima da hipervalorizao da retrica que vem ganhando espao em di- ferentes domnios, como a economia, a histria e os estudos lite- rrios. "Indiretamente", argumenta ele, "Goffman nos ensina que a retrica nos acompanha em cada situao do cotidiano. Portan- to, que no ser por ela que poderemos definir uma situao discursiva". 339 Toda essa problemtica percorrer o restante do livro sub- terraneamente; o autor no precisa mencion-la para nos relembrar de que as trs partes de Histria. Fico. Literatura nela se enra- zam. A primeira destas a que traz mais novidades para o conjun- to da obra de Costa Lima, que aqui se consolida tambm como um terico da histria. O objetivo, em linhas gerais, fixar as especificidades da escrita da histria, sem deixar de insistir sobre os seus dbitos literrios. "Preocupar-se com a construo do texto no supe considerar-se a verdade (altheia) uma falcia conven- cional; a procura de dar conta do que houve e por que assim foi o princpio diferenciador d". escrita da histria. Ela a sua aporia". Esse trecho introduz o conceito mais surpreendente de todo o livro: aporia, como concepo de verdade uniforme e sem fissuras, tida por auto-evidente e sempre idntica a si prpria, puro objeto do reino dos fatos, independente de observao ou participao subjetiva. Superado o primado positivista do real, a linha de dis- tino entre a histria e a fico no passa mais pela distino entre o documental e o imaginado, o factual e o fingido, mas sim pela reivindicao de verdade que sustenta uma, aportica, ao passo que a outra se isenta desse padro pr-lingstico e , por isso, mais porosa. A surpresa aqui est tanto na formulao, por sua originali- dade, quanto na terminologia adotada. Estudioso de filosofia (que, alis, tende ao trabalho do filsofo cada vez mais, pelo menos desde Mmesis: desafio ao pensamento, do ano 2000), Costa Lima certamente conhece a fortuna do termo aporia. Entre os dilogos 340 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 socrticos de Plato, so chamados de aporticos justamente os inconclusos, nos quais a discusso se encerra sem que os interlocutores cheguem a uma concluso firme sobre o tema em pauta. Sem falar no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, "poro", em que um inseto cava a terra em busca de uma improvvel sada. Maior defensor do ficcional entre os teri- cos da literatura ps-estruturalistas, Costa Lima parece mais uma vez alinhar-se aos cticos ao escolher esse vocbulo para modelar um conceito: ele, por si s, pe em questo os privilgios da ver- dade. Essa impresso reforada pela circunstncia de a aporia, conforme a argumentao do autor, ser mais rgida sobretudo na crena (sendo o contrrio desta, como vimos com a ajuda de William James, a dvida). Dentro desses referenciais, a primeira parte se inicia com uma cerrada reviso do debate acerca de autores que, na Grcia Antigidade, foram chamados de "historiadores": Herdoto e Tucdides. Estrangeiro em campo minado, Costa Lima no escon- de suas preferncias por M.1. Finley e F. Hartog,justamente aqueles que, entre os especialistas em histria antiga, tm sido os mais polmicos. Desde o incio vem tona uma preocupao que atra- vessar o livro inteiro, mesmo as duas partes seguintes, com o temperamento refratrio dos historiadores, em geral, frente a quais- quer discusses tericas, resultando numa espcie de positivismo naif que freqentemente "alfinetado" pelo autor: seus maiores inimigos so "o arraigado positivismo dos historiadores, que no aceitam sequer discutir a aporia da verdade", "a marca objetivista do padro positivista", "o infantilismo positivista dos historiado- res", "a dificuldade dos historiadores de se libertarem da camisa de fora que se tornou a objetividade". Se rejeita a reduo da histria fico, devido ao apoio daquela na aporia veraz, o te- rico no deixa de questionar a inscrio da verdade no domnio do factual, pura e simplesmente. Com isso, ele retoma um dos temas recorrentes de sua obra desde pelo menos O controle do imagin- rio (de 1984), que a crtica ao substancialismo inscrito na con- cepo de fato. Por outro lado, em contraste com os pressupostos do linguistic turn, Costa Lima postula a existncia de um nvel pr- verbal de experincia onde possa radicar a premissa de verdade dos historiadores. o que o autor chama de "histria crua", aque- la onde est imersa a vida. Ela assim designada - quem sabe?- talvez por no ter ainda sofrido a coco discursiva. Ou, por ou- tro lado, pela crueza dos afetos humanos, sobre os quais ela avan- a; num livro que se inicia com as interrogaes e as perplexida- des de Herdoto e Tucdides sobre as guerras da Antigidade, e escrito num tempo em que as paixes blicas reaparecem em pri- meiro plano, compreensvel que Costa Lima reconhea uma "marca amarga": "a histria crua caminha sobre a violncia". Deve estar ligada ao mesmo amargor a hiptese de a ojeriza historiogrfica relacionar-se com os seus compromissos frente ao Estado-nao. E a conseqncia prtica - ou tica - da teoria de Luiz Costa Lima se resume num trecho de sntese sobre toda a primeira parte do livro: "O que esta seo tem afirmado, portan- to, a necessidade de, reconhecendo-se a aporia especfica da histria, dar-lhe um tratamento flexvel, submet-la a um uso po- roso". Antes, o autor j tinha observado que prprio da aporia o risco de se enrijecer contra o autoquestionamento, com a tendn- cia ao dogma. A tarefa por excelncia do historiador, portanto, no ser a montagem dessa superfcie sem poros e veraz, mas, ao contrrio, a "abertura de horizontes". O que faz lembrar o conhe- cido ditado segundo o qual "o passado um pas estrangeiro". Mas, como nos ensina este Costa Lima terico da histria, para viajar nele necessrio bem mais do que um passaporte ou um diploma de bacharel. A segunda parte trata da fico. Novamente, o autor come- a pelo comeo: na Grcia, primeiro com Homero, depois com a 'tragdia. Um destaque do primeiro captulo o tratamento dado a Aristteles (alis j discutido em menor profundidade na seo anterior), como um pensador to seminal no campo das idias estticas quanto falhado, por ter sido, na viso de Costa Lima, mal compreendido e banalizado por seus continuadores: sua for- tuna, afinal, ter s;do um infortnio. A discusso tambm origi- nria do Controle doimaginrio, manancial de toda a obra madu- ra do autor, que tem se revelado praticamente inesgotvel e ne- cessita de urgente reedio (o primeiro volume da trilogia teve uma reedio revista, mas os outros dois no). Se no livro anteri- or o tema aristotlico revisto foi o conceito de verossimilhana, alm do de mmesis, agora o interesse maior recai sobre a tragdia e o conceito de catarse. 341 342 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Nessa mesma parte o autor se aprofunda em distin- es finas, por exemplo entre o real e a realidade, a fico e a mmesis, o fictcio e o ficcional. Reaparece aqui o problema da retrica; para Costa Lima, a reduo das teses aristotlicas a um conjunto de preceitos retricos foi "um desastre" - e, pode-se concluir, a reificao desses preceitos pela crtica literria atual se arrisca a repetir os efeitos desse antigo mal-entendido. Buscando um roteiro prprio, Costa Lima prefere conduzir a discusso so- bre obras marcantes da Antigidade latina - tais como a Eneida, de Virglio, e as Metamorfoses, de Ovdio - a partir da relao entre poesia, verdade e imaginao. Os especialistas em literatura antiga talvez se sintam enciumados. Costa Lima ver em Virglio a tentativa de denegar a fico, marcada pelo vnculo do seu poema com a glorificao do imprio romano. Ao passo que as Meta- morfoses tomam explicitamente o partido da imaginao: "O re- sultado a retrica pr-se a servio do ficcional". E, assim como a mmesis tem a propriedade de selecionar valores de uma deter- minada sociedade, inscritos no tempo, destinando-os outra temporalidade da obra de arte, o ficcional "traz em si incrito o real": mais do que uma representao ou um reflexo dele, a fico aquilo que o captura sob a forma de discurso, podendo assim agir sobre ele. Fica evidente o carter disruptivo e potencialmente subversivo do ficcional. A seo termina, depois de uma discusso sobre a obra de Wolfgang Iser, com um captulo inteiramente dedicado anlise crtica - a partir dos pontos tericos at aqui levantados - de um longo dilogo entre Otaviano Augusto e o personagem principal do romance A morte de Virglio, de Hermann Broch. Est em cau- sa precisamente o tema latente em todo o percurso de Costa Lima: a quem pertence a poesia? ao poeta? ao Estado? No trecho anali- sado, o imperador procura evitar que o vate moribundo destrua o seu poema pico que glorificava o Imprio. A terceira parte a menos ambiciosa do livro, mas ela que "amarra" todas as pontas deixadas pelas anteriores - o que talvez j sinalize algo de relevante acerca da sua palavra-chave, "litera- tura". Esta, para Costa Lima, no se confunde com fico. A pr- pria dificuldade de definir o conceito, que o autor estuda na sua raiz, em F. Schlegel, Mme. de Stael e Chateaubriand, serve-lhe de apoio para investir teoricamente sobre esse prprio vazio. A lite- ratura passar a ser o discurso aberto, que comporta o heterog- neo, o hbrido e o ainda no formulado, e cuja caracterstica sen- svel o que o autor chama de "espessura da linguagem". Esse trao vago - mas por definio infenso ao tipo de enrijecimento que se cristaliza em aporia - justificaria que obras inscritas origi- nalmente no campo das cincias sociais, como Os sertes e Casa grande & Senzala, uma vez perdida a sua vigncia, sejam incor- poradas ao acervo da literatura. Assim como na seo anterior o terico se faz de crtico e enfrenta A morte de Virglio, aqui a vez de o material terico formulado encontrar uma atuao crtica acer- ca das Memrias do crcere, de Graciliano Ramos, obra na qual Costa Lima encontrar uma "abstinncia de ficcionalidade" que, no entanto, revela uma concepo de literatura mais complexa do que mostra o mesmo escritor em sua obra de imaginao, limitada, se- gundo o crtico, pela subordinao da fico realidade. O ltimo captulo, na verdade um apndice, consta de um ensaio de Costa Lima sobre Os sertes - tema de seu livro mais prximo deste, a meu ver, que Terra ignota, sobre a obra de Euclides da Cunha. O autor adverte que, nesse ensaio, a meio caminho entre um livro e outro, as questes que gerariam Hist- ria. Fico. Literatura j esto em preparo, embora no inteira- mente formuladas. Em Terra ignota (de 1997), as relaes entre histria e literatura so o tema de um dos dois apndices (sendo o outro um dos textos mais importantes e menos comentados de Costa Lima, "O pai e o trickster", sobre o contraste das condies sociais e intelectuais de produo do saber e da literatura em mei- os "metropolitanos" ou "marginais"). 343 Histria. Fico. Literatura ser visto como um marco im- portante de amadurecimento dentro da obra de Costa Lima. To- mara que o traduzam logo para alguma lngua mais conhecida do que o portugus, para que as contribuies originais que ele con- tm possam fazer algum eco - inclusive no Brasil (pois faz parte das nossas sndromes esse efeito "bumerangue" da projeo inter- nacional). Entre ns, talvez desperte mais interesse nos departa- mentos de letras do que nos de histria (sendo exceo entre estes o da PUC-RJ, onde o autor leciona). pena, porque os maiores beneficirios deste livro sero os historiadores menos "engessados" nos preconceitos do seu mtier. Apresentao dos autores Ana Cludia Viegas professora adjunta de Literatura Brasileira da UERJ e de Teoria da Comunicao e Teoria da Ima- gem da PUC-Rio. Publicou, alm de artigos diversos, o livro Bliss & blue - segredos de Ana C. (So Paulo: Annablumme, 1998). Desenvolve, atualmente, pesquisa em torno das relaes entre a Literatura Brasileira contempornea e os media eletrnicos e di- gitais. Andra Borges Leo doutora em Sociologia pela Uni- versidade de So Paulo e professora do Programa de Ps-gradu- ao em Educao Brasileira da Universidade Federal do Cear. Em 2005, realizou estgio ps-doutoral na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris, sobre a formao das cole- es literrias infantis da Livraria Garnier. Sua ltima publicao : LEO, Andra Borges. Universos da devoo, sabedoria e moral: as Bibliotecas Juvenis Garnier (1858 e 1920). In: Revista Educao em Revista N. 43. Belo Horizonte: Faculdade de Edu- cao da UFMG, 2005. ngela Maria Dias professora de Literatura Brasileira, Teoria Literria e Literatura Comparada da UFF & Pesquisadora do CNPq. Ensasta e crtica literria, desde os anos 80. Publica- es recentes: Estticas da crueldade (Coordenao e Organiza- o com Paula Glenadel), Ed.Atlntica/2004; "Barthes e a foto- grafia: Por uma fenomenologia do afeto". In: GLENADEL, Paula & CASA NOVA, Vera. Viver com Barthes.Rio de Janeiro, 7Le- tras, 2005. Dlia Cambeiro professora de lngua e literatura italiana da UERJ. 345 346 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Edson Rosa da Silva Professor Titular de Lngua e Lite- ratura Francesa da UFRJ, Pesquisador do CNPq, Membro do Comit Assessor de Letras e Lingsticajunto ao CNPq, e especi- alista da obra de Andr Malraux, sobre a qual defendeu tese de doutoramento na UFRJ (1984) e escreveu inmeros artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Joana Luza Muylaert de Arajo, professora de Teoria Literria e Literatura Brasileira do Instituto de Letras e Lingsti- ca da Universidade Federal de Uberlndia e do Mestrado em Teo- ria LiterriaJUFU, Coordenadora do Programa de Ps-gradua- o em Letras - Mestrado em Teoria Literria. Laura Padilha professora da UFF, pesquisadora do Cnpq, ex- vice-presidente da ABRALIC e ex-presidente da ANPOLL. Autora, entre outras, das obras: Entre voz e letra (Niteri/Lisboa: EDUFFlNovo Imbondeiro, 1995/2(05); Novos pactos, outras fic- es. (Porto Alegre/Lisboa: Ed. PUC-RGS /Novo Imbondeiro, 2002. Luiz Gonzaga Marchezan professor assistente-doutor de Teoria da Literatura do Departamento de Literatura da UNESP, na FCL do Campus de Araraquara. Organizou, com a Profa. Dra. Sylvia Telarolli, dois volumes: Ce1las literrias: a narrativa em foco e Faces do 1larrador, ambos editados pelo Laboratrio Edi- torial da UNESP de Araraquara, em convnio com a Cultura Aca- dmica, da Editora da UNESP, lanados, respectivamente, em 2002 e 2003. Em 2005, apresentou a edio de Ermos e gerais, de Bernardo Elis, pela Editora Martins Fontes. Maria de Lourdes Patrini-Charlon professora do De- partamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Suas publicaes mais recentes inc1uemA renovao do conto - emergncia de uma pratica oral. So Paulo: Cortez Editora, 2005. Maria Esther Maciel professora de Teoria da Literatura da UFMG. Doutora em Literatura Comparada, com Ps-Douto- rado pela Universidade de Londres. Autora, entre outros, dos li- vros As vertigens da lucidez: poesia e crtica em Octavio Paz (1995), Vo Transverso: poesia, modernidade e fim do sculo xx (1999), A memria das coisas - ensaios de literatura, cinema e artes plsticas (2004) e O livro de Zenbia (fico, 2004). Tem vrios trabalhos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras Marlia Librandi Rocha Professora de Teoria da Litera- tura na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutora em Teoria Literria e Literatura Comparada, USP. Maria Luiza Berwanger da Silva professora do Progra- ma de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alm de artigos em peridicos, publicou Paisa- gens Reinventadas (Traos Franceses no Simbolismo Sul-Rio-Grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999. Marisa Lajolo atualmente professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora titular de Teoria Literria da Unicamp. Coordena o projeto temtico" Monteiro Lobato (1882- 1948) e outros modernismos brasileiros" (http://www.unicamp.br/ iel/monteirolobato) que tem apoio da Fapesp e do CNPq. Entre seus livros listam-se: Coma e porque ler o romance brasileiro e Monteiro Lobato - um brasileiro sob medida. Mais recentemente, organizou a publicao dos postais que Monteiro Lobato enviou noiva entre 1906 e 1908 (Quando o carteiro chegou). Patrcia Ktia da Costa Pina professora Adjunta de Li- teratura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, em Ilhus, na Bahia. Organizou o resgate e a publicao do livro Vindiciae, de Lafaiete Rodrigues, pela UERJ, em 1998, sob o t- tulo Vindiciae: em defesa de Machado de Assis; publicou o livro Literatura e jornalismo 110 oitocentos brasileiro, em 2002, pela EDITUS. Organizou, tambm pela EDITUS, a revista Literatta, em 2002. Pierre Rivas professor de Literatura Comparada na Uni- versidade de Paris, e especialista nas relaes literrias entre Frana, Portugal e Brasil. Suas publicaes mais recentes incluem: Dilo- gos interculturais. So Paulo: HUCITEC, 2005. 347 348 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Regina Zilberman Doutora em Romanstica pela Universi- dade de Heidelberg, Alemanha; Professora Titular na Faculdade de Letras, da PUCRS; Pesquisadora IA, CNPq. Publicaes, entre ou- tras: Esttica da Recepo e Histria da Literatura (tica); Fim do livro, fim dos leitores? (Ed. Senac); A literatura infantil na escola (Global); Como e porque ler literatura infantil brasileira (Objetiva). Rogrio Lima Coordenador do Programa de Ps-Gradu- ao em Literatura da Universidade de Braslia e autor de captu- los de livros e artigos publicados em peridicos, especialmente sobre o mundo digital e as relaes entre literatura e informtica. Sandra Guardini T. Vasconcelos Doutora em Teoria Li- terria e Literatura Comparada pela Universidade de So Paulo. Professora Associada de Literaturas de Lngua Inglesa na Univer- sidade de So Paulo, desenvolve nos ltimos anos pesquisa sobre as relaes entre os romance ingls dos sculos XVIII e XIX e o romance brasileiro do sculo XIX. Alm de vrios artigos e cap- tulos de livros publicados no Brasil e no exterior, autora de Pu- ras Misturas. Estrias em Guimares Rosa (1997) e de Dez Li- es sobre o Romance Ingls do Sculo XVIII (2002). Socorro de Ftima Pacfico Vilar professora da UFPB desde 1987. Atualmente faz estgio de ps-doutorado na PUCRS, com projeto relacionado aos jornais paraibanos. Desenvolve pesqui- sas na rea de Histria da Leitura e Histria da literatura. Publicou Primeiras leituras e outras histrias, pela EDUFPB e A inveno de uma escrita: Anchieta, osjesutas e suas histrias, pelaEDPUCRS. Tha'is Flores Nogueira Diniz professora adjunta de Lite- ratura Comparada e Literaturas de Expresso Inglesa na Faculda- de de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e especia- lista em traduo intersemitica e teatro contemporneo. Suas reas de pesquisa incluem a relao entre a literatura e as outras artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a intermidialidade. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana University at Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o ttulo em 1994. Fez seu ps-doutorado em Londres, no Queen Mary College, University ofLondon em 2004. Aos colaboradores 1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita traba- lhos inditos sob a forma de artigos e comentrios de livros, de interesse voltado para os estudos de literatura Comparada. 2. Todos os trabalhos encaminhados para publicao sero sub- metidos aprovao dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestoes de modificao de estrutura ou contedo, por parte do Con- selho Editorial, sero comunicadas previamente aos autores. 3. Os artigos devem ser apresentados em trs vias, texto datilo- grafado em espao duplo, com margem, alm de dados sobre o autor (cargo, reas de pesquisa, ltimas publicaes, etc). 4. O original no deve exceder 30 pginas datilografadas; os co- mentrios de livros, em tomo de 8 pginas. 5. As notas de p de pgina devem ser apresentadas observando- se a seguinte norma: Para livros: a) autor; b) ttulo da obra em itlico; c) nmero da edio, se no for a primeira; d) local da publicao; e) nome da editora; f) data de publicao; g) nmero da pgina. BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p.31. Para artigos: a) autor; ttulo do artigo; c) ttulo do peridico (em itlico); d) local da publicao; e) nmero do volume; f) nmero do fascculo; g) pgina inicial e final; h) ms e ano. ROUANET, Srgio Paulo. Do ps-moderno ao neo -moderno. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.1, p. 86-97,jan./mar., 1986. 7. As ilustraes (grficos, gravuras, fotografias, esquemas) so designadas como FIGURAS, numeradas no texto, de forma abreviada, entre parnteses ou no, conforme a redao. Exemplo: FIG.1, (FIG.2) As ilustraes devem trazer um ttulo ou legenda, abaixo da mes- ma, digitado na mesma largura desta. 8. Os autores tero direito a 3 exemplares da revista. Os origi- nais no aprovados no sero devolvidos. Impresso e Acabamento GRFICA LIDADOR LTDA. Rua Hilrio Ribeiro, 154 - Pa da Bandeira - RJ Te!.: (21) 2569-0594' Fax: (21) 2204-0684 e-mai!: [email protected]