Forma Breve
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Revista de Literatura
Teatro Mnimo
universidade de aveiro
Ficha Tcnica
Ttulo forma breve 5 Teatro Mnimo Director Antnio Manuel Ferreira [email protected] Secretrios Paulo Alexandre Pereira Maria Eugnia Pereira Comisso Cientca | Editorial Board Oflia Paiva Monteiro (Universidade de Coimbra) Francisco Maciel Silveira (Universidade de So Paulo) Eugnio Lisboa (Universidade de Aveiro) Daniel-Henri Pageaux (Universit Paris III Sorbonne Nouvelle) Rosa Maria Goulart (Universidade dos Aores) Francisco Cota Fagundes (University of Massachussetts Amherst) Jos Romera Castillo (UNED Madrid) Jos Maria Rodrigues Filho (Universidade de Mogi das Cruzes, SP) A Direco da Revista Concepo grca Sersilito - Maia Edio Universidade de Aveiro Campus Universitrio de Santiago 3810-193 Aveiro 1 Edio Dezembro de 2007 Tiragem 500 Exemplares Depsito Legal 269994/08 ISSN 1645-927X Correspondncia forma breve Departamento de Lnguas e Culturas Universidade de Aveiro 3810-193 Aveiro
Catalogao recomendada
Forma breve. (2003) . Aveiro: Universidade, 2003 Anual ISSN 1645-927X: permuta
forma breve
Teatro Mnimo
2007
Centro de Lnguas e Culturas
ndice
TEATRO MNIMO Maria Fernanda Brasete Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois: uma fantasia mitolgica de Jorge de Sena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Paulo Alexandre Pereira Fico mnima: potncia e acto no teatro de Augusto Abelaira . . . . . . . . . . . . . Armando Nascimento Rosa Peas Breves no Teatro Escrito de Natlia Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Isabel Cristina Rodrigues Florbela Mnima exerccio sobre Hlia Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carlos Morais A dramatizao do mnimo essencial do mito de Antgona em Antnio Srgio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Flavia Maria Corradin A pardia a srio da Histria: O Eunuco de Ins de Castro . . . . . . . . . . . . . . . . Teresa Bago Nas tas a alma se enlaa: no adeus a Coimbra de Celestino Gomes . . . . . . . . . Miguel Falco A urgncia da palavra neo-realista: o teatro mnimo de Alves Redol . . . . . . . Mrcia Seabra Neves O teatro mnimo de Henoch Uma leitura de O Incompreendido (drama psicopatolgico em 3 actos e 4 quadros), de Raul Leal . . . . . . . . . . . . .
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Ana Isabel Vasconcelos A Farsa Lrica no Teatro Romntico ou a forma mnima da desejada nova pera portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mnica Serpa Cabral Ah! Mnim dum Corisco!..., de Onsimo Teotnio Almeida: o triunfo e a derrota do emigrante aoriano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Antnio Manuel Ferreira De Profundis, de Ivam Cabral: teatro veloz com Oscar Wilde . . . . . . . . . . . . . . . Maria Eugnia Pereira A palavra activa nA Voz humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Miguel Ramalhete Gomes Eu era Hamlet: o desejo de substituio em Hamletmaschine, de Heiner Mller . . Carlos Nogueira Aspectos do teatro popular de Valongo: as Papeladas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Christine Zurbach As formas breves e o teatro mnimo nos Bonecos de Santo Aleixo. . . . . . . . . . . Sara Reis da Silva Se calhar nem mesmo teatro: o texto dramtico para a infncia de Manuel Antnio Pina . . . . . . . . . . . . . . . M. Ftima M. Albuquerque Entre o texto e o palco: dramatizaes de histrias na primeira infncia . . . . . . Ana Margarida Ramos O silncio como teatro aproximaes produo dramtica de Antnio Torrado . .
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OUTROS ESTUDOS Karina Marize Vitagliano O poliedro da linguagem: as difraes imagticas em a pedra que no caiu . .
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Rachel Hoffmann A imagem no poema A or que ainda no nasceu na pgina, de Antnio Ramos Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cristina Firmino Santos A escrita como magnca impostura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Virgnia Bazzetti Boechat A quantas gentes vs pors o freio: o outro nOs Lusadas . . . . . . . . . . . . . . Claudio Alexandre de Barros Teixeira A escrita em metamorfose: uma leitura das Tisanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Danilo Rodrigues Bueno Aspectos da modernidade em El Arco y la Lira, de Octavio Paz . . . . . . . . . . . . . Bernardo Nascimento de Amorim HH e YHWH: Hilda Hilst e o deus javista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ana Carolina da Silva Caretti Os teclados e Opus 78: um dilogo literrio-musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . rica Zngano Nada pensa nada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carolina Donega Bernardes A aventura incessante de Ulisses: Kazantzakis e Jos Miguel Silva . . . . . . . . . .
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O prximo nmero da revista forma breve, a editar em Dezembro de 2008, ter como tema O Conto Lusfono.
Teatro Mnimo
Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois: uma fantasia mitolgica de Jorge de Sena
Maria Fernanda Brasete
Universidade de Aveiro
Palavraschave: Jorge de Sena, Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois, Epimeteu, fantasia mitolgica, tragdia, stira, farsa, teatro portugus, pea em um acto, dramaturgia seniana. Keywords: Jorge de Sena, Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois, Epimetheus, yithological fantasy, tragedy, farce, Portuguese theatre, play in one act, Senas dramaturgy.
1. Autor de uma obra multifacetada e sortlego renovador do teatro portugus, Jorge de Sena manifestou, no decurso da sua intermitente e por vezes at inconclusa produo dramatrgica, uma indiscutvel preferncia pela forma mnima do acto nico1, sintomtica de um experimentalismo vanguardista, intencionalmente provocador, como sugerem as suas palavras, na Nota Final que prefacia a colectnea de teatro, Mater Imperialis:
As aventuras de vanguarda do teatro contemporneo, como as vi nos Estados Unidos (e que vinham na continuao do meu interesse permanente pelo teatro de hoje), excitaram-me a compor duas fantasias mitolgicas que aparecem neste volume, e o teor delas (como de muitos textos meus inditos, sobretudo poticos, desde h muitos anos) teria sido, na verso agora publicada, muito mais violento em sugestes, aces e linguagem, se elas no visassem a uma publicao portuguesa. (Sena, 1989:12)
Sobre a incidncia e a importncia na produo dramatrgica portuguesa da pea em um acto (sculos XIX-XX) vd. Luiz Francisco Rebello (1997).
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Se entendermos como Peter Szondi que a moderna pea em um acto no um drama de tamanho reduzido, mas a seco de um drama elevado categoria de obra completa (1994: 99), poderemos supor que, tal como no drama analtico de Strindberg, a estrutura em um acto poder ter sido, tambm em Jorge de Sena, a forma de expresso de um drama do homem privado de liberdade. (100)2. O intuito de dignicar a produo dramatrgica nacional, atravs da experimentao de novas expresses cnicas, a m de promover a difuso do gosto pelo teatro e uma educao do pblico3 consubstancia o principal corolrio de uma ideia de teatro que, to apaixonadamente, Sena alimentou, com um esprito militante e abnegado, em prol da reforma e da modernizao do teatro portugus4. Uma personalidade destacada, no panorama da literatura e cultura nacionais, como poeta, ccionista, ensasta, crtico teatral e tradutor Sena foi, simultaneamente, autor de teatro, testemunhando a sua dramaturgia o rasgo magistral de uma verdadeira individualidade criativa, como vrios artigos e ensaios tm vindo a demonstrar, e muito em particular, o estudo substancial que lhe consagrou Eugnia Vasques (1988), na obra intitulada Jorge de Sena: Uma ideia de Teatro (1938-71). A comdia em um acto Luto (1938) indita at sua publicao em Mater Imperialis5 (1974) inaugurou o percurso dramatrgico do autor de O Indesejado (Antnio, Rei tragdia em verso em 4 actos, publicada em 1949). Esta sua primeira experincia teatral6 viria a encetar uma preferncia inquestionvel pela forma breve do acto
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Sobre esta questo cf. E.Vasques ( 1993: 42-49; 1999:209). Defende a especialista seniana que o modelo fascicular da pea em um acto resultou de constrangimentos estticos e polticos que acabaram por converter esse tipo de estrutura dramtica, breve e aberta, num objecto de arremesso civil em tempo de medo e de Censura (78).
Numa entrevista concedida, em 1960, Rdio Difuso Portuguesa, Jorge de Sena atribua ao teatro de vanguarda estas trs misses fundamentais. Cf. Sobre o Teatro de Vanguarda in Sena (1989b:387-391). Veja-se ainda o artigo intitulado Da Necessidade do Teatro, que abriu um nmero qudruplo, dedicado ao Teatro, da revista O tempo e o Modo (1967, n 50-53), posteriormente includo no volume de ensaios coligidos de Jorge de Sena, intitulado Do Teatro em Portugal (1989b).
Numa obra multiforme que se desdobrou em formas de expresso literria diversicadas poesia, conto, novela, romance, drama, crtica, ensaio, tragdia , expandida por tradues, prefcios, artigos de opinio, crnicas e correspondncia, a produo dramatrgica no foi um parntesis cnico na actividade do escritor e poeta. Para uma interpretao da obra seniana vd. E. Lisboa (1987) e J. Loreno (1987).
Alm dos inditos publicados em Mater Imperialis Origem, drama em 3 actos (1 verso), e Origem, ou a 4 pessoa (2 verso), O arcanjo e as abboras, Bajazeto e a revoluo e A demolio , escritos entre 1964-71, sabe-se que Jorge de Sena, quer na sua correspondncia quer em entrevistas concedidas, mencionou o nome ou simplesmente a ideia de outros projectos dramticos que nunca veio a concluir. Cf. E. Vasques (1998: cap. II e especialmente n. 40, p. 229).
Na cronologia da obra seniana, a pea em um acto Luto aparece (...) praticamente ao mesmo tempo que as tentativas de co, um ano depois de ter comeado o registo da sua criao potica, como testemunha Mcia de Sena, no Apndice a Mater Imperialis (1989a:119).
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epimeteu, ou o homem que pensava depois: uma fantasia mitolgica de jorge de sena
nico, como testemunhariam as restantes seis peas que escreveu: em Portugal (1948), Amparo de Me e Ulisseia Adltera; durante o exlio no Brasil (1964), A Morte do Papa e Imprio do Oriente; O Banquete de Dionsios (1969) e Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois (1970-71), escritas nos ltimos anos de vida, em Santa Brbara, nos Estados Unidos da Amrica7. Se bem que a sua primeira incurso pela arte dramatrgica denotasse ainda uma toada realista-naturalista, como observa D. Ivo Cruz (2001:299), a verdade que seriam os ecos de um surrealismo renovado, entrelaados no tom pattico de um existencialismo expressionista, a traar o percurso dramtico do dramaturgo. semelhana de alguns dos seus congneres estrangeiros, acreditou que o regresso tragdia e, consequentemente, o retorno poesia, facilitariam a busca da melhor expresso do que queria exprimir8 em grande teatro. Fecundada por uma contaminao dialctica de diferentes registos genolgicos trgico, satrico e frsico9 e eivada de um expressionismo de dimenso fantasista-surrealista, a pea em um acto Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois , como refere Eugnia Vasques (utilizando uma expresso de Carlo Vittorio Cattaneo) a pea-sntese da dramaturgia seniana (1988: 211), onde tragdia e farsa se imiscuem e complementam antiteticamente, de uma forma pardica, recriando uma polifonia dialgica entre a forma originria do teatro a tragdia tica , os entremezes farsescos medievais e a moderna linguagem cnica das dramaturgias europeia e americana do ps-guerra. Representando a mais acabada continuidade e complementaridade entre o Surrealismo e o Classicismo (D.I.Cruz, 2001: 299), a dramaturgia seniana veio a pender para um complexo registo trgico-frsico, como estratgia indutora de uma estilizao da cena e de desnaturalizao da fabula, que mesclava com grande originalidade e profundidade dramticas, mito, fantasia, irracionalidade e
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Sobre a cronologia da obra dramtica de Jorge de Sena cf. Notas Bibliogrcas in Mater Imperialis (Teatro), ed. de Mcia de Sena (1989a:229-30) e E.Vasques (1998: cap.II; 1999: 77-87). Cf. J.de Sena, 1989b:377. E o verso, rimado ou branco, medido ou no medido, mas sempre ritmado como prosa o no (...) garante, por um lado, uma dignidade da dico e, portanto, do homem que livremente se exprime, e, por outro lado, desenvolve, segundo esquemas rtmicos, a prpria emoo a comunicar. Tudo para maior glria da arte e, consequentemente, do homem.
Ser conveniente recordar que a tragdia e o drama satrico a quarta pea da tetralogia foram os dois gneros primordiais do antigo teatro grego (ou tico, porque foi nessa regio da Grcia continental que se instituram e desenvolveram os concursos dramticos, ao longo do sculo V a.C., integrados nos Festivais Dionisacos), ao passo que a farsa, apesar das suas obscuras origens, e de incorporar um registo burlesco-satrico tpico do mais antigo gnero cmico (a Comdia de Aristfanes), s conquistou identidade genolgica, no nal da Idade Mdia. Cf. Pavis, 1990:217-8. Jorge de Sena, na entrada que lhe consagra em Amor e outros Verbetes (1992: 189-90) refere que esta forma extrema de comdia teatral, nem sempre muito conseguida, foi recuperada, em Portugal, pelo teatro modernista de feio expressionista, como meio de acautelamento contra a Censura. Sobre a interpenetrao dos registos trgico e frsico na potica teatral seniana vd. E. Vasques (1998: cap. IV).
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simbologia. A sua derradeira pea em um acto revela-se, assim, um espectculo metafrico e grotesco sobre as limitaes da vida humana, pondo a nu a inpcia do Homem perante o seu destino, por meio da reactualizao de um mito tradicional, num espao cnico em que a expresso do non sense existencial se materializa sob a forma de uma fantasia mitolgica. 2. O fascnio de Jorge de Sena pelos modelos clssicos do teatro ocidental, bem como o seu anseio de retorno tragdia manifestam-se, de imediato, na escolha do protagonista da pea: Epimeteu. A etimologia do nome (epi/depois+ meteus/pensamento), traduzida no epteto caracterizador que lhe aposto, indicia um dos traos emblemticos desta gura anti-herica que simboliza a origem mtica do Homem. A antiga tradio mitolgica grega conta-nos que ele foi o incauto irmo do tit Prometeu, de quem Zeus se serviu para punir o roubo do fogo divino em prol dos mortais. Apesar das advertncias do previdente irmo, Epimeteu no foi capaz de resistir maravilhosa ddiva do deus Pandora , tornando-se, assim, responsvel pelos males da humanidade. No vou aqui referir as imbricadas questes que envolvem este mito complexo, que, mesmo na antiga literatura grega, apresenta variantes muito signicativas, patentes em obras de trs autores: Hesodo (Teogonia e Trabalhos e Dias, sculo VIII-VII a.C.), squilo (Prometeu Agrilhoado, c. 460 a.C.) e Plato (Protgoras, c. 385 a.C.). Limitar-me-ei apenas a evocar alguns dos aspectos que se me aguram mais pertinentes para a leitura desta pea. A verdade que poucos mitos possuem a riqueza explicativa do mito de Prometeu, um deus insubmisso, cuja lantropia, mesmo que praticada atravs do roubo e do dolo, se revelou crucial para a civilizao humana. A inveno do sacrifcio, o roubo do fogo aos deuses e a criao da mulher como castigo da Humanidade conguram a actuao deste tit astuto e redentor, impulsionador do progresso tcnico e fundador da cultura material. A sua aco civilizadora facultou Humanidade um novo perl o feminino , a um tempo eterno garante de sobrevivncia e de regenerao, mas tambm origem do trabalho e do sofrimento. Somente Hesodo refere a criao de Pandora, a primeira mulher que os deuses manufacturaram como um mal amvel, sedutor e irresistvel, e ao qual o imprudente Epimeteu no conseguiu resistir, tornando-a sua esposa. O m da histria de todos conhecido: a curiosidade de Pandora impeliu-a a destapar o famigerado vaso, libertando assim todos os males funestos que havia no seu interior, apenas impedindo a sada da elpis, a esperana, antes de voltar a colocar a tampa. Mas no esta a histria que interessa aqui recordar, pois como refere a prologal fala versicada do Coro da pea seniana, nem Prometeu/ nem Pandora/aqui vereis./ Quer um quer outro,/no nos importam/ pessoalmente/ nos tempos de hoje. (Mater, 95). A dicotomia passado/presente resolve-se numa simbiose dramtica que situa a aco num tempo miticado, onde a interveno de um Coro-personagem, num mon-
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epimeteu, ou o homem que pensava depois: uma fantasia mitolgica de jorge de sena
logo potico remanescente do prlogo do drama grego, delineia os contornos essenciais da histria, no cumprimento da sua funo informativa. Contudo, na primeira indicao didasclica determinava-se que a fala versicada dessa personagem solene imponente, de ampla tnica e manto majestoso e sombrio (Mater, 93) deveria ser pontuada, na representao espectacular, sim, porque Jorge de Sena escreveu a pea com o palco em mente10 por precurses e uivos electrnicos, uma sinfonia ruidosa que acompanharia o ritmo da dico, subversivamente diferenciada da funo harmoniosa que a msica detinha na antiga tragdia grega. Mas a remisso para o imaginrio do antigo teatro grego efectivava-se logo nos dois primeiros versos, atravs da clara referncia metateatral pronunciada pelo Coro Esta a tragdia/ de Epimeteu (Mater, 94). A cena de abertura actualizava de imediato as dicotomias que iriam criar uma iluso de simultaneidade, dramaticamente signicativa, entre a presente tecnicizao desumanizada do mundo cientco e a irracionalidade original do passado mtico. Ento o omnisciente Coro confrontando uma outra personagem metonmica, a Voz do Computador11, que alm de omnisciente se reclamava tambm omnipotente, fazia prova da sua superior potestas, com a reproduo electrnica da parte nal da fala do seu interlocutor, onde na sequncia da aluso ao castigo caucasiano de Prometeu se enumeravam, anacronicamente, algumas das mais recentes e perniciosas criaes tecnolgicas do Homem: fbrica napalm, bombas, satlites, computadores, aparelhos de escutas, gases lacrimogneos, etc. A histria do passado revitalizada pela narrativa versicada do Coro colide, nesta primeira cena, com um presente futurista a que a Voz do Computador, tipicada em personagem, d corpo e voz. As outras guras secundrias intervenientes, reduzidas metonimicamente aos nomes de Chefe e de Secretrio, contribuam para objectivar a violncia de uma tecnologia articial, cujos sons estridentes haviam silenciado opressivamente as palavras gritadas do velho Coro, que mais no era do que uma gura autorizado do passado que se projectava simbolicamente no hic et nunc de uma aco em que no ia participar. Em comparao com o seu congnere grego, a sua funo apresentava-se profundamente diminuda, de tal modo que se esgotava em trs intervenes desiguais, acabando por sair de cena, sem qualquer explicao, porque a sua voz se silencia quando se encadeia com a primeira fala de Epimeteu (Mater, 102). Projectado de um tradio ancestral, onde dominara a orquestra do teatro grego, v-se agora connado a um anacrnico proscnio para desempenhar um papel visivelmente
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Esse anseio no o pde ver o dramaturgo concretizado. A sua ltima pea foi representada posteriormente em 1978, pelo CITAC, em Coimbra, sob direco de Geraldo Tuch e foi tambm emitida pela RTP, no ano de 1981, num programa produzido por Carlos Wallenstein ( Cf. E.Vasques, 1998: 311, 316). Note-se que a nica pea levada cena, em vida do autor, foi A Morte do Papa (1979).
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Para um melhor entendimento da dimenso simblica desta personagem tipicada, leia-se o ensaio publicado, pouco tempo antes, sob o ttulo O Computador Omnipotente (J. de Sena, 1978).
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ancilar, de teor informativo-expositivo. Na sua segunda interveno de seis versos j com uma medida maior do que os anteriores explica, a partir da etimologia dos nomes, a anttese que caracteriza os dois irmos: Prometeu, aquele que pensa antes, o previdente; Epimeteu, o seu contrrio (ibid.: 97), o que pensa aps, e por isso aquele que s sabe quando vive,/ e que vivendo nunca sabe ao certo. Na sua ltima interveno (Mater, 101-2), a gura singular do Coro expressar um ltimo comentrio sobre a histria do protagonista, o andino irmo do temerrio e audacioso Pometeu: Anjos, demnios e deuses,/ mais os chefes deste mundo,/longos anos no cuidaram/ que Epimeteu existia./ No era perigo nenhum (ibid.: 101) A importncia dos comentrios do Coro parece mais do que evidente, na economia de uma pea breve como esta: o conito titnico entre as oposies dialcticas que envolvem o homem e as realidades essenciais da sua condio, recebem pelo logos desta gura intermediria entre o mundo do drama e o mundo do espectador, um signicado mais profundo e universal. A mmesis de um mito ancestral actualizava-se numa linguagem cnica contempornea, que implicava a participao hermenutica do espectador/leitor, tal como acontecia na antiga tragdia grega. A temtica classicizante de inspirao trgica, mesmo que revestida de elementos frsico-satricos, no podia dispensar a presenticao do sobrenatural. Numa atmosfera colorida pela phantasia, os tradicionais deuses olmpicos da tragdia grega compartilham, simbolicamente, o espao cnico com outras guras divinas, as dos Anjos e dos Demnios que, na tradio catlica, conguram a dialctica entre o Bem e o Mal. O tema dos deuses , como j tem sido observado12, recorrente na obra seniana, mas Epimeteu requer uma anlise parte, uma vez que, nem sempre se insere no problema homem-divindade (Cattaneo, 1992:30). Nesta pea, os seres sobrenaturais da mitologia grega, representam o papel tradicional de antigas entidades csmicas que, na sua transcendncia, se sobrepunham o Homem, mas pela sua similitude sustentavam a vida, concedendo-lhe signicado. Esses deuses csmicos que precederam o Homem e a sua queda, dividem, porm, o espao cnico da pea, com as guras ambguas de Anjos e de Demnios, emanaes religiosas da tradio catlica, que vm anulanar o princpio originrio de similitude e a interaco divino/humano. Curiosamente, se no incio da pea, o Olimpo dos deuses gregos, o Cu dos Anjos e o Inferno de Satans e dos seus demnios servis, delimitavam a rea cnica circular, onde se interseccionava a espaosa Sala de Controlo, no nal, esta converte-se no nico espao que contorna a arena, para representar, como evidencia E. Vasques (1998: 138), a transformao da relao entre o Homem e as foras simblicas e metamorfose de Epimeteu. A anulao de uma lgica factual realista, sublinhada pela colao de duas temporalidades antitticas, projecta-se assim num espao cnico circular, em que a arqui12
De salientar, por exemplo o excelente estudo que Carlo Vittorio Cattaneo (1992:25-67) dedicou poesia seniana.
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epimeteu, ou o homem que pensava depois: uma fantasia mitolgica de jorge de sena
tectura do antigo teatro grego (cena/prscnio orquestra espao do espectador) parecia confundir-se com a do vanguardista teatro de arena, onde o quarto do protagonista se isolava numa posio central. A circularidade cnica mantm-se ao longo da pea, mas a evoluo da aco implicar mutaes cnicas que vo afectar a localizao das quatro reas distintas que, inicialmente, envolviam o crculo: Sala de Controlo, Cu, Olimpo, Inferno. No nal da pea, Epimeteu-Homem ocupa uma posio descentrada, partilhando a arena com o Demnio e o Anjo, simbolicamente sitiada pela Sala de Controlo. Os referentes religiosos tradicionais (gregos e cristos) haviam perdido o seu sentido13, e tambm a sua visibilidade, face armao crescente do poder opressivo de uma tecnologia computorizada que, num presente miticado, conquistava o espao da performace. No incio da pea, enquanto o Coro proferia a sua fala do proscnio, Epimeteu entrava no seu quarto e deitava-se, depois de se despir completamente. Essa nudez, real ou ilusria, pois aconselha o dramaturgo, no texto didasclico, que, caso ela no seja permitida na cena, dever ser disfarada por uma malha cor de carne a cobrir o corpo representava uma forma de libertao corporal evocativa do tpico da sexualidade, que cruzava o tempo primordial do teatro grego (oriundo do drama satrico e do kwmos dionisaco) com a libertria cultura pop da gerao hippy coeva, a que pertencia aquele jovem Epimeteu, pobremente vestido (camisola, alpargatas, blue-jeans), de cabelos soltos e crescidos. As fantasias onrico-erticas, que o sono lhe proporciona, despertam nele as pulses mais instintivas e irracionais que a conscincia e o subconsciente humanos reprimem e recalcam (E.Vasques, 1998: 140), e imperativos tico-morais e sociais censuram. Na linguagem cnica, a libertao simblica desses instintos sexuais operar-se-ia num discurso disfrico, vazado nos temas da sexualidade e da violncia, e que alcanaria contornos grotescos e satricos, nos actos praticados pelos seres sobrenaturais. O ardente desejo ertico do Anjo amaneirado, travestido com uma cabeleira loura, no passa de uma tentadora sensao estranha para Epimeteu incapaz de o ver, mas no de o sentir, com uma sensualidade inconsciente (Mater, 104). Uma sexualidade ambgua consumar-se- na relao escaldante entre esse Anjo (Mater, 112) e o Demnio, que seduzido pela sua aparncia efeminado no capaz de refrear o delrio ertico, entregando-se aos prazeres latentes e misteriosos de um frenesi sexual transgressor. Se aparentemente o sonho afrodisaco de Epimeteu era um acto de memria que fazia renascer as prticas orgisticas dos antigos rituais dionisacos, como indiciam as palavras do seu Anjo da Guarda (Ai eram s sexos e uma data de gente a fazer coisas feias o que ele tinha na cabea, Mater, 99), seria pela interaco fsica de um Anjo
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curioso notar que o texto didasclico (Mater, 109-10) determinava que o Olimpo se apagasse ao mesmo tempo que o Cu e o Inferno, mas no antes de se ver os habitantes a agitarem-se como que em agonia ao som do nal do Crepsculo dos Deuses.
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travestido e de um Demnio com forma de stiro, que se revelava o transe extasiado da bestialidade inata do sexo. Essa inverso transgressora de inspirao carnavalesca, cujas manifestaes essenciais eram a metamorfose, o disfarce e a mscara, abria um universo de xtase hedonista sobre-humano que, como nas orgias dionisacas, promovia o contacto com o divino. A complexa teia de citaes culturais que constituem o subtexto desta pea seniana explora subversivamente uma trgica viso dialctica da existncia, sombreada pela marginalidade e pelo estranhamento, onde a alteridade e a transgresso se apoderam da existncia para iluminar ao homem um itinerrio libertador. Mas aquele que no nunca sabe que possui, porque possui sem pensar que possui... (Mater, 108), incapaz de reagir s limitaes da sua natureza contraditria e, por inrcia e inaco, deixa escapar o signicado da vida. Ele que, contrariamente ao seu irmo Prometeu, teve a possibilidade nica de fazer uso do poder de autodeterminao, que lhe garantia at o fascnio dos deuses como denotam as palavras de Afrodite (Mater, 103) , converte-se num smbolo pattico de irracionalidade, num anti-heri de recorte trgico pela sua incapacidade de agir e de tomar decises. Desse dilema trgico, sempre latente, toma ele conscincia quando profere as palavras seguintes: de vida o meu pensar mudo,/ e s sei que vivi depois que a vida/ em mim passou consumida. (Mater, 103). Mas esse homem dilacerado pela culpa da inaco comove a deusa rtemis, a nica capaz de entender o alcance trgico dessa peculiar humanidade, como evidenciam as suas palavras: o seu fascnio e o seu xito esto precisamente no que ele julga que no possui, porque possui sem pensar seno em possuir, e no sabe que possui... (Mater, 103). Ser precisamente a deusa escolhida por Zeus, numa espcie de conclio Olmpico, para satisfazer o sonhado desejo ertico daquele Epimeteu, frustrado nos seus instintos mais naturais, aprisionado nas malhas de um inconsciente que lhe denega a racionalidade. Curiosamente, rtemis, no a deusa do amor, mas a deusa que representa, mitologicamente, os instintos caadores e a maternidade, personicando assim uma ambiguidade de gnero, alis decorrente da sua anormal gestao, e que nasceu, j armada, da cabea do pai Zeus. Ao contrrio do irmo de Prometeu, um pobre de esprito incapaz de fazer uso adequado do pensamento, rtemis protagoniza a racionalidade; ela proveio do noos masculino, veio ao mundo munida de armas, portanto tecnicamente preparada para enfrentar a adversidade e o perigo. Mas paradoxalmente ela tambm a deusa tutelar da maternidade que preserva a castidade, recusando a sexualidade. Conotando uma certa androginia, ela prpria encarna uma perverso do gnero feminino, na recusa de uma sexualidade reprodutora, imprescindvel sobrevivncia humana. Oriunda de um espao de interseco entre o selvagem e a civilizao, a deusa que aceita unir-se sexualmente a Epimeteu, parece garantir-lhe, momentnea e articialmente (por meio do tradicional deus ex machina), a sua salvao/reden-
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o anal fora essa a razo principal que motivara a interveno soberana de Zeus mas vai, inesperadamente, despoletar uma irremedivel catstrofe, com consequncias funestas para toda a Humanidade. Essa inteno civilizadora da deusa , contudo, gorada, porque depois de raptada por dois Astronautas, ela levada para a Sala de Controlo, onde ser morta depois de violada. Numa dimenso simblica, trata-se de um gesto matricida que representa a um tempo a libertao do masculino pela aniquilao do imprio da maternidade e a morte do sobrenatural. A Voz do Computador narra cruamente esse episdio em termos de grande negatividade e que manifestam a prepotncia ditatorial do novo senhor deus do Mundo:
A deusa est em nosso poder, violada, e continuar a ser violada por todos os nossos peritos, at que dela no reste nem memria. Os deuses acabaram, os demnios acabaram, os anjos acabaram.... Eu sou o senhor do mundo! Eu sou o senhor do Mundo! (Mater, 110).
Um mundo dominado pela Tecnologia aniquila os deuses e condena o homem sua impotncia e sua insignicncia, negando-lhe qualquer possibilidade de aco. Esta situao angustiante de aporia, to sintonizada com a problemtica trgica, iria raiar o absurdo, porque, nesta fantasia mitolgica de Jorge Sena, a inpcia de Epimeteu era representada de uma forma to extrema que lhe denegava qualquer possibilidade de aco. Ele nem pode conjecturar sequer a hiptese de cometer aquela que foi sua hamartia mtica: deixar-se seduzir-se pela mortal Pandora. 3. Atravs da caricaturizao grotesca ou desconstruo violenta das personagens, Jorge de Sena reconstruiu, nesta pea, os elementos de um imaginrio oriundo da tradio mitolgica clssica, sob a inuncia das formas e tendncias do teatro do momento, cujas caractersticas principais eram a subverso dos valores tico-morais vigentes e a crtica social. Com efeito, a incapacidade de o Homem fazer uso da razo, de resistir tentao de um hedonismo imediatista e de vencer a tendncia para a inaco revestem, de um sentido trgico, o destino da Humanidade, que Prometeu deixou irremediavelmente subjugada ao sobrenatural, e que Epimeteu, por inrcia e irracionalidade, no foi capaz de libertar. Por outro lado, atravs de uma recongurao satrica do gnero trgico, Jorge de Sena procedeu desmontagem do iderio pacista-libertrio, parodiando as contradies das geraes contemporneas, que embora excitadas por ideais libertadores e libertrios, continuavam incapazes de fazer frente autoridade opressora de entidades superiores, personicadas simbolicamente, no nal da pea, na abstraco tecnolgica do Computador, que se impe, autoritariamente, como substituto moderno do sobrenatural, pago ou cristo.
Desliguem-no! Desliguem-no! Est doido!, grita o Chefe. Est desligado, responde o solcito Secretrio. (Mater, 110)
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Essa reaco instintiva de evitar uma usurpao ilegtima do poder csmico cria nas guras em cena uma sensao de vazio que se lhes escapa ao entendimento e para a qual no so capazes de encontrar uma soluo racional.
Anjo Agora, no temos ningum nem nada no mundo seno tu... Epimeteu... Que vamos fazer? Epimeteu Podamos matar a Sharon Tate... (Mater, 113)
Com esta hiptese absurda de assassinar uma jovem actriz americana, famosa pela sua beleza, e que havia sido, recentemente, vtima de um homicdio sanguinrio, aos oito meses de gravidez, termina a pea, que imitando o desenho circular do cenrio, regressa ao incio no da fbula, mas da histria trgica de uma Humanidade, sem Futuro, porque um vazio absurdo envolve, tragicamente, a existncia humana. Sugerindo uma leitura desiludida da Cultura Ocidental, a tragdia de Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois converte-se, portanto, na metfora de uma Humanidade, que cepticamente parece profetizar a morte do Humanismo. Termino esta minha interveno, citando as palavras que, um dia, Jorge de Sena, escreveu a propsito da difcil arte do teatro:
A fundamental atitude a ter ante o que nos parece disparatado ou absurdo, por inabitual, deve ser de respeito, de curiosidade e de carinho. Carinho, porque o teatro uma arte que exige de quem a ela se dedica, um esforo e uma devoo que, muitas vezes, o pblico no avalia devidamente. (Sena,1988:388).
Bibliograa
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Resumo: Pretende-se, neste texto, oferecer uma leitura da pea seniana em um acto, Epimeteu, ou o Homem que Pensava Depois, que, num complexo e original registo trgico-frsico, conjuga, com grande signicado dramtico e eccia teatral, mito e fantasia . Abstract: In this article we suggest a reading of Jorge de Senas one-act play Epimeteu ou o Homem que Pensava Depois in which, by means of a complex and original tone of farce and tragedy, myth and fantasy are mingled with great dramatic meaning and theatrical effectiveness.
Acredita-me: se depois de assistir a uma representao teatral te sentes satisfeito com o espectculo, mas insatisfeito com o mundo, teatro: se no, no . Augusto Abelaira, Enseada Amena
Palavras-chave: Augusto Abelaira; parateatralidade; drama literrio; A palavra de oiro; O Nariz de Clepatra; Antrio, outra vez. Keywords: Augusto Abelaira; paratheatricality; literary drama; A palavra de oiro; O Nariz de Clepatra; Antrio, outra vez.
1. Potncia
Num primeiro relance, a produo dramtica de Augusto Abelaira parece atalho improvvel numa obra medularmente sintonizada com a pulsao romancstica. Alis, a julgar pela tmida ateno crtica que a ele se tem dedicado, no pode seno deduzir-se que o teatro abelairiano tem sido comodamente deslocado para as margens da obra do autor de Bolor e, no conjunto daquela, perspectivado como estncia acidental: pela sua pouco expressiva representatividade no cmputo geral da obra, certo (trs textos dramticos contra doze romances), mas seguramente tambm pela desconcertante excentricidade dos seus temas e processos. Na realidade, todas as trs peas de Abelaira A Palavra de Oiro (1961), O Nariz de Clepatra (1962) e Antrio, outra vez (1980) parecem dissentir largamente do perl esttico-ideolgico de um romancista de gerao, tal como o entende Carlos Reis:
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Em Abelaira () leio ainda um discurso enunciado em tom de amarga ironia, por vezes roando o sarcasmo. Visa esse discurso valores e atitudes vividas no passado de uma determinada gerao (aquela com que se identicam as mais signicativas personagens do romance), ento em estado de formao, do ponto de vista cultural e ideolgico; o que determina o registo da ironia que tambm uma auto-ironia , no presente da aco romanesca, o juzo amargo que essa gerao j madura formula acerca daquilo que precisamente faz dela uma gerao: acontecimentos histricos vividos em conjunto, referentes ideolgicos especcos e j corrodos, gestos e discursos dominantes, conitos com uma gerao anterior, tudo isso e obviamente as anidades etrias que, de raiz, permitem uma certa comunho de interesses, de expectativas e de iluses. (Reis, 2003: 8)
No que as fbulas dramticas de Abelaira no permitam, sobretudo se lidas contraluz, inteligir a presena, em ligrana, da circunstncia histrica (da censura ditatorial vertigem consumista da contemporaneidade). A verdade, no entanto, que todas parecem optar por uma intemporalidade historicamente rarefeita que apetece descrever como apologal. A verdade que sendo todas elas comdias, apetentes, partida, para uma slida ancoragem no real, nelas se torna bem mais pronunciada a sua vocao parabolar. Regresso, em breve, s peas. Por ora, registo o paradoxo de esta presena crtica mnima, em torno daquele que tem sido considerado o mnimo teatro de Abelaira, ser inversamente proporcional ao repisar do verdadeiro refro crtico que enfatiza a dimenso parateatral da sua obra romanesca, sublinhada, uma e outra vez, pelos seus mais lcidos exegetas. Digamos que ao teatro em acto tem a crtica privilegiado o teatro em potncia, levado cena no tablado ccional. E compreende-se que assim seja: por mais de uma razo, a esttica do romance Abelaira pode qualicar-se, nas palavras de scar Lopes, como teatral, e no romanceante (apud Abelaira 1986: XXXIII), maxime pelo arranjo dialgico (Seixo, 1977: 206) das intrigas e pelo papel inquestionavelmente nodal que nelas desempenha o encontro verbal intersubjectivo. A propsito dos contos de Quatro Paredes Nuas e diga-se que as mesmas consideraes podem, sem esforo, aplicar-se ao conjunto da obra romanesca do autor , notou Maria Lcia Lepecki que a centralizao da totalidade narrativa no dilogo cria personagens sem histria (entendida como sucesso de eventos contados), personagens em drama, em perptua actualidade em situao curiosamente prxima do texto teatral propriamente dito (Lepecki, 1979: 152). Por um lado, este imperativo dialgico instaura uma iluso de sincronia, estatuindo como necessrio o eterno presente do drama. Por outro, a compulsiva tagarelice intelectual (Machado, s.d.) em que as personagens abelairianas parecem deleitadamente ocupar-se indesligvel de uma das isotopias transversais a toda a co do autor: a do ngimento perante o outro e da ocultao atravs da palavra. Os indivduos que povoam a co de Abelaira
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sabem-se, pois, actores de si prprios, connados a papis que lhes no pertencem, mas que escrupulosamente representam em nome da conveno ou da cobardia acomodatcia, proferindo palavras emprestadas, por detrs das quais se eclipsa a sua verdadeira identidade. Como sintetiza o professor de Nem s mas tambm,
Representamos sempre um papel diferente do nosso porque no somos ningum, ou no sabemos representar quem somos ou at porque, perante um universo imbecil, nos julgamos heroicamente dentro duma pgina de Dostoievski. () Representamos sempre um papel por no sermos ningum ou nunca nos termos encontrado ou termos ido dar a um grande buraco. (Abelaira, 2004: 103)
Esta existncia por procurao, vivida com deceptiva lucidez, transforma as personagens dos romances de Abelaira em criaturas perversamente cientes do poder manipulador da palavra, investigadoras hbeis dos seus inesgotveis matizes performativos. Em boa verdade, como sublinha o narrador de Deste modo ou daquele, As palavras da mentira e as palavras da verdade so as mesmas (Abelaira, 1990: 167). As personagens de Augusto Abelaira parecem, pois, corporizar, em inesperada glosa neobarroca, a metfora do theatrum mundi, por se entregarem a um paroxstico jogo especular, ziguezagueante entre teatro e vida, ao ponto de, aos seus olhos, esta se converter em co de uma co. justamente esse topos da vida como teatro que, a propsito de uma discusso de casustica teolgica, aparece enunciado pelo Professor Garden, de O nico animal que?:
S tenho uma maneira de imaginar Deus. Dramaturgo, artista. Ele, o autor do argumento. Os homens, simples actores. Compreendes? Os homens no so Hamlet, interpretam Hamlet e o Hamlet, a pea, foi escrita por Deus. Confundindo realidade com comdia, ignorando que representam em vez de viver. E Deus diverte-se. Ou sonha. Porque a comdia, sendo apenas uma comdia, no tem sentido nem deixa de t-lo. Deus no deu sentido s coisas, limitou-se a criar uma histria onde Hamlet pergunta qual o sentido delas, sem saber que no vive, e se limita a representar, a recitar no palco do innito um papel decorado. Sim, Hamlet no existe, pertence ao mundo da co, existem apenas os actores vazios a ngir de Hamlet, mas ignorantes de que ngem. O grande teatro do mundo. (Abelaira, 1985: 78)
O grande teatro do mundo desenrola-se, assim, numa espcie de magnco palco panptico, literalmente lugar de onde se observa e se observado. No espanta, pois, a frequncia com que o modicador teatral de ntido alcance avaliativo emerge, no discurso do narrador abelairiano, para dar conta de gestos, palavras ou silncios. Esta performatividade conspcua, ancorada no dilogo agonstico, comunica-se ainda aos cenrios narrativos textualizados romance aps romance, sejam eles o da causerie mundana e inconsequente de uma jovem burguesia urbana e ociosamente
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culta, ou o do colquio amoroso e conjugal, palco onde a palavra articiosamente encenada (leia-se ngida) acusa a falncia da linguagem como elemento essencial na comunicao humana (Coelho, 1973: 101). Isso mesmo revela compreender o protagonista de Sem tecto, entre runas, ao armar que () s as pessoas muito ricas de esprito podero amar longamente, sem esgotar a substncia de que se faz o amor, o amor que , anal, a capacidade de conversar interminavelmente (Abelaira, 1982: 86). E so, ainda a este respeito, lapidares as palavras de Osrio, de Enseada Amena: O amor uma comdia e os amorosos, a partir do momento em que amam, comeam a representar um papel, a ser diferentes do que so. () Amar pr imediatamente um p no palco (Abelaira, 1986: 107). Com efeito, tal como na palavra teatral, cindida entre o mascaramento e a dennica, o dilogo aqui quase sempre disfarce; disfarce que se cria na zona indecisa que o discurso estabelece entre o falar ou no falar a srio uma capa de ironia que recobre as palavras e as torna ambguas (Pires, 1980: 43). Comentando a atitude narrativa dominante em As Boas Intenes, e o rendimento diegtico de um discurso apresentativo que facilmente poderamos aproximar do funcionamento dramtico do aparato didasclico, Maria Alzira Seixo salienta as indicaes das personagens que falam, normalmente com uma excessiva economia de meios que faz pensar em anotaes de tipo dramtico (e til lembrar que Augusto Abelaira tambm dramaturgo) (Seixo, 1987: 224). Surpreendem-se, parece-me incontroverso, na co do autor, manifestaes de um certo ludismo narrativo que teremos de considerar como especialmente predispostas irrupo do teatro na co. Rera-se, por exemplo, o desdobramento ontolgico e a comdia de enganos fundada no jogo de identidades de Bolor, ou a descentralizao da gura xa do narrador nico (Costa, 1982: 36), transcendendo a mondia romanesca para fazer circular a palavra por sucessivas dramatis personae. Por entre as vozes dos desconcertados contadores perpassam, ainda assim, as cogitaes irnicas de um autor-comentador que decide abandonar os bastidores e assomar ao proscnio, verdadeiras parbases complacentes que, sem temer os atropelos biensance romanesca, exibem o que a co nunca deixou de ser jogo.
2. Acto
Invertamos agora os termos da equao. Se, como tem sublinhado a crtica mais perspicaz, na narrativa de Augusto Abelaira ter que ler-se um teatro mnimo, no lcito, inversamente, detectar-se, na produo dramtica do autor, o projecto de uma co mnima? De modo mais simples: se, na co, se d a ler o teatro no poder, no teatro, ler-se a co? A pea que, em 1961, Abelaira d estampa, A palavra de oiro, constitui, no que diz respeito a esta transmigrao de temas e processos, caso exemplar. Era seguramente
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um ainda jovem ccionista, revelado em 1959 com a Cidade das Flores e reincidente no tirocnio romanesco com Os Desertores, de 1960, que se adentrava nos territrios algo inverosmeis do drama. Contudo, pressentem-se nesta pea, mesmo que em germinao, quer as linhas ideotemticas revisitadas, com notvel coerncia, pela obra narrativa posterior, quer a consubstanciao de uma matriz dramtica, ancilar da co, a que ser dada continuidade com O Nariz de Clepatra e Antrio, outra vez. A alegoria losco-satrica, desenvolvida em A Palavra de Oiro, parte da interpretao a contrario do consabido aforismo que declara ser de oiro o silncio e de prata a palavra, colocando em cena um protagonista desptico e audacioso, Santini, a quem ocorre registar a patente da palavra, sendo-lhe concedido o monoplio da sua explorao e licena irrestrita para tributar o seu uso. Por meio de um contador de palavras, um engenho que regista os vocbulos proferidos, vigiado o dbito discursivo de cada indivduo, coagido, por razes de sobrevivncia prtica, a uma austera economia verbal. Desaconselhada a elocuo intil, colocado em circulao uma espcie de newspeak orwelliano que, se bem que assegure a comunicao funcional, inviabiliza o uso autoexpressivo ou emocional da linguagem. Como defende Martnez, indefectvel apologista deste verbo disciplinado, convictamente alardeando um risvel analfabetismo cultural:
Martinez: Seja como for! Os resultados prticos esto vista: italianos como Goethe, ingleses como Balzac, alemes como Gil Vicente exprimiam-se mal e faziam um uso incontido das palavras. Nos meus estudos pude vericar que nove dcimos dos vocbulos que empregavam eram absolutamente inteis. E que eram falsas a maior parte das armaes. (Abelaira, 1961: 47)
Encontrando-se a palavra limitada ao seu poder instrumental e esvaziada pelo emprego coercivo, so proscritos os discursos do amor ou da arte, extinguem-se livros e jornais, so abolidos selectivamente vocbulos potencialmente subversivos. Por isso, a conspirao para derrubar o monoplio de Santini (congeminada, alis, com o seu consentimento tcito) e a sua substituio por Martnez constituem gestos ridiculamente inoperantes que mais no fazem que replicar o poder instalado (cf. Campos, Batista, 1991: 52-61). Curiosa a interveno inopinada de um espectador vigilante que, protagonizando um irnico golpe de teatro, se encarregar de denunciar a burlesca impostura que se desenrola em cena:
Um espectador: Isto uma farsa inadmissvel! Uma farsa que ofende os nossos mais sagrados sentimentos e penso que o autor ou autores deviam ser severamente castigados! Para que serve a censura? Porque no probe um espectculo como este? Meus senhores! Retiro-me! Beckmann: Para conspirar? Um espectador: Pelo menos para no ngir que conspiro. (Sai) (Abelaira, 1961: 115-116)
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Importa-me, por ora, anotar o modo como, nesta pea, que levou Manuel Poppe a asseverar que o teatro no o forte de Augusto Abelaira (Poppe, 1982: 54), surgem tematizadas algumas linhas de sentido fundadoras daquele que viria a congurar-se como o programa ccional abelairiano. Destaco, entre outras, a ponderao auto-reexiva em torno da palavra e dos seus poderes1, a comutao de verdade e mentira e a ambiguidade epistemolgica, a apetncia pela miscigenao de gneros e por modelos de escrita de problemtica liao literria (v.g. a co cientca), a ironia contrapontstica e a retrica da reduo ao absurdo. seguramente um teatro da palavra (uma comdia do estofo dos romances loscos de Voltaire, assim a caracterizou Gaspar Simes 1985a: 145), e no tanto de perfunctria espectaculosidade aquele que nos prope Abelaira, mais da lexis e menos da opsis, do mesmo modo que o seu romance se encontra mais prximo, convocando uma conhecida ditologia formulada por Verglio Ferreira, do romance-problema, de raiz existencialista, do que do romance-espectculo de vigncia oitocentista2. Ora, logo em 1962, numa recenso crtica comdia de estreia do autor, salientava, com certeira intuio, Joo Gaspar Simes:
Augusto Abelaira, autor de dois romances notveis, A Cidade das Flores e Os Desertores, por mais de uma razo tinha o direito de sentir a atraco do teatro. De facto, na sua obra de ccionista no faltam elementos que a cena aceitaria bem, atento o operatismo da sua tcnica, que, semelhana da do seu mestre Stendhal, joga mais com guras e anedotas paradigmticas do que propriamente com guras e anedotas realistas. O lado espectacular em sentido etimolgico, spectaculum, spectaculi: vista, aspecto muito importante nas suas obras de co. Nada acontece nelas que no seja para ser visto e visto, precisamente, do ponto de vista que o escritor insinua ao leitor. Uma intencionalidade espectacular determina Augusto Abelaira, e no ser ousado dizer-se que nos seus romances tudo quanto acontece foi previsto e calculado pelo romancista. (Simes, 1985a: 142)
E rematava: Estou em crer que Augusto Abelaira tiraria maior partido da sua fbula satrica se porventura a aproveitasse na co propriamente dita. () Apesar das manifestas qualidades espectaculares dos seus romances e da indiscutvel teatralidade da sua comdia, quer-nos parecer que Augusto Abelaira, com ter-nos dado uma pea de extraordinria verve e de impenitente stira, no o fez com os recursos que o
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Como bem viu Agripina Carrio Vieira, na escrita de Augusto Abelaira, a metaccionalidade no se conna ao desvelar do processo de construo: alarga-se ao pensamento sobre o poder e o valor da palavra, nico meio capaz de interpretar o passado, embora dele apenas possa fazer uma representao ccional, subjectiva e parcial. Trata-se de um dilema insolvel, em que ausncia de conhecimento se contrape a apreenso fragmentada e incompleta de uma certa realidade, remetendo-nos incessantemente para a certeza da impossibilidade do conhecimento total, do olhar unvoco. (Vieira, 2002: 116-17)
Sobre estes conceitos, vd. as reexes apresentadas por Rodrigues, 2000: 49-71.
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teatro exige (ibid.: 143-144). Novo paradoxo, pois: opertico e espectacular na co, Abelaira losco e literrio no teatro. A crer ainda na apreciao crtica de Gaspar Simes, volta a ser assim em O Nariz de Clepatra, nas suas palavras, reconhecidamente uma pea mais para ser lida que para ser representada (Simes, 1985b: 147). Nesta nova comdia, apresenta Abelaira, sob a forma dramtica de pot pourri alegrico-futurista, uma custica leitura do (sem)sentido da Histria. Elegendo como mote uma epgrafe de Pascal (Le nez de Cloptre, sil et t plus court, toute la face de la terre aurait chang), de que, como lembra Antnio Quadros (Quadros, s.d.), Sartre j se servira para escorar a doutrina marxista do determinismo socioeconmico da marcha histrica da humanidade, examina-se a aliana do contingente e do necessrio no devir histrico, recorrendo-se ao dispositivo, to caro co cientca, da viagem no tempo. Em curiosa autocitao recontextualizadora, o mesmo pensamento de Pascal ressoar, alis, em alguns romances posteriores do autor, no deixando dvidas sobre o lugar que, na obra, se reservar reexo sobre a Histria e o impenetrvel sentido dos seus imponderveis3. Mais desassombradamente hipotecada s gramticas da fantasia alegrica e do absurdo, transmudando-se, ao abeirar-se do eplogo, em verdadeira pantomima surrealizante4, intui-se na pea uma rendio fruitiva do autor ao puro jogo teatral. Partindose da tese de que, como relembra em determinado momento da comdia Andrmaca a Heitor, A histria nunca est feita, a histria est sempre por fazer (Abelaira, 1962: 116), a viagem num foguete que, vindo do sculo XXIII, se dirige para a Tria do sculo IX a. C. pretexto para desenvolver uma indagao burlesca das consequncias do contrabando interepocal (ibid.: 68), por meio do qual os homens do futuro, pelo mero exerccio da palavra e da interrogao incmoda, interferem no desenlace da guerra de Tria. Desta, no Acto Terceiro, saem os gregos derrotados. Esta verso revisionista, ao abalar as fundaes do edifcio historiogrco cannico, por meio da sua descredibilizao pardica, articula-se tambm com a postura inquisitiva do autor em face das alternativas em jogo nas encruzilhadas da histria. A interpelao permanente, que os romances insistentemente tematizam, concitada pela conscincia da aleatria carta de rumos que a lgica da Histria (se existe) vai desenhando5. Por investir nessa reescrita de um passado alternativo e expor a sua
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Referncias ao dictum de Pascal ocorrem, por exemplo, em O Bosque harmonioso (Abelaira, 1987: 127) e em No s mas tambm (Abelaira, 2004: 171). Rera-se a inverosmil interveno de um Coelho falante e registe-se, a ttulo exemplicativo, esta didasclia j perto do eplogo da pea: (Aponta para os espectadores. Todas as outras personagens vo boca de cena, fazem uma vnia e cantam a sua frase, depois do que se dispem em la, viradas para o pblico, como se estivessem a representar uma pera buffa do sculo XVIII). (Abelaira, 1962: 216).
Como, a propsito de O Bosque harmonioso, concluiu Maria Estela Guedes () uma das obsesses de Abelaira consiste em averiguar a verdade da Histria, chegando concluso de que quer a Histria quer a histria so aparncia. E, paradoxalmente, como no podia deixar de ser, um facto tambm que to
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feio eminentemente contrafactual porque, bem vistas as coisas, relembram as personagens que viajam na nave interepocal de O Nariz de Clepatra, tudo na histria poderia ter-se passado de modo drasticamente distinto , mobilizando expedientes tcnico-narrativos e ingredientes formais da co cientca, o argumento dramtico aqui desenvolvido por Abelaira no deixa de evocar o modelo de narrativa histrica que Elisabeth Wesseling designou como co ucrnica (Wesseling, 1991). Antecedendo em alguns anos a inventiva ccional de Bolor, esta pea evidencia uma inclinao metateatral, qual no ser obviamente estranha uma ideia de teatro baseada numa persistente disrupo ldica e que, de certo modo, constitui a contrapartida das derivas auto-reexivas e do narcisismo literrio rastrevel na co abelairiana. Em espraiados prembulos didasclicos ou em incisivas indicaes cnicas (que tero, alis, que ser tomadas como segmentos inalienveis da pea, aproximandoa, tambm por essa via, do Leserdrama), a ironia culta do dramaturgo-demiurgo posterga qualquer pacto de ingnuo ilusionismo dramtico, distancia-se energicamente da tradio teatral de raiz aristotlica-naturalista, desmistica a proverbial angstia da inuncia6. Em qualquer caso, ao leitor previsto (mas no ao espectador) so constantemente franqueadas as portas da ocina criativa do autor. o dramaturgo em exerccio, que decidiu no esconder o jogo aquele que, com sua expressa permisso, espreitamos na longa didasclia que abre o Acto Segundo. Constituindo a explicitao de um itinerrio de criao, as indicaes cnicas no deixam de postular tambm um modelo de recepo crtica:
verdadeira a Histria como a co romanesca (Guedes, 1983: 78). Exemplico este juzo crtico com dois passos, de entre mltiplos possveis, extrados, respectivamente de Sem tecto, entre runas e de Deste modo ou daquele: Mas mesmo assim, duzentos anos depois, sabero qual o rumo da Histria, ter a Histria algum rumo ou caminhar s cegas, indiferente a valores morais que alis sero puras iluses num universo de factos e no de valores? (Abelaira, 1982: 121); Deste modo (), Talvez muitos dos grandes acontecimentos da histria humana resultassem de errneas avaliaes do Destino. Quem sabe se ele, o Destino, ignorante do apressado ritmo cardaco dos humanos, programou para o sculo XX a vitria de Anbal, mas (porque Anbal e Cipio estavam mortos) na derrota de Rommel perante Montgomery? (Abelaira, 1990: 99).
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Como salienta Gregrio Dantas, O discurso auto-reexivo foi uma constante em toda sua obra, mesmo onde seria menos provvel, como em sua pequena mas relevante produo teatral. Em O nariz de Clepatra, por exemplo, as marcaes de cena esto repletas de comentrios que ironizam as decises do autor e as prprias convenes do teatro; procedimento acertado, j que, em Portugal, as peas seriam escritas para serem lidas, no encenadas, como explica o narrador no incio do segundo ato. Considerando que a pea foi redigida em 1961, ca evidente que a diculdade de encenao corresponde censura salazarista, o que confere ao carter metaccional do discurso literrio uma dimenso de interveno social, j que tematiza a prpria impossibilidade da arte, o valor de suas convenes e seu lugar de atuao. (Dantas, 2004: 121)
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Mesmo sem naves que atravessam as idades, o teatro de todos os tempos manifestou sempre grande fascinao por Tria aldeia insignicante que foi destruda no sculo XIII a. C. pelos Acaios com o auxlio da mentira e dos deuses, lamentavelmente aliados nesta ocorrncia. Receando a acusao de pouco original esse bem precioso da nossa poca , o autor sentiu-se tentado a esconder o seu jogo. Em vez de visitar Tria, porque no visitar a Pr-Histria, Babilnia, Cnossos, Alexandria ou Siracusa? Fugia assim s possveis e sempre humilhantes comparaes com Eurpides, Kleist e, sobretudo, Giraudoux para no falar de Homero (porque esse, valha-nos isso, pode ser pilhado vontade: tornou-se uma espcie de domnio pblico). Aconteceu, porm, que o dilogo (fatal!) com os citados mestres foi para o autor, enquanto compunha esta histria, fonte inesgotvel de prazer. Resolveu, portanto, no esconder o jogo Maior satisfao do que retratar homens vivos (como j lhe aconteceu uma ou outra vez) descobriu ele em conviver com as criaes alheias j solidicadas pelo tempo e pelo gnio. Pegar no paciente, no subtil Ulisses, no medonho, incompreensvel Aquiles, no Heitor do capacete fulgente, na Andrmaca dos alvejantes braos, em todos esses troianos e troianas de longas vestes, e at em Zeus, pai dos deuses e dos homens, e obrig-los a dizer Que dia bonito! ou Que chatice!, como fazem os vulgares e nada homricos mortais, o Z dos Anzis e todos ns que deleite maior poder conhecer o artista? Por outro lado, o autor no ignora que este acto poderia dar oportunidade a uma profundssima discusso em que se chocassem mentalidades histricas diversas, etc., etc. Limita-se, porm, a pedir aos leitores (no se atreve a dizer aos espectadores porque sabe que em Portugal o teatro est destinado leitura e no ao palco) que no lhe lembrem essa possibilidade. De facto, e por estranho que parea, ele escreveu o que lhe ia no esprito e no o que esses leitores (ou espectadores) desejariam que escrevesse. Arredores de Tria durante a guerra famosa. Terra de ningum. Em cena, ao levantar do pano: Apolinrio Viegas, Professor Maia, Calipso, Mrio e alguns troianos. As frases grifadas foram colhidas na Ilada. (Abelaira, 1962: 85-86)
No difcil entreouvir nestas reexes a inconfundvel dico do narrador abelairiano. Nelas se ausculta a mesma ironia derrisria e digressiva, se reconhece o culturalismo bibliofgico de um autor que, no exerccio da co, recusa silenciar o compulsivo leitor que tambm , se reencontra o grrulo narrador-cicerone sempre disponvel para a amvel interlocuo com o leitor. O frtil dilogo com os mestres (e a presena tutelar de Giraudoux, autor de uma inultrapassvel La Guerre de Troie naura pas lieu, voltar a ser convocada a propsito de Antrio, outra vez) permite aquilatar a recuperao vital da memria literria e a rendibilidade das prticas de convocao intertextual. O idiomatismo coloquial que dene o discurso de grande parte das personagens em cena contrasta, por exemplo, com o alento pico que domina as rplicas decalcadas
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de Homero que outras pronunciam a contragosto, por saberem serem emprestadas as palavras que proferem:
Professor Maia: Pensa bem no que te disse No tens ainda a morte na alma, mas j andas com ela s costas. Esta frase no minha, ser de Homero. Mas eu posso apag-la (Sai). (ibid.: 100)
Por outro lado, detecta-se em O Nariz de Clepatra a presena de um aglomerado de temas que a co no deixar de, em paralelo, aprofundar. Nele teria que gurar, por exemplo, a ontologia dbia das personagens, a ponto de se aanar serem as guras mitolgicas mais reais do que as personagens histricas:
Professor Maia, sonhador: E o convvio com alguns seres imortais? Certa conversa com Vnus Mrio: A deusa? Professor Maia: Prero no lhe chamar assim porque sou ateu, mas Sim, a prpria! Mrio: Estranho! Pensei que os deuses no tivessem existido, que fosse possvel conversar com Alexandre Magno, com Ramss II, com De Gaulle Mas com Vnus! Professor Maia: De Gaulle? No sabe que as ltimas investigaes histricas pem em dvida a existncia de De Gaulle? Ns possumos provas documentais, h quem pense tratar-se de um mito. Mas Vnus? Estive com ela. Claro: muito raro encontrar os deuses, perdo, os seres imortais, porque eles so avaros de si mesmos e poucas vezes se revelam. (ibid.: 21-22)
Evocando o tctico baralhar de identidades em que assenta a construo detectivesca de Bolor, tambm nesta comdia se verica a permutabilidade aleatria dos papis das personagens em cena. Na didasclia que inicia o Acto Terceiro, adverte-se:
Notar-se- que Mrio agora o marido de Calipso e Ablio o amoroso; que o Professor Maia foi promovido a Comandante e o Comandante Ramada despromovido a Professor. Uma simples troca de papis num mundo que, anal, no foi muito alm de transformar o Ea em romntico e o Camilo em realista. O encenador (ideal) ter a oportunidade de tornar bem visveis estas mudanas. (ibid.: 145-47)
A inscrio, em mise en abyme, da escrita na escrita, de comparncia to assdua na produo narrativa de Abelaira, encontra traduo correlata nas mltiplas instncias de teatro dentro do teatro que pontuam O Nariz de Clepatra:
Andrmaca: Para a histria dos outros nada, para a minha tudo! (Pausa.) Continuas a representar o teu papel de heri vencido. Ests a ver-te num palco, a saber-te observado pelo pblico. (Discretamente aponta para os espectadores.) Mas o palco no
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me interessa, viro as costas aos espectadores e histria. (Volta-se de costas.) Quero a felicidade para mim, para os meus lhos, para os Troianos, para a gente que eu conheo. (ibid: 122)
Reportando-se especicamente aos frequentes aoramentos romanescos no drama, Jean-Pierre Sarrazac preconiza a emergncia do escritor-rapsodo, bricoleur que junta o que previamente despedaou e, no mesmo instante, despedaa o que acabou de unir. E explica, nos seguintes termos, essa rapsodizao das formas contemporneas de escrita dramtica:
O modelo dramtico, fundado sobre um conito interpessoal mais ou menos unicado, deixou de dar globalmente conta da existncia moderna. E isso, desde os nais do sculo XIX e cada vez mais claramente com o passar das dcadas. () O devir rapsdico aparece, assim, como a resposta acertada para esta exploso do mundo. A montagem de formas, dos tons, todo este trabalho fragmentrio de desconstruo/ reconstruo (descoser/coser) em torno das formas teatrais, parateatrais (nomeadamente o dilogo losco) e extrateatrais (romance, novela, ensaio, escrita epistolar, dirio, relato de experincias de vida) praticado por escritores to diferentes como Brecht, Mller, Duras, Kolts, apresenta caractersticas de uma intensa rapsodizao das escritas teatrais. (Sarrazac, 2002: 230)
A pulso rapsdica concretiza-se, assim, na criao dramtica contempornea, atravs de um conjunto de traos distintivos, de entre os quais Sarrazac salienta o abandono do modelo das unidades aristotlicas e a opo por uma esttica da irregularidade, a coabitao de processos modais de procedncia dramtica, pica e lrica, a utuao permanente de registos (alto/baixo; trgico/cmico); a montagem dinmica de formas teatrais e extrateatrais; a presena de uma instncia narradora interrogante, depositria de uma subjectividade pica ou dramtica. Talvez como nenhuma das peas anteriores, a telecomdia Antrio, outra vez ilustra o processo de rapsodizao das escritas teatrais, nos termos em que o entende Sarrazac. Com efeito, desde logo a insinuao catafrica do ttulo e a auto-ironia que deui da previsvel saturao do leitor-telespectador, ao ser-lhe oferecida a ensima revistao do mito de Antrio, na esteira de Giraudoux que, ao crismar a sua pea de Amphytrion 38, aludia a essa mesma inao7 , introduz a imagem do dramaturgorapsodo empenhado em coser e descoser a tradio. Compreende-se a seduo que o
Como nota Marie Maclean, The enduring appeal of the story is shown by the fact that, when Jean Giraudoux came to write a version in 1929, he called it Amphitryon 38, his calculation of the number of previous versions, though in fact they total near sixty. They divide roughly into three types: those that emphasize the miraculous birth, those which stress the Zeus/Alcmene relationship, and those which focus on the comedy of errors involved in the doubling of masters and servants (Maclean, 1995: 792).
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mito de Antrio, consagrado na verso plautina e nas proliferantes reescritas a que deu origem, exerceu sobre Abelaira. A tragicomdia de Plauto, estribada no burlesco mitolgico e na mascarada sexual, no intercmbio desnorteante de identidades equivocadas e na presena do duplo sobrenatural que faz instalar uma generalizada folie de gmllit (Perrot, 1988: 639), bem como na explorao cnica do princpio da ubiquidade, permitia ao autor revisitar temas dilectos: a impiedosa desmontagem dos mitos contemporneos, do milagre tecnocrtico cegueira argentria, o amor e o esgotamento do formato conjugal burgus, as problemticas da identidade e da verdade, a eliso do sentido na comunicao quotidiana. Como bem observa Clara Rocha, reaparece aqui tambm um dos mitos pessoais de Abelaira, que encontra no tratamento do mito de Antrio expresso privilegiada: o da mudana, da transformao com toda a sua carga de dinamismo (Rocha, 1982: 84). A Abelaira no passou seguramente despercebida a indesmentvel modernidade da mquina dramtica plautina que facilitou, alis, a aclimatao da pea a distintos quadros genolgicos e a novos media, da comdia, tragdia, passando pela opereta, pelo teatro musical e de bonifrates, ou pelo cinema (cf. Fonseca, 1988: 10-11). Por outro lado, como sublinha Niall W. Slater, o Antrio latino equaciona, logo desde o prlogo recitado por Mercrio travestido de Ssia, uma reexo em torno da natureza e das convenes do teatro e, nesse sentido, poder ser perspectivado como metapea (Slater, 1990: 108). Ser justamente esta uma das hipteses de leitura mais consistentemente exploradas em Antrio, outra vez, em conjuno com estratgias concertadas de teledramatizao. De entre as mltiplas instncias de teatro dentro do teatro, destaco a cena em que Juno, assessorada por Cupido, se transgura em Alcmena:
Cupido: Ento mascara-te de Alcmena. E foi por ela que Jpiter se interessou Juno: Ajuda-me a ser Alcmena Cupido comea a maquilh-la como se estivessem num teatro. Cupido: Cabelos loiros (Ena-lhe uma cabeleira, etc., at a transformar em Alcmena). (Abelaira, 1980: 34)
Ora, se, como bem percebeu Abelaira, deixou de existir, na telecomdia, o corpoa-corpo do actor com o pblico de que feito o verdadeiro teatro, o policdigo audiovisual disponibilizava-lhe uma nova semiologia ligada rgie: movimentos da cmara, enquadramentos em close-up, nfase dramtica da expresso pela superposio ou alternncia de planos. As didasclias revelam frequentemente a conscincia deste contexto de difuso indito, procurando-se conciliar sintaxe dramtica e audiovisual:
Rua. Pessoas que conversam, como natural. O que j ser menos natural a forma como conversam: indirectamente, servindo-se de dialogadores (aparelhos de aspecto semelhante s calculadoras de bolso ou a gravadores) que cada um empunha, previamente pressionando as teclas. Quem fala no so as pessoas, mas os dialogado-
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res, isto , as pessoas falam com o auxlio de dialogadores, que perguntam e respondem. Transio para um supermercado cheio de gente, homens e mulheres empunhando sempre os seus dialogadores. Jpiter, vestido de acordo com a moda dos nossos dias, no se distinguindo portanto dos vulgares mortais, salvo num ponto: no usa dialogador. No compreende o que v, tal como, verosimilmente, os espectadores desta fantasia. Num dado momento mostrar-se- interessado por uma bela mulher, Alcmena, que, acompanhada pela criada Brmia, foi s compras. Jpiter cumprimenta-a com galanteria, mas ela no responde. Depois Jpiter descobre Mercrio que se debrua sobre um mostrurio de dialogadores. Anncios luminosos: Com o IBH Dialogador conquistars o amor. O IBH, mais do que um dialogador, um modo de ser. IBH, uma nova concepo no domnio das relaes humanas. Tenha a palavra na ponta dos dedos. At aqui ouvir-se- apenas o murmrio das conversas, no se percebero as frases e pouco importa que os espectadores no compreendem bem o que esto a ver. A msica (mas no obrigatrio) poder ser a abertura de As Bodas de Fgaro, com o que se pretender imprimir um certo tom representao. O realizador poder aproveitar a oportunidade para introduzir o genrico: ANFITRIO OUTRA VEZ Etc. (Abelaira, 1980: 7-8)
A transposio livre da fbula mitolgica para o sculo XX impe, alm disso, o recurso ao anacronismo criativo: personagens, ambientes, indumentria, hbitos culturais correspondem s anidades electivas da mesma burguesia urbana de que se ocupa o universo romanesco de Abelaira. Tome-se como exemplo a apresentao de Juno:
Olimpo Juno com um vestido de cerimnia, mas semelhante a uma tnica romana. Explorar demoradamente o Olimpo antes de Juno falar. Colunas gregas, claro, mas tambm um frigorco, um televisor, uma alta-delidade. Biblioteca, cujos livros sero demoradamente observados pelos espectadores: Obras do Marqus de Sade, O Capital, de Marx, O Casamento e a Moral, de Bertrand Russell, Roland Barthes (Fragmentos de um Discurso Amoroso), uma histria da mitologia, Freud (interpretao dos Sonhos), Lvi-Strauss (Mythologiques), a Bblia, Nietzsche (A Origem da Tragdia), Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo), revistas: Playboy, Newsweek. (ibid.: 25)
Ao invs do comedigrafo latino, Abelaira parece desviar-se da senda de ambgua comicidade, instaurada pelo triunfo do quiproquo, para extrair rendimento dramtico da reconverso battica do enredo: Jpiter um deus clandestino, tornado forasteiro num mundo cujas leis deixou de compreender; Antrio e Mercrio, combativos empresrios de sucesso, detm o grande monoplio mundial de dialogadores; Alcmena e Juno so, em tudo, esposas burguesas com triviais preocupaes domsticas, a braos com uma
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crise matrimonial; Cupido um mediador amoroso obsoleto que pretende substituir as setas por raios laser, Brmia uma apagada empregada domstica e Ssia o prosaico motorista de Antrio. A catbase dos deuses (cf. Leadbeater, 1978: 224) , pois, concomitante com a sua desmitologizao, processo insustvel numa sociedade que, como explica Cupido a Juno, passou a acreditar noutros deuses:
Cupido: O mundo foi de tal modo feito que sobrevivem os velhos costumes, mesmo quando j no tm razo de ser. Hoje ningum espera pelas minhas setas. Compreendes, estamos numa sociedade permissiva Mas se eu no ngisse que sou necessrio que seria de mim? O desemprego Nunca ouviste dizer que morreram os deuses? Eles no morreram mas os homens julgam que so desnecessrios. Pior: so os prprios deuses que se julgam desnecessrios, quando se demitiram das suas responsabilidades () (ibid.44)
luz desta postura antitranscendental se deve, pois, compreender a surpreendente reivindicao de humanidade por parte de Jpiter, que anuncia recusar travestir-se em Antrio para conquistar Alcmena:
Jpiter (rasgando tambm alguma papelada): No, Mercrio. Quero que Alcmena me aceite naturalmente sem artifcios divinos. nisso que me oponho a Cristo, ele no soube ser somente homem, admitiu a verdade, isto , que era um deus Quero que ela me aceite como se eu fosse apenas um homem, um homem que s agora vai conhecer, um homem sem qualquer divindade e at sem o prestgio dum passado romntico, como o caso do Adriano. Apresenta-ma. Quero que tudo se passe com naturalidade. Como se no houvesse deuses (ibid.: 46-47)
semelhana do que se vericara nas peas anteriores, tambm a telecomdia de Abelaira explora ludicamente a coabitao paratctica do mito clssico com o dcor futurista, emblemtico da co cientca. Na realidade, nela encontramos a mesma fetichizao do gadget (o contador de palavras, de A palavra de oiro, ou o calculador electrnico de genealogias, de O Nariz de Clepatra, so agora revezados pelos omnipresentes dialogadores) e, sobretudo, uma anloga utilizao da fbula dramtica com o alcance de profecia social. Em Sem tecto, entre runas, constatava Joo Gilberto: Ns j no temos conhecimento directo das coisas, somos da poca do motor e no da cegonha trazida pelas cruzadas ou da azenha trazida pelos rabes (Abelaira, 1982: 25). Irremissivelmente condenada a essa mediao, a (in)comunicao contempornea, tal como surge profetizada em Antrio, outra vez, deve-se crescente tecnologizao do verbo. A palavra desencarnada, proferida por um dialogador, essencialmente simulacro e equvoco, num mundo onde, como acentua Jpiter, tudo quer dizer o que no quer e nada quer dizer o que quer (Abelaira, 1980: 36-37):
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Mercrio: No tem importncia, o que preciso vencer o silncio, o que preciso comunicar. Jpiter: Ter a iluso de comunicar? Mercrio: Realidade e iluso so a mesma coisa, Jpiter. Mas no te esqueas que j antes de haver dialogadores os homens no falavam, limitavam-se a pronunciar as palavras que tinham lido nos jornais ou ouvido na televiso. O silncio j existia antes. Jpiter: Talvez o grande erro que cometi tenha sido o de dar a palavra ao homem. Sem ela no haveria silncio, o silncio seria eterno. () (ibid.: 22-23)
Propondo um happy ending inslito (a unio de Antrio e Juno, disfarada de Alcmena, e a morte acidental de Mercrio8), o eplogo no respeita, naturalmente, e como desde logo reconhece Cupido, as regras da moral da justia, por premiar com o amor quem merecia um castigo. Mas, pergunta-se ainda o extemporneo lho de Mercrio: haver moral e justia neste mundo (ibid.: 81)? A resposta infere-se da didasclia nal, que faz lembrar, como oportunamente lembra Clara Rocha, o happening futurista de Almada Negreiros no Teatro Repblica (Rocha, 1982: 84):
Longa pausa. Ouve-se ento (comea a aparecer a plateia de um teatro) algumas palmas tmidas, logo seguidas de uma valente pateada e de tomates arremessados contra os actores. Mercrio levanta-se, os outros param de danar e, hesitantes, vm boca da cena agradecer os tomates que continuam a cair sobre eles. Entretanto vo tirando os disfarces e cam o que so: simples actores de uma comdia sem sentido. (Abelaira, 1980: 81)
Discriminando quem escreve para o teatro de quem escreve teatro, Gaspar Simes argumenta, na recenso ao Antrio abelairiano, que o nosso teatro no escrito para o palco, mas apenas para ser escrito, como acontece a quaisquer outros trechos literrios que em si mesmos s pedem uma coisa: serem impressos (Simes, 1985c: 333). E conclui: Augusto Abelaira um escritor de textos romancista, contista, ensasta. Para ele o teatro mais no que uma forma de brincar com as ideias e com os costumes. Porque o no faz antes como o fazia o seu mestre Bernard Shaw? Pareceme que Augusto Abelaira, homem de teatro, car apenas impresso: nunca chegar nem aos estdios da Rdio. E muito menos da TV (ibid.: 334). Esta profecia de uma irreversvel condenao invisibilidade no se cumpriu cabalmente: Abelaira chegou, pelo menos, ao palco9. Mas pecha literria que Gaspar Simes imputa ao seu teatro poder hoje reconhecer-se, porventura, mais fundo signicado: decorra ele no tablado
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Como refere Maria Isabel Rebelo Gonalves, O nal inslito: triunfa o amor, mas o amor vai unir deuses e mortais () (Gonalves, 1990: 387). Uma adaptao da pea A palavra de oiro (com o ttulo genrico Schiu) foi levada cena pelo C.E.T.A (Crculo Experimental de Teatro de Aveiro), em 1994, com encenao de Joo Braz.
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da co ou do drama, seja performance em potncia ou em acto, o importante , como recomenda uma personagem de Enseada Amena, car-se satisfeito com o espectculo e insatisfeito com o mundo.
Bibliograa:
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Resumo: Autor de trs peas de teatro s quais tem sido dedicada escassa ateno crtica, Augusto Abelaira parece ter deslocado uma teatralidade em potncia para a arena ccional. Prope-se, neste artigo, tanto a deteco desses dramas mnimos narrativizados, como a leitura dos textos dramticos do autor luz daquelas que constituem as linhas ideotemticas da sua prtica romanesca. Abstract: Having produced three theatre plays to which scarce critical attention has been devoted, Augusto Abelaira appears to have dislocated a potential theatricality to the ctional arena. In this article we attempt to isolate those narrativized minimal dramas, while reading the authors dramatic production in the light of the crucial thematic guidelines that shape his novels.
Palavras-chave: Natlia Correia, Escrita de Teatro, Literatura Dramtica Portuguesa do sc. XX, Poesia e Drama, Stira poltica, Teatro, Histria e Mito. Keywords: Natlia Correia, Playwriting, Dramatic Portuguese Literature of the twentieth century, Drama and Poetry, Political satyr-play, Theatre, History and Myth.
Entre 1952 e 1989, Natlia Correia (1923-1993) produz uma obra dramatrgica que por certo lhe concede o ttulo do mais original e audacioso dramaturgo portugus da segunda metade do sculo XX. Lugar de experimentao hbrida de formas, e no obstante o silenciamento cnico (e tambm editorial) de que vtima durante o salazarismo (e no s), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma impressionante diversidade de registos genolgicos e estticos: da fbula surrealista, infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) ou adulta (Sucubina ou a Teoria do Chapu, 1952), ao absurdismo em stira poltica (O Homnculo, 1965); do drama existencial ps-simbolista (D. Joo e Julieta, 1957-58) ao mitodrama losco ou auto-referencial (O Progresso de dipo, 1957, e Comunicao, 1959); do teatro pico-catrtico ps-brechtiano e ps-artaudiano (A Pcora, 1967 e O Encoberto, 1969) ao teatro histrico-mtico, que colige o pathos romntico com o estranhamento da alegoria barroca (Erros Meus M Fortuna, Amor Ardente, 1980); do libreto opertico sociocrtico (Em Nome da Paz, 1973, com msica de lvaro Cassuto) ao drama antropolgico e arquetpico (Auto do Solstcio do Inverno, 1989); do texto para cantata cnica (O Romance de D. Garcia, 1969, com msica de Joly Braga Santos), ao teatro versicado ou em prosa que revisita temas da tradio literria e do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai Guerra, e D. Carlos de Alm-Mar, trs peas de datao incerta).
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As evases e invases de eros, os fascnios e as prises do tempo histrico, e as utopias do humano projectadas na cena, sero mapa motivante para um percurso pela dramaturgia nataliana dita e (at agora) indita, que no presente texto se circunscreve a trs obras dramticas capazes de se reverem na designao de formas breves: O Progresso de dipo; Comunicao; e O Homnculo. Testemunha subversiva do meio sculo de ditadura em que Portugal viveu, Natlia dramaturga bem um caso exemplar dos efeitos castradores que a censura inigiu numa arte pblica como a teatral, e que em Portugal carrega, alm do mais, o estigma histrico de trs sculos de Inquisio. Enquanto autora exilada do palco, a sua persistncia na forma dramtica resulta de uma vocao teatral inadivel que, por isso mesmo, no deixar de denunciar a asxia criativa a que estiveram votados os dramaturgos portugueses mais representativos deste extenso perodo, de entre os quais se destaca Bernardo Santareno (1920-1980). No domnio conjectural, decerto teria Natlia escrito mais ainda para a cena, caso tivesse recebido a motivao de assistir s suas obras primeiras, para adultos, encenadas data de criao escrita. Uma hiptese que surge inevitvel, ao apreciarmos a diversidade genolgica das peas teatrais que Natlia vai compondo para o eco morto da gaveta ou, na melhor das hipteses, para a cumplicidade conspiratria da leitura partilhada, nesse espao de tertlia cultural e resistncia poltica ao salazarismo em que se constitui a sua casa de Lisboa, nas dcadas de 50 e 60; lugar onde, por exemplo, se leva cena privada, pela primeira vez em Portugal, o Huis Clos de Sartre, sob a direco de Carlos Wallenstein, em cujo elenco se integra a escritora antri, a par do amigo e dramaturgo Manuel de Lima (1918-1976), que com ela traduz a pea do lsofo francs (1950). Nome relevante da esttica surrealista no teatro portugus, Manuel de Lima ser ainda prefaciador da traduo portuguesa que Natlia far, juntamente com Rosrio Corte-Real, do libreto da pera de Alban Berg, Wozzeck, do texto de Bchner (publicado em 1959).
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quais Natlia se rev). Literariamente soberbo, o texto desta pea mitocrtica, curta mas muito densa, ensaia um moderno mimetismo face ao estilo austero e conciso dos tragedigrafos, recheado com mximas reexivas; logo preguradas no prembulo pea, escrito numa prosa oracular, plena de poesia e enigma. So quatro as personagens: Tirsias, dipo, Jocasta e a gura colectiva do Coro, que intervm com uma economia verbal assinalvel; numa distribuio de seis breves cenas cuja legenda de sentido indicada por epgrafe de Nietzsche, oriunda d O Nascimento da Tragdia, num passo em que o lsofo-poeta aborda a hybris fustica do incesto edipiano. No entanto, a pea contraria e/ou baralha as punies destinadas tradicionalmente aos protagonistas. dipo surge desde o incio com analogias condio de sbio, apto mesmo a rivalizar com o xam Tirsias.
TIRSIAS: Difcil esgrimir contigo usando estas palavras que os mortais fabricam para comunicarem. Porque tu decifraste o enigma da esnge e por isso s conhecido como sbio. (...) (Correia, 1957: 13)
Um dado fundamental que Natlia altera no mito, e que se mostra extremamente signicativo na sua reinterpretao de dipo, consiste na origem da cegueira deste. Aqui no a descoberta das npcias incestuosas que conduz dipo a cegar-se. A cegueira anterior e no auto-inigida, resultando da luta corpo-a-corpo na qual dipo mata Laio e, mesmo que involuntariamente, abre o caminho para o trono de Tebas. Somos confrontados de novo com o preo faustiano e alienante a pagar pela aquisio do poder exterior sobre os outros: a perda da alma. o prprio dipo que o diz ao Coro.
DIPO: (...) O caso que um trono no se obtm de graa. Para chegar a ele quase todos contraem a cegueira da alma. uma cegueira que eles provocam para que o corao no seja um hspede demasiado importuno no peito de um monarca. Mas eu no matei Laio para lhe usurpar o trono. Porm est escrito que aquele que mata herdeiro do homem que matou. (ibid.: 17)
Esta cegueira antecipada modica a relao entre Jocasta e dipo; ele j cego no momento de despos-la e da as dvidas que assaltam Jocasta por no saber que tipo de projeco amorosa o seu marido cego coloca nela. De facto, a pea nataliana pode ser vista como uma variao do mito edipiano que desenvolve fulcralmente o complexo de Jocasta. Todos os dias ela se desloca ao templo, para pedir aos deuses que restituam a viso a dipo, mas, como o diz Tirsias, no por amor dele que ela o faz, mas para se assegurar da solidez do lao que o une a Jocasta. A sua splica ser atendida; dipo recupera a vista, que o smbolo da sua conscincia individual. Na anagnrise da identidade de ambos, ele interroga-se, num distanciamento enuncia-
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tivo, sobre a sustentabilidade da unio anmala, agora que o desejo dilacerado pela evidncia do incesto:
DIPO: (...) O mamilo rseo perder a cor na boca do amante. Porque este j no ignora que aquela fonte de volpia o mesmo seio que o amamentou. Poder dipo transformar as entranhas que o conceberam na terra mais apetecvel s violentas sementes do seu orgasmo? (ibid.: 32)
O elemento trgico neste drama no est propriamente no reconhecimento do incesto (embora no o nomeie, Jocasta de resto j o sabia durante a cegueira de dipo), mas sim em saber como continuar a viver nele. Lido em literalidade, o desfecho ser uma surpresa de feminina crueldade possessiva. Jocasta fere de novo os olhos de dipo para que ele regresse noite da cegueira, bem como dependncia que esta impe, de modo a no perd-lo de si. O Progresso de dipo acaba por expor uma aporia ertica; se, como diz dipo, nenhuma viagem nos permite verdadeiro regresso (ibid.: 30), esta equvoca regresso me tambm a nostalgia pela perda da individuao, a anulao da identidade autnoma que os olhos cegos simbolizam. E um enigma se destaca do jogo dramtico: este o retrato apenas do fantasmtico incesto edipiano, ou antes de toda e qualquer queda amorosa, que atravs dele se perspectiva? O amor como priso cega e/ou como cegueira iluminante? Para a autora, existiu uma clara inteno alegrica a determinar a concepo desta obra que ela entender, retrospectivamente, no como pea teatral, mas sim como dilogo losco, um processo dialgico de expor uma tese (...) que retoma o mito matrista (Lello, 1988: 15) Em depoimento indito prestado a Jlia Lello, em torno do seu teatro, diz Natlia ainda:
Sfocles s representa o tratamento do mito na ptica patriarcal. O meu dipo cega-se para o exterior, onde vigora a lei patriarcal, que castiga o seu incesto, para se refugiar no seu inconsciente individual, que guarda a lei arcaica de iniciao do lho na sabedoria materna, atravs de incesto que, neste caso, simblico. Retoma-se pois aqui o mito da Deusa-Me e do lho que na tragdia grega castigado pelo Deus introduzido pela cultura patriarcal indo-europeia. (...) Da eu chamar Progresso de dipo porque o dipo e a Jocasta assumem o incesto, ao contrrio do que se passa na tragdia grega. Pretendo repor ao mesmo tempo um estado pr-lgico, ou seja, pr-patriarcal. (Lello, 1988: 15)
As aporias de eros, perante a formatao social e a aspirao utpica da vontade individual, so questes que Natlia desenvolve teatralmente numa notvel pea extensa que constituiria de facto a sua primeira obra escrita a solo, de longo flego, para palco: D. Joo e Julieta. No entanto, a autora faria dela segredo e a pea s viria a ser conhecida e divulgada postumamente. Escrito em 1957, tal como O Pro-
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gresso de dipo, revisto e ampliado por Natlia no ano seguinte (conforme o esplio o documenta), o texto de D. Joo e Julieta s seria editado e representado em 1999 (pela Comuna-Teatro de Pesquisa, numa co-produo com o Teatro da Trindade, onde o espectculo se apresentou, encenado por Joo Mota).
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A pea consistir numa espcie de julgamento pblico da singular feiticeira, subversiva pelo poder mgico do seu verbo alqumico, tendo por personagens, para alm dela, o Pregoeiro que anuncia os factos, um Coro cmplice das razes da r, e os acusadores que so o Inquisidor, a Solteirona, os Sete Juzes, o Padre, e o Patriota. E assim como anteriormente, em O Progresso de dipo, se confrontara Natlia com um mito que se liga ao primeiro nascimento do teatro ocidental (na Grcia antiga), aqui, pelo subttulo de auto, demonstra a autora o seu estlistico e simblico gesto de revisitar o segundo nascimento dele (na Europa medieval) que assiste s origens da dramaturgia portuguesa, com Gil Vicente (cultor da forma de auto), para muitos o mais notvel dos dramaturgos europeus do nal da Idade Mdia. Comunicao um manifesto lricodramtico de grotesca beleza, que rene expressivamente o esprito escatolgico das medievais cantigas de escrnio com a imaginao iconoclasta de inspirao surrealista, que dispara, liberador, contra opresses mltiplas: existenciais, polticas, sexuais e religiosas. Num registo de literria rebelio, que mescla com destreza o popular e o erudito, este um pequeno auto que reclama para a poesia a morada ontolgico-poltica da liberdade maior do humano convico inabalvel de Natlia , como o arma o Pregoeiro, nico defensor individual das razes dessa iluminada feiticeira Que diz que a fria que se chama vida/ lutar, ferida da vida ser pouca/Com muitos milnios de alma decidida/Pela liberdade que a luz na boca (Correia, 1999: 175). A pea viria a conhecer uma primeira encenao por Joo Mota, em 1999, no Teatro da Trindade que a integrou num interldio de teatro dentro do teatro, como espectculo a que assistem as personagens de D. Joo e Julieta, no baile de mscaras que o protagonista nataliano promove em sua casa; a actriz Cristina Cavalinhos interpretou a Feiticeira Cotovia. J em 2007, Joo Brites elaborou uma verso cnica da pea, sob o nome A Cotovia, dirigindo-a numa realizao d O Bando, no seu espao em Vale de Barris, em Palmela, com elenco do colectivo teatral local As Avozinhas. No ttulo abstractizante de Comunicao (visto que para esta pea Natlia no optou apenas pelo nome de Auto da Feiticeira Cotovia), esconde-se um eco pessoalssimo da autora a uma outra comunicao potica endereada a Portugal e ao mundo: a Mensagem de Fernando Pessoa (o nico livro que o poeta publicaria em vida, em 1935), que por sua vez fora o reencontro possvel do poeta moderno com o Cames pico (esse mesmo Cames renascentista que a autora invocar para protagonizar uma das suas ltimas peas). Eco que Natlia prolongaria no seu volume seguinte de poesia, datado de 1961, Cntico do Pas Emerso, obra onde tal inteno intertextual se tornar inteiramente visvel; tanto no ttulo, de epopeia deceptiva tal qual o fora a Mensagem de Pessoa, como na epgrafe que o abre, da Ode Martima de lvaro de Campos, como ainda no contedo, onde se evoca como tutelar cais evanescente do pas emerso esse: Que foi apenas o escriturrio / A primeira ovelha exposta no calvrio / De um
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povo agiota que faz p-de-meia / O manga-de-alpaca que os deuses mandaram / Fazer a escrita da nova Odisseia (Correia, 1999: 204-205). de sublinhar de resto a importncia exercida pela obra de Fernando Pessoa no processo de autodescoberta de uma identidade potico-dramtica em Natlia Correia, em analogia alis ao que sucede com diversos outros poetas maiores de lngua portuguesa no sc. XX. O prometeico titanismo do gnio pessoano, hoje universalmente reconhecido, comeou por ser, em Portugal, digerido criticamente de modos diversos, como costume acontecer com a recepo de novas vozes de fora excepcional e, por isso, heterofgicas. Natlia, em ensaio de 1958, Poesia de Arte e Realismo Potico, elegera j Pessoa como farol para a utopia dos poetas autnticos, precisamente graas a essa liberdade gnstica (Rosa, 2005: 27) que a autora v emanar do olhar metadramtico dele, incitador a que cada um descubra o seu caminho, e no se limite a ser epgono do mestre. A linha fecunda que parte dos poetas libertadores no nmero dos quais Fernando Pessoa se inclui o convite negao da sua obra na medida em que ela j um valor conquistado. A nica possvel liao que o poeta oferece aos continuadores do seu esprito o incitamento experincia concreta de cada um (Correia, 1958: 22-23).
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Antropfagos, de Manuel de Lima, escrita em 1957, enquanto o autor era hspede da casa de Natlia, em Lisboa) que no teatro portugus consegue operar o cruzamento entre a esttica surrealista, o teatro do absurdo, e a stira poltica. Decorrendo a aco no palcio de el-rei Salarim, senhor absolutssimo da Mortoclia (Correia, 1965: 11), os jogos onomsticos e semnticos so provocatoriamente transparentes: se o nome Salarim remete para o ditador, j o lugar morturio da fbula, Mortoclia, o epnimo fabulstico que designa o Portugal da ditadura, que sacrica a sua juventude numa guerra colonial em frica, iniciada em 1961, quatro anos antes da publicao do texto. Reino de thanatos ainda, porque repressor do princpio de eros; no qual o sdico Salarim probe o acto de urinar, metfora explcita do sexo: ordenando que se obstruissem os orifcios por onde machos e fmeas (...) se obstinavam em praticar essa antiga necessidade (Correia, 1965: 21) A didasclia longa com que a pea abre convida mesmo a que seja lida em cena por um ou vrios actores, dada a informao cenolgica que disponibiliza, com uma vivacidade de escrita corrosiva. Veja-se a descrio trgico-pardica do protagonista:
Salarim tem nariz (ou bico) arqueado e dois olhos de fogo muito juntos, situados quase no alto da cabea. Da sua idade s se pode dizer que por meios naturais era de esperar que j tivesse morrido h muito tempo, mas que por outros meios, talvez sobrenaturais (h quem diga que usando em proveito prprio o tempo que roubou aos sbditos), conseguiu suster a foice, sempre que a morte julgou chegada a altura de ceifar os seus muito esticados anos. (Correia, 1965: 11)
As guras dramticas d O Homnculo situam-se, como vemos por este exemplo descritivo, na categoria ubuesca de tteres caricaturais, nos quais um recorte de surrealismo expressionista exibe, de forma bem legvel, a correspondente tipicao alegrica. Assim, para alm de Salarim, que parodia Salazar, temos, logo na contracena do primeiro quadro, a presena do Bispo; jogando na cena essa cumplicidade perversa entre o poder poltico e o eclesistico, que caracterizou o fascismo lusitano; nomeadamente numa submisso equvoca da Igreja catlica face ao status quo ideolgico do Estado Novo. Equivocidade que a pea desenvolve, j que a mscara de servido do Bispo (onde inevitvel vermos satirizado o cardeal Cerejeira, aliado eclesial de Salazar) serve para que este consiga controlar a seu favor o megalmano e solitrio Salarim. Uma fala desconcertada do ditador, dirigida ao Bispo, demonstra-o:
SALARIM: J ests a falar demais. Quando te comprei tinhas um silncio verdadeiramente colaborador. A tua tagarelice perturba-me. (Leva as mos cabea.) Sinto-me tonto, confuso... Desconheo-me... (ibid.: 16)
Por sua vez, o bobo Mnemsicus denuncia o seu alegorismo cido no gurino que enverga, uma vez que vem vestido de catedrtico (Correia, 1965: 16); stira acres-
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cida, portanto. O poder cultural legitimado, que a instituio universitria representa, surge na pea sob a identidade do bobo de Salarim, de quem este depende a ponto de cham-lo, sintomaticamente: Mnemsicus, minha alma!, ou sol do meu esprito (ibid.: 16). Temos pois nestas duas duplas que Salarim constitui, ora com o Bispo, ora com o Bobo, dois ecos dramatrgicos pardicos bem distintos: no primeiro caso, as sado-burlescas parelhas beckettianas (Hamm e Clov, de Fim de Partida, por exemplo); no segundo caso, a referncia ao par shakespeariano do rei louco Lear e do seu sbio Bobo ( por isso de sublinhar o facto de o discurso de Salarim conhecer um arrebatamento monologante no momento de entrada em cena de Mnemsicus, o seu intelectual conselheiro). Ante a inveja do Bispo, Salarim prostra-se e humilha-se chegada desse seu Bobo acadmico, um duplo que lhe insua sopro anmico; e estabelece com ele uma dependncia erodramtica que a retrica inamada de Salarim verbalizara: Sem ti anoiteo. Extingue-se a minha condio reinante e revela-se a minha propenso para verme (ibid.: 16). O poder militar comparece tambm, inevitavelmente, a abrir o segundo quadro, atravs da gura pattica do General, que se entusiasma mais com a agricultura do seu quintal domstico, do que com as lides da guerra; caricatura de um Portugal ensimesmado e eminentemente rural, reduzido condio de curiosidade turstica, que de sbito atirado para uma guerra africana com a qual pouco se identica. A obsesso genocida de Salarim, para com o povo de Mortoclia, agrante na sua perverso de misgino em que os vcios solitrios so as sentinelas da abstinncia, tendo por amante perptua (...) uma hidra com dez milhes de cabeas, que podiam ser ainda mais no fossem a avitaminose, a mortalidade infantil e a emigrao (ibid.: 18). Ao seu Bobo confessor, Salarim revela a obsesso regressiva de sadismo necrlo com que conduz os destinos de uma Mortoclia, submissa do poderio norte-americano, face ao qual no aspira a ser nada mais do que estncia turstica:
SALARIM: (...) Mas o prato substancial do turista americano a arquitectura local: os jazigos. No se trata precisamente de dar sepultura aos mortos. Urge acabar de uma vez para sempre com essa superstio que nos legaram os gregos. Somos um povo progressivo. To progressivo que atingimos a transcendncia de uma preocupao oposta: dar mortos s sepulturas. O ritmo de construo alucinante. No minto se disser que mandei edicar alguns milhes de sepulturas. Tantas sepulturas quantas cabeas tem a minha hidra. (ibid.: 21)
O curioso ver que nesta farsa de fantoches humanos ser o Bispo a incitar o General para que este se rebele em armas (mas de uma forma no sangrenta, conforme hipocrisia dos catlicos costumes), contra o despotismo demente de um Salarim dominado pela ascendncia do Bobo acadmico. Para convencer o militar campnio, o Bispo tem de disfarar-se de demnio chifrudo de modo a assustar o General, por forma
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a que este julgue que arder nas chamas infernais caso no se revolte contra o poder do ditador. Porm, o General entusiasma-se no seu ardor de insurrecto e j pensa em assassinar Salarim, para espanto do manhoso Bispo, que vai sempre lanando apartes de comentrio teatral em voz alta.
BISPO (aparte): Tomou-me o freio nos dentes! Tenho que segur-lo antes que ultrapasse os dois mil anos da nossa santa sabedoria! (Alto) Cuidado, meu lho! No te deixes tentar. Salarim rei. Foi sagrado. No pequemos. A Igreja contra o regicdio. (ibid.: 25)
O objectivo do Bispo (alegoria da Igreja) manipular o General (personicao do poder militar) para aniquilar o Bobo Mnemsicus (o poder intelectual), eliminando assim a inuncia deste junto do ditador Salarim, para que s o Bispo ocupe esse lugar. Os intentos do prelado intriguista sero conseguidos. Depois de dominar os impulsos do General, o Bispo ilude o Bobo, rmando com este um falso pacto revolucionrio. Ele sabe como lidar com Mnemsicus, segundo arma ao General: [O Bobo] um intelectual. A maneira de os vencer deix-los falar (Esfrega as mos.) Mais tarde ou mais cedo caem na ratoeira dos prprios sons (ibid.: 27). E uma ratoeira que o Bispo arma ao Bobo; antes de este surgir em cena no 3 quadro, o Bispo avisa Salarim de que o seu el Bobo deixou de o ser e vem munido de uma pistola. O dilogo-chave entre o Bobo e Salarim (que anatomiza a natureza teatral, ilusionista, da imagem do poder que o ditador constri de si mesmo), convencer este de que o Bispo papagaio (ibid.: 29) dizia a verdade. Salarim comea por perguntar a Mnemsicus se este lhe vem dar uma lio de Histria (ibid.: 30):
BOBO: (...) A Histria a raiva dos que no participam dela e com estes que preciso contar. Sobretudo fazer o possvel para no excitar essa raiva. Concorda que tens feito muito pouco nesse sentido. SALARIM: Sou uma personagem. No preciso deles. BOBO: As personagens s existem na imaginao dos cronistas. No tens feito nada para conquistar a simpatia deles. Isso pe em risco a tua realidade. (ibid.: 30)
Na sequncia de uma ardilosa esgrima dialogal, o Bobo persuade Salarim de que uma revoluo de rebeldes, que j saquearam o palcio e esvaziaram os cofres (ibid.: 30), se prepara para o destronar e de que a nica forma de ele sair com dignidade suicidar-se. O Bobo coloca-lhe nas mos o revlver para esse efeito, mas Salarim, em vez disso, matar a tiro o Bobo Mnemsicus (sua alma danada, ou seja, sua entelquia), sendo atacado de seguida por amnsia identitria, que, se o isenta teatralmente de responsabilidades por ter morto este desconhecido (ibid.: 31), tem como reverso a perda de si mesmo. Ao matar o Bobo, Salarim matou o que restava da sua conscincia; nesta tragdia jocosa, ele torna-se um autmato ontolgico-poltico:
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Estou vazio, vazio. Apenas sobrevivo como um saco que se esvaziou. Oh! Oh! Quem sou eu? Quem sou eu? (ibid.: 31). Contm esta peripcia, ao mesmo tempo, a parbola do que sucede ao intelectual que se alia ao poder ditatorial, para usufruir dos privilgios deste; neste negcio faustiano, a sua voz acaba por ser silenciada pela conspirao dos poderes (eclesial e militar) que lhe disputam a inuncia e o controlo do dspota. Na pea, o triunfo pertence ao Bispo, com o seu evangelho equvoco que prega sentenas deste gnero: A guerra precisa para trazer a paz; O descontentamento e a subalimentao so o que resta de espiritual no horizonte humano; A agricultura garante-nos um certo estado de indigncia necessrio vida do esprito. E sob o signo agrcola, no quarto quadro que descem do cu trs anjos barrocos com trombetas que cam suspensos no ar, e cantam uma hossana sociocrtica, nada anglica, representando os poderes da alta nana, ou seja, os cofres celestiais (ibid.: 35). Salarim imbecilizado agora, como o diz o Bispo, no mais do que uma sombra, uma aparncia, uma alma perdida, vagabunda. A pedido mais uma vez do Bispo, o General dita a Salarim aquilo que ele deve ser: um patriota, que poder mostrar-se til s searas contra o ataque de aves ruins (ibid.: 36). Salarim ser pois nada mais que um espantalho reinante, numa representao, do poder agnico, anloga ao nal daquela que a mais impressionante fbula poltica do teatro portugus da primeira metade do sculo XX: O Fim (1909), de Antnio Patrcio (1878-1930); pea em vrios aspectos precursora da tragicidade absurda de Beckett e da crueldade psicotrpica de Artaud, em cujo decadentismo expressionista se efabulava premonitoriamente a queda da monarquia portuguesa, pela transgurao potico-trgica da leariana Rainha-av Maria Pia, que enlouquecera na sequncia do regicdio de 1908. E se no nal da pea de Patrcio se chamavam os corvos para cumprir a funo de aves necrfagas, no quinto quadro d O Homnculo, a condio de espantalho encarnada verbalmente por um Salarim manifestamente demente, numa fala longa, que descreve os estragos orgnicos que as diferentes espcies de aves fazem, devorando o seu corpo. Na irriso cnica que a pea prope, com ntidos contornos absurdistas, o drama prometeico aqui reduzido ao esventrar de um espantalho, ao qual j no se apropria sequer a designao inumana, mas alqumica, de homnculo com que o ttulo nomeia o protagonista. Ao coro de anjos celestes opem-se, em terreno contraponto, quatro ceifeiras que trazem as duas metades de um pano toscamente pintado representando uma seara (ibid.: 36). Podemos classicar o bizarro confronto coral com que a pea termina, entre anjos e ceifeiras, como uma pardia negra (ou tragdia jocosa, segundo o subttulo nataliano) que joga surrealmente com tpicos correntes, poca, da literatura marxista do neo-realismo, nomeadamente no que respeita ao conito de classes, entre dominadores e dominados, exploradores e explorados; conito com que em riso amargo
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O Homnculo (1965) surge-nos como a primeira obra de um conjunto de trs peas para as quais propomos a designao de trilogia de mitos lusitanos, fundada em anidades que nos parecem irman-las, j que, sublinhe-se, nunca esta nomenclatura e este agrupamento textual fossem sugeridos pela autora. A Pcora (com edio boicotada em 1967) e O Encoberto (1969) so as outras duas obras que integraro tal trilogia. Para alm de serem textos que Natlia compor em sequncia e proximidade cronolgicas, a similaridade na concepo estilstica dos ttulos indicia logo partida um parentesco que os temas desenvolvidos, por cada um dos dramas, conrmaro. A designao nominal, comum a cada uma destas peas (constituda, repare-se, por um substantivo singular, com artigo denido), visa colocar no palco, com intentos fabulsticos, imaginativos e provocatrios, mitos especcos da realidade histrico-poltica e/ou psico-religiosa portuguesa; da, por isso, esta opo pela denominao, objectiva e irnica, de trilogia de mitos lusitano. Assim, enquanto O Homnculo se ocupou com o automiticado ditador Salazar, j A Pcora esconde uma virulenta parbola motivada livre e libertinamente pelo fenmeno controverso das aparies marianas de Ftima, em 1917; se bem que os dados dramatrgicos utilizados se mostrem antes bastante mais prximos dos que envolveram as fraudulentas aparies de La Salette, em Frana, ocorridas em 1846, data prxima desse nal do sc. XIX que vem a ser o tempo histrico-dramtico da pea. Por sua vez, O Encoberto ser a criao teatral nataliana a dar voz a um mito messinico persistente no imaginrio lusada: o do rei D. Sebastio, morto jovem no norte de frica, na batalha de Alccer Quibir, em 1578 (data que assinala o ocaso da aventura expansionista martima portuguesa), em torno do qual se gerou a lenda de que ele haveria de regressar vivo e salvco numa manh de nevoeiro, como se de um herico Godot se tratasse. de assinalar que o mito sebstico, para o qual Almeida Garrett desaara em 1837 os dramaturgos vindouros, haveria de dar origem, sob distintas interpretaes pessoais, a outras duas obras representativas do teatro escrito portugus do sculo XX: O Indesejado (1945), de Jorge de Sena, e El-Rei Sebastio (1949), de Jos Rgio; bem como ainda ao drama inacabado O Rei de Sempre, de Antnio Patrcio (de que restam cenas fragmentrias datadas de 1914).
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Resumo: Da produo dramatrgica de Natlia Correia (1923-1993), composta por quinze ttulos, destacamos trs que se integram no que podemos designar por forma breve em teatro escrito: O Progresso de dipo Poema dramtico (1957); Comunicao Auto da feiticeira Cotovia (1959); e O Homnculo Tragdia jocosa (1965). A leitura crtica destes trs textos dramticos proporciona ao mesmo tempo uma perspectiva ampla e diversa acerca da versatilidade de Natlia dramaturga, num cruzamento entre palavra potica e linguagens cnicas. Abstract: The complete dramatic works by Natlia Correia (1923-1993) include fteen different titles. Three of them could receive the label of brief forms as playscripts: O Progresso de dipo Poema dramtico (1957); Comunicao Auto da feiticeira Cotovia (1959); e O Homnculo Tragdia jocosa (1965). A critical approach of these three dramatic texts can simultaneously provide a broad view of how versatile Natlia is as playwright, in an interchange between the poetic word and the theatrical languages.
As grandes asas impedem o albatroz de caminhar em terra Agustina Bessa-Lus, Florbela Espanca At agora eu no me conhecia, Julgava que era Eu e eu no era Aquela que em meus versos descrevera To clara como a fonte e como o dia Florbela Espanca, Charneca em Flor
Palavras-chave: marginalidade, narcisismo lrico, teatralidade, ironia Keywords: marginality, lyrical narcissism, theatre, irony
1. A metfora do pente
Tendo-se h muito abeirado dos portes do mito, por circunstncias nem sempre interiores ao rigoroso fazer da palavra potica, Florbela Espanca tem vindo a conhecer nas ltimas dcadas uma razovel fortuna crtica quer como pura razo hermenutica, quer como reiterado motivo literrio ou, mais especicamente ainda, como metfora do relacionamento do sujeito com a prpria linguagem da poesia. Este ltimo aspecto constitui talvez o degrau ltimo da armao da sua autoridade potica, no s como caso literrio, evidentemente, mas sobretudo como exemplo de um certo modo de entender a ocina lrica da palavra. Relembro neste contexto o volume de poesia que Adlia Lopes publicou em 1999, signicativamente intitulado Florbela Espanca espanca, onde, como bem notou na altura Osvaldo Manuel Silvestre, o anunciado e ambguo espancamento da gura de Florbela constitua no fundo o reverso de um tratamento de choque que Adlia visava impor quela linguagem velada pelas musas e tradicionalmente destinada conformao aurtica da poesia: de que espancamento se trata, ento? Em rigor, de um espancamento sistemtico e desapiedado de todas as concepes disponveis do potico e dos regimes do seu agenciamento. () Trata-se sim de espancar a linguagem
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e os seus usos mais ou menos privados digamos: os usos poticos os quais supem sujeitos que por esses usos se julgam preservados da anonmia do capital lingustico na era da globalizao (Silvestre, 1999: 2). Esta forma de Arte Pobre cultivada por Adlia Lopes (cf. ibid.: 3) encontra-se programaticamente denida num dos poemas sem ttulo deste seu livro, o qual convoca a imagem depauperada de um pente sem um dente e em cujo potencial de irradiao simblica poderemos facilmente inscrever no apenas os sonetos de Florbela, mas ainda alguns dos textos que adoptaram a sua gura e a sua poesia como razo hermenutica e como motivo literrio por exemplo, Natlia Correia, Agustina Bessa-Lus e Hlia Correia:1
A sensao de dj vcu da madalena clebre no me faz sentir poetisa mas encontrar na rua um pente sem um dente sim devo-o no entanto a Proust e a Enid Blyton (Lopes, 2000: 416)
Para a autora de Charneca em Flor, um pente sem um dente seria provavelmente apenas isso, um pente sem um dente, destitudo assim de qualquer beleza ou serventia, pelo mesmo e justo motivo que leva a arte pobre de Adlia Lopes a situar-se nos antpodas da concepo de arte revelada pelos poemas de Florbela Espanca porque estes ltimos vivem sobretudo da ostentao do sentimento e do luxo indispensvel da rima, valores estes, alis (o vcio da ostentao e a tentao do luxo), de que a escritora no prescindiu nunca na hora de compor a sua prpria gura. O pente de Florbela (o real mas tambm o outro, que em vez de dentes tem versos) apresentaria certamente intacta a lisura do marm sob a estudada cintilao da prata e foi precisamente isso que Natlia Correia no perdoou a uma mulher com o talento literrio de Florbela a sua alienao, evidenciada pela excessiva importncia atribuda a pentes, rendas e colares de prolas. Na esteira de Natlia Correia, e numa linha j um pouco dissonante da adoptada por Agustina, que contempla a perfeita regularidade do pente em busca do poo sem fundo dos dentes em falta, Hlia Correia no deixa de assinalar com alguma
CORREIA, Natlia (1981). Prefcio. In ESPANCA, Florbela. Dirio do ltimo ano: seguido de um poema sem ttulo. Lisboa: Bertrand; BESSA-LUS, Agustina (1979). Florbela Espanca. Lisboa: Arcdia; CORREIA, Hlia (1991). Florbela. Lisboa: Publicaes D. Quixote.
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acidez, embora pela interposta personagem da Guia na sua pea Florbela, o incmodo aburguesamento da poetisa de Vila Viosa:
uma das imagens que de ti nos cou: a pequena burguesa deslumbrada, com peles e colares falsos, a cabea inclinada para que os olhos nos tem como se j cedessem a um certo langor. Algum que se sustenta com essas coisas fceis, com sonhos de automveis e casinos nas praias (Correia, 1991: 67). Bela! Tu fazias sonetos com defeito nos intervalos dos teus naperons de renda, ou os naperons de renda no meio dos sonetos, e a vida literria portuguesa passava longe, muito longe do teu mundo (ibid.: 71).
2. Vises marginais
, pois, confessadamente ambgua a relao de Hlia Correia com Florbela Espanca, relao esta onde, em funo dessa ambiguidade, surpreendemos por vezes um ou outro sinal de incomodidade, a par de um entreaberto fascnio por essa gura to manifestamente heterodoxa que a autora de Soror Saudade. Note-se, alis, que na apresentao conjunta das duas peas que Hlia Correia publica no mesmo volume (Perdio. Exerccio sobre Antgona e Florbela), a escritora no deixa de sublinhar o afecto que presidiu escrita destes dois textos (Escrevi estes textos por afecto [Ibid.: 9]), bem como o impreciso sentimento de enjoo e irritao que Florbela Espanca por vezes lhe suscita: Florbela, a verdade que eu a arrumara junto s confusas impresses da puberdade, como um momento onde h enjoo e melodia e do qual nos livramos o melhor que podemos. () A Florbela, confesso, irritou-me um bocado. Tem demasiada biograa para o seu peso de vulgaridade, e sonha com demasiada grandeza para a sua escassez de biograa (ibid: 9-10). So palavras certeiras estas, aadas e precisas como a aresta de um diamante, sobretudo quando recordamos a consabida megalomania potica de Bela (por exemplo quando ela escreve Sonho que sou a poetisa eleita, / Aquela que diz tudo e tudo sabe, / Que tem a inspirao pura e prefeita, / Que rene num verso a imensidade! (Espanca, 2006: 175). Porm, aquilo que Hlia Correia no chega a dizer neste breve texto de apresentao (embora esteja depois latente ao longo da pea) que este aparente defeito de Florbela Espanca constitui talvez uma das suas maiores virtudes, por aquilo que em simultneo revela acerca da sua ousadia potica e da sua vulnerabilidade doentiamente feminina. Por entre as duas margens desta ambiguidade directamente invocada pela prpria escritora, o texto Florbela, longe do propsito biografante a que tambm a obra de Agustina acaba de certo modo por furtar-se, procura desenvolver em registo dramtico uma actividade intensamente hermenutica da poesia de Bela e da sua instvel personalidade,
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confundidas que sempre estiveram (demasiado, segundo alguns dos seus detractores) estas duas instncias, a da vida e a da obra, na gura literria de Florbela Espanca. Na sequncia disto, atrevo-me a sugerir que talvez um dos segredos deste encontro entre Hlia Correia e a torturada poetisa da plancie radique na capacidade de resistncia dos seus sonetos e da sua to teatralizante como escassa biograa para a autora de Lillias Fraser. Num texto escrito cerca de dez anos depois da publicao de Florbela, Hlia Correia defende essa impossibilidade radical de podermos alguma vez habitar o corao dos textos, que assim continuamente nos resistem, como o segredo da relao duradoura entre um livro e o seu leitor esse um amor sem casamento, ela diz:
It is my belief that this impossibility of reaching the very heart of the work is the secret of the everlasting love story between the book and its reader. No marriage is processed, we never go inside the same conjugal room and start arguing about minor questions with it. I would not call it a platonic relationship, because the reader always seeks the entire possession, the fusion with the work, and it is possible that in some circumstances love is so strong that possession takes place. (Correia, 2001: 22)
De certo modo, a relativa cerimnia afectiva vericada entre a poesia de Bela e a autora de Florbela talvez no seja mais do que uma subtil estratgia de expulso continuamente levada a cabo pelo texto orbeliano e pelo seu contexto, vivendo ele, como qualquer outro texto, num constante movimento pendular entre a explcita convocao do leitor e a persistente demanda da sua inviolabilidade. Como quer que seja, h no universo de Florbela Espanca bvios motivos de atraco para a escritora Hlia Correia, sobretudo se tivermos em conta a globalidade da produo literria da autora de Montedemo, a comear pela armao de uma certa marginalidade que Florbela sempre cultivou (por vezes, certo, com claros contornos auto-punitivos) e que, inicialmente, parece ter surgido apenas travestida do sentimento de incompreenso suscitado pelo seu ingrato estatuto de poeta: Ai as almas dos poetas / No as entende ningum; / So almas de violetas / Que so poetas tambm. // Andam perdidas na vida, / Como as estrelas no ar; / Sentem o vento gemer /Ouvem as rosas chorar! (Espanca, 2006: 19). Sem que, curiosamente, isso implique uma viso um pouco mais benevolente para com a personagem que d nome pea, sobretudo porque, de certo modo, a personagem da Guia funciona como uma espcie de alter-ego para a dramaturga, a Guia de Florbela isso mesmo que pe a nu, a irreprimvel perdio de Bela e a sua impossibilidade de se recluir ao previsvel centro que habitavam as demais mulheres da poca: No podem acusar-te de seres rebelde e agressiva. No. Mas a tua vontade no chegava para te fazer entrar na ordem, nessa ordem onde entravam as outras raparigas com os seus cozinhados e as suas barriguinhas, as outras raparigas que lambiam os dedos sabendo dar ao gesto uma delicadeza traquina e infantil e a quem isso consolava como um pecado (Correia, 1991: 83).
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Florbela Espanca cumpre assim um destino de estranheza, uma quase indesculpvel solido que nela, como lembra Agustina, uma maneira de agonizar sem testemunhas (Bessa-Lus, 1997: 48) e que com muita frequncia surpreendemos tambm em muitas das personagens compostas por Hlia Correia, como na Maria Emlia de O Nmero dos Vivos (1982) ou na Milena de Montedemo (1983). A estranheza de Florbela assim uma forma branda dessa loucura a que a grande maioria das personagens narrativas de Hlia Correia dicilmente escapa, no fundo uma forma extrema de segredo, diferena pura ou bastardia, para aludir agora ao ltimo ttulo publicado pela autora (Bastardia, 2005) e que com tanta preciso dene a humilhante situao lial de Florbela Espanca.2
A prpria Hlia Correia o armou: para mim, a nica possibilidade de criao a armao da diferena. As duas possibilidades de armao da diferena so a marginalidade ou a loucura. So os grandes temas dos meus livros (Rodrigues, 2000: 253).
Cf. Sobral, Augusto (1987), Bela-Calgula. Lisboa: & Etc; Franco, Antnio Cndido (1999). A Primeira Morte de Florbela Espanca. Vila Nova de Famalico: Quasi. A relao de Florbela com o seu tempo histrico-cultural foi uma relao previsivelmente (e at necessariamente) ambgua porque, por um lado, e independentemente dos motivos que a isso tenham levado, certo que a poetisa no partilhou do radicalismo (inclusive programtico) nem das inovaes formais dos seus companheiros de gerao, onde avultam, como sabido, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mrio
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entanto, conseguir xar-se em imagens que, em denitivo, lhe componham os traos da alma levou Florbela a deixar-se habitar por uma srie de mscaras vrias, que sempre nasciam destinadas a ocupar o centro oco e estril de uma identidade reiteradamente recusada lha por Joo Maria Espanca, o pai Ando perdida neste Sonhos Verdes / De ter nascido e no saber quem sou, (Espanca, 2006: 131), confessa Florbela num dos muitos sonetos que escreveu. No dilogo com a Guia em Florbela, a poetisa volta a referir a inevitabilidade deste seu drama em mente (Rosa, 1997: 239), onde por vezes no podemos deixar de sentir certos ecos da risada teatral de S-Carneiro:
Eu nunca percebi exactamente de quem falava. Eu era uma morada. Passavam por mim gentes, sentimentos. Mesmo na minha vida real, no me entendi. Fiz de mulher casada, z de mulher fatal, de mulher superior, de mulher resignada, mas fui muito sofrvel em qualquer dos papis. (Correia, 1991: 90). Eu tive os meus teatros, mas sozinha, c dentro da cabea. Sem querer, acredita? Acontecia. Personagens atrs de personagens. (Ibid.: 69) O que em mim vos parece ridculo, abundante, que eu no pus de lado as minhas fantasias. Encenei, trouxe ao palco as minhas personagens. (ibid.: 78)
A ambiguidade inerente s vrias mscaras de Florbela, porquanto a imagem (literria e fotogrca) que dela conservamos simultaneamente a dela e a da sua transferncia para um outro rosto, mais do que evocada pelo discurso da personagem no drama de Hlia Correia, por ela verdadeiramente encenada, como se a gura de Bela no pudesse nunca existir sem o rude fado da representao, mesmo quando deixa de ser apenas poetisa para se transformar em personagem de um drama alheio. Durante um longo monlogo de Florbela, em que a Guia obviamente no interfere, Bela como que se distancia de si prpria enquanto personagem dramtica e adopta por momentos um registo verbal e pronominal de terceira pessoa (Florbela, de vermelho, fala durante um tempo na terceira pessoa (Correia, 1991: 84-86), adverte a didasclia), subsistindo, desse modo, apenas como actriz de si prpria, atenta por isso ao desempenho do papel de que intencionalmente se ausenta, como alis sempre foi seu timbre na vida que escolheu ou lhe calhou viver. Por outro lado, o explcito dualismo de planos que estrutura o texto de Hlia Correia (oscilando continuamente entre a Florbela morta e a Florbela viva, a Florbela criana e a Florbela adulta) parece de facto querer acentuar a j referida concepo do palco como essncia da personagem representada, ao sublinhar a contnua alternncia
de S-Carneiro, mas, por outro, tambm no pde furtar-se ao estigma de uma poca que determinava no escritor a denio eminentemente teatral do eu. Veja-se, a este respeito, o estudo de Renata Soares Junqueira (2003), que pretende mitigar a interpretao exclusivamente biograsta da insinceridade potica de Florbela (muito difundida na segunda metade do sculo XX), procurando justamente aproxim-la dos autores mais proeminentes de Orpheu.
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entre um estado e outro, entre uma personagem e outra interagindo nesse espao vazio que a irreversvel morada de Florbela. Assim, pelo menos no caso desta pea de Hlia Correia, creio que talvez possamos ir um pouco mais longe do que Armando Rosa, quando o autor salienta que os teatros mais ou menos privados de Florbela facilitam a tarefa de qualquer escritor que decida desloc-la para o estatuto de personagem dramtica. Sendo isto verdade, no o menos que a autora de Montedemo soube, ao longo do seu texto, mimetizar a essncia de teatralidade da personagem recriada atravs do recurso a uma concepo do palco no apenas como espao cnico, mas tambm como efeito ltimo do representado:
G. Hs-de ser uma grande poetisa. Enm, hs-de escrever alguns grandes poemas. F. S alguns? G. S. isso que diro. F. No faz mal. Isso no me interessa nada. No quero saber do que diro de mim. G. Queres saber, sim. Precisas de saber. Ests num palco, no ? Queres um bom julgamento. F. Porque fala de palcos? G. Bem, ests aqui, no ests? F. Oh, puseram-me aqui. No passa de um efeito. Foi uma ideia sua, foi, no foi? (Correia, 1991: 62)
O palco onde interagem Bela e a Guia, as nicas duas personagens da pea, funciona assim como uma espcie de justia dramtica de pendor avaliativo ou judicativo que, apesar de tardia em relao vida da personagem retratada, assume quase a feio de um tribunal literrio, onde os espectadores nalmente ditaro o julgamento de Bela, tal como os leitores de Florbela Espanca continuam a dit-lo a cada leitura que empreendem, no mais ntimo palco do texto. O espectculo teatral de Florbela como metfora da leitura dos textos que a personagem escreveu? Talvez, pelo menos se alargarmos um pouco o alcance daquilo que, na pea, ela prpria diz relativamente ao desenvolvimento do espectculo teatral (e, metaforicamente, tambm da leitura):
Eu sei. Isto um palco. A luz cai sobre mim. Eles esto no escuro. No poderia ser de outra maneira. () Tudo se passa sem muita gravidade porque eles sabem que isto apenas uma encenao e cada um tem o seu lugar marcado e o meu trabalho conduzi-los para mim. () Sabem que a pea dura um certo tempo e termina, e que eles devem aplaudir. () Ento, retiro-me e eles caminham para a sada e sacodem dos ombros os seus domins negros, a mscara que usaram para se tornarem pblico e acreditarem, quase acreditarem, acreditarem, sim, porque esse o mistrio que h no fazer de conta. (ibid.: 68-69)
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O dilogo que Bela mantm com a personagem da Guia ao longo do nico acto que sustenta a fbula dramtica de Florbela, bem como ao longo do seu breve prlogo e do igualmente breve eplogo, assim funcionalmente equivalente, na restrita economia da pea, s duas outras imagens especulares de que Florbela Espanca se serviu como suporte imaterial do seu depauperamento narcsico (Bessa-Lus, 1997: 109) a escrita da poesia e a donjuanesca demanda do amor. assim, parece-me, que deve ser lido o seu clebre soneto Eu, cujo primeiro terceto permite justamente fazer a ponte entre os dois espelhos de Florbela (o amor e a poesia), realizando em simultneo uma simblica piscadela de olho ao seu dilogo com a Guia de Hlia Correia: Andava
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a procurar-me pobre louca! / E achei o meu olhar no teu olhar, / E a minha boca sobre a tua boca! (Espanca, 2006: 270). Agustina elege precisamente o amor como a conduta ctcia (Bessa-Lus, 1997: 20) de Florbela Espanca, indiciando com esta meno ao comportamento ccional da poetisa aquilo que de megalmana representao sempre implicaram os seus actos de amor. Florbela buscou sempre na relao amorosa com os seus sucessivos amantes e maridos a terra por pisar de um amor sobre-humano, tornado assim subitamente Deus o homem que fosse enm capaz de devolver-lhe o espelho de si prpria em forma aproximada de absoluto. Por isso encontramos em Florbela Espanca, mau grado o seu intenso percurso amoroso, uma incorruptvel virgindade psquica5 que, neste contexto de busca especular da identidade, talvez possamos associar inexpugnvel opacidade dos vrios espelhos procurados. A centralidade da voz de Bela na pea de Hlia Correia (embora ela se desdobre funcionalmente na voz da Guia), minimaliza inevitavelmente a hiptese de surgirem outras personagens nesta tentativa contempornea de encenar os dramas privados de Florbela, o que de uma certa maneira at est certo, uma vez que o centro da vida de Bela e da sua escrita sempre foi ela prpria e no os outros, embora a poetisa (e essa foi talvez a sua maior co) sempre tivesse querido existir atravs deles. A verdade que este texto da autora de Bastardia vive muito da minimizao do supruo (porque o essencial a narcsica contemplao de Bela e a posterior possibilidade de julgamento da sua imagem), o que tambm reduz consideravelmente a necessidade de recurso da dramaturga s didasclias. Neste contexto, poderamos ser levados a pensar que a economia de condensao dramtica caracterstica do teatro breve perl genolgico que, no dizer de Jean-Pierre Ryngaert6, parecem adoptar grande parte dos textos posteriores aos anos 80 do sculo XX, poderia facilitar a expresso da intensidade trgica que a prpria Florbela sempre reclamou para os seus versos e para a vida que eles plasmavam, mas que neste texto de Hlia Correia como que elidida pela minimizao irnica de Bela empreendida pelas palavras da Guia, onde no ecoa apenas a j referida irritao da dramaturga em relao poetisa, mas todo um pensamento crtico que remete directamente para a j
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Agustina Bessa-Lus fala em relao poetisa de Virgem eterna, o que no quer dizer intocada, como refere a romancista, mas sim a que no vive sob o domnio do homem. Ainda na tradio celta, a virgindade no fsica, mas moral, smbolo de renovao constante, de pureza superior que a liberdade humana. Nas tradies pr-crists mediterrnicas encontra-se esse mesmo signicado de virgindade (Bessa-Lus, 1997: 41).
Cf. Ryngaert, 2000: 70: Sans doute pour des raisons conomiques, les petites formes, des pices brves pour un petit nombre de personnages et parmi celles-ci, bon nombre de monologues, rgnent sur les dramaturgies des annes 70-80. Au-del des contingences de la production, ces pices () favorisent le tmoignage direct, mais aussi le rcit intime, la livraison des tats dme sans confrontation avec un autre discours, quand la scne devient une sorte de confessionnal plus ou moins impudique.
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referida viso de Natlia Correia. O texto de Florbela parece, assim, querer suprimir a manifestao do trgico orbeliano inerente aos versos da poetisa7 (embora, certo, j a com o seu qu de estratgia de auto-agelao), apresentando a personagem como uma mulher vulgar, longe do descentramento que a prpria sempre reclamou para si e que a dramaturga s parcialmente lhe concede:
G. () Vamos l a comear pelo princpio, tentar tornar inteligvel o teu drama. F. Ah, do princpio Uma biograa. Querem que eu trace uma biograa? Acha que no se vo aborrecer? G. um risco. possvel, pois , que se aborream. Porque no h conito, no h curva dramtica. Uma rapariguinha que faz versos e que no feliz no casamento. F. Nos casamentos. Trs casamentos numa curta vida. S isso dava fora a uma pea. G. Que ideia! Massacr-los com as tuas quezlias? O qu? A decepo e a rotina, gente que arrota e que se acotovela e que l os pequenos anncios no jornal. Porque um quer ouvir msica bem alto e o outro dormir cedo, um gosta de feijo e o outro de batata; e depois, claro est, a coisa recomea: o adultrio, a decepo e a rotina. (Correia, 1991: 69)
A ironia minimizadora com que a Guia se dirige a Bela leva ainda a primeira a incorporar a voz dos detractores da poesia orbeliana, que aqueles acusam de ultrapassada e previsvel e, por isso, merecedora do espancamento crtico de que ocasionalmente a autora tem sido alvo Para muita gente, fazes parte de um passado em que os versos rimavam quase sempre de forma previsvel. Ests posta de lado como um gosto que os nossos avs tinham e cuja imagem nos nauseia um pouco, como o rap e a cera no bigode (ibid.: 68). Sem, no entanto, se referir explicitamente poesia da autora de Charneca em Flor, um dos breves poemas que Adlia Lopes publica em Florbela Espanca espanca traa, em apenas quatro curtos versos, a distncia que medeia entre a concepo de poesia pobre que perlha e uma mais tradicional concepo do potico polarizada em Florbela, confessional, excessiva e normalmente espartilhada pela feroz ditadura da rima: O poema no deve ser / uma mala / mas um mal / entendido (Lopes, 2000: 408), que como quem diz o poema no serve para transportar mgoas ou aliviar de penas o corao dos poetas, mas para facilitar ao homem o regresso a esse cho do dizer que traz consigo a destituio das musas.
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Vejam-se, por exemplo, os sonetos Princesa Desalento e Hora que passa, do Livro de Soror Saudade: Minhalma a Princesa Desalento, / Como um poeta lhe chamou, um dia. / revoltada, trgica, sombria, / Como galopes infernais de vento! (Espanca, 2006: 255); Que tragdia to funda no meu peito!... / Quanta iluso morrendo que esvoaa! / Quanto sonho a nascer e j desfeito! (ibid.: 257).
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Resumo: Este texto pretende estudar o modo como o texto Florbela de Hlia Correia reproduz a essncia teatral da poesia orbeliana e o modo como, nesta pea da escritora de Montedemo, o princpio de minimizao dramtica caminha a par da contemplao narcsica realizada pela poetisa-personagem. Abstract: This text seeks to study the way in which Hlia Correias Florbela recreates the theatrical essence of Florbelas poetry and the way in which the principle of dramatic minimization is made concomitant with the narcissistic contemplation carried out by the female poet-character.
...o que est mais condensado agrada mais do que o diludo em muito tempo. Aristteles, Potica, 1462b 1-2
Palavras-chave: Antnio Srgio, Antgona, Sfocles, Aristteles, mnimo, alegoria, contestao poltica, Humberto Delgado, salazarismo. Keywords: Antnio Srgio, Antigone, Sophocles, Aristotle, minimal, allegory, political contestation, Humberto Delgado, salazarismo.
Escrita para ser representada em concursos dramticos enquadrados num conjunto de cerimnias de carcter cvico e religioso que envolviam toda a comunidade, seja na organizao seja na participao entusistica e empenhada, a tragdia grega do sc. V a. C., enquanto espectculo, recorria a processos de actuao simples e a expedientes cnicos e caracterizadores mnimos. O cenrio, pouco elaborado e muito convencionado, restringia-se quase s skene de madeira1, que em geral representava um palcio ou um templo, podendo ser completado, por vezes, com telas amovveis pintadas (pinakes) ou ser pontualmente sugerido pelo texto, em didasclias implcitas, que alimentavam a iluso cnica do espectador. O elenco ( parte o Coro de 15 elementos) era tambm reduzido: de um actor apenas, nas representaes primitivas, passou-se a trs, no tempo de Sfocles. No entanto, protagonista, deuteragonista e tritagonista, como eram designados, de acordo com a importncia dos papis que desempenhavam, eram o bastante para dar vida s vrias personagens (em nmero no muito elevado) criadas pelo poeta. De facto, as mscaras tipicadas e as indumentrias com adereos muito simples consentiam que um mesmo actor pudesse encarnar diferentes guras da pea. Seria esta sobriedade que encontraramos, se por acaso viajssemos at Atenas de meados do sc. V a. C. (c. 442-441) e, sentados no teatro da nossa mente, assistssemos representao da Antgona de Sfocles.
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Convm referir ainda que esta economia da componente cnica estava em sintonia com a dimenso no muito longa do mythos, considerado por Aristteles como a alma da tragdia, o principal elemento de entre os seis que a enformavam (2004: 1450a 7-39). De facto, o enredo trgico, tal como um ser vivo a que comparado, para ser belo, devia ser dotado de unidade, ou seja, ter princpio, meio e m, e no devia ser nem excessivamente curto nem muito extenso. Como sublinha o Estagirita, no so harmoniosos nem um animal demasiado pequeno, j que a viso se confunde ao realizar-se num espao de tempo quase imperceptvel, nem demasiado grande, pois, neste caso, a viso no abrange tudo, escapando assim observao de quem v a unidade e a totalidade (2004: 1450b 221451a 6)2. Em suma, a tragdia devia ter uma dimenso tal que, sucedendo-se os acontecimentos em palco de forma verosmil e necessria, fosse capaz de concitar as emoes e o consequente prazer que lhe eram prprios (phobos, eleos e katharsis) e que decorriam da mudana (metabole) na sorte do heri trgico, em geral de uma situao de felicidade para a oposta de infelicidade (2004: 1451a 9-15). Esta extenso delimitada era, no dizer de Aristteles, uma das causas da superioridade da tragdia em relao epopeia, j que, como escreve em Potica, o que est mais condensado agrada mais do que o diludo em muito tempo (2004: 1462b 1-2, citado em epgrafe). Esta medida clssica no a usou Antnio Srgio, quando, em 1930, estando exilado em Paris, em consequncia do seu envolvimento activo numa campanha contra um emprstimo que a ditadura militar intentara obter junto das praas nanceiras de Londres3, decidiu revivicar o mito de Antgona, transformando-o em instrumento de interveno poltica contra o regime vigente. O exemplo da lha de dipo, que se insurge contra a deciso arbitrria e desptica de Creonte de conceder honras fnebres a Etocles, deixando insepulto Polinices, fora apenas o pretexto para o nosso autor, no exerccio de um direito cvico e pedaggico, contestar o poder ditatorial sado da revoluo militar de 28 de Maio de 1926 e, assim, alertar as conscincias para a necessidade de reagir. Como a ditadura se arrastasse ao longo de dcadas, sem que se vislumbrasse o seu m, nem mesmo depois da vaga de democratizao que, aps a guerra, varreu a Europa ocidental, Srgio, guiado pelos mesmos objectivos contestatrios, revisitaria este seu texto, reescrevendo-o duas vezes mais em meados do sculo passado. na
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Ainda que dois outros passos da Potica (2004: 1449b 12-16; 1459b 24-27) nos permitam inferir supostas leis de unidade de tempo e de espao, apenas a unidade de aco enunciada de forma taxativa (2004: 141a 30-35). A famosa lei das trs unidades s vir a ser elaborada pelos comentadores italianos de Aristteles, ao longo do sc. XVI. A xao da unidade de tempo em 24 horas deve-se a Agnolo Segni (1549); a de lugar, que surge como consequncia da de tempo, deve-se a V. Maggi (1550). Lodovico Castelvetro acabaria por reunir as trs (aco, tempo e espao), em 1570.
A declarao contra o emprstimo, assinada por Antnio Srgio em representao do grupo Seara Nova, foi entregue a 12 (?) de Janeiro de 1927 na Embaixada da Gr-Bretanha e nas Legaes da Frana e dos Estados Unidos. Vide Marques, 1976: 48-49, 86-89.
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terceira verso que o ensasta constri um enredo mnimo, dramatizando apenas o essencial do mito, que pe em evidncia a atitude intrpida de Antgona face ao novo poder de Tebas. Mas, para melhor entendermos a evoluo do tratamento do tema na polifacetada obra de Srgio e melhor enquadrarmos a ltima destas suas verses, comecemos pela primeira, escrita em Paris e publicada, sob os auspcios do seu amigo SantAnna Dionsio, no Porto, cidade de fortes tradies democrticas e republicanas. Neste manifesto-drama de 19304, o modelo clssico, dotado de prlogo e de xodo e com os estsimos a intercalar os diferentes episdios, d lugar tradicional estrutura romntica de teatro em trs longos actos. O nmero de personagens duplica em relao ao arqutipo. O tempo e o espao diversicam-se. E o variado ritmo dialgico do original grego, que articulava, numa harmonia perfeita, longas rheseis com dilogos esticomticos e versos falados com belas intervenes corais, substitudo por um discurso dramtico mais denso, pontuado por dissertaes retricas, que reectiam o estilo ensastico do autor, o seu pensamento losco e muitas das ideias polticas dispersas por escritos de cariz panetrio5. Nem mesmo o modelo simples e linear da homnima pea de Cocteau, representada pela primeira vez a 20 de Dezembro de 1922, reposta em 1927 e publicada um ano depois, quando Srgio se encontrava j exilado, lhe inspirou um estilo mais leve e refreado. Nesta obra, que indiscutivelmente seria do conhecimento do nosso autor, o escritor francs, na senda da criao de uma nova esttica teatral a esttica do mnimo , procura diminuir a importncia excessiva conferida componente verbal em detrimento das vertentes visual e auditiva do espectculo. Planando sobre o texto sofocliano, como diz a abrir a sua Antigone (1948: 9), condensa-o, sem lhe introduzir desvios, e depura-o de todos os ornamentos e excursos desnecessrios aco. No obstante o impacto desta obra nos primrdios do sc. XX, o nosso autor, no a ignorando, manteve-se el ao seu estilo e sua linguagem de ensasta e polemista, tendo como nico propsito transmitir a sua viso crtica da situao sociopoltica do Portugal de nais dos anos vinte. Sobrevoando de igual modo o arqutipo sofocliano, dele aproveitou apenas o essencial, ou seja, toda a retrica de protesto e de liberdade decorrente do conito entre Antgona e Creonte, que lhe pudesse ser til nos seus desgnios de uma empenhada interveno cvica e pedaggica. Assim, recorrendo alegoria, a guras simblicas e a referncias mais ou menos explcitas a acontecimentos polticos dos primrdios da ditadura militar, expande o seu texto, dando-lhe um cunho
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Assim designa este seu texto em carta ao seu amigo Joaquim de Carvalho. Cf. Catroga e Veloso, 1983: 990. A grande maioria destes textos panetrios foi produzida no mbito das actividades polticas de Srgio no seio da Liga de Defesa da Repblica, mais conhecida por Liga de Paris. Vide Marques, 1976, e Morais, 2001: 13-38.
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particular, nacional, de teor marcadamente panetrio, como pensamos ter evidenciado, num texto publicado em Mscaras Portuguesas de Antgona (2001: 13-38). Se, em artigo no assinado de resposta a um grupo de jovens nacionalistas de Coimbra, que indevidamente o acusavam de ter plagiado a obra do dramaturgo francs (Mendona, 1931: 2; Rocha, 1931: 3-4), deixa claro que no fora seu objectivo escrever uma obra dramtica para ser representada, mas sim um estudo social em forma dialogada, tal como os Dramas loscos de Renan (Srgio, 1931: 46), j no to claro que fosse esse o seu intuito na 2. edio, profundamente remodelada, que redige por volta de 19506, com esta longa e signicativa dedicatria:
A todos os que nasceram para serem livres; aos jovens portugueses cada vez mais raros no escravizados a um sectarismo poltico ou a qualquer espcie de dogma losco, aptos para os voos da investigao librrima, com o gosto de pensarem por si mesmos e capazes de dvida metdica; aos que entendem o carcter eminentemente humano da doutrina e da prtica do cooperativismo integral, profundamente revolucionrio, pelo qual o povo realiza ele prprio autnoma e criadoramente a sua emancipao social-econmica, sem ter necessidade de se meter a reboque de chefes polticos autoritrios; e aos poucos que actuam por amor do povo sem buscar as auras da popularidade.
Ainda que, no prlogo a esta segunda verso, rearme que a sua Antgona no uma obra de co literria, pertencente ao gnero teatral, mas antes um projecto cvico de um pregador-ensasta, a quem os ventos ciclnicos da barafunda pblica arremessaram fora para os turbilhes da poltica (c. 1950: 2), desenhos de cenrios e de gurinos, encontrados entre os seus escritos, permitem-nos pensar que a hiptese de um dia o texto poder vir a ser representado chegou a ser equacionada pelo autor. Na verdade, estes rascunhos, com anotaes pormenorizadas sobre adereos e sobre formas, cores e materiais a usar nos cenrios e no guarda-roupa7, parecem
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Ao considerar, no prlogo (p. 5), que Polinices a essncia sublimada de alguns bons amigos, portugueses uns deles, outros porm estrangeiros (...), encontrados nas andanas de uma vida spera e que so timbre do seu humanista ideal, Srgio refere, como exemplos da sua armao, de entre os mais clebres, apenas os que j haviam morrido: o francs Paul Langevin (1872 1946), o suo douard Claparde (1873 1940) e os portugueses Padre Manuel Alves Correia (1881 1948) e Raul Proena (1884 1941). Posteriormente, acrescenta, a lpis, o nome de Marc Sangnier (1873 1950), precursor, na boa terra de Frana, do que veio a chamar-se democracia crist (Srgio, 1957: 130-131). So referncias como estas que nos permitem deduzir que este texto, indito e no datado, ter sido escrito cerca de 1950.
O desenho do cenrio do 1. acto (g. 1) acrescenta adereos, como o trono e as peles (sobre o trono e a coluna do lado direito), e especica os materiais a usar ou a imitar (g: granito), para alm do que referido na didasclia: Uma praa em Tebas. Ao fundo, prtico com escadaria perto do palcio de Creonte. No patamar de cima, bases de colunas dricas. Cenrio simples, esquemtico em tons diludos. Ao subir o pano noite avanada. Tnue claror de luar (c. 1950: 10; descrio idntica de 1930: 11). Na g. 2, o
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g. 1 cenrio do 1. acto
g. 2 gurinos
contrariar, de certa forma, a sua armao de que nunca ter ponderado levar o texto cena (c. 1950: 4).8 Esta nossa suposio ganha alguma consistncia, ao vericarmos que o autor, aperfeioando a sua tcnica de construo dramtica, fragmenta algumas das longas falas da 1. edio em curtos e tensos dilogos, o que confere
g. 3 cenrio do 3. acto8 rascunho de alguns dos gurinos acompanhado por interessantes descries de pormenor, que nenhuma didasclia ou qualquer referncia textual deixam perceber. Assim, Hmon, no 2. acto, usa cabeleira de um loiro muitssimo claro, ta e caracis; a couraa de tecido prata fosca e o saio vermelho. No mesmo acto, Creonte entra em cena de tnica clara com tringulos amarelos, manto azul com barra castanha e faixa prateada, e barra do mesmo azul na tnica. Cresa surge com uma tnica preta com barras amarelas, que lhe envolve o rosto, e com um manto castanho. Tirsias tem cabeleira e barba branca aos caracis. Os soldados Ortgoras e Critbulo, no terceiro acto, aparecem de capacetes.
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O desenho do cenrio do 3. acto, com a identicao dos vrios planos, est de acordo com o descrito na didasclia de abertura do acto nal: Paisagem de rochedos e vegetao na encosta de uma montanha. No primeiro plano, esquerda, um penhasco com a entrada de uma caverna, da qual se desce por alguns degraus, ocultos ao espectador. direita outro aglomerado de rochedos, vestidos de vegetao, no sop do qual h um pedregulho onde se podem sentar umas trs pessoas. No segundo plano, ao centro, uma pequena elevao de terra com dois ou trs degraus naturais. Por detrs do segundo plano, e abaixo dele, h uma rampa que sobe da direita e que se no v. No terceiro e quarto planos, colinas cobertas de vegetao, com dois ou trs ciprestes. Ao fundo, o mar muito azul, sob um cu muito lmpido. Fechando o horizonte, ao longe, arrumao de terra de cor azulada. Dia luminoso de primavera (1930: 85).
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ao texto um ritmo mais vivo e uma tonalidade bem mais pattica, que o tornam mais representvel. A esta mudana de estilo, Srgio acrescenta ainda outras modicaes que visam sobretudo adequar o enredo nova realidade poltica portuguesa surgida do ps-guerra, com um progressivo fortalecimento do corporativismo do Estado Novo e dos mecanismos repressivos a frustrar as expectativas dos que, no contexto de uma Europa democratizada, esperavam assistir abertura do regime e a uma evoluo para o ps-salazarismo. Neste renovado texto, que conserva a mesma estrutura do original, com trs longos actos acrescidos ainda de um prlogo interpretativo, o autor, pelo recurso imaginao extravagante, a novos interlocutores simblicos e denncia de conitos, misrias, tribulaes e anseios do Portugal desse tempo, intenta cumprir, uma vez mais, o objectivo poltico e pedaggico de espicaar as conscincias que progressivamente se deixavam tomar pelo torpor. Mesmo considerando que o assunto e a forma no eram fceis de ajustar, assume sempre o risco, guiado pela ideia de que poderia ser til ao seu leitor. Em parte, testemunho poltico de um sonhador sem emenda (c. 1950: 2), esta 2. edio no viria a ser publicada, mas dela o autor acabaria por aproveitar, com ligeirssimas alteraes, as trs primeiras cenas, para formar o corpo central da sua Jornada Sexta do Ptio das Comdias, das Palestras e das Pregaes, que constitui, assim, a sua terceira variao sobre o mito de Antgona. Composto em nais de 1958, na sequncia da sua priso a 24 de Novembro9, por actividades subversivas, este opsculo apresenta idnticas estrutura e extenso, bem como os mesmos objectivos demopdicos das anteriores cinco Jornadas, todas escritas, no decurso desse ano, num contexto de forte convulso sociopoltica que envolveu, antes, durante e depois, as eleies que opuseram Amrico Toms a Humberto Delgado. A presidir, ento, Comisso Promotora de Voto, uma associao cvica por si criada em 1953, Antnio Srgio, servindo-se de todos os meios ao seu alcance, empenhou-se, primeiro, na campanha de apoio ao General sem medo, depois, na denncia da fraude eleitoral que deu a vitria ao candidato da situao. na segunda fase deste conturbado processo eleitoral que se inscreve este pequeno aplogo em forma dramtica. Ao ncleo dramtico central o mnimo essencial da sua recriao escrita por volta de 1950, que contm j a necessria e conveniente retrica de protesto , o autor junta um eplogo exegtico, em forma de dilogo, entre o Ouvinte e o Actor, e ainda um breve prlogo declamado por este ltimo. Nele se convida o pblico/leitor a imaginar o espao cnico e a sair da recluso de si mesmo, para que
Merc de um protesto contra o impedimento pelo governo da entrada em Portugal do deputado trabalhista ingls Aneurin Bevan, que vinha proferir uma conferncia, a convite da oposio democrtica, Srgio preso pela quarta vez (fora-o j em 1933, 1935 e 1948). Vide Baptista, 1992: 67-84.
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possa, pela livre fantasia, recuar ao passado e apreciar as suas actuais venturas pelos males da Tebas de outrora (cf. 1958: 7-8). Dito o prlogo, Ismnia entra num palco ctcio, onde os actores so ideias, na companhia de Cresa, sua aia, uma personagem ausente do paradigma sofocliano. Atormentada por medos e angstias, a jovem lha de dipo dirige-se para junto do palcio de Creonte, onde est aprazado um encontro secreto com uma mulher, cuja identidade desconhece. No dilogo que mantm com Cresa, uma breve referncia feita ao silncio e calma que se seguem batalha entre os dois irmos, mortos s mos um do outro, motivo suciente para se introduzir uma primeira nota de actualidade, que no constava no texto de 1930. Ainda que o autor omita, da 2. edio (c. 1950: 11), a signicativa aluso ferocssima polcia do tirano, conserva, contudo, neste opsculo de 1958, a no menos signicativa referncia paz ngida que ento se vivia (1958: 9-10):
ISMNIA: (...) A revolta foi sufocada... E depois... depois, Cresa, foi matar, matar, matar!... Pareceu-me deveras que enlouquecia... E agora... que silncio!... que solido!... que paz! CRESA: Paz aqui, ao p do palcio; mas nas sombras dos crceres, nos subterrneos, nesses campos hediondos da morte lenta... quantas agonias, quantos prisioneiros, que milhares de dores! ISMNIA: Sim, que milhares de dores! Tudo mentira, nesta paz ngida!
Uma paz suportada por mtodos repressivos, como a censura, a espionagem e a delao, que amordaavam e atiravam para os crceres e para os campos de concentrao todos os que se opunham ao regime desptico de Salazar, aqui representado por Creonte, que simboliza a atitude fascista, no que ela tem de mais fundo (c. 1950: 4). A contestao a esta tirania hipcrita de Creonte (1958: 12) sobe de tom na segunda cena, que aproveita, com inegveis nalidades polticas e pedaggicas, os ingredientes essenciais do prlogo da tragdia sofocliana. Saindo debaixo do manto que a embuava, Antgona, ainda que demonstre compreenso e dcil afectividade, no se detm muito com os temores da frgil e doente Ismnia, perseguida pelos fantasmas dos irmos e dos pais, numa imaginao [que] reacrescenta o medo (1958: 16). Como a homnima herona sofocliana, tem um plano que no admite delongas. Porm, antes de o executar, pretende que a irm dele tome conhecimento. Assim, faz saber que, contra as ordens arbitrrias de Creonte, estava decidida a conceder honras fnebres ao cadver do seu Mestre e irmo Polinices, que, tal como ela, representa, nas palavras do autor, uma faceta de anti-fascismo, de aspirao liberdade, de revolucionismo social (c. 1950: 4). Smbolo dos derrotistas e dos que, por causa dos laos familiares, se desviam do combate pelas ideias e do herosmo cvico (1958: 29; vide c. 1950: 4), Ism-
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nia esfora-se por demov-la dos seus temerrios intentos, fazendo-lhe sentir que as mulheres nasceram para o sacrifcio e para a dor e no para combater os homens (1958: 17). Com este clebre tpico, recuperado do modelo sofocliano, procura demonstrarlhe que nada ganharia com o seu temperamento de labareda (1958: 19), com a sua mania, herdada de Polinices, de revolucionar o mundo, insurgindo-se s cegas contra o que era superior s suas foras (1958: 17). Esta sua tentativa, porm, revela-se v. Indmita e generosa, como a da pea sofocliana, a herona sergiana, expressando admirao por todos os que, na escurido de Tebas, protestam e se indignam, est decidida a erguer-se contra o insulto que Creonte faz ao cadver do irmo e a lutar com todas as suas foras contra o despotismo que a todos asxia, guiada pela luz clara e livre do Esprito, da Razo (1958: 21-22). A luz que vai invocar em seu auxlio, no monlogo da terceira cena (1958: 26-27), para que lhe d coragem e a livre do egosmo e do medo morte, de molde a lutar pela justia e pela liberdade. Ao elevar-se, com arrojada determinao, do plano biolgico ao plano do esprito, ela interpreta, no pensamento de Srgio que decalca o de Kant, no a vontade individual de uma classe ou de uma pessoa particular, como Creonte, mas a vontade geral que se identica com uma atitude de pensar objectiva, racional, geral que se institui em lei universal (1974: 88-89). Assim, da leitura deste breve e renovado aplogo dialogal, podemos concluir, em harmonia com o que se diz no singular eplogo exegtico, pela boca do Ouvinte, que a Antgona sergiana Kantista e, em certo sentido, tambm crist. Kantista, porque, contra a razo absoluta de Estado, ela proclama no tanto os direitos da piedade religiosa [e] do amor fraterno, como a de Sfocles, mas mais os direitos da livre conscincia humana, os da lei racional a que se eleva o esprito, eterna e imprescritvel (1958: 28)10. Crist, porque, de acordo com o pensamento de Srgio, o ideal democrtico por ela defendido, sendo homogneo com o do cristianismo, a traduo poltica do Evangelho e tem o carcter de uma religio (1974: 7, 74-75, 81-82). Mas, convenhamos que, na sua verdadeira essncia, ela poltica. De facto, na origem deste condensado exerccio dramtico-panetrio, que encerra o conjunto das seis jornadas do Ptio das Comdias, das Palestras e das Pregaes, est um contexto poltico propcio revitalizao do mito de Antgona. Das trevas que comearam a adensar-se logo aps as eleies presidenciais de 1958, a herona, emprestando a sua voz do autor, surge intrpida, como intrpido fora Humberto Delgado, a defender os princpios luminosos da democracia e da liberdade, contra o despotismo que conseguiu sufocar a revoluo do povo (1958: 15).
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Concordando com o Ouvinte, o Actor arma, mais frente, que a tragdia se passa ao nvel do Esprito, sem lugar no espao, sem um sculo no tempo. o esprito a elevar-se contra o poder que corrompe, que corrompe sempre (1958: 30).
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Resumo: Sempre com intuitos marcadamente polticos, Antnio Srgio recria vrias vezes o mito de Antgona (1930, c. 1950, 1958), adequando-o ao objecto da sua contestao. Na terceira e ltima verso, para se rebelar contra o regime autoritrio do Estado Novo que, nas eleies presidenciais de 1958, zera eleger fraudulentamente o seu candidato, serve-se apenas do mnimo essencial do enredo trgico, que continha j a necessria e conveniente retrica de protesto e de liberdade. Abstract: Always with explicit political objectives, Antnio Srgio has recreated the myth of Antigone several times (1930, c. 1950, 1958) by adjusting it to the object of its contestation. In the third and last version, in order to rebel against the Estado Novo authoritarian regime that, in the 1958 fraudulent presidential elections, had successfully led its candidate to power, Srgio resorts to the essential minimal elements of the tragic plot that already incorporated the suitable and necessary rhetoric of protest and liberty.
O mito o nada que tudo. O mesmo sol que abre os cus um mito brilhante e mudo. Fernando Pessoa
Palavras-chave: Ins de Castro, Intertextualidade, Histria, Teatro, Mito. Keywords: Ins de Castro, Intertextuality, History, Theatre, Myth.
1. Histria e Mito
A temtica inesiana vem ocupando espao nas Artes h mais de 650 anos. Fundamentalmente as pginas da Literatura em seus veios potico, narrativo ou dramtico tm dedicado especial ateno ao episdio amoroso entre Pedro e Ins; contudo no podemos nos esquecer de que outras expresses artsticas como a pera, a pintura e, mais recentemente o cinema, para no falar da escultura, anal os tmulos de Ins e Pedro em Alcobaa so verdadeiramente obras de alta expresso artstica no plano escultrico, tm dedicado ateno ao trgico caso de amor. Surpreendentemente, uma histria de amor, com nal infeliz, repleta de lances um tanto quanto melodramticos, continua, em pleno sculo XXI, a atrair a ateno de um pblico vido por desvendar aquilo que a Histria insiste em ocultar. Consideremos que a xao do que poderamos chamar de fato histrico em torno da relao amorosa entre Pedro e Ins foi determinada, primeiramente, por Ferno Lopes (*1380?/+1460?), na crnica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei Destes Regnos, escrita volta de 1434, a pedido do rei D. Duarte. O cronista mor do reino, segundo consta, partiu do documento escrito, sem prescindir, porm, do relato testemunhal, da tradio oral e de outras crnicas mais antigas como a de Pero Lpez de Ayala, que, ao falar de Pedro,
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o Cruel, de Castela, tambm se refere ao primo, Pedro de Portugal, uma vez que o Pedro castelhano lho da irm do Pedro portugus, D. Maria, e de Afonso XI, de Castela. Mais tarde, Rui de Pina (*1440/+1522), em suas Crnicas, ao tratar de D. Afonso IV, tambm fala do caso amoroso entre o infante D. Pedro e D. Ins de Castro, embora desde o sculo XVI j se discuta o valor historiogrco do que est ali narrado, alm de o cronista tambm ser acusado de plagiar manuscritos de autoria de Ferno Lopes. Temos, portanto, a xao do fato histrico, distanciado dos acontecimentos em cerca de 80 anos, com todas as diculdades decorrentes da poca, o que, devemos reconhecer, d margem a que que nas entrelinhas de um e outro cronista uma srie de lacunas que a historiograa vai buscando preencher, alm de revelar-se um prato cheio para o universo artstico, que trabalha essencialmente com o verossmil, isto , com aquilo que poderia ter acontecido, na medida em que aristotelicamente mimetiza a realidade histrica. Se considerarmos apenas o plano literrio e, mais de perto, a Literatura Portuguesa, uma vez que o amor fatal de Pedro e Ins faro parte recorrente de outras manifestaes literrias europias, notadamente, como era de se esperar, da espanhola, j em meados do sculo XVI surge a primeira releitura do fato histrico, sabidamente as Trovas morte de Ins de Castro, de Garcia de Resende, inscritas no Cancioneiro Geral, de 1516. As lacunas que o fato histrico permite comeam a ser preenchidas, de acordo com os olhos de cada um daqueles que se debruam sobre o tema. O mito comea a ser criado. Se partirmos da idia de que o mito uma narrativa tradicional com carter explicativo ou simblico, profundamente relacionado com uma dada cultura, constituindo-se na primeira tentativa de explicar a realidade, na medida em que procura interpret-la a partir de lendas e de histrias (con)sagradas, sem necessariamente tomar argumentos racionais para suportar essa interpretao, perceberemos que tambm acontecimentos histricos podem transformar-se em mitos, na medida em que adquirem uma determinada carga simblica para uma dada cultura. Talvez possamos ir mais alm, ousando dizer que a vastssima produo artstica que envolve o tema do trgico amor de Pedro I de Portugal e da galega Ins Pires de Castro poderia ser organizado numa mitologia, a mitologia inesiana. S para corroborar o que atrs dissemos, gostaramos de lembrar alguns dos muitos ttulos literrios que comporiam essa mitologia inesiana, tratando de interpretar o paradigma histrico, de modo a preench-lo, trazendo-lhe tona todas as virtualidades, na medida em que explora o mito sob diferentes enfoques. Sob a ptica lrica teramos, por exemplo, a Carta sobre a morte de Dona Ins de Castro, escrita ao rei D. Joo III em 1528, de Anrique da Mota, ou ainda o famoso episdio de Ins de Castro nOs lusadas, (canto III, 118-135). Sob a perspectiva poltica, encontramos a Castro, de Antnio Ferreira (1587), e, mesclando o lirismo s questes de Estado, podemos apontar A Castro, de Domingos dos Reis Quita (1766), publicada em 1781, ou a Nova Castro, de Joo Baptista
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Gomes Jnior, publicada em 1871. O tom saudosista nissecular pode ser percebido nA morta, de Henrique Lopes de Mendona, 1891, em Pedro, o cru, de Antnio Patrcio, 1913 e em Pedro, o cruel, 1916, de Marcelino Mesquita, que teatralizam o mito sob o ponto de vista de D. Pedro. J o brilhante conto Teorema, de Herberto Helder (primeira edio de 1963), apresenta a viso de Pero Coelho, um dos assassinos de Ins. Muito mais do que apresentar um ponto de vista indito, o conto trabalhar com a questo da miticao de Ins de Castro, na medida em que Pero Coelho, aquele que foi condenado por matar a amante favorita do rei, acabou por eternizar o amor de Pedro e Ins. Ins s se transforma em mito porque foi morta, caso contrrio, como o conto deixa explcito, ela no passaria de a amante favorita do rei. Assim, a narrativa de Herberto Helder esboa uma teoria acerca da miticao de Ins; retomemos frases do conto que corroboram essa viso:
No me interessa o reino. Matei-a para salvar o amor do rei. E ofereo-te a morte de D. Ins. Isto era preciso, para que o teu amor a salvasse. Matei por amor do amor... Esta noite foi feita para ns, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sbios custa dos nossos crimes e do comum amor eternidade. O rei est insone no seu quarto, sabendo que amar para sempre a minha vtima. D. Ins tomou conta de nossas almas. Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. Nada to incorruptvel como a sua morte. No crisol do inferno manternos-nos-emos todos trs permanentemente lmpidos. (Helder, 1985)
A ptica de D. Fernando, o lho de Pedro e Constana, herdeiro do trono portugus, aps a morte do pai, apresenta sua viso do fato histrico no conto Dom Pedro I e Ins de Castro, de Mrio Cludio, de 2004. A narrativa de Agustina Bessa-Lus, Adivinhas de Pedro e Ins, de 1983, busca, diramos, examinar o fato histrico, desentranhando-lhe todas as possibilidades, na medida em que, atravs de uma viso, at certo ponto psicologicamente redundante, procura comprovar a Histria. O romance Ins de Portugal, de Joo Aguiar (1997), que se baseou no guio do lme homnimo, dirigido por Jos Carlos de Oliveira, corrobora a idia de que o romance histrico contemporneo busca ler o presente luz do passado, fornecendo-nos um outro enfoque para o tema. Perspectivas bastante inovadoras vemos representadas em textos dramticos mais contemporneos. A pea A outra morte de Ins (1968), de Fernando Luso Soares, embora ambientada em Alcobaa, durante a Revoluo Liberal de 1820, mais uma vez pretende ler o presente coetneo do autor, os estertores da ditadura salazarista, sob a ptica do passado. Aqui o passado histrico-mtico de Ins de Castro confunde-se com o passado histrico da revoluo liberal de 1820. A ao da pea apresenta uma outra Ins, a lha do guarda dos tmulos de Pedro e Ins, em Alcobaa, que morta
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por assassinos que a perseguem por relacionar-se com um liberal. Tal enredo vai, ao m e ao cabo, metaforizar o mito que envolve Ins. Matar Ins signica matar o mito; porm, a mulher do guarda, grvida, d luz uma outra lha que receber o nome de Ins, perpetuando-se o mito. Em 2005, Fiama Hasse Pais Brando publica a pea Noites de Ins-Constana, uma pea-tese em trs actos e um eplogo que discute, em sede de losoa potica, a natureza do amor e a natureza, diversa, de homens e mulheres (Vasques, 2005). A Boba, de Maria Estela Guedes, 2006, ambienta-se num teclado de computador, onde est Maria Miguis, uma an, boba de D. Beatriz, me de Pedro, que aparece como a instigadora do assassinato de Ins por Afonso IV. Resta-nos, nesse levantamento, que, como dissemos, no se pretende exaustivo nem denitivo, O eunuco de Ins de Castro teatro no pas dos mortos, de Armando Nascimento Rosa (2006), que foca seu texto na gura de Afonso Madeira, o escudeiro de D. Pedro, que foi castrado pelo rei por, segundo consta, ter-se envolvido com uma mulher casada. Conforme j deixa patente o subttulo da pea, o fato histrico ambientado no pas dos mortos, onde contracenam algumas das personagens histricas que esto ligadas ao trgico casal. Embora tenhamos dito pretender arrolar alguns dos textos portugueses que congurariam a chamada mitologia inesiana, vale a pena falar de Ins de Castro, do brasileiro Gondim da Fonseca (1957), que busca interpretar o mito sob a ptica de D. Pedro, que freudianamente sofre do complexo de dipo e que vai servir de paradigma para textos posteriores, como ca patente em A Boba, de Maria Estela Guedes:
E j em 1956, Gondim da Fonseca proclamava que toda a tragdia se deveu a paixes e cimes entre pai e lho. O pai que se tinha embeiado por Ins, D. Pedro s dormia com ela para cegar o pai de raiva. Um brilharete de psicanlise em que D. Pedro sofria do complexo de dipo, agravado com sadismo e pedolia. (Guedes, 2006)
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ainda que o tom possa ser alterado, como ca patente, por exemplo, no episdio de Ins de Castro, nOs Lusadas. Ali, o fato histrico (Os Lusadas, canto III 118-135) no alterado, no nos esqueamos de que o episdio faz parte da narrao da Histria de Portugal ao rei de Melinde, empreendida por Vasco da Gama; quando se fala do grande Afonso IV e de sua vitria frente aos mouros na Batalha do Salado, que se inscreve a histria de Ins de Castro, sob uma ptica parafrasicamente lrica, conforme deixa patente o excerto do episdio:
Passada esta to prspera vitria, Tornando Afonso Lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glria Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste, e dino da memria, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da msera e mesquinha Que depois de ser morta foi Rainha. Tu s, tu, puro Amor, com fora crua, Que os coraes humanos tanto obriga, Deste causa molesta morte sua, Como se fora prda inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lgrimas tristes se mitiga, porque queres, spero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano. Estavas, linda Ins, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a fortuna no deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuto, Aos montes ensinando e s ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. Do teu Prncipe ali te respondiam As lembranas que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus fermosos se apartavam: De noite em doces sonhos, que mentiam, De dia em pensamentos, que voavam.
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E quanto enm cuidava, e quanto via, Eram tudo memrias de alegria. (Cames, 1985:118-130)
A estilizao caracteriza-se por um acrscimo conteudstico em relao ao paradigma, ainda perfeitamente pertinente ideologia do modelo, embora abrigue a inteno de ser superior ao original. Deste modo, temos que a cosmoviso obtida pelo intertexto na estilizao , se no superior, ao menos mais complexa que a do paradigma, porque procura levar s ltimas conseqncias as entrelinhas do modelo, buscando super-lo atravs do preenchimento, do enriquecimento, enm do que poderia ter sido dito, mas no o foi. Como exemplo desse nvel intertextual na mitologia inesiana, poderamos apontar a narrativa de Agustina Bessa-Lus, Adivinhas de Pedro e Ins. Num misto de romance histrico e ensaio, a narrativa procura preencher, atravs de suposies e especulaes, porm, sem trair a verossimilhana, as lacunas que a Histria deixa, como, por exemplo, no que tange aos casamentos de Pedro. Primeiro, teria o prncipe casado com Branca, de Castela, que muito nova chega a Portugal para ser criada na corte de Afonso IV, apresentando desde ento forte debilidade fsica e mental. Porm, segundo a autora, o casamento fora realizado e consumado, embora, mais tarde, Branca tenha sido enviada de volta a Castela. No se fala em anulao desse primeiro consrcio. Em seguida, Pedro teria conhecido Ins de Castro no Castelo de Albuquerque, na Extremadura espanhola, onde fora criada por Teresa Martins de Menezes, mulher de Afonso Sanches, lho bastardo de D. Dinis, apresentada por lvaro Pires de Castro, irmo de Ins. Com cerca de 15 anos, Pedro e Ins ter-se-iam casado, volta de 1335. Pedro casou-se ainda em 1336 com Constana Manuel, que s chega a Portugal em 1340, trazendo, segundo armam os cronistas, na sua corte, Ins de Castro. Portanto, ainda casado com Branca, casa-se com Ins e depois com Constana. Parece estarmos diante de uma trigamia. Mais tarde, j mortas Ins e Constana, Pedro teria se relacionado com uma aia de Ins, Teresa Loureno, me do futuro D. Joo I. Os manuais armam, porm, que a moa teria nascido em 1330, na cidade de Lisboa, lha dum mercador de nome Loureno Martins, que teria educado D. Joo de modo a torn-lo cavaleiro, tendo-o mais tarde feito Mestre de Avis. Agustina assevera ainda, por exemplo, que Constana teria morrido volta de 1349, vitimada pela peste que assolava o reino portugus, e no, como declaram os cronistas, em conseqncia do parto do futuro rei de Portugal, D. Fernando, portanto nos nais de 1345. A perspectiva adotada pela Autora promove uma releitura psicologizante das possibilidades verossimilhantes que os cronistas deixaram xadas em suas narrativas histricas. Assim, para Agustina
A histria uma co controlada. A verdade coisa muito diferente e jaz encoberta debaixo dos vus da razo prtica e da frrea mo da angstia humana. Investigar a Histria ou os cus obscuros no se compadece com susceptibilidades. Que temos ns a perder? A personalidade no existe, mas sim efeitos que a desenham como
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os efeitos da luz sobre os corpos. Por isso no causamos danos no carcter dos povos quando aventuramos paixes e factos que, no fundo, so a projeco dos cabaneiros e zagalos (Bessa Lus, 1983),
por isso,
As adivinhas de Pedro e Ins cam entregues imaginao do pblico, dos leitores, sobretudo aqueles que se preocupam com a descrio de uma identidade nacional, e sabem que ela no imposta do exterior, primeiro que tudo. Ela a soma das imagens em que no nos reconhecemos, mas que esto presas a ns com singular rmeza e s quais no podemos escapar (Bessa Lus, 1983),
na medida em que o labirinto de adivinhas persiste, e o leitor soma as suas prprias dedues a este quebra-cabeas histrico (Bessa Lus, 1983). Se a histria pode no corresponder verdade, confundindo-se com a co, se a histria uma co controlada por quem detm o Poder, relendo e reescrevendo os acontecimentos segundo sua ptica e interpretao, realmente qualquer fato histrico no passa de adivinha. A prpria Agustina confessa escrever o que cr acerca de Pedro1, portanto tal verso da Histria , em ltima instncia, a insdia da verosimilhana (Bessa Lus, 1983). Cabe-nos agora pensar no terceiro nvel intertextual, segundo a proposta que zemos alhures. Trata-se da pardia, uma expresso artstica elitista ao extremo, porque, implicando a negao de um mito o paradigma exige do leitor uma dose de (in)formao literria:
In some ways, parody might be said to resemble metaphor. Both require that the decoder construct a second meaning through inferences about the surface and suplement the fore ground with acknowledgement and knowledge of background contest. (Hutcheon, 1985)
Notamos, desse modo, que a pardia se caracteriza por denegrir mitos, o que nos leva a concluir que apenas o que est inscrito no cnon objeto de uma releitura sob a perspectiva pardica, idia corroborada pelo fato de que o ser humano, e mais o ser humano que artista, precisa do reconhecimento pblico. Portanto, ele ir escolher seu modelo invariavelmente entre as obras que caram no domnio do comum das gentes. Conforme nos deixa patente Linda Hutcheon, works are parodied in proportion to their popularity (ibid.). A idia de emulao de modelo(s) parece estar contida na prpria etimologia do termo pardia, quer seja na acepo de canto contrrio, quer na de canto paralelo. No primeiro caso, temos um modelo A (= ode), que tem um ou vrios de seus
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elementos constitutivos negados, ou melhor contrariados (= para = contra). Portanto, o nvel pardico, ao m e ao cabo, revela a inteno deliberada de um determinado Autor de desmiticar seu paradigma. Talvez a formulao esboada acima explique, em parte, por que, passados 650 anos da morte de Ins de Castro, s agora o paradigma possa ser objeto de uma releitura sob a ptica pardica, como vm corroborar, por exemplo, as peas de teatro A Boba, de Maria Estela Guedes e O Eunuco de Ins de Castro Teatro no pas dos mortos, de Armando Nascimento Rosa, texto que ser objeto de nossa especial ateno nesse ensaio.
3. A releitura pardica do mito: O Eunuco de Ins de Castro Teatro no pas dos mortos
Se o conto Teorema, de Herberto Helder, apresenta um ponto de vista inovador, como j salientamos, poderamos apontar como indita tambm a ptica apresentada por Armando Nascimento Rosa em O Eunuco de Ins de Castro Teatro no pas dos mortos. Se observarmos o ttulo da pea, perceberemos j um termo que provoca certa desestabilizao ao consideramos o mito. Trata-se do substantivo eunuco: o eunuco ser Afonso Madeira, o el escudeiro de D. Pedro, que foi castrado, no af de promover a cruel justia por que o Rei ser conhecido pela posteridade. Comecemos pela Histria, uma vez que a pea dialoga intertextualmente com uma passagem, inscrita em Ferno Lopes, conforme nos deixa patente seu Autor. Embora longa, consideramos necessria a transcrio integral do excerto do cronista:
Era ainda el-rei Dom Pedro muito cioso, assim de mulheres de sua casa, como de seus ofciaes e das outras todas do povo, e fazia grandes justias em quaesquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e isso mesmo com freiras. Onde aqueeceu que em sua casa havia um corregedor da crte a que chamavam Loureno Gonalves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor de todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e no corrompido por nenhuns falsos offerecimentos que trasmudam os juizos dos homens. E porque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, ava delle muito, e queria-lhe grande bem. E era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito praceiro e de boa conversao, e seria ento em meia idade. Sua mulher havia nome Catharina Tosse, briosa, lou e muito aposta, de graciosas manhas e bem acostumada. Em esta seso vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, e homem de prole, e naquelle tempo estremado em assignadas bondades, grande justador e cavalgador, grande monteiro e caador, luctador e travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons homens requerem, chamado por nome Affonso Madeira, por a qual raso o el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercs.
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Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os perigos que lhe advir podiam de tal feito, to ardentemente se lanou a lhe querer bem, que no podia perder della vista e desejo: assim era traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo no concorriam para lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus deshonestos amores, rmou com o aposentador to grande amisade que para onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do corregedor. E havia j tempo que durava este aposentamento, sempre cerca um do outro; tendo bom geito e conversao com seu marido, por carecer de toda suspeita. Affonso Madeira tangia e cantava, afra sua apostura e manhas boas j recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeio e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento de seus prolongados desejos. E porque semelhante feito no da gerao das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e no houve dello menos sentido que se ella fora sua mulher ou lha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bemquerena, mandou-o tomar dentro em sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mr preo tem: de guisa que no cou carne at aos ossos, que tudo no fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte. (Lopes, s/d)
O caso Afonso Madeira j foi paradigma para outros intertextos que trataram do mito inesiano2, porm sem nunca assumir papel de protagonista como acontece no texto de Armando Nascimento Rosa, que explora um tringulo amoroso bastante inusitado, se considerarmos o mito de Ins Pedro/Ins/Afonso , partindo de sugesto inscrita na crnica de Ferno Lopes. Ouamos o que diz a respeito o prprio autor na Nota preambular:
Desvendar na cena o hermafroditismo comportamental de Pedro, ainda que patologicamente vivido (dado o atroz gesto punitivo deste contra Afonso Madeira), constituir, decerto, um forte motivo teatral para olhar com novos olhos um enredo que muitos julgavam sabido e romanticamente explorado por inteiro, e que ganha uma outra amplicao de sentidos, assim o julgo, nesta pea mitocrtica e mitopotica. (Rosa, 2006: 25)
Talvez valha a pena, antes de entrarmos efetivamente na anlise da pea, tratar-lhe da ambientao. Para tanto, encetemos nosso caminho pelo subttulo que vem aposto a O eunuco de Ins de Castro, que teatro no pas dos mortos. Conforme ca sugerido, estamos diante de almas que se encontram em uma das ilhas, que constituem
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A ttulo de exemplo, poderamos apontar Pedro, o cru, de Antnio Patrcio, Pedro, o cruel, de Marcelino Mesquita, D. Pedro e Ins de Castro, de Mrio Cludio, Adivinhas de Pedro e Ins, de Agustina Bessa-Lus e Ins de Portugal, de Joo Aguiar.
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o pas dos mortos. Tais espaos so ligados, numa clara aluso ao barqueiro mitolgico3, pela Caronte & Filhos Lda., que, numa espcie de lei de incentivo cultura, consegue iseno de impostos, graas ao patrocnio da arte cnica [que] oresce nesta Veneza dos mortos (Rosa, 2006: 34). A ilha em que a cena transcorre construda articialmente para mortos de excepo (ibid.: 34). Ali vivem na eternidade Ins e Constana, que esto preparando a encenao da pea protagonizada por Afonso Madeira, ainda contracenaro Pedro e Afonso IV, alm de Ferno Lopes e de haver referncia ao grande encenador que Gil Vicente que, vez por outra, aparece por ali. Estamos, pois, diante do espao do teatro, do espao do ngimento, do espao do faz-de-conta, que aristotelicamente promove a iluso, ao encenar o encontro surreal na eternidade de mortos que so coetneos e que tm, vamos l, uma histria comum, como o caso de Ins, Constana, Pedro, Afonso IV e Afonso Madeira, com Ferno Lopes, aquele que, embora no seja contemporneo aos protagonistas da Histria, concretizou-lhes a histria em suas crnicas. Alm disso, Nascimento Rosa, garretianamente, lembra o papel civilizador do teatro, num tempo que, presenticando o passado, tambm carece de civilizao, quando, pela voz do PRIMEIRO FUNCIONRIO que, dialogando com Afonso IV, no incio transveste-se em SEGUNDO FUNCIONRIO, arma: precisas de ver muito teatro para te cultivares (ibid.: 35). Partindo da parfrase da Histria, embora aqui e ali a preencha atravs do acrscimo estilizador com algumas das virtualidades propostas por Agustina Bessa-Lus e Herberto Helder, Rosa vai, ao m e ao cabo, propor uma viso invertida do mito que, embora tambm parta da parfrase da Histria, parodia-a, na medida em que rebaixa o elevado, ao se propor tratar no do tringulo Constana/Pedro/Ins, mas sim do tringulo Pedro/Ins/ Afonso Madeira:
CONSTANA: mas no se vem ao teatro para ouvir sempre o mesmo. H toneladas de peas e poesias escritas sobre Ins. H peras onde as sopranos querem igualar o sofrimento dela. Coitadas... E tambm h umas coisas sobre mim. Muito poucas. Sou personagem secundria. Mas nestes sculos todos, ningum trouxe ao palco o outro amor do nosso Pedro sanguinrio (ibid.: 40).
Rosa coloca na boca das personagens que esto contracenando a histria de Pedro, Ins, Constana, que servir de pano de fundo para, num primeiro momento, encenar a desditosa vida de Afonso Madeira, que, em ltima instncia, ser responsvel pela no
Os gregos e romanos da antiguidade acreditavam numa barca pequena na qual as almas faziam a travessia do Aqueronte, um rio de guas turbilhantes que delimitava a regio infernal. Caronte era um barqueiro velho e esqulido, mas forte e vigoroso, que tinha como funo atravessar as almas dos mortos para o outro lado do rio. Porm, s transportava as dos que tinham tido seus corpos devidamente sepultados e cobrava pela travessia, da o costume de se colocar uma moeda na boca dos defuntos.
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realizao da frase estampada, na parte inferior da roscea, do tmulo de Ins, em Alcobaa, onde, em uma esttua jacente, se l o supremo adeus: At ao m do Mundo...:
AFONSO: Nem a morte reuniu Ins e Pedro. Eu nunca pensei que isto fosse possvel: o mito do amor innito ser apenas um casal de mortos divorciados (ibid.: 40).
Se Ins e Constana jamais puderam viver outras vidas, uma vez que, segundo a protagonista,
Eu no pedi que me transformassem em mito. O meu infortnio tornou-se inesquecvel. As pessoas adoram as tragdias. Sou prisioneira da mscara de rainha defunta. E nunca mais sa daqui para viver outras vidas (ibid.: 43),
idia corroborada por Constana, que arma a mim acontece-me o mesmo. Ningum nos chama para outros papis (ibid.: 43), o mesmo no se pode aplicar a Afonso, que reencarnou, desempenhando, em outra vida, a gura de Farinelli4, anal j tinha experincia como castrado, alm de ser exmio cantor e msico:
AFONSO: No sei se foi sorte. Os anjos chamaram-me para uma nova vida. Mas quei na mesma preso ao estigma de castrado. Acharam que eu j tinha adquirido experincia para o papel. Fui o famoso Farinelli, o castrato que encantou a Europa com a voz incrvel, no sculo XVIII. Caparam-me numa banheira de leite, tinha eu oito anos. (ibid.: 44)
Embora j sugerido na crnica de Ferno Lopes, e como quer que o [Afonso Madeira] el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, Rosa busca uma ptica indita para seu dilogo com o paradigma, na medida em que o torna responsvel por impedir a realizao amorosa na vida eterna, portanto no espao mtico, do amor de Pedro e Ins. Atravs do recurso do the play within a play, Nascimento Rosa prope um psicodrama, para que as personagens, por meio do jogo do teatro, revivam em drama a origem do conito (ibid.: 52), Ins e Pedro no vivam o amor eterno devido ao que o Rei fez com Afonso Madeira. Constana desempenhar o papel de Catarina Tosse, a mulher que foi seduzida pelo escudeiro do Rei; anal no teatro, espao do faz de conta ilusrio, a trada transforma-se no piv da traio. Mais uma vez, partindo da parfrase da crnica, propem-se acrscimos capazes de elucidar a questo. Ouamos Ins, que apresentada como uma personagem extremamente lcida, caracterstica de personagem que no percebemos nos muitos intertextos que dialogaram com o mito:
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Farinelli (Puglia, 24 de janeiro de 1705 Bolonha, 15 de julho de 1782), pseudnimo de Carlo Broschi, mais popular e bem pago cantor de pera europeu do sculo XVIII. Foi castrado na infncia, segundo consta, numa banheira de leite, para preservar a voz aguda, prtica, comum na poca, a que eram sujeitos alguns cantores.
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INS: Sim, mas isso era na crnica que te foi encomendada. Aqui vamos dizer mais, muito mais, porque estamos no teatro, e noutro tempo. Hoje na Espanha de onde vim, Afonso e Pedro podiam simplesmente casar-se, e criavam os meus rfos. Mas Afonso no era apenas o favorito na caa e no colcho do meu vivo. As mulheres suspiravam por sentir o peso do corpo dele sobre as coxas, e adoravam ouvi-lo tanger o alade, com uma voz de bartono. El-rei deitava-se sobre o moceto mais disputado da corte lusitana. E isso era motivo de sobra para a cobia das mulheres. Era o caso de Catarina Tosse (ibid.: 53).
O dilogo que se segue apresenta Catarina a justicar seu adultrio e Ferno Lopes a trazer tona um acrscimo em relao ao paradigma. A causa do cruel ato do rei deve-se ao fato de que ele, freud e junguianamente, sofre do complexo de Pedro, ou seja:
Elrei tinha um mrbido horror a tudo o que fosse violao sexual. Nisto estamos de acordo. O problema que ele facilmente confundia a cpula consentida entre homem e mulher com um acto de violncia do macho contra a fmea. Era uma espcie de falofobia terrorista. Como se vivesse nele a mulher violada. E projectava esse trauma vingativo nas relaes dos sbditos. Por estranho que parea, Pedro tinha repugnncia pelo sexo a que pertencia, o sexo que herdou do pai. A isto eu chamo de complexo de Pedro. (ibid.: 54)
Estamos, pois, diante de uma contribuio no mbito psicanaltico para a mitologia inesiana. Armando Nascimento Rosa tambm explora, depois de as personagens continuarem a parafrasear o cronista-mor do Reino, de modo a apresentar a verso documental da Histria, vrios outros acrscimos que os intertextos promovem ao paradigma, como, por exemplo, aquele proposto por Agustina Bessa-Lus, qual seja, o fato de que Ins tambm sentiria cimes de Afonso, inclusive porque no dia derradeiro de sua morte ela foi trocada por Afonso, conforme nos lembra Pedro:
Nem mesmo nesse dia? Em que troquei a tua companhia pela dele? Nesse dia em que os lacaios do meu pai te mataram, eu devia estar ali a proteger-te, em vez de
A idia de um complexo de Pedro j aparece sugerida em Ins de Castro, de Gondim da Fonseca, 1957, e em Adivinhas de Pedro e Ins, de Agustina Bessa-Lus, 1983. Vale a pena ressaltar tambm o texto O complexo de Ins formular uma noo arquetpica, que vem como apndice edio da pea O Eunuco de Ins de Castro Teatro no pas dos mortos.
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perseguir veados6 com o meu escudeiro. Foi a imprudncia do meu amor dividido. Eu sabia que conspiravam contra ti em Montemor-o-Velho. E mesmo assim sa inebriado com Afonso pelas matas de Coimbra. Ainda hoje no me perdoo por essa inconscincia. No fosse ele a acenar-me do cavalo, e eu no te tinha deixado sozinha na quinta, com as crianas. (ibid.: 63)
As virtualidades so levadas s ltimas conseqncias, quando, apoiando-se na modernssima teoria das relaes de gnero, Afonso arma:
Julgavas que cortando as minhas pendurezas, que tanto gozo te davam, havia de nascer-me um sexo de mulher. Em linguagem de hoje, o que tu querias era fazer de mim um transexual. Fui a tua cobaia... Pedro o cru, o inventor da transexualidade compulsiva! Mas viestes antes do tempo. A cirurgia medieval uma arte de aougueiros. sinnimo da cmara de horrores. Sou a pardia carnal de Ins de Castro. O teu Frankeinstein vem reclamar a vida que amputaste. (...) Eis o real eunuco! O eu corpo esta ferida monstruosa. Podes enterrar nela o sexo, se quiseres a minha morte. (ibid.: 66)
Como ca patente, o mito parodicamente invertido, na medida em que as possibilidades acrescidas ao paradigma por outros intertextos revelam-se agora ideologicamente contrrias ao que a mitologia inesiana vem desenvolvendo ao longo de mais de seis sculos de dilogo. O canto contrrio, entretanto, permite-nos a dessacralizao do elevado, ou seja, o amor frustrado de Pedro e Ins em vida continua frustrado na eternidade mtica, devido ao relacionamento politicamente incorreto que Pedro I, o stimo rei de Portugal, exercitou em vida. Assim, a inscrio tumular, segundo consta proposta por ele At ao m do Mundo... , que remete continuidade da realizao amorosa de ambos na eternidade, no se realiza no alm, conforme Ins deixa patente nas falas que se seguem quela em que manda Pedro embora de sua ilha:
Em Afonso Madeira tu castraste o nosso amor. Ele era o mensageiro que te cantava as minhas trovas. Afonso deu-te na carne o amor que eu no podia, por estar morta (Rosa, 2006: 71); Mais do que vivo, tu foste a minha trgica viva. Tornaste-me um mito para alm do tempo. Reinar depois de morrer o complexo de Ins que tu criaste (...) isso no apaga a violncia que zeste ao Afonso. Foi como se a tivesses feito a mim tambm. (ibid.: 72)
Tambm Pedro convence-se de que o amor entre os dois no ser realizado na eternidade, quando arma que houve um tempo em que era eu a colocar Afonso entre mim e Ins. O tempo com ele roubava-me o tempo com ela. Hoje Ins que coloca Afonso entre ela e eu, a separar-nos nesta morte suspensa (ibid.: 72).
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4. guisa de concluso
Retomando a idia de que a pardia o nvel intertextual em que a refrao do paradigma mais acentuada, uma vez que, invertendo o modelo, chegaremos sua dessacralizao, poderamos armar que a pardia, ou seja, o canto contrrio, parricida, na medida em que, ao m e ao cabo, acaba por matar o pai, isto , o paradigma. Ao apresentar esse novo tringulo amoroso Pedro/Ins/Afonso Madeira , que inverte dessacralizadoramente o paradigma mtico, Nascimento Rosa coloca as personagens no psicodrama da Histria, na medida em que o teatro feito de confrontos (ibid.: 72). A chegada de Afonso IV cena corrobora metaforicamente a idia do parricdio, uma vez que, em primeiro lugar, o Rei e o escudeiro favorito de Pedro tm o mesmo nome e, conforme vm corroborar as falas das personagens, a castrao de Madeira, nada mais do que a castrao de Afonso IV, fruto do dio do lho desde sua mais tenra idade. Assim, para Madeira, vingaste-te [Pedro] de mim como se o castrasses a ele [Afonso IV]; para Ins, ele vingou-se do pai sobre o teu corpo; para Constana, Pedro queria mutilar os rgos do sexo que geraram metade do teu ser. Mas erraste o alvo. Afonso Madeira no era Afonso IV. Todas as intervenes acabam por ser conrmadas pela do prprio Afonso IV, quando aponta talvez elas tenham razo, meu lho. Transferiste para este desgraado o dio que por mim sentias (ibid.: 72). Esse dio que assola Afonso IV e Pedro I, na verdade, nada mais do que outra manifestao do infortnio que incide sobre a Dinastia Afonsina (ou de Borgonha), pelo menos desde D. Dinis. O dio que leva pais e lhos a atitudes descabidas, como por exemplo, a guerra civil travada entre o lho legtimo de D. Dinis, o futuro Afonso IV, e seu meio-irmo, Afonso Sanches, segundo consta o preferido do Rei. A interveno da Rainha Santa Isabel teria posto m ao litgio; porm, o texto de Nascimento Rosa, pela boca de Ins, insinua que Afonso IV teria envenenado Afonso Sanches: Este irmo que envenenaste... (ibid.: 68). Pedro tambm parece ter-se sentido sempre preterido em favor de sua irm Maria, a menina dos olhos do pai. Ressalta notar que Antnio Ferreira em sua Castro tambm trata da maldio que incide sobre a famlia, quando transforma Afonso IV na grande personagem da pea, ao apresent-lo diante de uma aporia, gerada pelo conito: matar Ins e ver-se odiado pelo lho versus no mat-la e infringir as Razes de Estado. Se retomarmos o complexo de Pedro, referido anteriormente, perceberemos que a castrao , em ltima instncia, uma forma de matar o pai, aquele que, alm de ser o progenitor, o responsvel efetivo pela determinao do sexo da criana gerada. Matar o pai implica tambm acabar com a violao consentida que todo pai exerceria sobre toda me. Reinstala-se o complexo de dipo j sugerido por um outro intertexto: Ins de Castro, de Gondim da Fonseca.
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Portanto, gostaramos de nalizar dizendo que O eunuco de Ins de Castro: teatro no pas dos Mortos, ao dialogar com o mito, busca sua dessacralizao, na medida em que, invertendo parodicamente o modelo, acaba por mat-lo, quem sabe, abrindo caminho para que outros intertextos dialoguem com um novo paradigma uma vez que, segundo Gilbert Durand, o mito o imaginrio em discurso, que se concretiza no ilusrio espao do faz-de-conta do teatro. Anal, como estamos no pas dos mortos, a pea termina, mais uma vez exercitando o jogo do faz-de-conta, que preside aristotelicamente encenao teatral. Ferno Lopes convida todas as almas que esto na ilha de Ins para representar Pedro, o cru, de Antnio Patrcio, com encenao de Gil Vicente, uma vez que no h nada melhor do que o teatro no pas dos mortos (ibid.: 72). E vamos ao teatro!7
Bibliograa
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Frase proferida insistentemente por Paulo Autran (*07/set./1922), grande ator brasileiro, falecido no dia 12 de outubro de 2007, quando esse texto estava sendo criado. Dedicamos a ele esse trabalho.
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Resumo: O presente ensaio intenta reexaminar o mito de Ins de Castro sob a ptica da intertextualidade, de modo a apontar os procedimentos que nos permitem armar que o Eunuco de Ins de Castro: teatro no Pas dos Mortos dialoga parodicamente com a Histria. Abstract: This essay attempts to re-examine the myth of Ins de Castro in the light of intertextuality, so as to point out the procedures that enable us to assert that O Eunuco de Ins de Castro: teatro no Pas dos Mortos enacts a parodic dialogue with History.
() Por isso ouvimos. que estamos prximos desse fervor que assiste ao novo nascimento de que os mortos surdem alegres. Maliciosos. Vivem. Fernando Echevarra () Entre ns e as palavras, os emparedados e entre ns e as palavras, o nosso dever falar. Mrio Cesariny
Palavras-chave: Celestino Gomes, Coimbra, revista, universidade, tradio acadmica, nalistas de Medicina, professores catedrticos. Keywords: Celestino Gomes, Coimbra, theatre play, university, academic tradition, senior Medical students, professors.
1. Na extensa produo literria de Joo Carlos Celestino Pereira Gomes (lhavo, 1899 Lisboa, 1960), o teatro ocupa uma parcela notoriamente minoritria, muito embora o interesse e o gosto pela arte da representao se tenham manifestado em idade precoce. A comprovar essa faceta do seu multiforme talento artstico, evocamos o testemunho de um amigo de longa data, tambm natural de lhavo: Em variados espectculos que uma companhia infantil realizou, ele era o director artstico e a vedeta principal. Nesses saraus recitava O Melro, de Junqueiro, e outros poemas e tinha um repertrio de canonetas (gnero de teatro muito em voga, h 50 anos) que punham a plateia, sempre interessada em ver os grandes artistas, em constante gargalhada. () J de pequeno, em coisas de arte, era de uma meticulosidade impressionante1.
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O emocionado e cativante testemunho do professor Guilhermino Ramalheira prossegue, desando muitas outras qualidades (e impertinncias!) artsticas que o seu amigo exibia, entre elas, a sua memria verdadeiramente prodigiosa, que lhe permitia decorar, com grande facilidade, poemas enormes e, quando a
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A comprov-lo, ainda, a criao da pea In Hoc Signo, que foi representada pelo prprio e por mais dois amigos de lhavo, na sala de teatro da Vista-Alegre, decorria o ano de 1914; o jovem Joo Carlos era, ento, aluno do Liceu de Aveiro. S muito mais tarde, no ano de 1927, se assinala o regresso cena de um texto da sua autoria. o ano da concluso do curso de Medicina, em Coimbra, e, nos dias 29 e 30 de Maio, no Teatro Avenida, ouvir-se-o os entusisticos aplausos de colegas, de professores, da academia coimbr, aquando da representao da revista de despedida dos quintanistas de Medicina, Fitas Doiradas Iluses Doiradas. Logo no ano seguinte, em 1928, os seus predicados no domnio das artes performativas so conrmados, agora como ensaiador de um grupo de estudantes liceais de Coimbra (do 7. ano), que, integrados numa visita de estudo e acompanhados por professores, vo actuar s Caldas da Rainha e cujo sucesso faz eco na imprensa local, que assim reconhece o talento do recm-formado mdico2. Conquanto apenas dois ttulos zessem parte da obra publicada, os projectos de edio de textos dramticos acompanharam Celestino Gomes ao longo dos anos 30 e 40, como facilmente denunciam as indicaes de obras a publicar, sob a designao A Seguir. Deste modo, era inteno do autor dar estampa o indito In hoc signo quadro dramtico em verso (1924), ttulo que remete para o texto escrito e representado quando tinha 15 anos, provavelmente revisto, agora, pela sua mo adulta. Durante nove anos (entre 1934 e 1943), surge sistematicamente a referncia ao projecto Sror Leonor e Mais Teatro, cujos textos a incluir so enunciados uma nica vez, em 1934: Sror Leonor e Mais Teatro (In Hoc Signo, Noite de Agoiro, Tormenta, Mquina). Contudo, nenhum destes ttulos chegaria a ser publicado. De referir ainda, comprovando o apreo pelo texto dramtico, os dois poemas intitulados E fora assim ao sol-posto e Sereia (que integram o volume Sinfonia Muito Incompleta, de 1958), pelo facto de apresentarem uma estrutura muito prxima deste modo literrio, devido, por um lado, indicao do nome da personagem que enuncia a fala, por outro, s passagens em prosa potica em tudo semelhantes a didasclias, introduzindo e entrecortando o texto dialogal versicado, notando a progresso temporal e o estado de alma dos interlocutores.
companhia teatral infantil de que fazia parte ensaiava uma pea nova, sabia sempre o seu papel na ponta da lngua e sabia tambm os dos outros, para os ajudar no caso de uma falha. Nunca o vi em embaraos a recitar versos seus ou doutros poetas, porque a sua memria era uma mquina perfeita que no falhava (Ramalheira, 1962: 53-54).
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Os rapazes do 7. ano representaram duas comdias: Educao inglesa e O grande inventor. Joo Carlos ensaiara-os e recitou duas poesias suas, uma das quais futurista, que agradaram, como disse o cronista da Gazeta das Caldas (). Eis um trao da psicologia de Joo Carlos: vivo, azougado, falador, mas, apesar de se tratar de uma festa, e de rapazes de Coimbra a quem tudo se desculparia, Joo Carlos estava ali como ensaiador, como responsvel pela disciplina, e tomava a srio, como a tudo em que se meteu pela vida fora, as prprias brincadeiras (Correia, 1962: 34-35).
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Num registo distinto do literrio, Celestino Gomes tambm veio a associar brilhantemente a sua arte como desenhador a trs textos dramticos, para os quais elaborou um grande nmero de ilustraes a tinta-da-china, alusivas tanto a personagens como aco dramtica. Referimo-nos ao Auto dos Pastores para se apresentar nas Matinas de Natal (1926) e ao Auto da Pastora Perdida e da Velha Gaiteira (1944), de Joo Maria de Santiago Prezado, bem como ao Auto Chamado Farsa dos Fsicos de Gil Vicente (1946), que inclui um estudo do seu antigo professor da Faculdade de Medicina de Coimbra, Doutor Alberto Moreira da Rocha Brito. Detenhamo-nos por breves momentos na dcada de 20, que corresponde ao perodo de formao acadmica de Celestino Gomes, cuja concluso seria ditada pelo sucesso no exame de Anatomia e iluminada pelas luzes da ribalta. Efectivamente, este perodo distingue-se por marcar o incio da sua profcua e dinmica actividade tanto ao nvel da criao literria (sobretudo do conto e da novela), como na colaborao em peridicos e em variadas iniciativas de feio cultural ou editorial. Aps a realizao dos estudos preparatrios mdicos na cidade do Porto, entre 1918 e 1921, em Coimbra que vai prosseguir e terminar o curso de Medicina. Na Invicta, durante o perodo inicial de formao acadmica, confessa ter obtido maior aproveitamento emocional que prossional, em virtude das tertlias literrias em que participava e do permanente convvio com pintores, escritores e pensadores de renome3. O amigo Cndido Craveiro testemunha-o: Estudar medicina? Perd-lo e achlo era muito menos na Escola Mdica do que nos cafs, de gorra com intelectuais, gente das letras, poetas, jornalistas e quejandos, ou a laurear por ocinas de pintores e escultores. O que ele anal veio tirar foi um curso de esttica. Ele mesmo diria mais tarde: Fez-se no Porto a minha educao esttica. (Craveiro, 1962: 61-62), reconhecendo o prprio Celestino Gomes que No se pode dizer que perdesse o meu tempo. Em 1920, publica o seu primeiro ttulo de teatro, Sror Leonor. (Quadro dramtico em verso), sendo o segundo e ltimo a revista de despedida dos quintanistas do seu curso. Nesse mesmo ano, funda o jornal Beira-Mar, Semanario noticioso, de interesses locaes, do qual director durante seis anos; importa salientar que a concepo grca do peridico, inmeros textos (jornalsticos e literrios) e quase todas as ilustraes so, nesse perodo, da sua autoria. Entretanto, publica novelas, contos e um volume de poesia. Em 1926, novo apelo dos conterrneos chega a Joo Carlos, que convidado a assumir o honroso cargo de Organizador do Museu Regional de lhavo e, consequentemente, de seu Director4, cargo que manter at 1933.
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Mencionemos, a ttulo exemplicativo, Leonardo Coimbra, Hernni Cidade, Teixeira Rego, Aaro de Lacerda, Teixeira de Pascoaes, Visconde de Vila Moura, os pintores Eduardo Malta, Joaquim Lopes, Eduardo Viana, Joo Peralta.
Carta de Diniz Gomes ao Dr. Celestino Gomes, 15 de Outubro de 1926 (Arquivo do Museu Martimo de lhavo). Alm de Presidente da Comisso Organizadora do Museu Regional de lhavo, Diniz Gomes era
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O trabalho intelectual e a produo artstica, a que continuou a dar largas no seu quarto em Celas, incluiriam a interveno no Movimento de Arte Modernista em Coimbra, corria o ano de 1925, movimento este que arranha a Senhora Pasmaceira de Coimbra (Rgio, 1994: 9), protagonizado por Antnio de Navarro, Abel Almada, Jos Rgio, Alberto de Serpa, Mrio Coutinho e Celestino Gomes, que redige o textomanifesto de, Da Arte-Toda, assinado com o pseudnimo de Pereira So-Pedro (PINTOR)5; projectava-se tambm, entre Ex-libris da Biblioteca outras, uma conferncia sobre pintura moderna da autoria do Municipal de Coimbra (1925) jovem ilhavense, reconhecido pelos seus pares como pintor, gravador, poeta, novelista (Ibid.: 10). Igualmente dos seus tempos de estudantes a criao dos ex-libris da Biblioteca Municipal de Coimbra e do Orfeo Acadmico de Coimbra, em 1925 e 1927, respectivamente6 (Madahil, 1962: 201). Por essa ocasio, inaugura uma exposio individual naquela Biblioteca7, sendo ainda gura actuante no I Salo de Arte dos Estudantes de Coimbra. O empenho na divulgao da sua pintura manifesta-se em exposies individuais, reectindo uma constante e intensa produo artstica, conscientemente orientada. Se, por um lado, evidente a esteira de admirao com que marcou camaradas e professores, por outro, a cidade universitria e o ambiente acadmico haveriam de deixar profunda e duradoura impresso na alma de Celestino Gomes, sendo motivo de frequente e saudosa venerao. Poderemos fazer uma breve aproximao a alguns factos que o comprovam. O estudo A Fisionomia da Morte, concludo em 1927, mas somente apresentado em conferncia em 1931, dedicado a mdicos-artistas, mestres ilustres e bons amigos
tambm Presidente da Cmara Municipal da vila, e nessa qualidade que subscreve a carta. Na missiva, no deixa de justicar o convite ocial, evidenciando o alto, puro e acendrado amor do futuro mdico pela sua terra natal, a par da preparao cientica, uma cultura artstica e literria pouco vulgares, que, de h muito, lhe marcaram um lugar de destaque entre a moderna gerao intelectual portuguesa. Deste modo, a consecuo do projecto do Museu Regional exigia, e sem delongas, toda a beleza da sua Arte e elevao do seu talento (Garrido e Lebre, 2007: 201).
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Neste nome artstico, recupera o apelido de famlia da sua me, Maria da Apresentao So-Pedro. Da sua autoria ser tambm, em 1955, a ilustrao da capa do catlogo alusivo s comemoraes das Bodas de Diamante deste Orfeo. Na edio de 4 de Abril do jornal conimbricense O Despertar (Ano IX, 820, 2), no artigo de apreciao crtica intitulado Celestino Gomes e a sua exposio, pode ler-se: Joo Carlos, gravador e pintor, e Celestino Gomes, poeta, prosador e jornalista, so uma s pessoa, que expe os seus trabalhos na vitrine da Biblioteca Municipal. () As exposies como a de Celestino Gomes tm o alto m de educar a sensibilidade e o gosto do povo. Cumpre incitar estes pioneiros da Arte para que no futuro Coimbra possa orgulhar-se do seu desenvolvimento artistico.
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(Gomes, 1932: 5) da Universidade de Coimbra, os Professores Doutores Feliciano Guimares, Henrique de Vilhena, A. Rocha Brito e Maximino Correia. Reiterando o seu apreo e admirao por estes trs ltimos, e acrescentando o nome de Antnio Gomes, redige a crnica QuaUma das ilustraes da colectnea tro Retratos de Coimbra, inserida no volume Trovas de Coimbra. Quadras da Tradio da Jornadas de Borda-de-gua, de 1954. So tamSaudade e do Amor (1931). bm da sua autoria algumas dezenas de desenhos, que materializam inmeras paisagens, lugares, tradies e guras tpicas da Lusa Atenas, ilustrando profusamente as Trovas de Coimbra. Quadras da Tradio da Saudade e do Amor, compiladas por A. Gonalves Cunha. Nos anos subsequentes, outros eventos daro voz saudosa homenagem a Coimbra das capas e batinas, reunindo antigos colegas em confraternizao frequente. Com efeito, em Maro de 1939, juntamente com Afonso Lopes Vieira, Celestino Gomes organiza o ciclo da Quinzena de Coimbra em Lisboa, na qual apresenta a conferncia signicativamente intitulada Coimbra, fonte de amores, texto que insere no volume de crnicas Fonte de Amores (1940)8. Data tambm de 1939 a colectnea Poetas de Coimbra, editada pela comisso Organizadora do Salo dos Estudantes de Coimbra, em Lisboa. Sempre presente nas reunies do seu curso, onde disfrutava a amizade e o apreo de todos os condiscpulos, em 1957, de novo protagonista nas comemoraes do 30. Ano da Formatura do Curso Mdico de 1921-27. A brochura celebrativa dessa Reunio inclui os sonetos da sua autoria Soneto da saudade (aos nossos vivos) e Soneto da lembrana (aos nossos mortos), sendo igualmente publicada a sua Carta para Coimbra, carta-poema apresentada sob a forma de quinze quintilhas, de intenso cunho afectivo, em que relembra trinta e seis colegas de curso. 2. O artista um demiurgo, e Joo Carlos Celestino Gomes conseguiu s-lo em plenitude, dado que a sua obra revela um criador verstil e completo, capaz de dominar com mestria os diferentes meios de expresso artstica colocados disposio do Homem.
Na noite de 13 de Maro, a conferncia de Celestino Gomes antecedida pelas palavras do Professor Doutor Maximino Correia, que presidiu sesso ladeado pelo Marqus de Roriz e Coronel Pina Lopes, as quais so transcritas com o ttulo de Marginlia, aqui arquivadas como prova da bondade do corao do insigne Professor e o melhor ttulo de honra para o autor dste livro. Destacamos a passagem seguinte: O Dr. Joo Carlos Celestino Gomes deixou Coimbra h uma dzia de anos. Mas porque como estudante foi superior aos outros e j o seu nome era conhecido pelas cintilaes mltiplas do seu delicado esprito, a ela cou prso, nas recordaes sadosas do seu mgico encantamento. () Meu caro Joo Carlos, fale, fale-nos de Coimbra (Gomes, 1940: 113-115).
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na dcada de 20 que assistimos, portanto, maturao deste indiscutvel e multmodo talento criador, dissecado com acuidade pelas palavras de Severo Portela, na breve recenso crtica a Luar de Lgrimas: () Celestino Gomes merece que o tratemos de Miguel Angelosinho, tamanha a devoo com que alternadamente, compe prosa; verseja a redondilha maior e menor; pinta a oleo; craiona; mancha aguarela; esculpe a madeira e o marm; debucha; xilografo e miniaturista; oleiro; vidraceiro, esmaltador. () Desde h trs anos que eu, na Beira-Mar (), rastreio a poliformia estetica de Celestino Gomes (Gomes, 1925: 88). Em Coimbra, sem tempo para a bomia, se bem que mantendo uma alegria e verbosidade exuberantes, convivendo com muitos amigos, encantados com a sua inteligncia, o seu esprito e a sua vibratilidade, leal e generosa (Correia, 1962: 42), enfrenta mais um desao no nal da formatura, que ir pr prova as suas adormecidas qualidades de dramaturgo: unanimemente incumbido pelos colegas de criar a revista de despedida dos quintanistas de Medicina, num momento em que j o seu nome adquirira crdito forte como artista, como poeta e como prosador. Com tais qualidades, estava naturalmente indicado para escrever a pea da rcita do seu quinto ano (Salgueiro, 1962: 14). Teatro para um grupo minoritrio, circunscrito s mundividncias da academia de Medicina coimbr, teatro de e para amadores, teatro mnimo porque tambm circunscrito a duas nicas representaes, a pea que ora relembramos fez parte integrante dos festejos com que se celebrou a Queima das Fitas de 1927 e, especicamente, a concluso do percurso escolar dos quintanistas de Medicina desse ano lectivo de 192619279. Original de Joo Carlos Celestino Gomes, a revista em dois actos e seis quadros Fitas Doiradas Iluses Doiradas subiu ao palco do Teatro Avenida nos dias 29 e 30
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Os festejos desses dias so ansiosamente antecipados na rubrica De Coimbra do jornal ilhavense BeiraMar, pelo correspondente Manuel da Graa. Na edio do dia 15 de Maio, escrevia: Vo acelarados os preparativos para a estrondosa Queima das Fitas que este ano promete exceder todo o tradicional e miraculoso encanto dos anos anteriores. 70 grosas de foguetes, 7 zabumbas de gaitas de foles e 25 carros! Vinte e sete de Maio! Vinte e sete de Maio! data gloriosa em que ns, perdendo no Largo da Feira, ao fumo que se eleva os desgastados distintivos de caloiro penetramos na mui arriscada e duvidosa categoria canina de semi. () A vetusta e herldica Faculdade de Medecina, aquela que sempre manda, ir mis uma vez ser a melhor de todas! Ao que consta, o livro destes doutores vai apresentar-se magnco. Abre-o uma Viso de Oferenda assinada pelo nosso ilustre patrcio e poeta Vaz Craveiro, garantia segura do seu sucesso. Fecha-o ainda o mesmo doutor com o Novlo do Tempo magnca e rica composio de despedida, que j anda na boca dos doutores, que foram caricaturados expressamente pelo lapis mgico de Amarelhe. No quinto ano mdico h a pea escrita por Celestino Gomes, outro nome que marca originalidade e bom exito. E assim este ano, a nossa terra mostra-se bem conhecida atravz destes dois nomes que a nobilitam. A edio do dia 5 de Junho inclui a descrio circunstanciada do grande dia, na qual Manuel da Graa faz referncia, mais uma vez, presena dos quartanistas da hieraldica e famosa Faculdade de Medicina que, por grande honra de que s ela merecedora, fecha o cortejo, que, como os seus sonetos, tinha de fechar com chave de oiro, como doiradas so as tas, as rosas que engalanam
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de Maio de 1927. O libreto apresenta uma verso reduzida do texto (com 25 pginas), datando de Agosto desse ano a publicao da verso integral (61 pginas), acrescida das dezasseis composies musicais da autoria de D. Jos Pais dAlmeida e Silva (com pginas numeradas de 1 a 16, encerrando-se o pentagrama com a referncia Joo Carlos copiou MCMXXVjj. Coimbra. Julho). O presente estudo tem como base esta edio de Agosto de 1927, cuja capa igualmente da autoria de Celestino Gomes, com um desenho a duas cores que destaca trs dos principais motivos da tradio acadmica coimbr, antecedido pelo ttulo e pelo nome do autor, concebidos com a sua prpria graa, e separados por um friso estilizado e ziguezague, interrompido a meio pela estrela de cinco pontas, smbolo salomnico recorrente na obra plstica do artista e base do seu ex-libris. O ttulo por que optou Fitas DoiradasIluses Doiradas concilia as tradicionais tas das pastas dos escolares com o identitrio amarelo do curso de Medicina, frequentemente referenciado como doirado. Reiterando a expressiva duplicao das reticncias, denuncia ainda a ilusria perspectiva de vida dos jovens acadmicos, os tempos de descontrado estudo, de innita bomia, de camaradagem e de permanentes amores, marcados por uma certa ingenuidade, vivncias metaforicamente doiradas, Idade do Ouro que as vicissitudes do exerccio da prosso e da vida adulta acabam por condenar a uma permanente e entranhada nostalgia. A encenao da pea cou a cargo do Doutor Alfredo Matos Chaves, sendo a decorao da responsabilidade dos quintanistas Joo Carlos Celestino Gomes e Manuel Guimares Serdio. Contudo, no ser despiciendo acreditar que o gnio criador de Celestino Gomes tenha contribudo de forma efectiva para os trabalhos de direco de actores ou mesmo de desenho dos gurinos. O extensssimo elenco de noventa e oito Figuras10 antecipa uma representao animada, com permanentes entradas e sadas de personagens individuais e grupais (destas ltimas so exemplo, entre outras, o coro dos brasileiros, dos medicamentos e dos quintanistas). Por conseguinte, os cinquenta rapazes do 5. ano11 acumulam a
os carros, como doirada a alegria de muitos que num sorriso s damas acenam as pastas em adeus (Graa, 1927: 3).
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No libreto, a apresentao das personagens e actores difere ligeiramente, pelo facto de se especicar o papel de compre de Felizardo Costa Direito e de reduzir substancialmente o elenco. Na revista portuguesa, o compre o actor que intervm na transio entre os vrios quadros, estabelecendo assim a ligao entre eles, normalmente atravs de interveno marcada pelo humor.
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As duas alunas referidas no livro de ponto dos quintanistas de Medicina Maria Gabriela Costa de Mendona e Zulmira Augusta Trigo Barreiros no intervm na representao da pea. Na verdade, s na rcita de 1949-50 entram as estudantes, j que, at ento, os papis femininos eram representados em travesti, alguns dos quais notveis (Torgal, 2003: 78). O autor menciona alguns ttulos e autores das rcitas de despedida, que animaram Coimbra na primeira metade do Sculo XX. Sobre esta tradio acadmica, Vide A. Carneiro da Silva (1955). As Rcitas do V Ano. Coimbra: Coimbra Editora.
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representao de trs ou quatro personagens. No caso do autor, -lhe destinada a interpretao dos papis de Capa e Batina, Manduca, 6. Fita Estreita e de Manel; atravs deste ltimo, Celestino Gomes teve a oportunidade de, por momentos, ser aplaudido enquanto cantor. Ao longo dos dois actos, guras humanas que povoam e identicam a cidade universitria (a tricana, o estudante, a lavadeira, o orador ocial, o quintanista, a enfermeira, o bedel, o porteiro, ) iro contracenar com alegorias personicadas de outros tantos aspectos identitrios da Coimbra de ontem e de hoje (a Capa e Batina, a Tradio, a prpria Universidade, a Fora Viva da cidade, o Astria, as Fitas Estreitas, as Fitas Largas e a Alma Acadmica, a nalizar a pea), s quais se juntam as alegorias que individualizam o curso (a Neurogenina, a Tricotina, o Calicida, o Glicerofosfato, Neige e Brilhantina, enm, o coro dos medicamentos, que intervm na cena 2 do Quadro VI)12. No amplo elenco de personagens, somente quatro apresentam nome prprio: o caso de Felizardo Costa Direito, gura omnipresente nos dois actos, de Carna-Bom Jnior, que abandona a cena logo no nal do Quadro I, e do fsico egpcio Serapio, personagem principal que faz a sua entrada na cena 2 do Quadro II; por ltimo, o Manel, um rude campons que, na cena nal, vem ao Hospital de Coimbra visitar o compadre J da Quitria que est no hospitale com um maljinho ruim (Gomes, 1927: 58). No que diz respeito estrutura externa, a revista apresenta-se dividida em trs partes, um breve Prlogo, o 1. Acto e o 2. Acto, correspondendo ao primeiro trs quadros formados por dezoito cenas, e ao segundo, os outros trs quadros, num total de doze cenas. A aco dramtica das sete cenas iniciais decorre num hipogeu do antigo Egipto, onde acabara de ser anunciada a descoberta de uma importante relquia arqueolgica; aqui, o enredo ccionado coloca alguns membros do corpo de alunos da Faculdade de Medicina e da prpria cidade de Coimbra. A partir do Quadro II, a aco situa-se na Lusa Atenas, permitindo as didasclias uma localizao detalhada: o Largo Miguel Bombarda, um local no especicado de onde se obtm uma vista geral de Coimbra, e a entrada do Hospital da Universidade; no Quadro V, alternadamente, a Rua de Sub-Ripas e a Torre de Anto, com o Arco ao fundo; no Quadro VI, o cenrio o alto da Avenida S da Bandeira. Ao fundo a Praa da Repblica. E. a Farmcia Pinto dAlmeida (ibid.: 54). O prlogo constitui uma didasclia com informaes alusivas ao cenrio e localizao da aco dramtica num templo funerrio do antigo Egipto. O texto inicia-se com
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Sem dvida que estamos na presena de muitos aspectos caractersticos da revista portuguesa, o que denuncia a principal inspirao que esteve na origem do texto criado por Celestino Gomes. Como na folha de rosto exibe o subttulo Revista em 2 actos e 6 quadros, de imediato a identicamos com este gnero teatral. Para alm da extensa tbua de personagens, da crtica s instituies e aos seus representantes, comungam do humor por vezes malicioso da stira mordaz, de falas versicadas, cantadas e musicadas.
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a apresentao pormenorizada de um quadro que explicita o ambiente que antecede a entrada em cena das personagens: um grupo de gurantes forma um cortejo funerrio com sacerdotes, carpideiras, escravos e escravas com oferendas, perfumistas, tocadores de ctara, bailadeiras danando a dana da morte (ibid.: 11), rituais que preparam a colocao em cena de uma mmia. Deste modo, cruzam-se dois distintos momentos da Histria da Medicina: o passado remoto, representado na recm-descoberta mmia de Serapio Rank-Tank-Ankh, nome parodiado do sbio mdico de um fara Sesstris 35,5 que Deus haja13, e o presente, representado por Felizardo Costa Direito. A descoberta da mmia deve-se ao trabalho arqueolgico da personagem Carna-Bom Jnior14, que conseguira a proeza de subir os degraus da glria, descendo s profundezas dos sculos passados (ibid.: 11). chegado o momento de divulgar a faanha s naes mais importantes, pelo que entram em cena o Dr. Boche (Alemanha), Dr. Japo e Mr. de France. No momento em que se ouve uma inesperada manifestao, no exterior, entra em cena um indivduo trajando capa e batina gastas, sapatos de cr, gravata de cr, sweater, colarinho mole. Parece ter forado a entrada, ajudado pelos colegas em ruidoso convvio, responsveis pelo alarido e pelos tiros que se ouviam, denunciando o comportamento arruaceiro e a estrdia dos acadmicos. O estudante de Medicina, da rua da Matemtica, representante da Academia coimbr viajara para o Egipto e reclama a mmia para ser estudada, isto , ressuscitada, pelo trabalho da avanada cincia mdica desenvolvida em Coimbra, embora os outros trs pases reivindiquem o achado arqueolgico, para o estudar luz da qumica, da electricidade e da arqueologia, as trs cincias que representam. Carna-Bom Jnior pretende operar o milagre de dar vida mmia e assim reconstituir ao mundo a sua histria. Contudo, no ser o mrito da investigao cientca a ditar este desfecho (J vem, senhores, que a scincia falvel.), mas sim a fabulosa Alma Acadmica. Perante o olhar atnito de Carna-Bom Jnior deslam a Capa e Batina, a Tradio, o Roteiro e o Coro dos Brasileiros, levando-o a armar que S agora compreendo a beleza de que vos revestis e, no nal, a decidir em favor das pretenses de Felizardo, quando diz: Sinto-me apaixonado pela tua terra. Pois bem, amigo leva o Serapio. (trocam apertos de mo) (ibid.: 22). Serapio vai fazer, assim, uma fabulosa viagem no tempo, quando, em Coimbra, os estudos mdicos, satiricamente distanciados de qualquer metodologia cientca, mas atravs de um processo que mais parece mezinha caseira, conseguem ressuscitar a mmia egpcia: Venho modos dos ossos! Bonito mtodo teraputico, no haja dvida.
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De novo detectamos a criao satrica do autor, alusiva ao nome do fara Sesstris (nome grego de Senuseret) que, por volta do ano 3000 a.C., criou os nmeros fraccionrios. Assim parece justicar-se a pardia do numeral 35,5.
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A personagem criada por Celestino Gomes ter eventualmente origem na denominao do antigo povo dos Carnas, que habitava alm da Lagoa Metida (mar de Azov), na regio da Crimeia.
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Se pega a moda do xarope de marmeleiro, pelo menos muito ter a perder a preguia nacional (ibid.: 26). A criatura fantstica ergue-se dos conns dos milnios antes de Cristo, o mdico v-se reectido no espelho, por um processo de entrecruzamento de tempos que parece inspirado nas narrativas de co cientca. Neste texto, a variedade de modos de expresso e a adopo de tcnicas de projeco em cena contribuem para a eccia de uma representao animada, exuberante e cativante. De facto, o autor ofereceu aos espectadores uma revista que concilia a dana, a msica, o dilogo em prosa, o recitativo e o canto versicados e musicados, a recitao, uma simulao de pugilato e a projeco de texto. A obrigatria balada de despedida no conclui a representao nem esta se inicia com o hino acadmico, como era comum (Torgal, 2003: 78). Celestino Gomes optou por evocar esse hino no nal da pea e por integrar a sua Balada de Despedida no nal do 1. Acto, Quadro III, na voz da personagem Um Quintanista, acompanhada pelo Coro dos Quintanistas, que cantam nove plangentes e atormentadas quadras, expresso viva da saudade antecipada pelos jovens recm-formados que vo deixar Coimbra, reiterando a expressividade da adjectivao do ttulo: Pastas doiradas, que mos de bilros/ nos estreitaram ao corao ()// Iluses mortas, ontem sonhadas,/ vo-nos nos olhos a soluar/ tas doiradas flhas doiradas,/ l vem o Outono que as vai levar (Gomes, 1927: 35-36). Por sua vez, o Quadro V exemplica uma das vivncias tradicionais da bomia nocturna, a serenata, o nosso fado, que Felizardo defende com orgulhoso esprito bairrista: s nosso, digam o que disserem. Hilrio era nosso; o desventurado bomio que primeiro fez orir em fado a alma coimbr, era quintanista de Medicina quando morreu Antnio Menano, o que construiu um altar admirativo em cada corao, foi quintanista de Medicina. ste orgulho legtimo (ibid.: 53). Ao nvel discursivo, o autor cria efeitos de cmico de linguagem a partir da acumulao de trocadilhos e da polissemia dos nomes, com especial incidncia nos nomes prprios dos professores catedrticos, enquanto que o cmico de situao conseguido pela criao do equvoco. A ttulo exemplicativo:
Mr. Boche: Todo este empreendimento est debaixo do pagamento dos Bancos!... Felizardo: boa! Pois ns tambm viemos debaixo dos bancos da carruagem por causa do pagamento e desde a Luza Cidade Mr. de France: Cidade da Luz cest Paris Felizardo: Luza, Coimbra. Que a respeito da luz, olha l sse candeeiro!... () Universidade: Com seus ares catedrticos/ entram os lentes na sala./ Fazem, em volta uma orla/ de aspecto grave, sisudo,/ e mesmo vindo de borla,/ a gente que paga tudo! (ibid.: 13, 25)
Os apelidos de Felizardo Costa Direito efectivam a primeira aluso explcita a uma circunstncia da poltica nacional, quando a personagem esclarece: Perdo, Costa Direito. Perteno grande famlia dos de Costas direitas, mas no sou nada ao
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Afonso (ibid.: 13). Aps a fracassada rebelio de 3 de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, Afonso Costa integra o grupo de dissidentes que se refugiara no estrangeiro, constituindo a Liga de Defesa da Repblica/ Liga de Paris (Faria, 2000: 27, 120-127). Por conseguinte, a fala da personagem presentica a oposio ao governo. Tendo em conta os acontecimentos do 28 de Maio de 1926, o trocadilho adequar-se-ia tambm ao General Gomes da Costa, o que autor parece ter evitado, substituindo-o por uma outra aluso explcita Ditadura Militar:
Roteiro: () Quanto rua do Govrno Felizardo: Do Govrno? No conheo nenhuma rua com sse nome. Roteiro: Dos Militares Felizardo: Os Militares s se fr para o Pinhal de Marrocos. Roteiro: No senhor: para o Museu. (Gomes, 1927: 20)
Em termos globais, a retrica antigovernamental apresenta-se diluda, pelo que os alvos de mais acerbada stira e pardia so as tradies acadmicas, os tiques identicativos dos lentes e as vivncias comuns dos estudantes de Medicina, que no escapam a um saudvel riso castigador. Neste contexto, a mmia Serapio simboliza o estado decrpito e a fragilidade da Faculdade de Medicina, e, numa perspectiva abrangente, da instituio e do ensino universitrios. Nas primeiras cenas, vamos encontrar os elementos identitrios de Coimbra, ancorados nas guras alegricas. Ao recitativo da Capa e Batina, misto de luto e de sonho juvenil, segue-se a interveno da velhinha Tradio, que anda para a a cair de podre () muito remendada e de cora partida, lamentando-se por estar carregada de enxaquecas com os anos e com os pontaps. Ou isto nervoso e corao aito. Ainda cuidei que fosse dos intestinos sujos e tomei a limonada ctrica (ibid.: 17). Carna-Bom Jnior ca a conhecer o novo Roteiro ilustrado de Coimbra, que lhe fala do Choupal, do parque, das ruas, de monumentos. Enquanto que um edifcio emblemtico da cidade, o hotel Astria, desla no palco a cantar, enunciando os seus atractivos, as Tricanas e as Lavadeiras do voz aos encantos da presena feminina. Uma Tricana lamenta o manifesto desinteresse dos estudantes, que as encaram como guras de uma tradio que, inevitavelmente, cristalizar: Do corao do estudante, agora, s a tricana ocupa dois instantes, e ainda sses mesmos nos so disputados. O primeiro quando chegam, olhos em fogo, coraes ardentes, para nos dizerem desejo-te. O ltimo quando partem, olhos chorosos, coraes partidos, para nos dizerem: adeus! (ibid.: 35). A chegada de Serapio objecto de homenagem e de discurso por parte da Universidade e da Cmara. Posteriormente, ir conhecer as incoerentes Fora Viva e Viva Fora da cidade, bem como a Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra. Pergunta o egpcio o que fazem os elementos desta ltima, repetindo-se ento a resposta que veicula a denncia da sua inoperncia, pela nfase do pronome indenido: E eu
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nada! () E eu nada. () Nadssima, nada () Metade, ainda nada. E o resto, nem nada! (ibid.: 25-28). 3. No que diz respeito academia, Celestino Gomes disseca a Faculdade de Medicina, nomeadamente os professores catedrticos que formam o corpo docente, conciliando a argcia A sbia confraria dos lentes de Medicina, do seu olhar com o humor que consegue impridesenho de Joo Carlos (1927) mir aos dilogos das personagens. Os lentes so referidos ou pelo primeiro nome ou pelo apelido, prescindindo as personagens do tratamento formal acadmico, empregando com frequncia o determinante artigo denido (o Rocha Brito, o Viegas, o Egdio, o Serras e Silva, o Bacalhau, ), o vocativo Pinto e o popularizante ti, o ti Adelino. Ressaltam as aluses de sentido burlesco, com garantidos efeitos de cmico junto dos espectadores, pela viso trivial com que os lentes so apresentados, bem como as suas prticas clnicas. O dueto Felizardo/ Tradio inicia o abundante processo caricatural:
Ambos: Tambm o Marques dos Santos fez o Instituto Anti-Rbico e ps a Coimbra em Flr. () Felizardo: () o Morais Sarmento por causa do suco gstrico pe a gente numa papa. () Tradio: () temos agora o Viegas Com barbas de piassaba. () Raposo de Magalhes tambm j foi mestre aqui e era um bom cirurgio Felizardo: E o doutor Angelo, agora, despacha quarenta hora; s pr-lhe um bisturi mais uma pina na mo.15 (ibid.: 18-19)
Motivo recorrente o receiturio do Dr. Morais Sarmento, que at cura a pneumonia com injeces hipodrmicas de gua de Vidago, fonte nmero um!. Alis, no
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O autor refere-se aos professores catedrticos Joo Marques dos Santos, Antnio Lus de Morais Sarmento, Lus dos Santos Viegas, Joo Emlio Raposo de Magalhes e ngelo Rodrigues da Fonseca. (Gomes, 1990: 450-451)
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processo caricatural inscreve-se a enumerao as ptoses, as lceras, as constipaes, o mixedema, o brightismo, todos os sintomas que estudamos na patologia interna desde o nosso primeiro dia de aulas, tudo se cura com gua de Vidago! (ibid.: 43). De seguida, no recitativo da Universidade, o jogo de palavras e a metfora denunciam as diculdades por que passava a instituio, na aluso ao reitor Domingos Fezas Vital, docente da Faculdade de Direito, que ocupa o cargo entre 1927 e 1930, sucedendo a Fernando de Almeida Ribeiro (Torgal, 1990: 99): Em Direito, nos gerais,/ dizem-se muitas cruezas./ Mas que posso eu fazer mais?/ Bebo o clix t s fesas/ vitais Outros lentes so implicados nos versos:
Universidade: () Por mais que deitem os clsios o hospital leva os lampos: dum lado os campos elsios do outro o Vieira de Campos tudo gente sem igual, e, pra ajudar seus donaires, uma Rocha e um bueno-Aires (que Egdio, por sinal). (Gomes, 1927: 27)
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Felizardo ainda questiona Porque que o Afonso Pinto/ que um homem de saber / caplo e borla no mama?, respondendo a Universidade com desdem e com um provrbio de feio metafrica: Onde esto galos de fama/ que vem Pintos c fazer?17. O nome do director da Faculdade de Medicina, Dr. Joo Serras e Silva, surge associado cadeira de Higiene, enquanto que Bissaya Barreto est sujeito a um caricato banquete de homenagem, com um azeitinho de oliveira a assistir, que identica o Dr. Joo Duarte de Oliveira ou, eventualmente, Antnio de Oliveira Salazar. Felizardo aproveita o sentido conotativo da palavra ta, no Quadro IV, a partir da referncia que a 3. Enfermeira faz sesso de Cinema do Hospital, para apontar o dedo aos professores Sobral Cid e Geraldino Brites: Sim senhor. Aqui mesmo tudo so tas. um belo estojo, vai ver. Cinema: Fitas, tas tudo so tas. A prpria Faculdade uma ta. Os lentes so sries Os gracejos prosseguem, zombeteiros, indiciando as relaes entre os professores:
Cinema: () o Cupertino Pessoa a parte gaga. O Bacalhau a parte particular. Felizardo: J o Svedra foi a parte que parte quem parte leva sadades
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Agora, Celestino Gomes alude aos catedrticos Elsio de Azevedo e Moura, Adelino Vieira Campos de Carvalho, Lcio Martins da Rocha e Egdio Costa Aires de Azevedo. (ibid.: 450-451) Trata-se do bacharel Afonso Augusto Pinto, nomeado professor catedrtico a 21 de Fevereiro de 1927, sendo a data da tomada de posse (8 de Maio do mesmo ano) anterior rcita dos quintanistas. (ibid.: 451)
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Serapio: J vinha de trs quem o empurrava Felizardo: No o que diz o Joo Porto Cinema: que sse a parte suspeita! () Serapio: Mas teem, ento, um grande sortido de tas? Cinema: () No sabe? a ta do Cid. Tenho pena de no poder exibir-lha, mas teem-na atrapalhado tanto que j no se percebe nada () Scientca prpriamente dita temos o processo cirrgico do Dr. Angelo, com quem diz o processo do rasga. Mas tmo-las, tambm, de agronomia o Geraldino cultivando a seara nova. (ibid.: 39-40)
De seguida, as aluses a tas desportivas so motivo de pardia dos jogos de interesses: H o jgo do pim-pam-pum da Faculdade. Jgo de pau de dois bicos. A disputa do ttulo de campeo mundial de box Maximino-Dempsey. E agora por box () Scena primeira: o encontro dos contendores. (entram, um de cada lado, de batas de operador e luvas de box) (ibid: 41). Ambos os pugilistas exclamam Fernando!, do os murros em simultneo e caem nos braos de duas enfermeiras, sendo esta uma evidente referncia situao do Dr. Fernando de Almeida Ribeiro, reitor eleito a 21 de Junho de 1926 e que exonerado a seu pedido apenas dois meses antes da representao da revista de Celestino Gomes, em Maro de 1927 (Torgal, 1999: 75-76). Para nalizar, no Quadro VI, o coro dos medicamentos, secundado por Serapio e Felizardo, impenitente com os professores, fazendo sobressair pormenores do seu aspecto fsico:
Serapio: () ao Almeida Ribeiro da Medicina Legal, com tricotina s Felizardo: Nasceu-lhe aquele chin to sedoso e natural!... () Serapio: Plo que experincia ensina so a neige e a brilhantina usadas todos os dias Felizardo: que do ao ti Adelino Ao Viegas e ao Cupertino carecas to luzidias (Gomes, 1927: 56-57)
No que diz respeito ao curso, propriamente dito, saiba-se que A Medicina uma praga;/ armam sempre um trinta e um e tambm que a Faculdade ainda no acertou num plano de estudos. Na Cena 6, a segunda projeco a estratgia concebida para apresentar os cinquenta e dois quintanistas de Medicina, anunciados pelo Bedel nico18 como bons
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Augusto Costa era bedel da Faculdade de Medicina desde Outubro de 1919 (ibid.: 453).
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rapazes. Depois de formados ainda se lembram sempre do Costa So bons rapazes Olhem o livro de ponto como est limpinho. Tambm estou-lhes sempre a dizer Os senhores j so maiores e revacinados; no fujam De imediato, o Bedel vai ao fundo onde aparece um grande livro, que abre. A folha branca o cran onde se iro projectando os quintanistas (ibid.: 45), seguindo-se a leitura das cinquenta e duas quadras elucidativas dos traos que individualizam os colegas de curso do autor19; excepcionalmente, a quadra alusiva a si prprio formada por um nico quarto verso, ./ ./ ./ no lhe gabo a pacincia! Celestino Gomes no poderia deixar de acrescentar uma nota de atrevimento brejeiro nas poucas mas expressivas aluses erticas, associadas a guras femininas. O hotel Astria arma que O que preciso que as meninas gozem/ e arranjem um camlo/ dstes pezinhos chics, um amor,/ tipo qusi nico, farinha da melhor/ que no teem farlo! (ibid.: 32). As enfermeiras, com as suas toucas e batas brancas, so cones indissociveis do erotismo. Uma delas, a 4. Homenageante do jantar oferecido ao Dr. Bissaya Barreto, arma que vai de todo o corao,/ e digam seja o que fr / tratar da desinfeco/ da seringa do doutor, E o povinho at desmaia/ quando pra se souber,/ se ste servio eu zer/ ao senhor Doutor Bissaia! (ibid.: 30-31). O 2. Acto inicia com as duas quadras do Coro das Enfermeiras: () E sob a carcia de nosso olhar quente,/ aos desenganados damos vida at;/ qualquer indivduo, mesmo o mais doente,/ pe-se logo em p De seguida, a 2. Enfermeira lamenta a complexidade das matrias a estudar, obtendo-se o cmico a partir da referncia s capacidades intelectuais femininas e da polissemia das formas verbais:
Mas estou muito descontente. Aquilo to complicado Sempre dizem uns nomes nem sabe a gente se so nervos, se osso () O Doutor Bissaia espreme a gente. O Doutor Egdio, a mesma coisa. O Doutor Adelino, aspas, aspas. Agora vo algumas pedir para nos tirarem, ao menos, um, para no ser o curso to pesado. Que eu, por mim, queria mas que nos tirassem os trs (ibid.: 37-38)
Uma ltima pardia envolve as lies do Dr. lvaro de Almeida Matos, responsvel pelo servio de clnica ginecolgica: No sei como me viu tocar com um dedo no boto da campainha, que apenas entrei me disse logo: olhe que o toque no se faz assim; e isto importante, no sob o ponto de vista das campainhas, mas sob o ponto de vista das doentes que tambm badalam que nem campainhas (ibid.: 52-53). Como numa ta cinematogrca, a Coimbra acadmica nomeadamente, a Faculdade de Medicina foi deslando perante o olhar atnito de Serapio, esse mdico dos
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Em 1957, na sua Carta para Coimbra, Celestino Gomes recorda 35 dos seus colegas de curso. No conseguimos identicar aqueles que so referidos unicamente pela alcunha ou pelo diminutivo, o Vagalume, o Bel, o Carrlo e o bispo da Guarda.
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conns das dinastias faranicas, que encetou contactos com os insignes representantes do ensino da cincia mdica. Com efeito, os diagnsticos ditados pelos lentes constituem o assunto do Quadro VI, quando Serapio conta a Felizardo como decorreram os encontros em que fora alternadamente observado pelos senhores doutores. Em primeiro lugar, consultou o Dr. Geraldino Brites, mas a mmia ressuscitada cara na asneira de lhe dizer que tinha sido mdico de rei, pelo que Felizardo interroga: Zangou-se?!... le de reis, meu amigo, s o Cmara Reis. A seguir, observaram-no o Dr. lvaro de Matos, mas despeja-me para ali uns ingredientes de tantos milicuries ou miligramas horas de rdio, misture e tome de baixo para cima, e o Dr. Morais Sarmento, cuja prescrio a reiterada incua gua de Vidago motivo de stira ao longo de todo o texto. O Dr. Adelino no deniu qualquer diagnstico vlido, limitou-se a dizer: Sim eu no digo que no, mas sim o senhor veja l mas sim, eu c j no digo que no, enquanto que o Dr. Rocha Brito fora incisivo, Wasserman positiva. Deve submeter-se ao 914 e xar com hiposulto de soda. A pardia que invectiva as falcias e a ineccia da Medicina patenteia-se no desabafo do prprio Serapio: Uma sade de trs mil e cincoenta e cinco anos arrazada. les e mais a Medicina moderna que me puseram nste estado. Tambm s me falta experimentar os medicamentos dste laboratrio (ibid.: 55) Felizardo apresenta, ento, o coro dos Medicamentos, Neurogenina, Tricotina, Calicida, Neige e Brilhantina, que enunciam as suas qualidades. Contudo, o protagonista no andava em busca de soluo para um problema exclusivamente fsico, necessitava, sim, de um remdio que lhe devolvesse a sade e a alegria!. Por conseguinte, apenas Felizardo conseguir adequar o tratamento, ao prescrever o nico elixir capaz de dar a alegria e o bem-estar. Uns chamam-lhe a amizade, outros a sadade, outros ainda a esperana. Foi sse elixir que aqui juntou hoje, num abrao esfusiante, os nossos colegas de h vinte anos. a alma acadmica (ibid.: 60). Por isso mesmo, o autor reserva para o nal da pea a entrada em cena da derradeira personagem alegrica, sntese perfeita dos valores intemporais e inabalveis que distinguem os estudantes de Coimbra e conguram o esprito acadmico. Com um discurso apotetico, enunciador do virtuosismo do amor ptrio, do carcter empenhado, destemido e determinado da juventude, capaz de se mobilizar nos difceis momentos de provao da sua fora moral e das suas convices, a Alma Acadmica aclama esse sangue sempre rebelde e sempre generoso, mil vezes derramado pela Ptria e mil vezes dignicado pelo sacrifcio:
Moos de h vinte anos! Fostes vs que nos ensinastes a viver e a estudar, mas fomos ns que, a cantar, marchmos a dar o nosso nobre esfro na Grande Guerra. E quantos tombaram no caminho, quantos para quem ns contramos o sagrado dever da remembrana. Isto que a alma acadmica. Aquela fra de alma que nos traz desde a escola infantil (). Vdes a abraados os que h vinte anos fram o que ns somos hoje?
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Abracmo-nos todos, irmos. E juremos fazer os nossos lhos ainda melhores do que nos zeram a ns, para daqui a vinte anos, os que no houveram de vez fechado os olhos possam ver, num dia igual, erguida em apotese esta ptria querida que se chama: PORTUGAL! (ibid.: 60-61)
Enquanto o pano cai lentssimamaente, ouvem-se as vozes dos quintanistas cantar, num coro nal, os versos da epopeia camoniana Esta a ditosa ptria minha amada/ qual se o cu me d que sem perigo/ torne com esta emprsa j acabada/ acabe-se esta luz ali comigo! (Canto III, estncia 21), reiterando o simbolismo patritico que marca o desfecho da aco dramtica e, em simultneo, traduzindo literariamente o refro do centenrio Hino Acadmico20, da autoria de J. A. Sanches da Gama Lobo. Se bem que as vozes dos estudantes descontentes e as circunstncias polticas a elas associadas no ecoem persistentemente ao longo da revista de m de ano dos quintanistas, a fala da Alma Acadmica que encerra a representao deixa entrever um claro e acendrado apelo interveno dos jovens acadmicos, intrinsecamente ligados s constantes manifestaes estudantis de descontentamento, que, a partir de 1925, iriam alastrar aos trs centros universitrios do pas, Coimbra, Lisboa e Porto, onde se sucederam greves organizadas pelos alunos como forma de protesto e de reivindicao (Torgal, 1999: 37-39). Num ambiente de contestao e de luta, os estudantes mobilizar-se-iam para dar vivas ou morras ao Governo da Ditadura Militar. Durante este perodo, a prpria Universidade viveu momentos de grave crise institucional (em Coimbra, por exemplo, com pedidos de demisso do reitor ou do director da Faculdade), reexo da instabilidade no Ministrio da Instruo Pblica e das medidas legislativas do Governo (Torgal, 2000: 40-44; Faria, 2000: 343-352). A dupla evocao dos nossos colegas de h vinte anos sublinha, precisamente, a homenagem prestada queles estudantes que, em 1907, durante o governo de Joo Franco, participaram na contestao e na greve acadmica, tendo mesmo sete alunos sido expulsos. As autoridades mandaram, ento, encerrar a Universidade de Coimbra, que ao reabrir entra em greve que alastra a outras escolas do pas, levando Franco a encerra[r] todos os estabelecimentos do ensino superior e acusa[r] o movimento de conjura (Vieira, 1999: 178). Por conseguinte, da revista dos quintanistas eleva-se um corajoso grito de solidariedade e de rebeldia, inabalvel perante quaisquer adversidades, sejam estas ditadas pela conjuntura poltica nacional ou internacional. O indomvel esprito destes jovens rev-se nesses moos21, que merecem ser recordados e erguidos
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Em 1853, o Hino Acadmico convocava os estudantes atravs de um texto marcadamente belicista, como a quadra do refro denuncia: E se a ptria, seus ferros quebrando,/ Quere seus lhos guerra chamar,/ Vamos todos no campo da glria/ Nossas vidas Ptria votar (Calisto, 1950: 23).
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Cerca de um ano e meio antes, no dia 18 de Janeiro de 1926, tinha sido inaugurada uma lpide votada aos estudantes da Universidade que morreram na Grande Guerra, que contou com os discursos do reitor, Dr. Henrique de Vilhena, e do director da Faculdade de Medicina, Dr. Fernando de Almeida Ribeiro, que,
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como exemplo de nobre esforo, de sacrifcio pela Ptria, de uma unio que sempre faz a fora. O teor irreverente do discurso da Alma Acadmica antecipa, inclusivamente, as movimentaes dos estudantes, que formariam o Batalho Acadmico Anti-Fascista, no nal desse ano de 1927, em Lisboa22. As iluses doiradas do ttulo ressumam o sentimento de decepo e adquirem, anal, um sentido irnico. A urgente necessidade de mudana da situao de instabilidade poltica e econmica do pas, a que os estudantes futuro contingente a integrar as elites no so alheios, parece uma realidade sistematicamente condenada a fracassar. Terminado o curso, Celestino Gomes integra a carreira mdica e outras formas de interveno ao nvel sociocultural agurar-se-o pertinentes.
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num registo semelhante ao de Celestino Gomes, relembra que necessrio conservar, vivo e desperto, fgo sagrado e sempre mais ardente, o amor pela Terra em que nascemos e que aos nossos lhos havemos de legar como dos nossos maiores a recebemos: independente, gloriosa e livre! () a sua vida a deram les sses moos gentis! para que no morresse a Ptria, para que sempre Ela mais se engrandea, para que, sempre, glorioso e altivo, VIVA PORTUGAL! (Ribeiro, 1926: 584).
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Silenciados os focos de revoluo de 3 de Fevereiro de 1926, em Lisboa e no Porto, a camada estudantil mais empenhada, numa posio de repdio Ditadura, inicia uma campanha de distribuio de manifestos clandestinos contra a situao e empenha-se, mais perto do nal do ano, na constituio do Batalho Acadmico Anti-Fascista com o m de combater em qualquer revoluo democrtica que surgisse contra a ditadura (Faria, 2000:121).
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Resumo: Joo Carlos Celestino Gomes (lhavo, 1899 Lisboa, 1960) o autor da revista de despedida dos quintanistas da Faculdade de Medicina de Coimbra, no ano lectivo de 1926-1927, Fitas DoiradasIluses Doiradas, que foi levada cena pelos estudantes do curso, nos dias 29 e 30 de Maio de 1927. No texto desta pea de dois actos, Celestino Gomes passa em revista as tradies acadmicas, a instituio e os seus representantes nomeadamente, os professores catedrticos da Faculdade de Medicina , num registo contundente, marcado pelo humor e pela stira, que tambm incide sobre a situao poltica nacional. No 2. Acto, reserva especial destaque aos cinquenta e um colegas de curso. Deste modo, o mdico-escritor encerra um perodo fundamental da sua produo literria, pelo facto de esta dcada de 20 corresponder ao incio da sua profcua e dinmica actividade artstica. Abstract: Joo Carlos Celestino Gomes (lhavo, 1899 Lisboa, 1960) is the author of the theatre play by the senior students of the Faculty of Medicine in Coimbra, in 19261927, entitled Fitas DoiradasIluses DoiradasThe play was twice performed by the students themselves, on May 29th and May 30 th 1927. In this play, structured into two acts, Celestino Gomes recalls the academic traditions, the institution and its representatives mainly the professors of the Faculty of Medicine using an incisive speech, with emphasis on humour and satire, which also accounts for the national political situation. He also gives a colourful portrait of his fty one colleagues. Thus, the doctor-writer closes up a fundamental period of his literary activity, bearing in mind that the 20s set up the beginning of a long-lasting and procuous creation.
Palavras-chave: Teatro, Neo-Realismo, Alves Redol, forma breve. Keywords: Theatre, Neo-Realism, Alves Redol, short form.
A obra dramtica publicada de Alves Redol constituda por quatro peas, das quais apenas Maria Emlia (1945) se integra na ideia abrangente de teatro mnimo1, que, neste estudo, situo entre a denio de pea em um acto proposta por Patrice Pavis2 e a denio de forma breve apresentada por Mireille Losco3. Centro esta abordagem ao interesse de Redol pela forma breve no teatro, todavia, noutros textos pouco conhecidos, para no dizer praticamente desconhecidos do pblico em geral, que localizei no Esplio teatral do escritor, ao qual pude aceder pela primeira vez no seu conjunto. Entre a grande diversidade de documentos ali existentes (textos crticos, correspondncia, bibliograa, manuscritos e
Na perspectiva pirandeliana de teatro dentro do teatro, seria possvel considerar tambm O Destino Morreu De Repente (1967), no todo o texto, evidentemente (composto por um total de treze Quadros, repartidos por duas extensas partes, cuja verso integral, Joo Mota, responsvel pela sua primeira encenao prossional, adaptada, estimou em cerca de cinco horas de espectculo), mas apenas a sequncia em que o Ventrloquo apresenta o seu espectculo de manipulao de quatro marionetas (/quatro actores), cujos discursos e aparncias as relacionam, parabolicamente, com guras e/ou situaes histricas, criticadas sem apelo nem agravo pela sua responsabilidade na ecloso e desenvolvimento da 2 Guerra Mundial, cf. Redol, 1967, 115-126. As restantes peas publicadas so a tragdia Forja (1948) e o drama em trs actos Fronteira Fechada, publicado postumamente (1972).
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Cf. Pavis, 2002, 258. Cf. Mireille Losco, Forme brve in Jean-Pierre Sarrazac (dir.), Potique du drame moderne contemporain: Lxique dune recherche, tudes Thtrales, 22, 2001, 48-50.
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dactiloscritos originais das quatro peas publicadas), foi-me possvel recensear quinze ttulos de peas4, entre os quais os dois que mobilizo neste ensaio.
Para alm de dois inditos incompletos e de seis esboos ou projectos, recenseei quatro inditos completos, no representados (O Consrcio, O Tringulo Quebrado, A Propagandista e Ronda do Mar), e trs inditos representados (Porto de Todo o Mundo, O Menino dos Olhos Verdes e De Braos Abertos para a Natureza). Saliento que, precisamente no ms em que concluo este ensaio (Outubro de 2007), a famlia de Alves Redol, que at esta altura e, por conseguinte, tambm durante toda a fase da minha investigao mantivera estes e outros documentos na sua posse, doou o esplio literrio do autor ao Museu do NeoRealismo, aquando da inaugurao do respectivo novo edifcio, embora a sua catalogao no tenha sido ainda efectuada (razo pela qual, neste estudo, no me possvel proceder a essa especca remisso).
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inimigos n 1 salrios de misria, preos de gneros, rendas de casa, lhos extemporneos, etc. surgiam em cartazes na altura oportuna. (Dias, 1975: 82)
Estas experincias levaram este autor a concluir que, mesmo sem se conhecer Bertolt Brecht, estavam-se a fazer esboos incipientes de peazinhas didcticas, em que o teatro pico, tal como no grande dramaturgo alemo, ia buscar a sua substncia ao quotidiano (ibid.). Mas, por vezes, e at para grande mgoa dos seus autores, as peas neo-realistas chegavam mais facilmente ao pblico burgus dos teatros das grandes cidades, do que ao pblico popular da provncia. E, neste caso, o objectivo era outro: confrontar, ainda que de forma breve, com novas temticas (ou ngulos diferentes de abordagem das mesmas temticas) estes pblicos urbanos pouco dados a interferncias nos seus hbitos sociais, polticos e estticos. 2. O trabalho laboratorial de escrita. Houve, da parte de Redol e de outros neo-realistas, um permanente interesse pela literatura dramtica e pela historiograa e esttica teatrais, cujo estudo era essencialmente autodidacta, realizado a partir de livros e de peridicos, lidos muitas vezes clandestinamente e trazidos tambm do estrangeiro. Uma das vertentes mais curiosas e reveladoras desse estudo a forma como interpela e reelabora por vezes, at numa perspectiva intertextual, sobretudo em alguns dos seus inditos (como conferirei numa das peas) aspectos temtico-formais referidos a nomes e obras da literatura dramtica universal que mais lhe interessavam, como Ibsen e Strindberg, Tchekov e Pirandello, Shaw e Lorca, alguns dos quais divulgados entre ns pela Presena. Rera-se, alis, que os neo-realistas sempre reconheceram esse legado presencista, tal como a qualidade literria da generalidade das obras do Segundo Modernismo, apesar das polmicas ideolgicas em que divergiram, sintetizveis no binmio arte til/ arte pela arte. De resto, como j vericou Vtor Vioso, o Neo-Realismo, embora em ruptura com o psicologismo e o autotelismo esttico da Presena, nunca se subordinou a um cnone esttico rgido ou a um dirigismo exterior prpria prtica da escrita (2002: 10), o que, aliado ao facto de se armar como cultura de contrapoder, demonstra o quo diverso era do Realismo Socialista, com o qual tambm foi equivocamente confundido. Estas so, alis, algumas das razes que tm levado alguns autores a preferir, hoje, falar em Neo-Realismos em vez de Neo-Realismo, no s porque o Movimento se armou, heterogneo e geogracamente disperso, atravs de vrios grupos, mas tambm porque a esttica neo-realista nunca correspondeu a uma matriz una e cabalmente denida, ganhando expresso, assumidamente desde sempre, no ponto de intercepo de vrias estticas. Estas peas breves eram vistas tambm como espaos privilegiados de experimentao e reinveno de procedimentos tcnico-dramatrgicos.
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3. A ligao aos contextos de criao de espectculos. Logo no incio do seu percurso como escritor, Redol considerou o romance e o teatro como partes de um todo, que era o seu trabalho e a sua misso como operrio das letras e das artes, e condenciou a um jornalista a sua disponibilidade para colaborar com os colectivos teatrais que lhe quisessem abrir as portas (Portela, 1942: 4). Vrias destas peas, escritas por iniciativa prpria ou por encomenda, eram breves para, propositadamente, serem representadas (i) por determinados artistas ou grupos que assim as exigiam, (ii) em contextos de apresentao conhecidos partida (e que requeriam, mais comummente, um despojamento de recursos cnicos que, em geral, este tipo de textos prope), (iii) para pblicos previamente identicados e (iv) na maioria dos casos com nalidades poltico-ideolgicas bem denidas. 4. A precauo em relao censura. A realidade do Estado Novo era, de facto, muito castradora, especialmente no que dizia respeito ao teatro, como salientou Cndido de Azevedo, em A Censura de Salazar e Marcelo Caetano:
A Censura manifestava-se tanto mais rigorosa em relao ao teatro quanto certo que este constitua uma das actividades culturais mais difcil e directamente utilizveis, de forma ecaz, pela ditadura, como instrumento apologtico do regime e dos valores que apregoava e procurava impor aos portugueses. Enquanto, ao contrrio, era sucientemente conhecida a fora do teatro como um dos veculos por excelncia de cultura e de tomada de conscincia poltica e social. (1999: 184)
A proibio de espectculos, logo nos designados ensaios de censura ou mesmo aps as estreias, constrangia a actividade dos grupos teatrais. De entre as peas redolianas, veja-se, meramente a ttulo de exemplo, o caso de Forja, a qual, apesar de ter podido ser publicada em livro e reeditada (1966), foi durante mais de duas dcadas, sucessivamente, proibida de chegar cena, o que aconteceu somente em 1969, na designada primavera marcelista. Perante aquelas constries censrias, a incluso de vrias peas curtas, independentes entre si, num mesmo espectculo, reduzia a probabilidade de perante a eventual proibio de alguma delas a apresentao car totalmente comprometida. 5. A edio em peridicos5. Com as necessrias prudncias, os jornais e as revistas foram importantes meios de difuso do teatro, tal como da demais produo escrita dos neo-realistas. Vrios dedicaram pginas, por vezes seces ou rubricas xas, divulgao da actividade editorial na rea do teatro, ccional e terica, portuguesa e
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Trata-se da referncia a uma situao frequente, que tambm ter (/poder ter) conduzido forma breve, apesar de no ter sido o caso das duas peas analisadas neste ensaio (a socializao de ambas deu-se exclusivamente por via do espectculo).
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estrangeira, bem como crtica a textos dramticos e a espectculos. Foi nos peridicos com destaque para a revista Vrtice, o rgo ocial do Neo-Realismo a partir de 1945 que muitos dramaturgos, consagrados e estreantes, encontraram uma oportunidade editorial para as suas peas (fosse para evitar um confronto mais exigente com a crtica, fosse para contornar os elevados custos da edio em livro e o desinteresse das casas editoras, fosse para escapar a uma censura supostamente mais rigorosa no que tocava ao livro). Todavia, a exiguidade do espao inerente aos peridicos exigia a forma breve. As duas peas seleccionadas para este ensaio O Menino dos Olhos Verdes e De Braos Abertos para a Natureza6 tm em comum o facto de terem sido escritas e representadas no mesmo ano (1950), de terem surgido ambas na perspectiva imediata da montagem cnica e, ainda, de ambos os originais se julgarem perdidos durante dcadas. Tudo o mais so diferenas, que tambm comprovam a relevncia dada ao teatro na actividade geral do Movimento, designadamente sua adaptao formal aos contextos distintos em que os neo-realistas se moviam (urbanos ou perifricos, eruditos ou populares, prossionais ou amadores).
No sentido de agilizar as referncias no corpo do texto, as citaes daqueles inditos far-se-o por intermdio de siglas, respectivamente OMOV e DBAN.
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questiona, a assuno de uma prosso fora de casa ou da maternidade fora do casamento, ou ainda da participao activa na iniciativa partidria. Esta pea paradigmtica do interesse de Redol pelo dilogo intertextual. Se, na dramaturgia redoliana, poderamos ver em O Consrcio, como em Bodas de Sangue, a tragicidade do amor impossvel (Rebello, 1964: 415) e, em Irms7, como em A Casa de Bernarda Alba, tambm o trgico das mulheres sem homem (ibid.), com a tragdia da maternidade que no se cumpre (ibid.), em O Menino dos Olhos Verdes, como em Yerma, que Redol completa uma espcie de revisitao da trilogia dramtica de Lorca. Aos trs actos, vinte e quatro personagens e diversas propostas cenogrcas de Lorca, Redol contrape um monlogo, durante o qual se ouvem mais trs vozes-off, num espao cnico nico, que, atravs de uma cortina negra e de um banco tosco e longo, representa um tribunal. Yerma casada h trs anos e anseia engravidar, mas Juan no deseja ter lhos. Angustiada por se sentir cada vez mais prxima da esterilidade, mata o marido, e com o corpo seco para sempre (Lorca, 1971: 101), reconhece que, tendo cometido aquele acto, matou, ela mesma, a possibilidade de ter um lho. A personagem central do texto de Redol a R, colocada de imediato num tribunal, onde ser julgada por um crime cometido em relao a uma criana. Mas esta Mulher no ser condenada por homicdio; Redol muda o rumo histria. Ela confrontada com o facto de ter raptado uma criana, vtima de maus-tratos por parte da me biolgica. Sente-se afectivamente ligada quele menino, cuja cor dos olhos correspondia, alis, ao desejo do seu noivo, tal como as folhas verdes que faziam lembrar, em Yerma, o olhar do marido de Maria (Lorca, 1971: 19). Dizia-lhe o noivo: De mim s quero que tenha os olhos verdes E verdes porque o nosso lho h-de ter a esperana no destino dos homens (OMOV: 3). Sem que o dramaturgo revele as razes, embora no plano da anlise o leitor/espectador possa supor ter sido por tortura inigida pela PIDE, o marido foi assassinado e o seu sonho destruiu-se. Apesar dos trajectos diferentes, a lamentao ressurge de forma semelhante: () o homem que eu amei levou consigo os lhos que seriam de ns dois. Mataram-no E com ele mataram os meus lhos (ibid.: 2). Este interesse pela intertextualidade poder ser entendido, pelo menos, a dois nveis. Em primeiro lugar, como desao pessoal, a si mesmo, dramaturgo. Enquanto procura reconhecer os pressupostos estticos de abordagem do real e ensaiar as tcnicas utilizadas com esse objectivo por outros dramaturgos, perscrutveis em vrios textos de autores referenciais, interpela-os tambm tematicamente, luz do seu tempo e dos seus princpios ideolgico-polticos. Verica-se, sobretudo a partir de meados da dcada de 40, um reencaminhamento para a interioridade, para uma dimenso primordialmente introspectiva, que, no caso de O Menino dos Olhos Verdes, surge atravs do lirismo revolu7
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cionrio de Lorca. Em segundo lugar, como desao intelectual, confrontando os criadores teatrais e o prprio pblico com peas que no eram escolhidas, por no preencherem as caractersticas do reportrio de entretenimento habitualmente escolhido, e, sobretudo, confrontando, provocatoriamente, o regime poltico vigente com a interpelao de peas que a Censura mantinha proibidas, por serem perniciosas ou por serem de autores, na generalidade, mal vistos. Em Portugal, a representao de Yerma, por exemplo, s seria autorizada em 1955, cinco anos aps a encenao desta pea de Redol. O Menino dos Olhos Verdes surgiu, depois de Maria Emlia8, no mbito da sua colaborao no Crculo de Cultura Teatral e no Teatro-Estdio do Salitre, ambos criados no contexto particular do estagnado panorama teatral portugus dos anos 40, o qual, paradoxalmente (ou talvez no) pode considerar-se o perodo teatral mais frtil de Redol ou, pelo menos, mais auspicioso. Ali se reuniram algumas das personalidades mais esclarecidas, como, para alm do prprio Saviotti, tambm Eduardo Scarlatti, Jorge de Faria, Manuela de Azevedo e Luiz Francisco Rebello, entre outros. A heterogeneidade esttica que resultou daquela diversidade de pontos de vista constituiu uma escola para Redol. Sem se desvincular em absoluto das tendncias mimticas, ali despontaram experincias dramatrgicas diferenciadas, continuamente aprofundadas e reelaboradas ao longo da sua vida, que evoluram para processos de teatralizao do teatro, incorporando propostas referidas a Eisenstein, a Meyerhold e a algumas vanguardas das primeiras dcadas do sculo XX, a que no foi impermevel, como o Expressionismo, o Surrealismo ou o Existencialismo. Na resposta carta em que lhe enviei, acompanhada do dactiloscrito desta pea (localizado no Arquivo da Inspeco-Geral dos Espectculos), cujo reconhecimento lhe solicitava, Luiz Francisco Rebello respondeu-me:
A leitura de O Menino dos Olhos Verdes fez-me recuar 55 anos e ouvir a voz e ver a expresso entre a esperana e a angstia da Laura Alves, no nal do monlogo. (apud Falco, 2005: 173)9
A R tem conscincia de, tal como Yerma, no poder conhecer a sensao, sugerida pelo poeta que foi assassinado (OMOV: 2), quando aquele estabelece a comparao entre o lho que est a ser gerado no ventre e um pssaro vivo apertado numa mo, () corpo progressivo a latejar, teimando viver, inquieto por libertar-se (ibid.). A R, que j salientara o gosto do marido pela poesia, alude, sem o nomear, a Federico Garca Lorca e, designadamente, contracena de Maria com Yerma, quando a jovem
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Integrou o espectculo inaugural do Teatro-Estdio do Salitre, em Junho de 1946, conjuntamente com as peas O Beijo do Infante de D. Joo da Cmara, Vivos de Vasco de Mendona Alves e O Homem da Flor na Boca de Luigi Pirandello.
Esta carta, datada de 2 de Junho de 2005, particularmente relevante, porquanto, para alm de transmitir a impresso do espectador sobre o desempenho da actriz, conrma a informao, que o programa do espectculo no inclui, relativa responsabilidade da encenao (Gino Saviotti).
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grvida tenta explicar protagonista a transformao que se opera no seu corpo, mesmo dentro do sangue (Lorca, 1971: 18). Esta cena, alis, remete tambm para Forja, designadamente para o dilogo entre a Me Malafaia e a Vizinha, quando esta, angustiada, confessa quela que est grvida e procura os seus conselhos. O Menino dos Olhos Verdes sublinha, no plano temtico, a continuidade na procura de uma criao artstica com razes sociais bem vincadas, mas desmonta, no plano formal, a ideia feita de que o Neo-Realismo no se interessou pelo tratamento psicolgico das personagens e, simultaneamente, rompe com a iluso naturalista. Atentemos, para nalizar a apresentao desta pea, nestes dois aspectos. Primeiro, o tratamento psicolgico. A sondagem da dimenso psquica das personagens era entendida pelos neo-realistas, no como mera preocupao psicolgica (vrias vezes designada, pejorativamente, de psicologista), mas como forma de dar visibilidade aos conitos do eu, enquanto meios exteriorizveis de consciencializao dos indivduos e, consequentemente, como veculo primordial da mensagem humanista (Ferreira, 1992: 181) que, do seu ponto de vista, a literatura e a arte deveriam transmitir. Apesar de os neo-realistas nunca terem negado a abordagem da interioridade humana, nem nas suas reexes nem nas suas criaes, a falta de complexidade psicolgica foi, desde as primeiras obras, um dos principais alvos da crtica, aparentemente nunca ultrapassado (ibid.: 185), embora frequente e reiteradamente de modo equvoco. Segundo, a ruptura com a identicao naturalista (que era ainda a matriz predominante, por exemplo, de Forja). Apesar de a aco de O Menino dos Olhos Verdes decorrer durante o julgamento, Redol isola a R numa espcie de cela, que no gurada pela proposta cenogrca. O processo dramatrgico encontrado, para materializar a introspeco e, simultaneamente, a auto-reexo em voz alta daquela personagem, foi coloc-la sozinha em cena parecendo viver para o seu mundo interior, indiferente ao que se passa sua volta (OMOV: 1) supostamente a dialogar com um Delegado e um Juiz, de quem apenas se ouvem as vozes (e somente no incio). A estrutura formal por que Redol optou, mais do que do monlogo, aproxima-se da tcnica do solilquio, tal como a dene Patrice Pavis. A R no se limita a fazer um discurso para si mesma (Pavis, 2002: 216), antes medita sobre a sua situao psicolgica e moral, desvendando, assim, graas a uma conveno teatral, o que seria simples monlogo interior () [e assim revelando] ao espectador a alma ou o inconsciente (ibid.: 332-333). Este solilquio epiciza a relao de um tempo psicolgico especco (o da R) e de uma durao cronolgica (que a do julgamento, a decorrer num quase fora de cena e que marca efectivamente o tempo dramtico). Para alm disso, o solilquio desconstri a forma dramtica e, por conseguinte, a iluso naturalista, porque, na ausncia das outras personagens, ao leitor/espectador que a R est a dirigir-se, ignorando a quarta parede e fazendo coincidir, nesses momentos, os tempos dramtico e cnico.
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algarvio, o coro alentejano, o fandango ribatejano); so gente de todas as idades, dos dois sexos e sem distino de classes (ibid.: 7); e querem viver a alegria da () mocidade em contacto com a natureza depois de uma semana de trabalho (ibid.: 8). Para uns, a nostalgia do passado; para outros, a esperana no futuro. Redol reforou a dimenso ideolgica da parbola atravs da remisso da aco para um contexto literalmente politizado (o hermetismo de um congresso, subvertido pela abertura de um debate), cerca de um ano depois do acto eleitoral de 1949, em que, pela primeira vez, uma candidatura alternativa a de Norton de Matos, apoiada tambm por Redol armara a oposio ao regime (apesar da posterior desistncia). As referncias, sobretudo culturais e geogrcas, so mltiplas e asseguram partida o paralelismo com a realidade. Mas Redol assegura-se da eccia da parbola com a criao de uma personagem, cujos nome e discurso remetem, metonimicamente, para Antnio de Oliveira Salazar, o Presidente do Conselho, gura cimeira do regime. Facilmente o espectador estabeleceria a analogia entre os discursos de Salazar sobre a virtude e a preleco deste Presidente:
Presidente minha convico minha certeza que chamaremos ao bom caminho os que andam desviados das virtudes, daquelas virtudes que so, anal (), a essncia dos prazeres mais elevados da vida humana sobre o globo terrqueo. (DBAN: 3)
As virtudes eram, de facto, uma recorrncia temtica nas intervenes pblicas de Salazar, como no seu discurso proferido em Braga, a 28 de Maio de 1950, por ocasio da comemorao do vigsimo-quarto aniversrio da sublevao militar que conduzira instaurao do Estado Novo. Este discurso poder ter constitudo a um ms da apresentao de De Braos Abertos para a Natureza na iniciativa campista um ponto de referncia para as falas do Presidente. De resto, o Presidente colocado pelo dramaturgo do lado criticvel, oposto ao lado defensvel, este personicado em guras inspiradas nos promotores do acampamento. Ou seja: de um lado os maus, do outro os bons. Nesta espcie de pea de agitao e propaganda que s pde ser representada porque no entrou no circuito teatral ocial e a sua concretizao cnica aconteceu num contexto muito especco, restrito e no divulgado as foras opostas poderiam muito bem ter sido polarizadas em guras alegricas, como o Mal e o Bem ou a Virtude e a Conscincia, a Ditadura e a Democracia ou a Alienao e a Liberdade. A eccia deste texto, escrito para um contexto festivo e popular, mas clandestino e conspirativo, residia, em parte, num retorno do dramaturgo expresso inicial do movimento neo-realista, com situaes e personagens algo esquematizadas, imediatistas e moralizantes, que, por isso mesmo, se aguravam mais convenientes a uma mobilizao das conscincias e da aco socialmente transformadora. Todavia, parte da eccia deste texto resultava j, tambm, do contacto directo do dramaturgo com
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o teatro popular, especialmente em Frana. Naquele pas, a interveno em fbricas e noutros espaos no convencionais (ruas, praas pblicas, cafs, etc.), de carcter frequentemente didctico, tinha um longo historial, que remontava a meados do sculo XIX, com o impulso do socialismo e do sindicalismo, e ao qual foram cando referidos nomes como os de Romain Rolland e Firmin Gmier, Maurice Pottecher ou os encenadores do Cartel des Quatre (Dullin, Baty, Jouvet e Pittef), personalidades que Redol admirou e cujas obras estudou e parafraseou em vrios escritos. Esta aproximao a um pblico popular, mais consentnea com a acepo de pblico proletrio proclamada por Erwin Piscator, atravs de um teatro de agitao e propaganda (agit-prop), tinha sido uma experincia profundamente desenvolvida no ps-Primeira Guerra, sobretudo na Rssia e na Alemanha, com a proliferao de centenas de grupos de agit-prop, especializados na montagem de agitkas (gnero de peas curtas de interveno imediata, importado dos russos). Durante a sua estadia prolongada na Frana da Libration, em 1946, Redol testemunhou todas estas experincias de aproximao do teatro ao povo, analisou-as exaustivamente na sua obra A Frana: da Resistncia Renascena (1947) e integrou-as, de modo muito pessoal, na sua dramaturgia.
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Bibliograa
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O teatro mnimo de Henoch Uma leitura de O Incompreendido (drama psicopatolgico em 3 actos e 4 quadros), de Raul Leal
Mrcia Seabra Neves
Universidade de Aveiro (Doutoranda)
Loucos so os heris, loucos os santos, loucos os gnios, sem os quais a humanidade uma mera espcie animal, cadveres adiados que procriam.1 (Pessoa, 1989: 125)
Palavras-chave: Drama, autobiograa, introspeco, transcendncia, loucura, incompreenso. Keywords: Drama, autobiography, introspection, transcendence, madness, incomprehension.
Fernando Pessoa, Sobre um manifesto de estudantes. In FERNANDES, Anbal (1989). Sodoma Divinizada. Lisboa: Hiena, 125. Para mais informaes sobre a vida e obra de Raul Leal, ver o nosso artigo intitulado Raul Leal (Henoch): Escritor bilingue, Poeta em francs (Neves, 2006: 73-95). Retomamos, na primeira parte deste trabalho, consideraes a expendidas.
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Raul Leal nasceu em Lisboa, em 1886, em bero de ouro. Entre 1904 e 1909, frequenta o curso de Direito na Universidade de Coimbra, chegando a exercer advocacia durante trs anos. No entanto, na posse de uma avultada fortuna que lhe garantia total independncia material, demite-se das suas funes, dedicando-se, sem concesses, ao cultivo das letras e sua edicao espiritual. Entra, pois, Raul Leal numa nova fase da sua vida, que pode, com acerto, descrever-se como uma longa, dolorosa e paradoxal trajectria mstica de ascenso espiritual e concomitante decadncia material. por esta altura que germina o projecto do Vertiginismo Transcendente, concepo losca explanada na sua obra Liberdade Transcendente (1913) e que ecoar com notvel coerncia em toda a sua obra futura. Este sistema losco constituir a fundamentao metafsica de uma nova religio por ele ideada. Com efeito, persuadido de ser a reencarnao de Henoch3, apelido cabalstico que anexar ao seu nome civil em todos os seus poemas e artigos mais polmicos, e que lhe ter sido sugerido pela leitura fascinada do romance L-bas4 de Huysmans, Raul Leal anuncia-se o profeta de um novo credo e de uma nova civilizao, concebendo assim o Paracletianismo, religio do Esprito Santo que Deus-Sat o incumbiu de propalar. A sua obra intitulada Antchrist et la Gloire du Saint-Esprit, Hymne Pome Sacr (1920) enuncia precisamente os fundamentos desta doutrina por ele diligentemente apregoada ao longo de toda a sua vida e obra. Inspirado no Paracletianismo, o escritor-profeta gizou tambm uma teoria da arte, a que deu o nome de Astraldia (Leal, 1970: 42).
No Gnesis, Henoc, lho de Jared, pai de Matusalem e bisav de No, pertence genealogia de Set, terceiro lho de Ado que substitui Abel, assassinado por seu irmo Caim. Segundo Lucas, Henoc pertence tambm linhagem de Cristo. O relato bblico apresenta-o como tendo vivido 365 anos, sempre em harmonia com a vontade de Deus. Herdeiro dos segredos de Deus e decifrador dos seus mistrios foi atribuda a Henoc uma obra de teor apocalptico, na qual divulga sua prognie o maior segredo do Mundo: O Livro de Henoch. Assim, semelhana do patriarca Henoc que profetizou a descida Terra de Deus e da sua Legio de Anjos, tambm Raul Leal (Henoch) anunciar o advento do Reino do Esprito Santo Parclito, esteando nessa crena toda a sua esperana de homem bom.
O romance huysmaniano, justape, em alternncia, dois planos diegticos um passado (sc. XV) e um presente (sc. XIX) , ambos dominados pela omnipotncia das foras malignas. No mundo obscuro de uma capital decadente, destacam-se duas guras antagnicas: o cnego Docre, mago negro, e o Dr Johanns, mago branco que combate e mitiga os efeitos dos feitios de Docre. O confronto titnico entre estas duas guras no seno uma transposio alegrica do combate entre o Mal e o Bem, o Deus das Trevas e o Deus da Luz, que, entre si, disputam a alma do Homem. Assim, num mundo em declnio, em que triunfam o materialismo e a magia, doutrinas do Anticristo, e em que se assiste derrocada da Igreja Catlica, o Dr Johanns o profeta que anuncia a vinda do Parclito, profetizando-se assim, no romance, o advento do Terceiro Reino, o Reino do Esprito Santo Parclito. A leitura de L-bas no pode deixar de convocar o universo teosco de Raul Leal com o qual, alis, apresenta ntidas anidades. , por exemplo, inequvoco o paralelismo entre a personagem de Johanns e Raul Leal, que a si prprio se assumia como o precursor do Divino Paracleto.
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Numa obra intitulada Sindicalismo Personalista Plano de Salvao do Mundo (1960), o profeta Henoch expe programaticamente a sua teoria no campo polticosocial, postulando a fuso dos sistemas comunista, personalista e fascista, com o propsito de catalisar o advento da Teocracia Paracletiana, aquela que vir resgatar o mundo. Conhecido pelo seu pensamento extravagantemente proftico, a sua lenda avoluma-se tambm atravs de uma srie de episdios mirabolantes por ele protagonizados e que pontuaram a sua atribulada existncia. Assim, do domnio pblico o mundano que extravia uma fortuna para se apresentar em Paris (Gomes, 1966: 50), para assistir estreia do Parsifal, o drama musical wagneriano, cuja abertura se encontrava prevista para 1 de Janeiro de 1914, na pera de Paris. Na capital francesa, Raul Leal trava conhecimento com grandes guras da intelligentsia europeia, como Gabriele dAnnunzio, por ele descrito, mais tarde, como La gloire dernire de lItalie paienne (Fernandes, 1989: 142) e Marinetti, com quem vir a corresponder-se e assentar as bases duma religio e Igreja Futuristas e Paracletianas. Ao dar a lume Sodoma Divinizada, em 1923, tornou-se o protagonista de uma ressonante polmica ertico-sexual, em que o poeta, pela intermediao da voz proftica de Henoch, se aliou ao seu amigo Fernando Pessoa, na defesa de Antnio Botto. Segundo Joo Gaspar Simes, foi por esta ocasio que o autor conheceu uma das pocas mais vertgicas da sua carreira de escritor-profeta (Simes, 1974: 141). Raul Leal foi ainda uma gura excntrica, que do modernismo de Orpheu ao surrealismo do Caf Gelo, apoiou todos os movimentos vanguardistas. Tendo colaborado apenas no segundo nmero de Orpheu, a verdade que foi membro activo da primeira vaga modernista e o seu nome car inevitavelmente associado a este movimento moderno-futurista, com o qual o seu pensamento e personalidade parecem perfeitamente compaginar-se. Colaborou tambm nas revistas Centauro, Portugal Futurista, Athena, Sudoeste e presena, todas de ndole modernista, o que o vincula, de modo evidente, ao surto e consolidao do modernismo no contexto literrio portugus. Refractrio adeso incondicional a escolas ou movimentos, em Raul Leal a apologia do iderio modernista indissocivel de uma pose de vanguarda. Numa fase mais tardia da sua vida, adoptado como modelo e matre penser pelos surrealistas do caf Gelo, que o reivindicam como patrono simblico do grupo. Por esta altura, colabora tambm assiduamente na imprensa, nomeadamente nos jornais O Popular, Acto, Dirio Ilustrado, Dirio da Manh, Praa Nova, O Debate, A Cooperao, e pontica como gura tutelar do grupo da revista Tempo Presente. Outrora fabulosamente rico, a ltima dcada da vida de Raul Leal decorre na mais confrangedora penria, conseguindo o autor subsistir, a custo, com uma modesta penso. Joo Gaspar Simes relembra um encontro de Abel Manta com Raul Leal ocorrido por esta altura:
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Abel Manta contou-me que a ltima vez que viu o dr. Raul Leal saa ele do antigo Secretariado de Propaganda Nacional. Nos ps, sem meias, levava umas sandlias rotas era Inverno e as calas caam-lhe em tiras pelas pernas nuas abaixo. Como vai, dr. Raul Leal? Cumprimentou-o Abel Manta. E o dr. Raul Leal baixou os olhos, tou as sandlias, mirou as calas e, erguendo para o interlocutor os olhos esgazeados, onde algumas lgrimas aoravam, respondeu: Vou como v: um andrajo. Sou todo andrajos (Simes, 1974: 161)
Raul leal acaba por morrer, na mais absoluta indigncia, no hospital e sepultado no cemitrio do Lumiar, aps uma modesta cerimnia, que contou com a presena de onze pessoas. Personagem paradoxal, obsidiado pela sua misso de poeta-bobo, conjugao desconcertante de genialidade e loucura, a obra de Raul Leal confunde-se com a personalidade artstica do seu criador. Messias incansvel da esperana messinica e da sua Obra Divina, Raul Leal (Henoch) apregoou e escreveu, marginalizou-se e condenouse a ser o Incompreendido, ttulo que, de modo sintomtico, atribuiu nica pea de teatro que lhe conhecemos. O drama O Incompreendido, redigido entre Outubro e Novembro de 1910, nunca chegar a ser publicado em volume. Raul Leal d estampa, na revista presena5, excertos do seu drama metafsico, mas a obra s ser publicada na ntegra em 1960, em vrios nmeros da revista Tempo Presente6. Esta publicao, de orientao catlica e fascista, empenhou-se na reabilitao dos modernistas e futuristas portugueses, tendo alis acolhido, nas suas pginas, extensa colaborao de Raul Leal.
presena 23 (Dezembro 1929), 3; presena 25 (Fevereiro Maro 1930), 9-15. Tempo Presente 15 (Julho 1960), 61-83; Tempo Presente 16 (Agosto 1960), 65-84; Tempo Presente 19 (Novembro 1960), 53-79; Tempo Presente 20 (Dezembro 1960), 53-75. No nal do terceiro e ltimo acto (p. 75), Raul Leal acrescentou um pequeno texto de Advertncia, em que apresenta algumas reexes acerca do seu drama. Nesse texto explica que o primeiro e ltimo actos no sofreram posteriormente modicaes signicativas; j o segundo acto foi melhorado em 1913, sobretudo a quarta cena.
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O subttulo, qualicando a pea como drama psicopatolgico em trs actos e quatro quadros, no deixa de convocar um horizonte de expectativas temtico e genolgico, onde concedida inequvoca primazia ao estudo da experincia psquica desequilibrante. O primeiro acto decorre em Novembro de 1904, no palcio da Condessa de Vilar me do protagonista, Jorge Vilar, pouco antes do jantar; o segundo passa-se em Maio de 1907, numa festa nocturna de caridade no Grande Clube Portugus; e o terceiro, constitudo por dois quadros gabinete de trabalho do Dr. Matos (presidente da Academia) e cenrio do primeiro acto desenrola-se em Fevereiro de 1910, tambm hora do jantar. Separados por uma elipse de trs anos, cada um dos trs actos encena um instantneo da vida do protagonista, que corresponde a um estdio diferente da sua progressiva degradao psicolgica. Deste modo, este drama sublimadamente psicopatolgico (Leal, 1960: 75) cartografa a evoluo da transcendente parania megalmana (Leal, 1960: 75) do protagonista que, tornada csmica pela sua excessividade delirante (Leal, 1960: 75), o conduzir loucura. Com efeito, detentor de um gnio ilimitado e excessivo, Jorge Vilar insosmvel alter ego de Raul Leal vive dilacerado pelas exigncias irrealizveis do seu esprito. A intensidade da sua vida anmica e a sua nsia arrebatadora de transcendncia e de innito compelem-no a seguir um caminho de ascese, rejeitando a felicidade terrena, para se elevar a um plano superior, inacessvel ao vulgo, em que so as tragdias convulsionantes do gnio (Acto I, cena 1, 65)7 que sublimam e enaltecem a personalidade e o esprito:
s nos espasmos, nas convulses das almas, erguidas ao Esprito, afundadas no Alm, que est a Grandeza, que domina o Poder Innito de Ns! E a Grandeza, o Mximo Poder do Eu que devemos ardentemente procurar, nunca a inspida Felicidade Terrena da Vida, s prpria de inferiores, de larvas desprezveis, incapazes de sentir a sublimidade pura dos Infernos de Fogo que s Tu, Gnio da minha Alma, queres arrebatar contigo para tua Suprema Divinizao! (Acto I, cena 1, 65)
A intensa, profunda e absmica actividade espiritual de Jorge leva-o a conceber uma existncia subjectiva aberta ao Innito, ao Vertiginismo. Na sua perspectiva, s o Esprito existe e atravs dele que se consubstancia a realidade das coisas e da prpria Existncia. O segundo acto abre com um longo monlogo, em que o protagonista medita sobre a sua losoa da existncia:
Atravs do nosso esprito que realidade d s coisas, a Existncia toda, assim magnicamente subjectivada numa espiritualizao perfeita, em todo o seu poder que
Atendendo ao facto de a obra no ter sido publicada em volume, mas sim em nmeros avulsos da revista Tempo Presente, indicaremos para cada citao, o acto, a cena e a pgina correspondente ao nmero da revista em que se encontra a passagem citada.
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o poder da nossa alma que a Existncia concebe e que, pois, a cria, surge esplndida, desenrolando-se numa vertigem imensa, inconfundvel Sob todos os aspectos mais extraordinrios Ela se impe, de todos os modos ns a vivemos, concebendo-a, criando-a, diante dEla se abre o Innito e cada aspecto, cada expresso bela da Existncia que pelo contraste e em ns essencialmente as outras cria! (Acto II, cena 1, 69)
Este apelo de transcendncia encontra a sua correspondncia grafmica, ao longo de toda a pea e de toda a obra de Raul Leal, na utilizao obsessiva e aleatria de maisculas, que visam conferir profundidade metafsica a conceitos puramente materiais, numa tentativa de constante espiritualizao da matria. Com efeito, Jorge articula a sua losoa da vertigem em torno de uma dicotomia estruturante, opondo Matria e Esprito, relacionando-se o primeiro destes plos com a bestialidade da vida terrena, governada pelo Imprio da Razo e do Materialismo que tolhem a vida anmica e espiritual. Assim sendo, o protagonista declara guerra aberta ao estreito iderio do Positivismo:
Combato o positivismo que no sente nas coisas o seu innitizador excesso vertignico que a pura abstraco-Esprito as eleva atravs de ns, essencialmente innitizados! , com efeito, o positivismo que defende os limitados interesses mesquinhos, por isso concretos, e abandona a vida innita, abstracta, pura do Esprito; o positivismo que em novos altares materializados coloca a banalidade duma vida prtica toda feita de limites e de exterior como neles coloca tambm a fealdade realista; o positivismo que defende uma democracia material em que escria da sociedade desam os aristocratas do Esprito; o positivismo que no conhece a revoluo pasmosa que o pensamento puro provocar na humanidade inteira! (acto II, cena 4, 71)
Nestes postulados, inegvel a persistncia da viso deceptiva e dualista herdada do Decadentismo nissecular que, alis, se rastreia em toda a obra e pensamento do autor. O homem decadentista nissecular, desgostado de si prprio e alienado numa sociedade cegamente materialista, sofre com esse estado de decadncia social e cultural, contra o qual no deixa de rebelar-se. Trata-se, certo, de uma revolta confusa e inconsciente, realizada pela afectividade e pelo irracional, facilmente desiludida e afogada em melancolia, pessimismo e nevropatia (Pereira, 1975: 23). Assim, feridos por tudo o que os contorna, vivem da sua rejeio, mas perdem, na tenso da luta, o equilbrio psquico e nervoso. a poca de Les Nvroses. (ibid.: 35) A personagem de Jorge concretiza modelarmente este heri nevrtico, pois quanto mais se eleva espiritualmente, mais se enreda numa inelutvel degenerescncia mental. O seu gnio condu-lo, tragicamente, ao abismo insanvel da solido e da loucura:
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Se o gnio, se o esprito, se o verdadeiro sopro divino expelido do meu pensamento inspirado, cada vez mais se eleva, se sublima mais, tambm a minha psicose terrvel que por um lado genializa a minha inteligncia, cada vez mais cava o abismo profundo da minha alma, to bem ordenado, personalizado pelo gnio e perdido pela megalomania forte dum paranico. a excitao nervosa que me d o gnio convulsionador e so os mesmos doentios nervos que cavam a runa do meu esprito mrbido. (acto II, cena 2, 72)
Replicando a atitude de Raul Leal, que adopta a mscara do profeta Henoch, tambm Jorge personica uma atitude assumidamente proftica, consciente de se encontrar superiormente investido de uma misso divina. Com efeito, considerando-se o precursor sublime do Esprito, este h-de manifestar-se nele e, por seu intermdio, se operar a remisso espiritual de toda a Humanidade:
Eu quero viver, quero ser o Universo, quero viver, quero ser a Vida Inteira, de Mim no quero que nada se isole ! S assim Me tornarei tudo, Me tornarei o Innito, s assim o Universo, tornado Esprito, se Me arrebatar na Alma! E a pura vertigem do Universo, do Esprito, cheia de nsia, cheia de dor, quero que se personalize em Mim tornado Dor e no mais pela dor prostrado (Acto II, cena 2, 79-80)
E precisamente no cumprimento desta misso proftica que Jorge vai panetariamente apregoar, no decurso de toda a pea e sobretudo no segundo acto, a sua losoa. Nele so discernveis trs momentos fulcrais para a dilucidao do pensamento do protagonista: o monlogo inicial (cena 1); o seu dilogo com Pedro, seu melhor amigo e condente, a quem condencia as suas mgoas (cena 2); e o dilogo com o Dr. Matos, presidente da Academia, a quem faz uma exposio delongada das suas teorias, na tentativa de persuadi-lo da sua inteligncia superior e genial (cena 4). Segundo o prprio autor, esta ltima cena constitui como que um pequeno tratado de losoa fortemente dramatizado (Leal, 1960: 75). Neste segundo e extensssimo acto8 posteriormente melhorado em 1913 , o protagonista, instigado pelo seu gnio vertgico, tomar o monoplio da palavra, numa discursividade incontrolada, marcada por um tom paulatinamente mais obsessivo, convulso e desesperado. Encontramo-nos, em rigor, em face de pseudodilogos, pois a fala do protagonista que, de forma avassaladora, domina a comunicao intracnica, encontrando-se o seu discurso apenas pontuado pelas rplicas funcionalmente apagadas dos seus interlocutores. Este estilo vertgico, denido pela catadupa discursiva e pelo duelo conceptual, alicera-se numa retrica do oximoro: matria / esprito; gnio / mediocridade; luz / trevas; puricao / luxria; divindade / diablico; bem / mal Os contrrios, de presena certa na obra do autor, tendem, no entanto, a resolver a sua posio atravs de
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um envolvimento verbal caudaloso, sujeito a obsesses, alargando-se em circunlquios e ganhando, muitas vezes, um tom potico ao mesmo tempo vago e incisivo, devido ao pathos que tende a instalar-se na sua linguagem (Guimares, 2004: 126). O seguinte fragmento, extrado do monlogo de abertura do segundo acto, ilustra exemplarmente esta relao entre linguagem gurativa e pathos:
das trevas que surge a luz, do caos que nasce o progresso!... Pois qu? No a luz sem as trevas uma perfeita escurido e no precisa o progresso de existir em relao ao caos? Os mais extraordinrios gnios que assombram a humanidade, fugitiva da vertigem impulsiva em que eles a pretendem arremessar, apresentam na sua vida o contraste mais maravilhoso do domnio da matria perante o domnio do esprito. Se, por vezes, numa forte inspirao, revolucionam o progresso, revolucionando o pensamento, depois, exaustos, caem prostrados nos angustiosos prazeres da luxria que uma degenerescncia contraditria profundamente estimula, escorregando, pobres mseros, nas abjectas cavernas da degradao moral. Abandonam o sol, a luz do pensamento e da emoo, para convulsionantemente se contorcerem na escurido traioeira e indigna de um deboche eternamente agonizante. (Acto II, cena 1, 67-68)
O recurso sistemtico a um lxico tradutor de dinamismo constitui outra particularidade estilstica que se pode ainda deduzir deste excerto. A matria lexical, longe de se revelar inerte, semanticamente rendibilizada pelo autor para sugerir um movimento ascendente, rumo ao Innito, Vertigem astral:
Tudo para essencicar, universalizar, ultrapersonalizar, egotizar, absorver, transplantar e modicar. () Anula-se e desconhece-se a razo lolgica, a sabedoria lgica e gramatical. Anarquiza-se o estilo. Escreve-se em no-estilo, em antiestilo, adapta-se o que nos deram ao que necessrio dizer. O que era pensamento desgarrado e fugidio, o que era Filosoa liberta de toda a Sabedoria Antiga, revela-se agora na palavra desordenada, no vocabulrio fugidio, no estilo em Vertigem! (Gomes, 1969: 65).
No entanto, a vidncia superior do protagonista inacessvel ao vulgo. Todas as suas tentativas de comunicao redundam, por isso, no fatal insulamento do seu gnio. Ora troado, ora ignorado, Jorge visto como um louco e tratado como tal. Exceptuando a me e o melhor amigo, Jorge constantemente ridicularizado pelas outras personagens em cena, que depreciam sobranceiramente a sua inteligncia. O texto didasclico , a este respeito, eloquente. So recorrentes, ao longo dos dois primeiros actos, as indicaes do tipo com ironia (Acto I, cena 1, 63), com um sorriso sempre trocista (Acto I, cena 1, 64), querendo tro-lo estupidamente (Acto I, cena 2, 67), dando uma formidvel gargalhada (Acto I, cena 5, 77), ou ainda com algum
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desprezo (Acto II, cena 3, 82), dando conta da hostilidade escarninha destas personagens para com o protagonista. Se Jorge tratado com humilhante desdm, a sua obra, intitulada Uma nova esttica, tambm no poupada a crticas ferozes. Numa discusso sobre arte, ocorrida na festa de caridade com a presena de vrias guras reputadas, o opsculo apodado de uma enormidade inconcebvel e o seu autor descrito como um quartanista de medicina muito pouco considerado pelos professores, desgraadssimo na arte e como um misantropo que a ningum fala e que quase ningum conhece (Acto II, cena 3, 82-83). Jorge entreouve a conversa e ca profundamente abalado ao ouvir as injustas palavras de demrito. De um lado da barricada, s e incompreendido, Jorge corporiza o gnio sublime, predestinado a atingir o Esprito Puro, o Innito, a Vertigem; no campo oposto, os Outros, os seres vulgares, connados ao plano inferior da vida terrena, no conseguem alcanar a plenitude espiritual do protagonista, atirando-o para o charco ignominioso da loucura. Apesar de reconhecer a inferioridade desprezvel das injrias que lhe so dirigidas, Jorge no consegue ignor-las e a verdade que sofre dilacerantemente com a opinio mesquinha e com a falta de considerao dos outros. A chufa injusta e a funda humilhao provocam nele um desnorte precipitador da alienao mental. Mas antes de o conduzirem inapelvel loucura, a sua psicose e megalomania fazem-no enveredar pelo caminho cruel do suplcio:
Mas no s a isso [ loucura] que me pode levar a psicose, no imediatamente para isso que a megalomania me vai impelir mas, antes, o caminho com crueldade se vai preparando, antes do delrio nal sofro quedas constantes das minhas iluses que a razo no compreende mas que o inconsciente, dominando, cria! (Acto II, cena 2, 74). () Ah, mas no possvel Horroroso existir no isolamento de tudo, por ningum compreendido, a todos estranho!... (Acto II, cena 2, 75).
Jorge um proscrito e um louco consciente. Por isso, convicto dessa incomunicao e por ela atormentado, ciente tambm da sua megalomania e da sua ameaadora neurastenia, o fosso entre si prprio e os outros abre-se inexoravelmente. O prprio cenrio reecte o total isolamento do protagonista, pois toda a fbula dramtica elege locais fechados, indiciais do seu estado de enclausuramento e solido. Por outro lado, a aco desenrola-se sempre noite, que, neste contexto, reenvia explicitamente para as mais negras trevas da solido depressiva do anti-heri.
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No primeiro quadro do terceiro e ltimo acto, Dr. Matos medita longamente sobre a ltima criao de Jorge, acabando, aps longas hesitaes, por lhe reconhecer todo o seu mrito e genialidade e propondo a sua candidatura para a Academia. No entanto, no quadro seguinte, no encontrando nos jornais meno alguma sua ltima obra, e ao ver-se de novo injustiado na depreciao de uma obra genial, Jorge rende-se denitivamente ao apelo neurastnico, agitando-se convulsivamente e com o olhar espectralmente vazio, atirando gargalhadas nervosas e proferindo frases entrecortadas e sem nexo. Quando nalmente todos lhe reconhecem o seu gnio divino e lhe anunciam a candidatura do seu livro O esprito psicolosco Academia, Jorge, cada vez mais agitado, recusa-se a acreditar, julgando-se de novo alvo de escrnio. Opera-se uma mudana dramtica na atitude das outras personagens relativamente ao protagonista. Na realidade, se antes o tratavam com desdenhosa indiferena, agora, consternadas, sentem fundo remorso por no lhe terem dado o devido valor, causando assim a sua desgraa, e ao mesmo tempo deploram a aniquilao do gnio divino de Jorge de que se ver privada a Humanidade. O reconhecimento chega, todavia, tarde demais: Jorge enlouquece. tentador ver neste desfecho funesto um aviso lanado por Raul Leal aos seus contemporneos e um pungente augrio daquele que viria a ser o seu prprio destino. Com efeito, se Jorge foi um pigmeu a berrar pelo Universo (Acto II, cena 4, 68), Raul Leal avelou, por seu turno, a mscara de profeta a pregar no deserto (Simes, 1974: 138). Durante todo o seu percurso de maldito, hostilizado pela desinteligncia dos outros, o autor lutou infatigavelmente contra a incompreenso de que se sentia vtima. Neste drama esquemtico, esboa j Raul Leal os fundamentos do vertiginismo, losoa que vir a aprofundar em Liberdade Transcendente, propondo-se:
Elevar a humanidade toda espiritualidade lusitana e transcendentemente integralizar bem essa espiritualidade convulsiva, cujo integralismo, cujo transcendentalismo apenas pressentido e no transcendentemente sentido pelos portugueses mais espiritualistas, elevar assim todo o Homem ao Transcendental Vertigico, Vertigem Pura [] sentindo-se ento a Vertigem, prepararei enm, a mais sublime morte para a Humanidade, a Morte transcendentemente Vertigica, preparando-a ento, para mim!... (Leal, 1913: 130)
Para mais tarde car o advento do Paracletianismo. Assim, se Jorge atinge o paroxismo da loucura, o mesmo no ocorrer com o profeta Henoch, o predestinado de Deus e de Sat. o que o autor explica no texto de Advertncia pea:
Apesar das semelhanas que h entre este e o Jorge de Melo (Vilar) eu nunca poderia cair numa verdadeira loucura, pois a minha Predestinao Divina de Eleito de Deus e de Sat no o permitia, por muito trgicas que tenham sido sempre as igno-
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miniosas perseguies, de todos os gneros, que tenho sofrido e continuo a sofrer. Vilar pde tornar-se louco precisamente por no ter ainda sido predestinado a fundar o Paracletianismo, Reino Sagrado do Esprito Santo ou Divino Paracleto, que Deus-Sat quer que eu anuncie ao Mundo em Glria e Poder! (Leal, 1960: 75)
O cenrio do primeiro acto constitudo por uma saleta no palcio da Condessa de Vilar , com uma porta ao fundo e um sof no qual Jorge est sentado. No segundo acto festa nocturna de caridade no Grande Clube Portugus , o cenrio composto por duas salas comunicando por um arco grande; na primeira Jorge est sentado num sof e na segunda esto a jogar bridge; a indumentria cerimoniosa consonante com o ambiente festivo. O terceiro acto divide-se em dois quadros: as indicaes cnicas relativas ao primeiro mencionam um gabinete de trabalho, repleto de livros e composto por uma mesa, junto qual est o Dr. Matos sentado com um livro aberto; o segundo quadro corresponde ao cenrio do primeiro acto, mas -nos dada a indicao adicional de que tambm h uma mesa, ao p da qual Jorge est sentado, percorrendo vrios jornais.
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a Raul Leal no interessou tanto a apresentao cronolgica do protagonista como a pintura da sua gradual descida ao inferno de si prprio e a sua odisseia espiritual. Por isso, limita-se a encenar trs fugazes momentos da trajectria vital da personagem principal, expondo, em cada um deles, um estdio da sua evoluo/decadncia mental. Neste drama a aco , assim, puramente verbal, pois nasce e desenvolve-se atravs da palavra. Sendo o protagonista detentor hegemnico da palavra dramtica, O Incompreendido pouco mais , anal, do que um longo monlogo. O Incompreendido revela inegveis semelhanas com a esttica do drama simbolista. Com efeito, os simbolistas, postulando uma negao assertiva da precedncia da realidade material, desprezavam os elementos acessrios ao drama, optando assim pela simplicao extrema da fbula narrativa e pela depurao formal da cena, tendo, neste sentido, preconizado o teatro esttico (Rebello, 1979: 9-17). Fernando Pessoa exemplica, eloquentemente, este conceito no seu drama O Marinheiro, e dene-o, nas suas Pginas de Esttica, da seguinte forma:
Chamo teatro esttico quele cujo enredo dramtico no constitui aco isto , onde as guras no s no agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer tm sentidos capazes de produzir uma aco; onde no h conito nem perfeito enredo. Dir-se- que isto no teatro. Creio que o porque creio que o teatro tende a teatro meramente lrico e que o enredo do teatro , no a aco nem a progresso e consequncia da aco mas, mais abrangentemente, a revelao das almas atravs das palavras trocadas e a criao de situaes () Pode haver revelao das almas sem aco, e pode haver criao de situaes de inrcia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. (Pessoa, 1973: 112)
Em sintonia com a pragmtica teatral simbolista, que valorizava a leitura da pea mais do que a sua encenao, o ideal seria que a pea de teatro fosse um monlogo recitado. Nestes termos, e em consonncia com o que temos vindo a demonstrar, o texto de Raul Leal tributrio desse programa dramatrgico de matriz simbolista. No drama O incompreendido, Raul Leal, por interposta personagem, conduz uma sondagem dos escuros e sinuosos meandros do esprito. Esta escavao psicanaltica dos demnios ntimos e a inscrio parabiogrca do autor no texto convertem esta pea em verdadeiro exerccio teraputico e catrtico. Autobiograa espiritual posta em teatro, teatro do eu mais do que teatro dos outros, O Incompreendido no podia, assim, deixar de ser teatro mnimo.
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Bibliograa
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Resumo: O Incompreendido uma autobiograa espiritual, em que Raul Leal, uma das guras mais excntricas das letras portuguesas, procede a uma auto-introspeco, reectindo nesta pea sobre a sua prpria condio de incompreendido e marginalizado. Abstract: O Incompreendido is a spiritual autobiography in which Raul Leal, one of the most infamously eccentric gures of Portuguese Literature, conducts an exercise of self-introspection, hence reecting upon his own misunderstood and marginalized condition.
A Farsa Lrica no Teatro Romntico ou a forma mnima da desejada nova pera portuguesa
Ana Isabel Vasconcelos
Departamento de Lngua e Cultura Portuguesas Universidade Aberta
Palavras-chave: teatro oitocentista, farsa lrica, msica teatral. Keywords: 19th century theatre, lyrical farce, music for theatre.
1. Ao contrrio da solicitao e da temtica deste Colquio, uma das caractersticas do drama romntico gnero que me tem ocupado enquanto tema de investigao , precisamente, a sua extenso, requisito no s dos textos como dos prprios espectculos que estes enformam. Na verdade, no sculo XIX, e situamo-nos agora na dcada de 40, vivia-se um tempo pouco propcio s formas breves, j que, mais do que um acontecimento festivo, ou um grande meio de civilizao, como os liberais tanto desejaram e proclamaram, uma ida ao teatro constitua sobretudo a possibilidade de desfrutar de um espao de sociabilidade, devendo o espectculo ocupar todo um sero e, de preferncia, de uma maneira bem diversicada. Se percorrermos os anncios dos teatros pblicos da poca a funcionarem na capital1, vericamos que raro o espectculo constitudo apenas pela representao de uma nica pea2, sendo usual a representao de dois gneros num mesmo espectculo. Como sabemos, no que diz respeito escrita dos chamados textos de teatro ou para teatro, o perodo romntico refora a produo de dramas, gnero que, desde o
Teatro do Salitre (1782-1879), Teatro da Rua dos Condes (1756?-1882), Teatro Nacional de D. Maria II (1846), Teatro do Ginsio (1846-1931) e Teatro D. Fernando (1849-1859). Exceptuamos os programas do Teatro de So Carlos, uma vez que este espao se dedicava exclusivamente ao teatro lrico.
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sculo XVIII, se prope ocupar o espao livre entre a comdia e a tragdia, tentando ir ao encontro de gostos e tendncias que uma nova realidade social criara. Mas um s drama no era suciente para entreter todo um sero, que tinha o seu incio entre as 7 e um quarto e as 8 horas da noite. Era necessrio complement-lo com comdias, farsas, peras cmicas ou vaudevilles, alguns melodramas e, esporadicamente, uma ou outra tragdia. Todos estes subgneros se combinavam e alternavam nas 3 ou 4 noites por semana em que cada um dos teatros funcionava, sendo norma a apresentao de, pelo menos, duas peas por espectculo. Ningum estranhar que, numa mesma noite e num nico espectculo, se assista a um drama em 4 actos, a uma comdia e a uma farsa3 ou at a cinco comdias seguidas4. Os teatros de cariz mais popular, como era o caso do Teatro do Salitre, compunham as suas noites, recorrendo mesmo a outras artes. Assim, para alm de todos os gneros acima mencionados, era usual ouvirem-se duetos, assistir-se a uma dana, declamar-se poesia, serem apresentadas breves cenas mmicas ou mesmo executados nmeros de circo, que iam entremeando com as formas mais convencionais de teatro. Para alm da escriturao dos actores e actrizes e de um conjunto de indivduos encarregues de funes parateatrais, os teatros possuam, regra geral, um grupo de msicos que acompanhava muitas das representaes, quer na abertura dos prprios espectculos, quer no incio dos actos, na recriao de determinado ambiente, na execuo de rias, etc. Indispensvel era a sua presena para acompanhar as comdias ornadas de msica, as peras cmicas e, naturalmente, as farsas lricas. Na verdade pouco se sabe sobre a componente musical do teatro desta poca. Ignora-se mesmo, por exemplo, por quantos membros era composta a orquestra, que tipo de contrato existia entre o empresrio e o responsvel pelo grupo inicialmente denominado mestre de msica e, mais tarde, maestro , se o corpo de msicos era xo ou se o seu nmero dependia do tipo de peas representadas, etc.5 Alis, nos estudos que se fazem sobre o teatro oitocentista, ou melhor, sobre os espectculos teatrais
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Por exemplo, no Salitre representou-se, a 21 de Dezembro de 1844, o seguinte programa: o drama O Rei e o Aventureiro, a comdia A Tia Baz e a farsa Depois de Meia-Noite; o intervalo ainda foi aproveitado para uma dana de Cracovienne.
A 23 de Maio de 1856, no Teatro de D. Fernando, apresentaram-se 5 comdias em 1 acto, ornadas de msica, seguidas de uma cena cmica, original de Jos Vasconcelos. Um dos raros artigos que conhecemos sobre esta temtica, da autoria de Humberto dvila, intitula-se Deveres dum mestre de Msica nos teatros de Lisboa nos comeos do sculo XIX, Boletim da Associao Portuguesa de Educao Musical, 62 (Julho/Setembro1989), 28-30, e refere-se explicitamente a um contrato entre Antnio Jos do Rego, ento director musical, e a direco do Teatro da Rua dos Condes, rmado em 1807. Fonte de alguma informao pode ser tambm um documento de 1844, publicado pela Imprensa Nacional, que constitui o Regulamento para os professores que compem a orquestra do teatro nacional e Normal da Rua dos Condes feito pela comisso mista e aprovado pelo conselho da Associao Msica de 24 de Junho reunida ao Monte-Pio Filarmnico.
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oitocentistas, nomeadamente os que passaram pelo Teatro da Rua dos Condes, no normalmente dado o devido valor ao papel da msica e forma como esta apoiava o texto e a representao. Isto provavelmente porque, ao contrrio dos textos que, em maior ou menor nmero, nos vo chegando na forma impressa, a msica sofre a condio do teatro aqui e agora , desaparecendo, grande parte das vezes, logo aps a ltima representao. Uma das formas de se chegar a este conhecimento, ainda que
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incompleto, atravs da investigao da vida e sobretudo da obra de msicos, que sabemos terem composto para esses teatros pblicos6. Esta situao de desconhecimento relativamente ao papel da msica no teatro declamado difere da investigao que tem sido feita relativamente ao teatro lrico, uma vez que os libretos e as partituras asseguram uma certa perenidade do fenmeno espectacular. Recorde-se a este propsito que, antes de existir o Teatro de So Carlos, o Teatro da Rua dos Condes foi, durante algum tempo, um espao dedicado ao teatro lrico, tendo nele actuado diversas companhias de pera italiana7. conhecida a popularidade conquistada por Ana Zamperini, que, como se sabe, havia de dar gua pela barba ao Marqus de Pombal. [] Os poetas enciumados promoveram entre si, com escndalo, uma verdadeira guerra Corriam todos no s a ouvi-la, como para a ladear apoteoticamente pelas ruas da cidade E aos domingos juntava-se grande multido na Igreja do Loreto mais para admirar a diva que para assistir ao Santo Sacrifcio da Missa (Lopes, 1968: 91). Em 1793, abre ento as portas o Teatro de So Carlos, construdo assumidamente para a apresentao de peras, deixando o palco do Condes livre para o teatro declamado, embora, como j referimos, este no dispensasse o apoio musical. Alis, facilmente se compreende a funo essencial da msica para captar a ateno e o interesse de espectadores, pertencentes a uma populao com uma taxa de analfabetismo elevadssima. Mais do que textos eloquentes, os dramas da poca apostavam em trocas dialgicas que provocassem emoes fortes, construindo situaes pouco verosmeis mas surpreendentes, mortes e ressurgimentos (para no dizermos ressurreies) inesperados, ambientes soturnos em que as paixes acabavam no raro em morte e destruio. A tudo isto assistiam os espectadores, horrorizando-se deleitadamente. Apesar destes textos de tom melodramtico ou precisamente por causa deles, uma comdia era sempre vista com agrado. E se ornada de msica, melhor ainda. semelhana dos dramas, o teatro francs tambm as fornecia, sendo apenas necessria a sua verso (traduo) para a lngua portuguesa. Por vezes, bastava at imitar, acomodando ao gosto portugus8.
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Para tal de grande utilidade o Dicionrio Biogrco de Msicos Portugueses, de Ernesto Vieira, que, embora com algumas imprecises, constitui um valioso repositrio da produo musical oitocentista em Portugal.
Nesta altura o Teatro da Rua dos Condes tinha como director musical Antnio Leal Moreira e como empresrio Antnio Lodi, tendo ambos transitado para o So Carlos aquando da sua abertura. Quanto ao Teatro do Salitre, desde 1782 que Marcos Portugal dirigia [neste espao] um repertrio principalmente constitudo por adaptaes de libretos cmicos italianos, cantados em portugus por actores portugueses (Nery e Castro, 1991: 119-120).
O prprio Garrett o fez e com assinalvel xito. Quem no conhece Falar Verdade a Mentir, uma comdia imitada de um texto de Scribe intitulado Le Menteur Veridique e que hoje pode ser lida pelos nossos jovens do 3 ciclo do Ensino Bsico? Tratando-se originalmente de um vaudeville, Scribe salpicou-o de rias
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Eugne Scribe o autor francs mais traduzido na dcada de 40, anos que, como refere Jos Augusto Frana, foram especialmente marcados pela vida da pera (1993: 194), frequentada na sua maioria pela aristocracia e pela grande burguesia. Com efeito, sobretudo at inaugurao do Teatro Nacional D. Maria II, o Teatro de So Carlos era o teatro e os espectadores da Rua dos Condes, sobretudo a pequena e mdia burguesia, olhavam para o que se l passava com muita curiosidade e alguma cobia. A tentao dos responsveis pela gesto do Condes9 foi replicar esse repertrio lrico, correspondendo, por um lado, aos desejos de um pblico vido das vivncias culturais das classes superiores e, por outro, ao gosto do ento empresrio, o Conde de Farrobo, que, como se sabe, era um melmano inveterado. desta conjugao entre desejo e gosto que se instala, por importao, a pera cmica naquele espao10. Era, sem dvida, um gnero que, com um estilo musical mais simples do que o da pera dita sria e agora cantada em portugus, parecia aproximar de forma mais ligeira o espectador da msica erudita. Embora apresentasse um grau menor de exigncia no que diz respeito execuo vocal, a produo destes espectculos era, ainda assim, de pouca qualidade devido manifesta falta de preparao dos intrpretes11. Estes mais no eram do que os actores comuns, reforados pontualmente por cantores dispensados do So Carlos, mas que, como se pode compreender, apresentavam um resultado bastante deciente. Os crticos no lhes facilitam a vida, estranhando esta insistncia na msica vocal e instrumental em detrimento da declamao propriamente dita. A propsito da pera cmica O Campo dos Desaos, diz, em tom irnico, o articulista da Revista Universal Lisbonense: Espera-se que a pea d dinheiro, e com raso. Muita musica, e quasi nenhuma declamao cest le bom ton assim o dizem os ltimos gurinos theatraes. O nosso povo est no bero, e quer que lhe cantem Fiat voluntas sua (14.04.1842). Mas uns meses mais tarde e alguns espectculos depois, Mendes Leal ataca desabridamente a representao de Fra-Diavolo 12, uma pera cmica da autoria de Scribe e de Auber:
famosas, alterando-lhes a letra. Na verso portuguesa, Garrett substitui estas partes cantadas por texto dito, contornando assim a provvel (e tantas vezes provada) incapacidade vocal/musical dos actores.
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Entre 1840 e 1843 o Teatro da Rua dos Condes teve o Conde de Farrobo como empresrio e Emile Doux no lugar de director/ensaiador. Sobre este assunto, ver Gonalves, Isabel (2003). A introduo e a recepo da pera cmica nos teatros pblicos de Lisboa entre 1841 e 1851. Revista Portuguesa de Musicologia, 13, 93-11. Curioso o anncio dirigido a todas as pessoas que se achassem no caso de poder cantar as peras para que se apresentassem naquele teatro para tractar com o director Emilio Doux (cf. Revoluo de Setembro, 24 Maio 1841).
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Esta pera cmica, composta por 3 actos, estreou-se no Teatro da Rua dos Condes a 20 de Setembro de 1842 e teve mais de 30 representaes (cf. Santos e Vasconcelos, 2007: 53).
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O primeiro e maior inimigo do nosso theatro portuguez actualmente a peracmica. Esta planta extica, transportada para um terreno improprio, nem medra, nem produz, mas envenena. [] A monomania portugueza de macaquear estrangeiros j agora a ruina de grande parte das nossas coisas. [] Em Frana porm aonde ha tanto theatro de declamao, e tanta abundancia de ingenhosos musicos, a peracmica pde ser um desenfadamento para os saciados, e um emprego para os mestres compositores, que sobejam. Em Portugal o caso absolutamente ao avsso. [] A pera-cmica nascida da profuso, e abundncia franceza, um verdadeiro agello applicado ao theatro portuguez. A pera-cmica bem cantada e bem representada pde ser soffrivel e ainda agradvel, mas a pera-cmica, ridiculamente representada e infernalmente cantada, o cmulo do desproposito [..]. (RUL, 26 Jan. 1843)
No ano seguinte, em 1844, um compositor j conhecido, ngelo Frondoni, e o agora libretista Silva Leal, apresentaram uma composio original, inovadora at na forma, que obteve um xito estrondoso. Tinha como ttulo O Beijo e pertencia a um novo gnero, apelidado de farsa lrica, que, tomando como referncia a pera cmica francesa, se acreditava constituir o embrio da nova pera portuguesa. 2. Etimologicamente, o termo farsa tem a sua origem no acto de rechear peas de caa com algo bem condimentado, cumprindo a funo de complementar saborosamente o elemento principal. Os historiadores do teatro defendem que, enquanto produto para representao, a origem da farsa est ligada a cenas cmicas com que recheavam as representaes dos mistrios, constituindo estes, como sabemos, uma das principais formas do teatro medieval. Devido a esta sua utilizao, a farsa possua o carcter de corpo estranho relativamente componente espiritual, proporcionando interregnos de descontraco e boa disposio. Como assinala Patrice Pavis, a farsa no tem a veleidade de ombrear com as formas mais elevadas de arte dramtica, surgindo como uma forma primitiva e grosseira, incapaz de elevar-se ao nvel da comdia. Tida assim como um parente pobre no gnero cmico, e talvez precisamente por no ter pretenses intelectuais, esta forma breve sempre gozou de grande popularidade, j que tem por objectivo imediato provocar o riso no espectador. Mais do que um texto dramtico um texto espectacular, cuja popularidade residiu sempre no facto de possuir um contedo fortemente gestual e histrinico, o que requer, por parte do actor, uma tcnica corporal e vocal muito exigente (Solmer, 2003: 49). Tentando caracterizar o que seria uma farsa padro, Cardoso Bernardes (1996: 203) elenca as seguintes caractersticas: O suporte narrativo da aco, o pequeno nmero de personagens (2 a 6 e, mais frequentemente, 3 ou 4); a curta extenso do texto (350 a 500 versos, em mdia); o vincado enquadramento das personagens na realidade (o que as faz ter prosses, lhos, etc.) e, sobretudo, a importncia do engano ou da burla como fulcro da aco []).
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Estas formas breves de teatro tm presena assdua nos repertrios dos anos 40. Embora na sua maioria se trate de tradues/adaptaes do francs, comeam tambm a surgir originais portugueses de autores como Antnio Xavier, Ricardo Jos Fortuna, Jos Joaquim Bordalo e Paulo Midosi. Lus Francisco Rebello, que reuniu alguns destes textos numa antologia, arma que de umas [farsas] para outras, idntica a estru-
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tura, como idnticas so as personagens, tal como aquela obedientes aos mesmos esteretipos. Os prprios temas variam pouco. Velhos enamorados e crdulos, que acabam ludibriados pelas astcias de criados que favorecem os amores dos seus jovens amos, circulam com estes de pea para pea, a par de advogados chicaneiros, mdicos pedantes, poetastros pretensiosos, militares fanfarres (1998: 12). Enm, uma actualizao dos temas e das personagens das farsas vicentinas. 3. Que se poderia ento acrescentar a uma receita to antiga que a tornasse num xito de bilheteira? Sem dvida que o recurso a uma linguagem universal, a msica, agora cantada e, ainda por cima, num registo popular. Este novo gnero, que se deseja modelar, retoma duas das principais caractersticas da pera cmica: a alternncia entre o teatro declamado [no recitativo] e o canto, e um libreto originariamente cmico, burlesco ou parodstico, harmoniosamente doseado (Silva, 2004). A diferena fundamental reside numa maior simplicidade do enredo, devido, por um lado, menor extenso do texto e, por outro, necessidade de este se articular com a msica. Diferentemente do vaudeville, a farsa lrica assenta sobretudo no canto, sendo a parte declamada a componente menos valorizada do espectculo. Apesar de tudo, mais do que para os compositores portugueses, esta era uma nova experincia e constitua um desao para os novos libretistas, habituados a escrever os seus textos, sem o constrangimento musical. A esta diculdade e velha questo da supremacia entre a msica e a palavra se referiu Silva Leal, o autor da letra de O Beijo, na introduo que escreveu aquando da publicao do texto:
A musica com effeito uma parte essencial das composies deste gnero; mas sempre subordinada poesia. O poeta sim deve procurar que a sua pintura e expresso dos sentimentos seja adaptvel a musica; e collocar os seus personagens em tal situao que elles possam exprimir as suas sensaes duma maneira lyrica: sim deve empregar pensamentos uentes, elegantes de rytmo; e dar em m occasio musica para exprimir o que a poesia s por si no poderia pintar. Mas o compositor tem que modelar a sua musica pela altura da poesia: tem de exprimir os sentimentos e as paixes por outrem criadas: tem de accomodar o rythmo musical ao rytmo potico [] Resumindo, a musica feita para o poema e no o poema que se faz para a musica.
O Beijo teve, no Condes, cerca de 100 representaes. A sua msica, sobretudo a modinha da saloia, era cantada por toda a parte e para ela se compunham at novos versos. No possuindo ns competncia tcnica para apreciar a singularidade da composio musical da modinha e no existindo estudos sistemticos sobre o assunto, referiremos as duas principais caractersticas originalmente atribudas a este gnero: forte enraizamento em composies antigas e carcter genuno13. Acontece, porm, que, no
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Sobre esta temtica, ver Castro, Paulo Ferreira de (1992). O que fazer com o sculo XIX? Um olhar sobre a historiograa musical portuguesa. Revista Portuguesa de Musicologia 2, 171-183.
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perodo romntico, a pera italiana exerce uma inuncia preponderante sobre o estilo musical da modinha, a ponto de muitas composies tomarem o aspecto de simples subprodutos operticos para consumo domstico, perdendo assim todo o seu carcter original (Nery e Castro, 1991: 129). Neste sentido, a modinha aparece redenida como uma cano sentimental, em portugus, de grande feio nacional, embora com alguma inuncia italiana, com acompanhamento de piano (ou cravo), viola dedilhada ou ainda guitarra inglesa (actual guitarra portuguesa) (ibid.). A propsito de uma outra farsa lrica, esta com letra de Mendes Leal, um dos mais profusos escritores dramticos da poca, intitulada Um bom homem de outro tempo, referiu um crtico que a msica destas farsas no tem semelhana com o vaudeville francs, nem com a pera italiana pura. Trata-se de um gnero ligeiro, engraado, agradvel, que ningum experimentara antes. Atentemos na descrio feita relativamente combinatria msica-aco:
Quando o velho d dinheiro ao pescador pela boa nova que lhe trouxe e que ele resolve empregar esse dinheiro em vinho, os contrabaixos executam um trecho que exprime com toda a propriedade o homem brio que cambaleia. Estas minuciosidades parecem prolixas no o so; o compositor tem de exprimir todos os afectos, todas as circunstncias mais pequenas. Um duetto entre a Sr. Radicci e Van-Nez lindo; tem o cunho de sentimento Donizetti, que muito nos agradou. Sentimos que o coro das varinas no fosse devidamente apreciado; nacional, popular, alegre e bem elaborado. O emsemble nal merece ser mencionado; aquela interrupo para a leitura da carta, em que as rebecas continuam um som prolongado, ao de leve produz efeito, alm de que todo o nal majestoso e pode ser classicado de ptimo. (A Lysia Dramtica, 1846, n 2: 2)
Provavelmente devido ao xito de O Beijo, Silva Leal recebeu uma outra encomenda: o libreto para uma farsa lrica a apresentar na noite de pr-inaugurao do Teatro Nacional de D. Maria II. Desta vez teria que trabalhar com Joaquim Casimiro, o compositor a quem fora encomendada a msica. E assim nasceu Um Par de Luvas, que, a 29 de Outubro de 1845, depois de uma Ode e de um drama de Alexandre Dumas, foi apresentada no palco do futuro novo teatro, festejando o aniversrio de D. Fernando. Na histria deste teatro, Matos Sequeira refere-se a esta noite do seguinte modo:
O espectculo de 29 de Outubro foi gratuito, e os convidados encheram o Agrio, e l estiveram festejando o Rei-artista, at s duas de madrugada, ouvindo a Cantata Manh de um Belo Dia, do maestro Pinto, a comdia em 5 actos O Senhor de Dumbick, traduzida por Joo Baptista Ferreira, e a farsa lrica Um Par de Luvas, de Silva Leal, musicada por Joaquim Casimiro. Nada menos de sete actos, longos, festivos, compassados, representados pela companhia do Condes, pela Sr. Emlia, pela Talassi, pelo Rosa, pelo Epifnio, pelo Sargedas. Grandes nomes! (Sequeira, 1955, I: 111)
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Podemo-nos congratular com o facto de terem chegado at ns as duas vertentes de registo desta farsa lrica libreto impresso e partitura manuscrita , ambas guarda da Biblioteca Nacional. No que diz respeito ao texto, nesta farsa o efeito cmico assenta essencialmente no tom do discurso de algumas personagens. Alis, temos aqui uma intriga reduzida, contendo apenas o essencial para que se possa reconhecer uma cena de costumes. A aco resume-se ao seguinte: numa casa de modas, a caixeira alvo dos galanteios de um cliente que, disfaradamente, lhe deixa um bilhete dentro de um par de luvas. Por uma srie de coincidncias, o bilhete vai parar s mos erradas, dando origem a mal-entendidos e a questinculas entre as personagens masculinas. Tudo se esclarece com facilidade, acabando em promessa de casamento. Perante uma tessitura dramtica to rudimentar, percebemos que este tipo de texto composto vive essencialmente do espectculo. As linguagens musical, visual e gestual que sustentam a linguagem verbal constituem-se como o mago da representao. Retirados estes apoios espectaculares, o que ca para revisitar? Um texto que, apesar de compreensvel, se sente como incompleto. Percebemos que o investimento foi feito sobretudo a pensar no momento da representao. Escreveu-se para o palco, com um objectivo determinado, tendo em mente determinados actores e um pblico especco. Antnio, personagem representada pelo imortal Sargedas, o heri cmico. Brincalho e de graa fcil, esto nele concentrados os momentos de humor, desempenhando sempre um papel de relevo na perspicaz contracena com as outras personagens. As trocas dialgicas so rpidas, as falas so curtas, a aco tem uma cadncia bem ritmada, predominam os versos de 3, 5 e 7 slabas e a maior parte do texto cantado. Atentemos nas seguintes quadras, em que se caricatura ironicamente uma gura tpica da Lisboa de Oitocentos e bem representada no texto, j que o coro constitudo precisamente pelo conjunto das costureiras. Antnio quem as interpreta:
Quis o demo pescar homens, No inferno os no achou, E pra ter melhor colheita Certo ingodo imaginou: gandaia veio ao mundo, Quanto lixo viu junctou, E de trapos e frangalhos Novo ser ento formou: Do murro da luz da vida A sua alma atamancou; Corao lhe deu de cisco; Um diabrete assim creou:
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A malcia e a vaidade Nessa coisa lhincarnou: Atirou com isso terra Costureira lhe chamou.
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Quanto msica, porque composta propositadamente para esta letra, espera-se que seja genuna, de cariz popular, evitando eventuais contaminaes das composies francesas e italianas que, muito provavelmente, j teriam sido estudadas e executadas pelos msicos portugueses. Pelo menos assim se desejava, uma vez que, como referimos no incio, acreditava-se que neste teatro mnimo, nesta forma breve de composio lrica, estivesse o embrio da to desejada pera portuguesa.
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Resumo: Nos anos 40 de Oitocentos, teve assinalvel xito um novo gnero de produo teatral, fortemente inspirado na pera cmica francesa, que ento se fazia representar em Lisboa com alguma regularidade. Neste artigo, contextualizaremos o aparecimento dessa nova forma de teatro original portugus denominada farsa lrica e que se acreditou que constituiria o embrio da to desejada nova pera portuguesa. Abstract: During the 1840s, a new genre appeared in Portuguese theatre. It was called lyrical farce, and it was largely inuenced by the French comic opera that was very much performed on the Lisbon stages. It was believed that this new genre would give birth to the future Portuguese opera. In this paper we will present this new form of original Portuguese lyrical composition for theatre.
Ah! Mnim dum Corisco!..., de Onsimo Teotnio Almeida: o triunfo e a derrota do emigrante aoriano
Mnica Serpa Cabral
Universidade de Aveiro (Doutoranda)
Palavras-chave: emigrao, crtica, stira, humor. Keywords: emigration, critique, satire, humor.
Exmio conhecedor da comunidade lusfona existente na costa leste dos Estados Unidos, Onsimo Teotnio Almeida publicou, em 1978, uma obra dramtica composta por curtas peas de um acto, que foca os efeitos da emigrao. Ah! Mnim dum Corisco!... contm histrias simples, unicadas por um mesmo tema, vividas por seres que se debatem consigo prprios, com um mundo desconhecido, com uma lngua diferente, com novos valores e normas de comportamento, com condies de trabalho adversas, com vista a uma adaptao ao espao controverso e complexo da L(USA)lndia. Denido pelo prprio autor como uma poro de Portugal rodeada de Amrica por todos os lados (Almeida, 1987: 7), o mundo l(USA)lands uma realidade marginal, resultante da fuso de duas culturas: a portuguesa, nomeadamente, a aoriana, e a americana. Alis, o ttulo da obra aponta para uma consequncia dessa simbiose cultural: o modo de falar do emigrante, assente na transferncia de elementos de uma lngua para a outra e na criao de novas palavras, como mnim, referente a dinheiro, o elemento motivador da partida, o objecto da determinao ambiciosa do emigrante. No entanto, como essa obsesso de enriquecer passa pela aceitao de trabalhos rduos, montonos e desprezveis e pela dolorosa saudade da terra natal, o mnim qualicado de corisco, isto , malvado, maldito, ruim. Focando situaes cmicas retiradas do quotidiano, estes textos provocam o riso, atravs da ironia, da stira, da caricatura, e desempenham, ao mesmo tempo, uma funo ideolgico-social, cumprindo a conhecida mxima latina: ridendo castigat mores.
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A emigrao aoriana um fenmeno com origem no sculo XVI. No sculo XX, o movimento intensicou-se, atingindo os nveis mais altos nos nais da dcada de 50, devido ao Vulco dos Capelinhos. Conhecido como o primeiro grande destino da emigrao, o Brasil foi posteriormente ultrapassado pelos E.U.A., que, a partir do nal do sculo XIX, surge como o pas que mais acolhe emigrantes aorianos, sobretudo devido aos navios americanos de caa baleia, que comeam a recrutar mo-de-obra insular, a maioria das vezes, clandestina, impulsionando, deste modo, este surto migratrio. Em meados do sculo XX, o Canad junta-se aos E.U.A. como um importante destino da emigrao. A escassez dos meios de sobrevivncia, o excesso populacional, os cataclismos da natureza, como sismos, vulces e tempestades, a fuga ao recrutamento militar, o desejo de enriquecer constituem as principais causas da emigrao. Porm, no podemos deixar de referir que o esprito de aventura, que condicionou a expanso ultramarina, sobretudo nos seus primrdios, nunca deixou de exercer alguma inuncia na importante deciso de partir para terras longnquas. A par disso, a localizao geogrca das ilhas, principalmente a atraco exercida pelo mar, sempre despertou nos aorianos a capacidade de sonhar e o desejo de evaso. Adicionalmente, a imagem dos E.U.A. como o pas do ouro e dos dlares, transmitida pelos primeiros corajosos, imprime naqueles que caram um profundo fascnio e a vontade de partir e atingir, igualmente, o sucesso (real ou ctcio) dos primeiros a emigrar. Sendo uma componente relevante na histria dos Aores, a emigrao constitui um dos grandes veios temticos da literatura aoriana. Tendo sido retratada, inicialmente (segunda metade do sculo XIX), atravs do conto literrio, com o passar dos tempos ela foi conquistando o seu espao no seio de outros gneros literrios, como o romance, a crnica, a poesia lrica, o drama e, neste caso, a comdia. Apesar de estarmos perante textos dramticos, logo no incio da obra deparamonos com uma marca do modo narrativo: o narrador. De facto, tal como nos dramas antigos, esta entidade, atravs de uma espcie de prlogo, apresenta o assunto da obra, faz alguns comentrios reexivos e contextualiza a situao inicial, efectuando a mediao entre o pblico e a histria. No s na introduo mas ao longo das trs partes que compem a obra, encontramos a presena deste narrador, que prepara o pblico para a pea seguinte, atravs de explicaes prvias, deixando, ao mesmo tempo, bem demarcada, a sua posio face aos assuntos tratados. Neste texto inicial, esta entidade aborda o drama do dualismo interior do emigrante, que se sente dividido entre dois mundos: a terra de origem e o pas de acolhimento. Ele j no totalmente portugus mas tambm ainda no totalmente americano. Essa identidade fragmentada e transgurada, de que a mudana de nome um sinal, diculta ao emigrante o posicionamento relativo ao mundo e a si prprio. Efectivamente, a adopo de uma nova ptria coloca-lhe inmeros desaos num movimento oscilatrio de aceitao e rejeio das culturas de origem e de destino. Todavia,
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o seu desejo de vencer, de fazer crescer a conta no banco, f-lo sujeitar-se a condies de trabalho pouco saudveis para quem tinha uma vida pacata e tranquila na ilha. Essa obsesso pelo dinheiro criticada pelo prprio narrador. Atravs da representao de cenas do quotidiano, possvel expor, desmascarar e ridicularizar toda uma situao social, cultural e poltica que determina e condiciona a vida das comunidades luso-americanas. No prlogo, de valor informativo e metaliterrio, o narrador refere que essa , precisamente, uma das funes do teatro: espelhar uma comunidade e ideologia e assumir um papel de combate atravs da crtica, da stira, inserindo-se, deste modo, na longa tradio que vem desde Gil Vicente. Sobre esta funo ideolgica e didctica, Jerzy Grotowski refere que o teatro deve atacar aquilo a que podemos chamar os complexos colectivos da sociedade, o ncleo do subconsciente () colectivo, os mitos que no so inventados pelo pensamento mas que, por assim dizer, so herdados pelo sangue, pela religio, pela cultura e pelo clima (1971: 41). O que Onsimo pretende mostrar ao mundo so os mecanismos que presidem vida quotidiana do emigrante, sobretudo os sociais, culturais, polticos e psicolgicos, com vista a criticar, satirizar, fazer rir e, no fundo, contribuir para que algo se modique. Ao terminar a pequena introduo, o narrador menciona a simplicidade que subjaz a esta obra, composta por retalhos de um mundo particular feito de metade Portugal, metade Amrica. Segundo o prefcio, escrito por George Monteiro, Ah! Mnim dum Corisco!... no uma pea apenas, mas uma srie delas, algumas, genunos black-out, outras, interldios, outras, ainda, primeiro acto de uma pea que nunca ser completada (1998: 12). Independentemente do subgnero a que pertencem, duas das caractersticas mais evidentes destes textos so a brevidade e a unidade de aco, tempo, espao e personagens. Sem qualquer diviso em actos ou cenas, apesar da sada e entrada de personagens, cada uma destas peas poderia funcionar autonomamente, apesar de todas elas constiturem variaes do mesmo tema. Apesar de no haver diviso em cenas, a iluminao desempenha um papel fundamental nestas peas. Ao lermos as didasclias, notamos que atravs da iluminao que se faz a delimitao do espao cnico, visto que a incidncia de um foco de luz sobre um determinado ponto do palco signica que ali que a aco se desenrola naquele momento. Em suma, as personagens permanecem sempre no palco, mas a iluminao que determina quais as que esto em cena. excepo da primeira pea, cuja aco se desenrola em espao aoriano, aquando de uma visita terra natal por parte de uma famlia de emigrantes, todas as restantes tm como cenrio as comunidades portuguesas dos E.U.A., que depois se particulariza em espaos especcos, como a escola (para crianas e para adultos), um museu portugus, salas de conferncias, a auto-estrada, etc. Em todos os espaos, representativos de vrias facetas da experincia emigrante, assistimos ao choque ou, pelo menos, a desencontros entre valores e culturas. Qualquer que seja o cenrio, a emigrao asso-
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cia-se a um processo de aprendizagem de um novo modo de ser, de estar, de pensar e de falar, num palco estrangeiro. A linguagem assume, claramente, um papel relevante nessa progressiva participao e adaptao nova ptria. Centrando agora a nossa ateno na forma, como j referimos estas so peas que contm apenas um acto. So escassas as referncias, nas obras tericas, a este tipo de texto dramtico, apesar de encontrarmos, ao longo do percurso histrico-literrio do teatro portugus, inmeras composies dramticas estruturadas em um s acto. Alis, Luiz Francisco Rebello, conhecido dramaturgo, historiador, ensasta e crtico de teatro, organizador de duas antologias de peas de acto nico, sustenta, no prefcio a um dos volumes, que num acto so () muitas das melhores peas do teatro contemporneo (1997: 8). Acrescenta, ainda, que a origem destas composies mais antiga do que se pode pensar primeira vista, enumerando as formas simples que, ao longo dos tempos, apresentam essa estrutura: desde os dramas satricos da Grcia Antiga, passando pelos mistrios da Idade Mdia, pelos autos de Gil Vicente, por algumas composies de Cervantes, Molire, etc. (ibid.), anteriores ao naturalismo, movimento que deu particular nfase a este tipo de texto dramtico, conferindo-lhe um lugar prprio. A par disso, contrariamente tendncia geral dos tericos da literatura, que apresentam apenas a acepo actual de acto como parte da aco dramtica, este estudioso refere o signicado etimolgico desta palavra, sinnima de aco dramtica, independentemente das dimenses da pea. Carlos Reis e Vtor Manuel de Aguiar e Silva mencionam a concentrao como um dos imperativos do texto dramtico, que se revela, normalmente, atravs da condensao temporal e espacial e atravs da eliminao do supruo, do descritivo e do acessrio. Ora, possuindo, na maioria das vezes, dimenses bastante reduzidas, a pea num acto parece exigir, de forma mais veemente, o cumprimento desse requisito, isto , o de uma economia e concentrao estruturais. Ao renunciar diviso em trs actos, contrariamente ao que acontece em grande parte do teatro portugus, Onsimo Teotnio Almeida anuncia outra vontade construtiva e estrutural, assente na criao de unidades pequenas, episdios curtos que, atravs do riso e da stira, reectem, no fundo, o complexo drama do emigrante aoriano. Nestes textos, a economia e a concentrao revelam-se atravs do nmero reduzido de personagens que o autor coloca em palco e atravs da unidade de tempo, de espao e de tema, visto que as peas retratam o mesmo tempo histrico o da emigrao na segunda metade do sculo XX , situam a aco em cenrios relacionados com as comunidades portuguesas dos E.U.A. e apresentam variaes do mesmo assunto. Ao lermos estas peas, apercebemo-nos, facilmente, de que Onsimo conhece o poder sugestivo da msica e usa-o, sobretudo no incio e no m de cada pea, para fazer a ligao entre os textos, para conferir uma tonalidade obra e para divertir e apelar inteligncia crtica do espectador. Deste modo, as cantigas populares aorianas, cujas letras foram modicadas, colocam-se ao servio da stira, do humor e da
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crtica, focando assuntos ligados experincia emigrante, como o ensino do ingls, a actuao dos polticos nas comunidades luso-americanas, a chegada dos portugueses Amrica, a barreira lingustica, as condies de trabalho dos emigrantes, o desejo de regressar terra natal, o conito de geraes, o sucesso nanceiro, a iluso do sonho americano. Portanto, a msica serve para enfatizar, ampliar e desenvolver os temas tratados nas vrias peas. Alm desta funo ldica e didctica, os momentos musicais estabelecem uma ligao com a cultura de origem, ao recuperarem a tradio aoriana das cantigas ao desao. Uma das diculdades com que o emigrante se defronta no novo meio a falta de comunicao devido barreira da lngua, que origina desencontros e confuses, mas que constitui um elemento fundamental na adaptao ao novo pas. A diculdade em ultrapassar esta barreira humoristicamente explicada pelo emigrante Jnim, na primeira pea: Um homem engatinha trs vezes na vida: quando criana, quando vai para a tropa e quando casa. O imigrante engatinha quatro: na lngua!... Mas essa ele vai para a cova ainda a engatinhar (Almeida, 1998: 31). Este subtema encontra-se implcita ou explicitamente presente em todas as peas. Contudo, possui um lugar de destaque no segundo texto da primeira parte, que tem como cenrio uma sala de aula onde crianas emigrantes recm-chegadas aprendem o ingls como segunda lngua. A professora, Mrs. Cavalo, anteriormente Carvalho, personica a incompreenso e indiferena do pas face cultura de origem dos emigrantes e a tentativa de instituir a uniformidade e a conformidade face sociedade americana, representada pela expresso Here you do as we do (ibid.: 53). Trata-se de um ensino nem sempre direccionado para a vida prtica, pois, em vez de ensinar frases importantes como Eu tenho fome, Eu tenho sede ou Eu tenho dores, como sugerem os alunos, a professora obriga-os a repetir frases desnecessrias. Outra das falhas deste sistema de ensino bilingue prende-se com o desinteresse face aos conhecimentos j adquiridos pelas crianas recm-chegadas, como a Marta, enviada para um nvel demasiado inferior para as capacidades que possui, e ignorada mesmo quando arma saber falar o ingls britnico. Posto isto, torna-se evidente que este ensino acaba por no resolver os problemas destas crianas, mas sim incutir-lhes, de maneira mecnica, forada e insensvel, toda uma cultura e ordem articiais, que devero suprimir por completo a cultura de origem, como podemos vericar no discurso intransigente da professora, incapaz de construir uma frase linguisticamente correcta em portugus:
Professora Tens para esquecer o moda de Portugal. Noutra maneira nunca mais never vais aprender. Maria Mas eu acho que no devia esquecer, pois eu ouvi dizer que a Amrica vai mudar para o sistema mtrico. Professora Quando muda hs-de aprender outra vez. (ibid.: 54)
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Alm disso, logo no incio da pea, segundo as didasclias, o pblico pode observar dois posters na sala de aula: um com a frase We love America the beautiful e outro com My country is the USA, que os alunos devero decorar, mesmo sem as sentirem. Na ltima pea, intitulada Na Escola para tirar os papeles americanos, o sonho do lho de um emigrante aoriano reecte essa manipulao por parte do sistema de ensino americano: A minha professora tinha-me levado para o hospital e um senhor doutor ia fazer-me uma operao na cabea para eu trocar a fala para ingls e depois ia pr sangue de gente americana nas minhas veias (ibid.: 40). Estas foras exteriores arrastam os lhos dos emigrantes para um mundo diferente do dos pais, provocando conitos de geraes que, segundo Maria Saraiva de Jesus, tendem a ser mais profundos nas famlias de emigrantes, pelas diferenas que se implantam entre pais e lhos, sujeitos a experincias e formaes diversas, acentuadas pelos desnveis da educao escolar (1995: 131). Essa clivagem entre pais e lhos igualmente visvel na relao com o pas de origem. Depois de esbatidos o fascnio e a admirao pelo Pas dos dlares, devido ao contacto com o quotidiano emprico, os primeiros comeam a idealizar a terra natal e a desejar o regresso, mesmo que temporrio, enquanto que os lhos vo cando cada vez mais presos ao presente e ao pas para onde foram viver ainda muito novos ou onde j nasceram. Nesta obra, o cmico o veculo por que se exprime todo este complexo drama do emigrante desenraizado. As peas no apresentam uma estrutura fechada, visto que a aco no fornece princpio, meio e m. Alis, segundo Wolfgang Kayser, o cmico adapta-se perfeitamente pea em um acto, pois parece preferir as estruturas abertas, sem desenlace (1985). Gilles Girard Real Ouellet revela a mesma opinio, ao referir que os pontos de partida e de chegada so na comdia menos privilegiados que o itinerrio percorrido (1980: 189). De facto, nenhuma destas peas oferece uma soluo para o enredo, visto que a preocupao do autor expor retalhos da vida quotidiana, e no delinear uma intriga com desfecho. Recorrendo a vrias estratgias tcnico-discursivas, o autor tenta fazer o pblico rir. Tal como na vida do emigrante, a linguagem possui igualmente uma importncia incontestvel no registo cmico, que aproveita na mais rica plenitude as possibilidades deste recurso. Uma das estratgias mais usadas pelo escritor consiste nos jogos de palavras, que exploram a semelhana entre sons e que assentam na transferncia de elementos de uma lngua para a outra. Por exemplo, na pea O nosso Bicentennial Minute, de dimenses extremamente reduzidas (trs pginas), assistimos a uma conversa entre dois emigrantes (um terceirense e um micaelense), a qual, supostamente, originou o topnimo Cape Cod. Perante o facto de haver to grande vastido de terras sem serem usadas na agricultura, o Tio Francisco exclama Que pecado! com a pronncia micaelense acentuada: Qu pecde!, que ter originado Cape Cod, um jogo
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fnico que assenta na transformao das palavras por meio da homofonia. Esta rbula ilustrativa de uma stira pattica procura por parte dos emigrantes de tudo quanto possa estar relacionado com a sua terra natal e ridcula inteno de ver em qualquer lado a inuncia portuguesa, chegando ao ponto de se inventar, sem qualquer prova cientca, a origem portuguesa de guras e acontecimentos da histria americana, como acontece na pea Peter Francisco e John Philip Sousa encontram-se no Museu Portugus. O cenrio , como o ttulo indica, um museu portugus, e os intervenientes so as esttuas de guras clebres da histria americana, que, sofrendo um processo de animizao, conversam sobre a sua suposta origem portuguesa. Assim, Peter Francisco, um heri da Guerra da Independncia, informa John Philip Sousa, conhecido pelas suas marchas militares, acerca da descendncia portuguesa de guras como George Washington, cuja famlia era conhecida por a famlia do Antnio Lavadinho. Quando emigravam para a Amrica, naquela altura toda a gente mudava o nome: Rogers, por exemplo, era Rodrigues em portugus (1998:127). E o prprio George Washington continua a explicao, referindo que o meu pai traduziu LAVA para WASH. Como ele no sabia o Ingls suciente, dizia Washading. Foi um funcionrio que alistava o pessoal para a tropa que achou o nome meio estranho e nalmente escreveu inglesa o nome por que hoje sou conhecido: Washington (ibid.: 128). O mesmo processo de americanizao dos nomes portugueses sucedeu a Thomas Jefferson (anteriormente, Toms Jos Frazo); Abraham Lincoln, cujo apelido nasceu da juno das duas primeiras metades do nome de famlia Lino Coelho, cando Lincoel e, por erro do escrivo, Lincoln; Franklin Roosevelt, antes conhecido por Francisquinho da Rosa Valente. Como se nota, nesta pea, o cmico manifesta-se, de forma mais evidente, atravs da linguagem e da explorao, at ao ridculo, das semelhanas fnicas entre as palavras. A ironia tambm se encontra presente, sobretudo no facto de a nica personagem que sabemos ser, de facto, portuguesa, ter como prosso empregado de limpeza, a nica a manifestar algum bom-senso ao armar que parece que os portugueses, por terem to pouca gente importante na histria da Amrica, baptizam como portugus tudo o que aparece sem dono (ibid.: 125). Uma das situaes mais retratadas na literatura aoriana sobre a emigrao o regresso (temporrio ou denitivo) do emigrante terra natal. Alm de conrmar ou desmentir as expectativas da partida, esse retorno permite-nos detectar um conjunto de sinais que compem o esteretipo do chamado calafona, isto , o emigrante regressado1. A primeira pea, intitulada A famlia do Jnim Rapoza vai s festas do
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No artigo Do viveiro insular Amrica em contraluz (Ilhas Conforme as Circunstncias. Lisboa: Edies Salamandra, 2003, 23), Urbano Bettencourt cita Natlia Correia, que faz uma descrio muito completa desta gura: Os calafonas so os emigrantes aorianos que estabelecem a sua vida na Califrnia, de onde lhes vem o nome que a linguagem popular aoriana corrompeu e adoptou. Trabalhadores obstinados, econmicos, conseguem juntar razoveis fortunas. H, todavia, um fatalismo que os prende terra onde
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Santo Cristo, mostra-nos a visita terrinha por parte de uma famlia de emigrantes, que, segundo as didasclias, so identicados logo devido sua indumentria. Outra marca deixada pela Amrica manifesta-se ao nvel lingustico, com a americanizao dos nomes prprios (de Joo para Jnim) e com a inltrao do ingls na lngua portuguesa. Joaninha, a esposa luso-americana de Jnim Rapoza, a personagem que mais claramente personica a caricatura do emigrante regressado. O seu discurso, resultante da mistura do ingls com o portugus, assim como a sobrevalorizao da Amrica at ao ponto de trazer para o cunhado uns cales com a bandeira dos E.U.A., produzem um efeito cmico. O marido, apesar de reconhecer os benefcios nanceiros de residir nesse pas, mantm laos emotivos mais fortes com a terra natal, da qual sente uma profunda saudade. A caricatura um instrumento ao servio tanto do cmico como da stira, pois possui uma dimenso ldica e crtica. Ao longo das peas, a gura do emigrante constantemente caricaturada, apesar de detectarmos, por vezes, alguma introspeco e conscincia social por parte das personagens. Tal no sucede com o poltico americano da pea Mr. John Hartmeinsh, candidato a Mayor, e com o professor e investigador portugus de O Mistrio da Pedra de Dighton. Quer a caracterizao fsica, providenciada pelas didasclias, quer o discurso e o comportamento dessas duas personagens, compem traos caricaturais, que, a par dos equvocos, incongruncias e situaes ridculas, despertam o riso e questionam valores. Por exemplo, a descrio da indumentria do srio candidato a mayor, da primeira pea, mostra-nos um esteretipo altamente criticvel e manifestamente ridculo: O candidato entra pelo fundo da sala, todo sorridente, de calas polyester escarlate, casaco amarelo deslavado, gravata muito berrante, camisa verde-claro, botas e cintos brancos, culos brancos e cabelo curto, com marrafa, claro (ibid.: 67). Esta caracterizao permite vislumbrar a posio crtica do autor face a esta gura social, acentuada, ironicamente, no nal da pea com a msica O Ladro, da ilha Terceira, sem alterao da letra. Estes so processos pouco subtis de construo do cmico. Alis, toda a obra torna explcita a inteno do autor em fazer o pblico rir. Em Ah! Mnim dum Corisco!..., Onsimo Teotnio Almeida soube aproveitar praticamente todos os sistemas sgnicos do teatro para veicular uma forma particular de aproximao e de tratamento da experincia emigrante. Neste sentido, ele usa o cenrio, o vesturio, a linguagem verbal, a iluminao e at a msica para compor um mosaico constitudo por retalhos da vida quotidiana do emigrante aoriano na nova terra. O cmico est presente em cada um desses sistemas sgnicos e permite, por um
vo acabar os seus dias, tornando-se os lantropos que constroem a igreja ou a escola da aldeia que os viu nascer, ou visitam-na amide, mantendo sempre um contacto sentimental que ao mesmo tempo se traduz num aprecivel auxlio econmico aos parentes ou comunidade (Descobri que era europeia. Lisboa: Editorial Notcias, 2002, 21).
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lado, abordar, at certo ponto, com uma certa leveza, os aspectos negativos inerentes a viver num novo pas e, por outro, criticar e satirizar determinados esteretipos e condutas sociais. A forma utilizada a pea em um acto, que serve, cabalmente, os propsitos humorsticos do autor, visto que o registo cmico prefere, segundo determinados tericos, as estruturas curtas, simples e abertas.
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Resumo: Em Ah! Mnim dum Corisco!..., Onsimo Teotnio Almeida utilizou uma forma literria breve a pea em um acto para satirizar a experincia emigrante nas comunidades luso-americanas. Recorrendo a mltiplos sistemas sgnicos constitutivos da linguagem teatral, o autor constri um mosaico humorstico do quotidiano do emigrante aoriano, dramatizado nas curtas peas, que, ao conterem apenas um acto, exigem uma maior concentrao. Abstract: In Ah! Mnim dum Corisco!..., Onsimo Teotnio Almeida used a short literary form one-act play to satirize the emigration experience in Portuguese-American communities. Resorting to several sign systems used in the theatre language, the author builds a humorous mosaic based on the day-to-day experience of the Azorean emigrant, an experience dramatized in short one-act plays, which demand greater conciseness.
No a amplitude, mas a intensidade, o verdadeiro m da arte moderna. Oscar Wilde (2003: 1413)
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E h o Espao dos Satyros 3, que comea agora a funcionar no Jardim Pantanal, onde a companhia j mantm ocinas que esto rendendo frutferas parcerias (Guzik, 2006: 25).
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servem de cenrio e inspirao interventora. Porque os Satyros no nasceram na Praa Roosevelt, no dia um de Dezembro de 2000; nessa data, apenas inauguraram o seu espao mais denidor, apresentando o Retbulo da avareza, luxria e morte, de Ramon Del Valle Incln (ibid.: 203). Os Satyros, como companhia teatral apostada em introduzir a energia dionisaca na cena paulistana e brasileira, nasceram em 1989, quando Ivam Cabral, vindo de Curitiba, conheceu, em So Paulo, Rodolfo Garcia Vzquez. A partir desse encontro inaugural, uma vontade de fazer teatro, de forma diferente e empenhada, marcou o destino dos dois jovens, que vinham de percursos acadmicos diferenciados, mas complementares: Ivam vinha de uma graduao em Artes Cnicas na Pontifcia Universidade Catlica do Paran, havendo cursado antes Administrao de Empresas (ibid.), e Rodolfo estudou nos cursos de Administrao da Fundao Getlio Vargas, frequentando, mais tarde o curso de Sociologia da USP (ibid.: 32). Estes pormenores de carcter prossional so importantes, porque uma das caractersticas axiais dos Satyros a necessidade de sobrevivncia, independentemente dos subsdios eventuais. Por isso, a programao variada, tanto ao nvel das propostas teatrais, como no plano da diversicao de horrios. Os palcos da companhia esto sempre ocupados, e, embora sejam um grupo residente, no se recusam a deambular pelo Brasil, com incurses relevantes em outros pases. Com efeito, sendo convidados em 1992, para apresentarem a pea Salom no Festival de Teatro do Porto, aproveitaram a oportunidade para levar o espectculo a Espanha, e iniciaram uma demorada permanncia em Lisboa, partindo da para vrio pases da Europa. E foi precisamente em Lisboa que estrearam De Profundis, o texto que constitui a base deste trabalho. A primeira verso da pea, muito reduzida, subiu ao palco digamos assim no dia 7 de Junho de 1992, na casa de banho de um bar lisboeta, o Bartart. Segundo testemunho do autor, o sucesso foi grande, e devedor da inuncia da crtica entusiasmada, publicada no jornal O Pblico (Guzik, 2006: 117-118). A segunda montagem, mais alargada, aconteceu no Teatro Ibrico, tambm em Lisboa, no dia 15 de Outubro de 1992 (cf. Cabral, 2006: 145). Saliento estas circunstncias, porque elas consubstanciam traos denidores da proposta esttica, tica e poltica dos Satyros. Ou seja, o teatro entendido como meio privilegiado de intercmbio com o pblico, e as duas instncias devem ser reciprocamente contaminadas. notvel, por exemplo, a forma como algumas peas mimetizam o ambiente humano envolvente, rompendo, com eccia, as fronteiras entre arte e vida, actor e espectador, teatro e cidade. Deui, portanto, desta postura artstica a diversicao de espaos e de pblico, mantendo, no entanto, um rumo esttico, hoje reconhecido como teatro veloz.
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Trata-se, no entanto, de um conceito ulterior, porquanto, foi a partir de uma viso externa e crtica que o conceito se colou ao teatro dos Satyros, aps um trabalho j amadurecido e publicamente experimentado. Com efeito, foi Carmelinda Guimares, crtica de teatro do jornal Tribuna de Santos, quem inventou a expresso, quando, em 1994, num festival de teatro em Almada, conversando com os actores, cujo trabalho conhecia de So Paulo, lhes disse que o teatro deles era muito veloz, tendo em conta a rapidez com que mudavam de espao e mesmo de pas, integrando-se, com facilidade, em novos contextos (Gusik, 190). A necessidade de estruturar as bases de uma prtica teatral especca, mas ensinvel, conduziu naturalmente elaborao terica, enformada por Gusik num declogo, cujos itens contemplam todos os intervenientes no processo criativo, que vai desde a escrita do texto at aos efeitos pragmticos, colhidos na recepo imediata e disseminados, de forma mediata, nas reaces prolongadas dos espectadores. Estamos, por conseguinte, perante uma concepo de teatro que recupera a pretenso de uma pedagogia interventora, caracterstica intimamente associada a essa arte to primitiva, que, embora constantemente renovvel, s funciona em pleno quando retoma os fundamentos da matriz grega; ou seja, quando o espectculo faz corpo com o espectador, divertindo-o, provocando-o, destruindo certezas precrias, e instaurando a dvida inquiridora. Vejamos, de modo necessariamente breve e sincrtico, as dez leis que regem o teatro veloz, fazendo uma diviso tripartida, articial, mas provavelmente iluminadora, tendo em conta trs elementos essenciais do espectculo teatral: o actor, o texto e o espectador. O actor formado pela companhia ou a ela associado dever estar plenamente consciente de trs pressupostos basilares: a importncia da tcnica, a recusa da alienao e a criatividade. A tcnica entendida como um instrumento fundamental do trabalho do actor, mas, em nenhum momento, a destreza tcnica dever ser hipostasiada, pois tratar-se-ia de mero simulacro, forma sem contedo. Alm disso, o actor no poder conar numa tcnica adquirida que seja aplicvel a qualquer trabalho, o que implica um constante esforo de reciclagem. Estar alienado signica, na perspectiva dos Satyros, no estar pleno em si, ser devedor, portanto, de foras externas, que podem ir desde a falta de liberdade criadora at dependncia das empresas produtoras. Pense-se, por exemplo, nos actores que so compelidos, por diversos motivos, a fazer anncios comerciais nem sempre nobilitantes, abandonando a dimenso mtica do teatro enquanto local do encontro pleno da Humanidade com seus fantasmas (ibid.: 303). Esta quase sacralizao do trabalho do actor tem como consequncia uma valorizao da liberdade total no processo de produo do espectculo; o actor um criador, e a sua experincia criativa contribui para a desalienao, porquanto participa do trabalho de descortinamento pessoal que deve atingir igualmente o espectador, convidado a uma idntica tarefa de libertao. O texto do teatro veloz recusa liminarmente uma esttica ancorada na mera reproduo das dominantes sociais maioritrias, procurando, pelo contrrio, dar voz ao que h de mais profundo no ser humano e aniquilado pelos mecanismos de represso, evidentes
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ou dissimulados. A dor e o sofrimento, o prazer como experincia plena, o artesanal, o no-lucrativo e o desinteressado so componentes imprescindveis do texto teatral dos Satyros (ibid.: 295). Congura-se, assim, uma concepo de texto dramtico que procura evitar a repetio de frmulas, se afasta do mercantilismo rendoso e se esfora por desvendar o submerso, pulverizando as verdades, fragmentando os alicerces das cosmovises assentes em absolutos inexistentes. Arriscar continuamente em frmulas e contedos novos pressupe uma observao vigilante do mundo, percebendo, com subtileza as movimentaes do cenrio humano, e agindo, com rapidez, de forma artstica. Esta ntima relao entre texto e realidade confere ao teatro veloz uma grande capacidade de solicitar a participao do espectador. Partindo do princpio de que o teatro um agente social transformador, os Satyros acreditam poder contribuir para a denio de novos rumos da convivncia social, animados por um optimismo antropolgico que lhes mantm viva uma indenvel esperana nas virtudes humanas. Resulta da a no aceitao de uma fronteira entre teatro popular e erudito, pois essa distino criaria barreiras intransponveis para quem defende a viabilidade de uma democracia teatral. No contexto sociocultural brasileiro, esta candura consciente tem, necessariamente, um matiz poltico evidente, travejado por um reconhecimento do homem, cujas directrizes partem de Nietzsche e do teatro grego, passando por Artaud e Reich (ibid.: 305). E precisamente pela referncia ao teatro grego que cabe agora abordar os textos dramticos de Ivam Cabral, textos redigidos para o palco, sem pretenses de autonomia literria. A qualidade esttica que lhes inerente levou, no entanto, a Imprensa Ocial do Estado de So Paulo a publicar, em 2006, um livro que rene quatro peas do autor, sob o ttulo genrico Quatro textos para um teatro veloz (Cabral, 2006). Num prefcio simples e ecaz, intitulado Lux in Tenebris, Jefferson Del Rios situa as peas no contexto da produo dramtica brasileira e internacional, traando os limites de um territrio esttico e losco que cria as condies propcias apreciao crtica dos textos de Ivam Cabral. Segundo o prefaciador, o teatro o campo por excelncia dos perdedores e nele cada autor se revela na descrio das quedas. Enquanto Genet ritualiza as perverses (...) Ivam Cabral cuida dos desgarrados portadores da loucura mansa que os anestesia dos sofrimentos (ibid.: 18). Deui desta constatao uma genealogia artstica que vai desde Sade e Lautramont at ao expressionismo alemo, passando por Goya, Fassbinder, Herzog ou Fellini, no esquecendo Tennessee Williams. mistura com todas estas nobres razes, revela-se, no s em Ivam Cabral, mas, de um modo geral no trabalho da companhia, uma tendncia para a recuperao de grandes guras da cultura greco-romana, especialmente grega, bem representadas nas peas Sappho de Lesbos, Prometeu Agrilhoado, Electra, Medea, ou Coriolano, com texto de Shakespeare. Como tambm no se esquece de referir Jefferson Del Rios, o teatro cabralino incorpora sosticados conhecimentos musicais, literrios e de artes plsticas, no hesitando igualmente na simpatia irnica pelo mais deslavado kitsch (ibid.: 24).
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Numa abordagem mais rente ao texto, observamos o predomnio de guras fragilizadas, procurando um rumo improvvel, tanto no espao da aglomerada solido urbana poetizada por Tom Z (ibid.: 21), como nos meandros indelveis da memria. Retomando ainda o prefcio de Jefferson Del Rios, o teatro de Ivam Cabral d-nos a conhecer mais um artista com a provncia na memria afectiva, e que sempre a levar consigo (ibid.: 18). Tal facto poderia permitir-nos, por exemplo, um exerccio de aproximao textual aparentemente absurdo, isto , pensar em Miguel Torga, outro escritor com a provncia na memria afectiva, e fazer dialogar os dramas transmontanos com as dores paulistanas. Apesar da inusitada companhia, certo que os sofrimentos humanos no escolhem lugar nem tempo, e h, nos dois autores, uma cena que justica plenamente esta derivao extica. Num dos mais patticos contos de Torga, A Maria Liona, inserto em Contos da Montanha, assistimos gurao de uma piet rstica e comovente, descrita nestes termos: No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoo que trouxera nos braos de sessenta anos o lho morto (Torga, 2002: 112). Tocada pela asa negra do destino, Maria Liona perde o marido, andarilho impenitente emigrado no Brasil, que regressa terra s para morrer; e perde tambm o lho, herdeiro legtimo da inquieta transumncia paterna. Feito marinheiro, transportado morto ao porto de Leixes. A me desce das lonjuras de Galafura e carrega o cadver do lho, cumprindo um ritual de passagem que inscreve os actos humanos numa tradio congnita, independente, na essncia, de coordenadas espaciotemporais. Com efeito, a ltima pea do livro de Ivam Cabral, intitulada A herana do teatro, reactualiza e recria, para o contexto brasileiro, a Antgona, de Sfocles, pondo em cena uma empregada domstica, deslocada na cidade gigantesca, e capaz de cometer um crime s para arranjar o dinheiro que lhe permita levar para a sua terra, na Paraba, os ossos da lha morta. E so estes os motivos apresentados:
(...) Minha menina, de 15 anos, a razo pela qual eu imaginava viver. Se foi. Me deixou aqui, neste mundo perdido de Deus. No tenho mais nada. Nem fome, nem vontade de viver, nem amor prprio. (...) Preciso levar a minha lha para o cemitrio de Barra de Santa Rosa antes que o Natal chegue. Ficar ao lado dos parentes, da tia Ful, da madrinha Beata. A av chora todos os dias dizendo que no conseguir sobreviver a tudo isso, que precisa dos ossos para dormir em paz. Eu no tenho paz. Ainda mais agora. (ibid.: 204)
Esta empregada domstica brasileira, to grega e transmontana, na sua religiosidade ritualista e ancestral, um bom exemplo das guras desamparadas e perdidas que povoam o teatro veloz de Ivam Cabral. Geogrca e culturalmente situada, rompe todas as fronteiras, por intermdio do sofrimento excruciante, que a aproxima dos afectos e instintos mais fortemente sedimentados da humanidade.
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Em concordncia com esta constatao, Oscar armar, a dado passo do seu primeiro monlogo, o seguinte: Mas h uma coisa que nada nem ningum conseguiu arrancar de mim, nem a priso, nem o silncio de Bosie, nem a Desgraa que se abateu sobre mim e sobre a minha famlia, nem o Sofrimento que carrego a cada dia que me levanto. Falo do que sentia todas as vezes em que Bosie mergulhava seu peito nos meus braos (ibid.: 155). Ora, logo nas pginas iniciais da carta dirigida a Bosie, Wilde refere-se ao amante num tom bastante diferente, quando lhe dirige estas palavras amargas: Enquanto estiveste comigo, foste a runa completa de minha arte e, ao permitir que te interpusesses constantemente entre mim e a Arte, atra para mim o oprbio e a censura at o mais alto grau. Tu no podias apreciar isso, no podias sab-lo, no podias compreend-lo. No tinha eu direito algum de esper-lo de ti. Teu interesse se limitava a tuas comidas e a teus caprichos (Wilde, 2003: 1346). Ou seja,
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a imagem de Bosie no ca inclume na pea, pois ele surge como violento e cruel, caractersticas que parece, de facto ter tido, mas h um ocasional desencontro entre a viso de Wilde e a de Ivam Cabral, no que diz respeito personagem responsvel pelo desencadear do drama. Tal dessintonia perfeitamente compreensvel se tivermos em conta que, embora haja vrias personagens, na verdade trata-se apenas de uma; Oscar est s na sua cela carcerria, e sonha que visitado pelas suas criaturas: as sereias do conto O pescador e a sua alma, um escultor permitido pelo universo ccional de O Retrato de Dorian Gray e, assinale-se a capacidade interpretativa do dramaturgo, a gura de Bosie, como se ele no passasse de mais uma criao wildiana. conhecida a teoria segundo a qual O Reatrato de Dorian Gray antecipa na arte o que ir acontecer na vida, sendo Dorian uma pregurao de Bosie (Cabral, 2006: 149). Ivam Cabral aproveitou, portanto, de forma muito ecaz, essa linha interpretativa do drama de Wilde, contextualizando-a num plano de criao intuitiva deveras interessante. No fundo, o dramaturgo brasileiro proporciona a Oscar Wilde uma situao que ele nunca viveu e tanto desejou ter vivido: um encontro com Alfred Douglas na priso, pois uma das acusaes mais amargas contidas na epstola consiste precisamente no abandono do escritor, jamais visitado pelo seu antigo admirador. Mas no estranho esse abandono, porque o que interessava ao rapaz era apenas o lado mais supercial e mundano de Oscar Wilde, bem como a possibilidade de viver luxuosamente sem pagar nada. Numa das passagens da epstola, podemos ler um extracto de uma missiva de Bosie, que trata Wilde da seguinte maneira Assim que baixas do teu pedestal, deixas de ser interessante. Da prxima vez que adoeceres de novo, sairei logo de junto de ti (Wilde, 2003: 1360). E na pea, uma das falas de Bosie consiste no seguinte: No. No ser em ti que eu me enterrarei. De ti, fugirei para a tua imagem. Multiplicada. At o innito (Cabral, 2006: 174). Falhando na doena, era muito natural que tambm falhasse na humilhao do crcere. E o que torna o De Profundis wildiano um documento humano de rarssima compaixo precisamente o arrependimento do escritor por ter dado importncia futilidade mundana, acabando por descobrir que o pior dos vcios a frivolidade (Wilde, 2003: 1375). Descobriu tambm, no espao textual da pea, que o seu erro havia sido s ter passeado pelas rvores do lado iluminado do jardim (Cabral, 2006: 156), depois de haver armado, com uma certeza duvidosa, o seguinte: No lamento, nem por um momento, ter vivido o prazer. Fiz isso como se devem fazer todas as coisas: de corpo e alma. Mas, na epstola, confessa ao seu ausente companheiro algo bastante diferente: Cri que a vida era uma brilhante comdia e que tu serias um de seus encantadores personagens. Descobri que era uma tragdia revoltante e repulsiva (Wilde, 2003: 1366). Esta reviso existencial, em jeito contrito e palindico, est presente na pea, logo na primeira fala de Oscar quando ao recordar a exposio humilhante em Londres, esperando que o conduzissem priso, se apresenta como o comediante da Dor, ou ainda, o que talvez seja pior, como o objecto mais grotesco que se possa imaginar (Cabral, 2006: 153). E a recordao amargosa continua nestes termos:
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As pessoas que por ali passavam, riam de mim. Cada trem que ia se aproximando, trazia um nmero maior de curiosos e, com eles, a minha vergonha. Eles me cercavam e nada podia ser mais pattico do que eu naquele momento. Durante aquela meia hora, permaneci ali, quieto, parado, sem me mover, debaixo da chuva cinza de novembro, rodeado por pessoas que riam alto e me desprezavam. Eu, que estava acostumado tranquilidade e ao elogio. Alguns me reconheceram, o que s fez aumentar ainda mais o burburinho e o desprezo. Meia hora durou. Depois disso, j na priso, durante um ano, eu chorei todos os dias, mesma hora e durante o mesmo espao de tempo. (ibid.: 154)
Inexoravelmente dominado pela descoberta fundacional da dor como nico meio de aperfeioamento do ser humano, Oscar chega inevitvel concluso de que, sendo a dor uma revelao, ela tambm o teste de toda a grande Arte, pois nela a essncia e a forma esto na mais absoluta unidade (ibid.: 157). E em concomitncia com a necessidade de explorar em profundidade os labirintos do eu dolorido, natural o surgimento de uma personagem visitante, A alma que chora, provinda do enredo do conto O pescador e a sua alma, onde, a dado ponto, diz ao jovem pescador: Falei-te dos gozos do mundo e no me prestaste ateno. Permite-me agora que te fale da dor do mundo e talvez queiras escutar-me. Pois na verdade a dor a senhora do mundo e no h ningum que escape de suas redes (Wilde, 2003: 321). Na pea, a personagem exprime-se da seguinte maneira:
A moral no me ajuda. A religio no me ajuda. A razo no me ajuda. Nada. Nada me ajuda a no ser a espera...(Cabral, 2006: 157)
Estas palavras, repetidas em estribilho e eco longnquo, de repente prximo, retomam as consideraes de Wilde na carta dirigida a Bosie, quando diz: A moral no me serve para nada. Sou, por natureza, oposto a toda lei, e estou feito para as excepes. (...) A religio tampouco me serve de consolo. A f que os outros tm no invisvel, tenho-a eu posto no visvel e em tudo aquilo que se pode tocar. (...) A razo no me ajuda. Diz-me que as leis que me castigaram so injustas e erradas, e o sistema em virtude do qual tenho sofrido, um sistema injusto e errado (Wilde, 2003: 1391). Da poema A balada da priso de Reading - que mantm, em algumas passagens, relaes intertextuais evidentes com o conto acima referido transitam para a pea de Ivam Cabral os conhecidos versos, que funcionam, tanto no poema como no texto dramtico, como uma espcie de Leitmotiv:
Todos os homens matam o que amam Seja por todos isto ouvido, Alguns o fazem com acerbo olhar Outros com frases de lisonja, O covarde assassina com um beijo, O bravo mata com um punhal (ibid.: 984)
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Pertence tambm ao poema o dstico Pois quem vive mais de uma vida deve/ Morrer tambm mais de uma morte (ibid.: 978), uma ideia que surge, na pea, na voz de Bosie: Disseste certa vez que aquele que vive mais de uma vida deve tambm morrer mais de uma morte. Eu tenho morrido a cada dia, Oscar. Por que me chamas? Por que me trazes aqui? (Cabral, 2006: 160). Esta fala cria espao para consideraes sobre o amor que entram em total desacordo com o texto da epstola. Oscar diz o amor que me chama Bosie. Ento como posso evit-lo? Todos os dias ouo a tua voz a chamar-me (ibid.: 160), rearmando, um pouco mais adiante, numa modulao deliciosamente virgiliana O amor me chama sempre, sempre, a chamar-me de braos abertos (ibid.: 161)2. Em resposta a isto, Ivam Cabral, recorrendo ao intertexto da epstola, imagina que Bosie poderia responder: Sou o terrvel tufo que incessante castiga suas vtimas. Atiro-as a uma e outra parte, sem repouso, no terrvel lugar onde nulla speranza gli conforta mai (ibid.: 161). A citao de A Divina Comdia dantiana justicada pelo manancial de referncias literrias contido na carta, onde se destacam os tragedigrafos gregos, Dante, Shakespeare, Goethe, e Baudelaire clamando a Deus: - Ah! Seigneur! Donnez-moi la force et le courage/De contempler mon coeur et mon corps sans dgot, no poema Un voyage Cythre, de Les Fleurs du Mal. As consideraes de Bosie sobre o amor partilham uma dupla natureza que consubstancial a todo o desenho da sua personagem na pea. Por um lado, humanizam-no; mas, por outro, acentuam a sua cruel displicncia. Repare-se no seguinte momento. Oscar diz: Estou seco. No me sobra mais nada. Nem uma lgrima das menores que chorei... (ibid.: 166); e obtm a seguinte resposta: A mim sobra muito, Oscar. Sobrame ainda muito amor. Porque eu sou o verdadeiro amor. Encho os coraes com uma chama mtua (ibid.: 167). Falei em cima de modulaes virgilianas; aqui poderamos recordar Horcio3, mas, do mesmo modo que no poema horaciano a ideia de amor mtuo no passa de um desejo, tambm aqui a generosidade da declarao destruda, logo em seguida, pelo tom irnico e cnico. acusao de Oscar s um amor corrodo, Bosie responde assim: Sou o amor que no ousa dizer o seu nome (ibid.: 167). E informa-nos a didasclia de que Oscar tenta beijar Bosie que o empurra, jogando-o no cho (ibid.: 167). A famosa frase, que havia de se tornar lema identicador, no passa aqui de um motivo de mera irriso. De resto, o De Profundis, de Wilde, no cauciona estas declaraes de amor mtuo. Muito pelo contrrio, assente na frmula evanglica Domine, non sum dignus (Wilde, 2003: 1407), o escritor chega concluso de que Ningum digno de ser amado (ibid.: 1407); e diz directamente a Bosie em ti o dio foi sempre mais forte que o carinho (ibid.: 1367), acrescentando mais adiante: Eras meu inimigo, um inimigo como no teve ningum jamais (ibid.: 1374).
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Penso no seguinte verso da segunda cloga: me tamen urit amor; quis enim modus adsit amori?. Relembro os seguintes versos da ode nona do livro terceiro: Me torret face mutua/ Thurini Calais lius Ornyti, chamando a ateno para a expresso face mutua.
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claro que as confrontaes com o intertexto basilar no perturbam a tessitura criativa da pea de Ivam Cabral. O dramaturgo dos Satyros reinventa uma histria real, acrescentando-a com a fantasia, no menos real, que, por certo, existiu no corao de Oscar Wilde. Tem, alm disso, o cuidado de concertar fragmentos do autor tornado personagem, no pressuposto de que so, por vezes, muito frgeis as fronteiras entre o criador e as suas criaturas. Consegue ainda, com assinalvel destreza tcnica e hermenutica, cumprir um dos fundamentos do teatro veloz: dar espao aos deserdados, aos perdidos no mundo, s vtimas do destino e da aio, mostrando aos espectadores e aos leitores que h lugar para todos, que cada um de ns tem o seu cantinho no universo. Creio que Oscar Wilde haveria de gostar, pois em carta ao seu delssimo amigo Robert Ross o inventor do ttulo De Profundis diz o seguinte:
Sei, sem dvida, de certo ponto de vista, que no dia da minha libertao passarei simplesmente de uma priso para outra, e h momentos em que o mundo inteiro no me parece maior que minha cela e to cheio de terrores quanto ela. No obstante, vejo que no princpio criou Deus um mundo para cada homem em particular, e nesse mundo, que est dentro de ns, que se deve procurar viver. (ibid.: 1393)
O teatro veloz de Ivam Cabral e toda a actividade artstica e cvica dos Satyros muito tm contribudo para dar dignidade visvel a esse mundo particular que nos serve, ao longo da vida, de nica morada verdadeira.
Bibliograa
CABRAL, Ivam (2006). Quatro textos para um teatro veloz. So Paulo: Imprensa Ocial. GUZIK, Alberto (2006). Os Satyros. Um palco visceral. So Paulo: Imprensa Ocial. RIOS, Jefferson Del (2006). Prefcio: Lux in Tenebris. In CABRAL, Ivam (2006). Quatro textos para um teatro veloz. So Paulo: Imprensa Ocial, 17-25. TORGA, Miguel (2002). Contos. Lisboa: Dom Quixote, 107-113. WILDE, Oscar (2003). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Resumo: Conjugando vrios fragmentos de obras de Oscar Wilde, o dramaturgo Ivam Cabral constri uma pea que exemplica os preceitos fundadores do teatro veloz, uma esttica teatral que orienta os trabalhos da companhia os Satyros, sediada em So Paulo. Abstract: By combining several fragments taken from Oscar Wildes works, the playwright Ivam Cabral builds up a play that thoroughly illustrates the founding principles of swift theatre, the kind of theatrical aesthetics guiding the work of Os Satyros, a So Paulo-based theatre company.
Jean Cocteau a bien souvent connu livresse de la parole et joui de cette extrme facilit avec laquelle les mots et les ides lui venaient dans la conversation. Jean Marie Magnan, L amiti en partage
Palavras-chave: teatro mnimo, A Voz humana, Cocteau, monlogo, palavra activa. Keywords: minimal drama, The Human Voice, monologue, active word.
Antes de iniciar este trabalho, e a pretexto de derivar um pouco pela estranha viagem do caudal humano, gostaramos de relembrar umas palavras de Charvet:
La voix est un instrument fondamental de la sociabilit humaine : elle est le moyen, le canal le plus usit, le plus courant de toute relation entre plusieurs personnes. Plus facile dans la proximit, elle peut cependant galement plus ou moins vaincre les distances en jouant sur son intensit. Dans un dialogue, dans une conversation, elle permet dentamer, dentretenir, de mettre n au rapport que lon a avec lautre par lintermdiaire de la parole. (2004 : 63)
A voz, como rgo vocal, um dos instrumentos que, pela intermediao do som que emite, nos permite exprimir emoes ou informaes anteriormente instrudas pelo nosso crebro. A comunicao, segundo Charvet, torna-se mais fcil quando duas pessoas se encontram frente a frente, ou entre elas existe, pelo menos, proximidade, uma vez que a viso contribui para alargar a srie de signicantes contidos na mensagem, como se de um espelho se tratasse. Ora, a partir da segunda metade do sculo XIX, com a inveno das mquinas de reproduo dos sons e tambm das imagens e da escrita , a voz tinha-se transformado repentinamente num composto situado entre a fala e um novo tipo de texto. Sabe-se que, em 1878, quando as pessoas assistiram reproduo da voz humana
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feita pelo primeiro fongrafo, comentaram que, para alm do efeito mgico da prpria mquina que registava os sons, a voz que discursava era imperfeita, difcil de entender devido ao rudo do prprio registo, situado entre a oralidade e a escrita. A imperfeio prendia-se, pois, com o facto de a prpria voz humana, com existncia fora do seu rgo, se encontrar em confronto com as falhas da prpria reproduo tcnica. Esta revoluo, introduzida nos nais do sculo XIX, fez com que a voz perdesse o seu rosto, se no mesmo a sua identidade, tornando-se num artefacto enganador, perdido algures entre uma voz humana e sinais elctrico-acsticos. Ora, a verdade que, ao longo do sculo XX, os fabricantes zeram com que o mgico se juntasse ao perfeito, ao propor formas cada vez mais sosticadas de mquinas. O certo que no possvel, hoje ainda, reproduzir tecnicamente toda a mensagem contida na voz humana. Ser essa a razo que motiva os encenadores a, sete dcadas depois, continuar a pr em cena o clebre monlogo telefnico do escritor, poeta, pintor e cineasta francs, Jean Cocteau? O facto que, ao longo de todos esses anos, A Voz humana, a de Cocteau, foi sendo reescrita a mltiplas vozes sob forma de uma tragdia lrica1 por Francis Poulenc, de um lme melodramtico por Roberto Rossellini2, de uma interpretao flmica livre por Pedro Almodovar3, de uma dupla instalao de vdeo por Francesco Vezzoli4 e
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Esta pera, escrita em 1958 por Poulenc, pretendia ser uma traduo musical daquilo que a linguagem telefnica cocteana deixava por dizer: o compositor procurou reproduzir toda a fora dramtica emanada do no-dito, presente nos conns da psicologia, da emoo e dos afectos.
O lme de curta-metragem de Rossellini, A Voce humana, o primeiro de um conjunto de dois episdios intitulado LAmore de 1948 o segundo sendo Miracolo, e uma reproduo el da pea de Cocteau. O realizador alia encenao cinematogrca de qualidade e encenao teatral com a liberdade de expresso da actriz, Anna Magnani, que, durante os planos-sequncia, d toda a sua energia e transmite, assim, uma mensagem de amor de uma fora invulgar.
Com efeito, o lme Mulheres beira de um ataque de nervos, de 1987, de Pedro Almodvar, teve como fonte de inspirao a pea de Cocteau: Ivan e Pepa so amantes desde h alguns anos, mas Ivan acaba por romper com ela, deixando-lhe uma mensagem no atendedor de chamadas. Pepa passa por um momento de profundo desespero e, apesar de o ultrapassar, continua obcecada por Ivan. Contudo, o realizador procedeu a uma adaptao livre, multiplicando retratos femininos e acontecimentos que complicam a trama e fazem do lme uma farsa delirante, libertina e maliciosa que nos faz mergulhar num universo de loucura, de destruio e de puro prazer.
A produo artstica de Francesco Vezzoli, um jovem artista italiano, consiste fundamentalmente na realizao de vdeos cujas produes complexas se aproximam da linguagem cinematogrca. Nos seus trabalhos, Vezzoli produz bordados segundo a tcnica tradicional, de forma a contrapor a arte popular arte erudita. O artista parte das suas obsesses pessoais, da anlise de sentimentos e emoes, de mpetos amorosos e de referncias para compor as suas histrias. Na sua performance vdeo, The end of the human voice, de 2001, reencontramos a pea original de Cocteau, sendo que o primeiro vdeo apresenta um luxuoso apartamento onde uma mulher estabelece um monlogo ao telefone, revelando o seu tormento perante o m de uma relao amorosa. Contudo, no segundo vdeo, lmado em cmara
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de representaes teatrais por um sem-nmero de encenadores que deram rostos voz da personagem de Cocteau e a tornaram, assim, intemporal. Ora, no restam dvidas: de todos os dramas de Cocteau, A Voz humana foi o mais representado, talvez por se encontrar despojado da habitual fora potico-mtica, da teatralidade5 que caracterizava Antgona e A Mquina Infernal e por procurar esvaziar a pea de todo e qualquer adorno cnico: um acto, um quarto, uma personagem, um amor comum e um acessrio banal para qualquer pea moderna , um telefone. Qui a prpria atitude do autor de pr A Voz humana em cena na Comdie Franaise , qui as prprias palavras de Cocteau constituam uma provocao dirigida queles que sempre desconsideraram o seu trabalho: o dramaturgo escreve em Opium que La Voix humaine, [est] un acte inesthtique, acte de prsence contre les esthtes, contre les snobs, contre les jeunes (les pires snobs), capable dmouvoir seulement ceux qui nattendent rien et ne prjugent pas (Cocteau, 1993: 261). Na sua conversao com Andr Fraigneau, Cocteau explica claramente a razo pela qual escolheu a sala controlada pelo Estado, a Casa de Molire, para pr em cena a sua pea: Jai donn cette pice la Comdie Franaise () parce que je voulais contredire la manie des petites scnes et de ce quon appelait la gauche (Cocteau e Fraigneau, 1988: 87). A reaco no se fez esperar e, logo no ensaio geral, Eluard insulta Cocteau dizendo: obsceno! Basta, basta, a Desbordes que voc est a telefonar!. O facto que este monlogo vinha, de uma certa forma, contrariar a sensibilidade artstica e pessoal do surrealista e de todos os outros surrealistas , mas a fria que se abatia sobre os seus opositores tinha muito mais a ver com o facto de a elite intelectual nunca o ter conseguido destruir e aniquilar. Apesar do incidente, o sucesso dA Voz humana foi imediato junto do grande pblico, sequioso de sentimentos e de emoes. A actualidade da pea nunca a viria a deformar, uma vez que o poder e a poesia do monlogo eram resultantes da habilidade
xa, Vezzoli faz-nos descobrir o que supomos ser o prprio amante, neste caso representado pelo prprio artista. As sonatas para piano Gymnopdies de Satie bem ao gosto de Cocteau, na poca constituem a banda sonora da performance vdeo e do uma dimenso humana dupla instalao vdeo. Ao escolher Bianca Jagger que no actriz, mas que se tornou clebre pelo seu casamento com Mick Jagger como intrprete da mulher abandonada, Vezzoli intersecta a pea cocteana e a cultura popular televisiva com a inteno de descrever a impossvel interaco entre vrios mundos temporais, ctcios, reais e ntimos.
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Josette Fral explica-nos que Se poser la question de la thtralit, cest tenter de dnir ce qui distingue le thtre des autres genres, et, plus encore, ce qui distingue des autres arts du spectacle, et tout particulirement de la danse, de la performance et des arts multimdias. Cest sefforcer de mettre au jour sa nature profonde par del la multiplicit des pratiques individuelles, des thories du jeu, des esthtiques. Cest tenter de trouver des paramtres communs toute lentreprise thtrale depuis lorigine (1988 : 347).
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em recorrer a fantasias, paradoxos, deslocaes e justaposies para desvendar a complexidade da experincia afectiva. Mas faamos, ento, um breve desvio para compreender a razo da hostilidade do poeta surrealista. Cocteau parte, com toda a evidncia, de uma situao banal: uma mulher s, num quarto desarrumado, est ao telefone com o seu amante que acaba de a abandonar. O trivial desta histria parece estar nos antpodas do escandaloso surrealista e o visvel nos antpodas do invisvel que gere o misterioso, o sobrenatural, o maravilhoso. A mulher e o amor perdem, assim, todo o seu segredo e tornam-se apangio da realidade. Segundo Michel Carrouges, le plus grand paradoxe de la femme, cest que tout en enracinant lhomme dans la ralit matrielle, elle est aussi le mdium qui le fait communiquer avec le monde des merveilles (1950: 290), e, sendo assim, no aceitvel, para o surrealista, que uma experincia homossexual, que ele considera ser uma miragem da comunicao transmental6, tenha dado origem a uma transposio sob uma forma heterossexual de um drama humano. Mas abandonemos, por ora, este conceito do o de Ariane e deixemos que o prprio autor se explique:
Une pice de thtre nest pas un prche. Les ides ne doivent pas tre les miennes mais celles des personnages. Ds que jexprime des ides moi, le mcanisme se coince. Je suis oblig de couper, dattendre que la soudure se fasse toute seule. Si je soudais sur place, il y aurait soudure visible. (Cocteau, 1983 a: 13)
Apesar de raramente encontrarmos, nas peas de Cocteau, a evocao directa da tragdia humana, a verdade que a fora potica dA Voz humana resulta, claramente, da manifestao da profundeza dos sentimentos da personagem. Convm, no entanto, esclarecer que, em toda a obra cocteana, o Eu se metamorfoseia num Eu provisrio de uma nova personagem, deixando de ser unvoco para se tornar a palavra de todos os Eu alternativos que visitam o homem. O Je est un autre a mltiplas vozes, fazendo explodir o Verbo. Le grand mystre de la posie, segundo Cocteau, cest cet quilibre entre le conscient et linconscient, cest la manire dont un homme donne en quelque sorte une forme lectoplasme qui schappe de lui (Cocteau e Fraigneau, 1988 : 55). De acordo com o exposto, podemos ento acrescentar que nA Voz humana a substncia hipottica se exterioriza do corpo do poeta para se congurar no corpo de uma mulher sentada que, segundo o prprio autor, no [] uma mulher qualquer, uma mulher inteligente ou burra, mas uma mulher annima (Cocteau, 1983 b: 8). Fazendo literalmente corpo com ela, um telefone, uma voz que acaba por ser a fora estruturante que permite pea desenvolver-se. O telefone perde rapidamente a sua qualidade de acessrio, para se tornar no impulso dramtico que conduz a aco:
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All !................... All ! et comme a ?...................... Pourtant je parle trs fort. Et l, tu mentends ?.......................... Je dis : et l, tu mentends ?.............................. cest drle parce que moi je tentends comme si tu tais dans la chambre... All ! all ! all !........ ............. Allons, bon ! maintenant cest moi qui ne tentends plus Si, mais trs loin, trs loin. Toi tu mentends. Cest chacun son tour Non ne raccroche pas !......................... All !.................. ............. Je parle, Mademoiselle, je parle !.......................... Ah ! Je tentends. Je tentends trs bien. Oui ctait dsagrable. On croit tre mort. On entend et on ne peut pas se faire entendre.. (ibid.: 33)
Um telefone frio, austero e lacnico apodera-se da vida da personagem e torna-se o impulsionador do dilogo entre os dois interlocutores a mulher e o seu amante . Tal como a bola de neve que atravessa silenciosamente todo romance Les Enfants terribles e acaba numa bola preta, de veneno, o telefone transforma-se no terceiro parceiro de uma relao amorosa que inventa imagens, cria fantasmas e gere iluses:
Je te vois, tu sais. (il lui fait deviner.). Quel foulard ?........................ Le foulard rouge Ah !...................... penche gauche Tu as tes manches retrousses. Ta main gauche ? le rcepteur. Ta main droite ? ton stylographe. Tu dessines sur le buvard des prols, des curs, des toiles. Tu ris ! Jai des yeux la place des oreilles (Avec un geste machinal de se cacher la gure.). Oh ! non, mon chri, surtout ne me regarde pas... (ibid.: 35)
A palavra impe-se como lugar de uma perptua inveno: no uir das palavras, brotam fantasmas, sendo que a racionalizao do discurso substituda pela permuta constante das imagens criadas, que deslam ao ritmo de um dinamismo imposto pelo pensamento. Encontramo-nos, pois, num contexto epistmico onde la vitesse de plus en plus grande des techniques de reprsentation a ni par installer lhomme lintrieur du cerveau. Au sein mme de la vision, de ses visions (Tison, 1989: 38). Pelo telefone, todo e qualquer acto de fala acaba por se transformar num disfarce da realidade, numa pista falsa que ainda permite iluses, porque cada silncio um passo para a morte: Si tu navais pas appel, je serais morte (ibid.: 46), parle, parle, dis nimporte quoi (ibid.: 43), tu comprend, on parle on parle, on ne pense pas quil faudra se taire, raccrocher, retomber dans le vide, dans le noir (ibid. : 39). Pelo telefone, a palavra existncia, vida e esperana, mas tambm mentira, iluso e desintegrao do ser humano. A mquina moderna fragmenta o homem, separa o corpo da voz e, por tal facto, as palavras agem num movimento contnuo, espera que se cumpra o esperado: a morte da mulher:
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Tu te souviens, dYvonne qui se demandait comment la voix peut passer travers les tortillons du l. Jai le l autour de mon cou. Jai ta voix autour de mon cou (ibid.: 61).
O leitor e/ou o espectador desta pea poderia sentir-se excludo deste monlogo, uma vez que os silncios instaurados pela ausncia fsica do interlocutor dicultam o entendimento do ambiente que rodeia as duas personagens. Mas o facto que pela fora das palavras, e no tanto pelo discurso fragmentado, entrecortado, que o leitor/espectador penetra no universo e no pensamento da personagem. Cada vocbulo que se l, cada palavra que se ouve a chave para a descoberta do mundo interior da protagonista, para o conhecimento dos seus desejos, das suas mentiras e dos seus medos. Tornamo-nos, pois, testemunho do pensamento de uma mulher que, pela sua incapacidade a soltar a mo do telefone, a cortar os os que a unem ao inexistente, sobrevive numa situao limite com restos de um alento que j lhe desconhecido. Nesta sua pea, Cocteau pretendeu fazer um teatro mais activo e mais verbal e, por tal facto, no procurou representar factos mas a palavra, a que iria modelar o destino da personagem. Quando o dramaturgo foi acusado de ter abandonado os sortilgios e os orculos de outras peas teatrais, respondeu: Mais il ny a rien de plus oraculeux que le tlphone ! Cest une voix qui arrive toute seule dans les maisons. Le cinmatographe aussi est oraculeux, mais le tlphone a son style (Cocteau e Fraigneau, 1988: 89). As palavras, que ns desconhecemos, mas que foram proferidas pelo interlocutor vo, desde o primeiro momento, agir sobre a mulher desesperada e concorrer para o desenlace da cena nal. A voz que irrompe brutalmente pelo quarto da mulher traz, com ela, o desespero e a morte, e o leitor compreendeu-o desde o primeiro toque da mquina infernal7: (Elle raccroche, la main sur le rcepteur. On sonne) (ibid.: 19). A mquina infernal ps-se em marcha: as palavras ouvidas fazem desabrochar a imaginao do leitor que cria fantasmas e sortilgios das vozes annimas, das imagens vocais que saem do telefone. A palavra activa neste huis clos a que se encontra numa voz, contnua, opressiva, desesperada de um rosto e que precisa de ser vista para se conseguir ouvir. a que se dissimula por trs do sofrimento e da solido e a que se faz sentir nos silncios. Este longo monlogo a duas vozes feito de silncios, de chamadas e de palavras, isto , de uma linguagem telefnica de uma incontestvel fora dramtica, porque alimentada de separao e de morte.
No podemos evitar a aproximao com a outra pea de Cocteau, A Mquina Infernal, onde o destino da personagem se desenrola perante os olhos do pblico.
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Mas no h que esquecer que a palavra escrita no reconhece a voz humana e que, por isso, h que levar ao palco esta magnca pea de Cocteau que s ganha voz quando re-interpretada, re-encenada e, porque no, re-actualizada. Alis, o texto dA Voz humana de Cocteau pertence aos que Pierre Larthomas considera belos, porque permanece e permanecer para alm de todas as interpretaes e, por vezes, de todas os ultrajes a que pode ter sido sujeito8 (1985: 123-124).
Bibliograa
CARROUGES, Michel (1950). Andr Breton et les donnes fondamentales du surralisme. Paris: Gallimard. CHARVET, A. (2004). La voix et ses mtamorphoses dans les mtamorphoses dOvide. Paris: Nil. COCTEAU, Jean (1993). Opium. Paris: Stock. (1983 a). Le Pass dni I (1951-1952). Paris: Gallimard. (1983 b). La Voix humaine. Paris: Stock. COCTEAU, Jean, FRAIGNEAU, Andr (1988). Entretiens. Monaco: Du Rocher. FRAL, Josette (1988). La thtralit, recherche sur la spcicit du langage thtral. Potique 75, 347-361. LARTHOMAS, Pierre (1985). Techniques du thtre. Paris: PUF. TISON, Christophe (1989). Lre du vite. Paris: Balland. Resumo: Neste texto, pretendemos demonstrar que, nA Voz humana de Cocteau, a palavra que passa pela frieza, a austeridade e o laconismo de um o de telefone encontra-se transformada, adulterada e, por conseguinte, impe-se como lugar de perptua inveno. O telefone perde, pois, a sua qualidade de acessrio e torna-se o impulso dramtico que conduz a aco. Abstract: In this text we intend to show that in Cocteaus The Human Voice the word that passes through the coldness, the austerity and the concision of a telephone wire is both transformed and corrupted, thereby becoming a place of perpetual invention. The telephone thus loses its accessory quality and becomes the dramatic impulse directing the action.
A traduo pertence-nos, mas vejamos, ento, a citao original de Larthomas: Au commencement, il y a toujours un texte et cest lui qui, sil est beau, nalement demeure et demeurera, au-del de toutes les interprtations, et parfois de tous les outrages quon peut lui faire subir.
Com este texto, gostava de tentar continuar a responder a uma pergunta que se me colocou h dois anos sobre a obra de Heiner Mller e a que tentei na altura responder, tambm num colquio, mas com resultados ento menos decisivos1. A pergunta era, como se depreender a partir do meu ttulo, sobre aquilo a que chamei o desejo de substituio nos textos de Mller. Talvez menos do que o desejo, interessava-me o conceito e perguntava-me: o que a substituibilidade? Conceito forado provavelmente, e de certeza abstruso, para designar a passibilidade de ser substitudo, a abertura para uma substituio. Ora, para que interessa pensar o fenmeno da substituio, hoje ou em qualquer altura? A substituio, e um conceito como a substituibilidade, lembram-nos descartabilidade, insegurana, ansiedade em relao a ser substitudo, todas noes negativas. O lado valorizado, a partir do qual condenamos estas noes, conhecemo-lo bem, o da insubstituibilidade do indivduo, da sua singularidade, do seu valor humano essencial, etc., todo o discurso humanista. Se a substituibilidade algo de to temvel, entende-se mal que seja desejada, como vemos no meu ttulo. Aquilo que tentarei aqui defender que faz sentido pensar a substituibilidade como algo de positivo, at utpico, e direi que encontramos este conceito de vrias maneiras
O resultado desse primeiro encontro pode encontrar-se em Gomes, Miguel Ramalhete (2006). Ersetzbarkeit: Die Coriolan-Prtexte bei Heiner Mllers Germania 3. In Theaterwissenschaftliche Beitrge 2006, anexo a Theater der Zeit, 05/Maio 2006, 31-33.
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nesta breve pea, Hamletmaschine, tanto ao nvel temtico como ao nvel da construo da pea e da sua apresentao como aquilo a que o prprio Heiner Mller chamou um fragmento sinttico (cf. Mller, 2005: 175). Tenciono, ento, abordar esta pea em trs momentos: comearei por uma breve contextualizao histrica, seguida da leitura de alguns passos da pea luz daquilo a que chamei o desejo de substituio; o ensaio terminar com algumas consideraes ao nvel da construo da pea, no contexto de um teatro breve ou mnimo. Hamletmaschine (A Mquina-Hamlet) foi escrita em 1977, marcando um ponto de ruptura na dramaturgia de Heiner Mller, dramaturgo alemo da segunda metade do sculo XX que escolheu viver na RDA (Repblica Democrtica Alem). No seguimento de uma traduo de Hamlet para uma encenao de Benno Besson em Berlim Oriental, Mller, que j tinha um projecto antigo de reescrever Hamlet, escreve rapidamente Hamletmaschine, uma pea de apenas nove pginas, por oposio s 200 originalmente projectadas. A pea revelou-se to radical que s pde ser encenada no ano seguinte em Bruxelas, traduzida para francs, tendo sido proibida na RDA at queda do muro de Berlim. A pea s estreou em Berlim Oriental em 1990, no Deutsches Theater, encenada pelo prprio Mller, numa produo gigantesca de oito horas, ainda hoje referida em coleces sobre prtica teatral, e em que todo o texto de Hamlet era usado, junto com Hamletmaschine entre o 4 e o 5 actos da pea de Shakespeare. A pea de Mller divide-se em cinco cenas, constitudas por quatro monlogos, dois de Hamlet e dois de Oflia, e um breve interldio no centro da pea, apropriadamente chamado Scherzo. A ligao ao enredo da pea de Shakespeare mnima, funcionando Hamletmaschine sobretudo como um comentrio da recepo de Hamlet na Alemanha. Alis, tentar falar do assunto, dos temas, da pea difcil. De facto, como disse h pouco, trata-se de uma pea de ruptura em vrios sentidos, sendo um deles a forma como se relaciona com o teatro e as tradies dramtica e teatral, a comear pelo facto de no poder ser encenada tal como o texto escrito exige. Esse facto encontra a sua justicao nas palavras de Mller sobre a necessria falta de harmonia entre a literatura e o teatro: Considero uma necessidade haver peas que no possam ser encenadas na sua forma escrita original. esta a maneira de fazer com que os teatros progridam e se desenvolvam (Mller, 2005: 170, minha traduo)2. Para o carcter radical da pea contribuem a ausncia de enredo, a ausncia de unidade nas personagens dramticas, didasclias impossveis, mas sobretudo uma construo supostamente fragmentria, circular e repetitiva (cf. Baillet, 2003: 152-156), de uma densidade intertextual notvel, o que, pela provvel no identicao de muitos passos
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Optou-se por facultar as citaes de Mller em traduo no corpo do texto, de forma a facilitar a leitura a quem que no domine a lngua alem. Em nota de rodap seguem os excertos no original. Neste caso, o original encontra-se em ingls: I consider plays which cannot be staged in their original written form a necessity. This is the way which leads to progress and development in theatres (Mller, 2005: 170).
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por parte do leitor, leva a uma aparncia de absurdo e de solipsismo. E, no entanto, julgo que poderemos ver, at ao m da minha apresentao, que no h aqui nada de verdadeiramente fragmentrio no sentido literal do termo (o texto no est inacabado) e muito menos de absurdo ou de solipsista. A pea divide-se por dois protagonistas. Por um lado, temos Hamlet que, no primeiro monlogo, intitulado lbum de Famlia, explora o elemento da luta familiar: a sua (ou seja, morte do pai, casamento do tio com a me, tal como na pea original), e a da famlia implcita a famlia poltica do paizinho dos povos, Joseph Estaline, o eminente cadver [que] () ERA UM HOMEM QUE S TIRAVA TUDO DE TODOS (Mller, 1983: 43)3. A tragdia psicolgica de Hamlet assim tambm a tragdia poltica dos povos tiranizados por Estaline. Esta transio inscreve-se na tradio alem de recepo da pea Hamlet, aludindo Mller, noutro texto, ao famoso poema de Ferdinand Freiligrath, Deutschland ist Hamlet (A Alemanha Hamlet) (cf. Mller, 2005: 292-293). Do outro monlogo de Hamlet falarei daqui a pouco, dizendo apenas, para j, que corporiza a sensao de impotncia do intelectual de esquerda no contexto da RDA. Oflia, por outro lado, demarca-se pelo oposto total da impotncia de Hamlet pela aco, ou melhor, pela oposio, violenta, havendo aluses ao terrorismo e luta das ex-colnias europeias. Oflia aproxima-se textualmente de guras como Ulrike Meinhoff, da RAF (Rote Armee Fraktion), Electra, Susan Atkins, do grupo de Charles Manson, Lady Macbeth, etc. Estas referncias (frequentemente contraditrias) ajudar-nos-o a perceber de onde surge esta imagem de Oflia, depois de considerarmos o monlogo de Hamlet na 4 cena, o mais longo, ocupando cerca de metade da pea. A primeira cena da pea, j referida, comea com a frase que escolhi para ttulo deste ensaio: Eu era Hamlet (Mller, 1983: 43)4. A colocao da gura Hamlet no passado desenvolvida mais frente nessa cena, dizendo Hamlet a Horcio: Eu sabia que s um actor. Tambm eu o sou. Fao de Hamlet (ibid.: 44)5. Sabendo que estes jogos teatrais abundam na prpria pea de Shakespeare, e que em Mller apontam tambm para a mscara de Hamlet que a Alemanha frequentemente colocou, temos ento a necessria ruptura da pea: na 4 cena, pouco depois do incio de novo monlogo de Hamlet, lemos a seguinte didasclia: (tira a mscara e o fato) (ibid.: 47)6, seguida de um texto desta vez lido pelo intrprete de Hamlet:
No sou Hamlet. No represento mais nenhum papel. As minhas palavras no tm mais nada a dizer-me (). O meu drama j no se realiza. Atrs de mim montase a cena. De pessoas a quem o meu drama no interessa, para pessoas a quem ele
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des Hohen Kadavers () ER WAR EIN MANN NAHM ALLES NUR VON ALLEN (Mller, 2001: 545). Ich war Hamlet (Mller, 2001: 545). Ich wute, da du ein Schauspieler bist. Ich bin es auch, ich spiele Hamlet (Mller, 2001: 546). Legt Maske und Kstum ab (Mller, 2001: 549).
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no diz respeito. A mim tambm ele j no interessa (). A montagem cnica um monumento. Apresenta, cem vezes aumentado, um homem que fez histria. A petricao de uma esperana. O seu nome () [substituvel]. A esperana no se concretizou. O monumento encontra-se por terra, demolido trs anos depois do funeral de estado, esse que foi odiado e venerado pelos seus sucessores no poder (ibid., meu sublinhado)7.
O nome substituvel o de Estaline8. O monlogo continua e o intrprete de Hamlet diz: A essa queda do monumento, depois de um tempo conveniente, seguese a revolta. O meu drama, se ainda tivesse lugar, realizar-se-ia na poca da revolta (ibid.)9, sendo a revolta em causa sobretudo a revolta hngara de 1956, mas estando implcitas as de Berlim em 1953 e a de Praga em 1968. Segue-se a descrio da revolta e das foras em conito: de um lado a multido, contida pelas foras policiais; do outro, na varanda de um edifcio do governo, um homem de fraque. Perante as foras
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Ich bin nicht Hamlet. Ich spiele keine Rolle mehr. Meine Worte haben mir nichts mehr zu sagen (). Mein Drama ndet nicht mehr statt. Hinter mir wird die Dekoration aufgebaut. Von Leuten, die mein Drama nicht interessiert, fr Leute, die es nicht angeht. Mich interessiert es auch nicht mehr (). Die Dekoration ist ein Denkmal. Es stellt in hundertfacher Vergrerung einen Mann dar, der Geschichte gemacht hat. Die Versteinerung einer Hoffnung. Sein Name ist auswechselbar. Die Hoffnung hat sich nicht erfllt. Das Denkmal liegt am Boden, geschleift drei Jahre nach dem Staatsbegrbnis des Gehaten und Verehrten von seinen Nachfolgern in der Macht (Mller, 2001: 549-550). Na citao endentada escrevo [substituvel] para suprir o que foi certamente um lapso: na traduo para portugus, aparece insubstituvel como traduo de auswechselbar, que, na verdade, signica o oposto exacto, ou seja, substituvel.
O lapso que encontramos na nota anterior pode ter alguma explicao: de facto, por que haveria o nome de Estaline de ser substituvel? No faria mais sentido ser insubstituvel, petricado e perene como o monumento? Lembrado para sempre como o genocida que o 20 Congresso do Partido Comunista, em 1956, denuncia? Seria isso um tipo de insubstituibilidade, o nome inconfundvel. E, no entanto, monumentalizao (a petricao da esperana) segue-se a demolio, acompanhada do dio ou da venerao por parte dos sucessores no poder. Num sentido que ainda no o da substituibilidade de que falarei em breve, Estaline substituvel no s pelos seus sucessores como por personagens literrias. Uma das associaes famosas de Mller consiste em aproximar o par Estaline/Trotsky do par Macbeth/Banquo (cf. Mller, 2005: 337), numa daquelas actualizaes literrias e polticas que abundam na recepo da obra de Shakespeare. A substituibilidade de Estaline prender-se-ia, assim, com a viso mlleriana da Histria como mquina, como ciclo imparvel e imensamente destrutivo, em que sempre o mesmo que retorna (cf. ibid.): este mesmo seria Macbeth, Estaline, etc. O que se diz com O seu nome substituvel que o nome do ser humano que ocupa um cargo desses indiferente: o problema est na existncia de um tal cargo, da este tipo restrito de substituibilidade. Contudo, a substituibilidade de que falo neste ensaio, repito, no a que afecta Estaline. No aparece nomeada no texto, apenas descrita e posta em aco, como factor subversivo de uma lgica de representao, como veremos.
Mein Drama, wenn es noch stattnden wrde, fnde in der Zeit des Aufstands statt (Mller, 2001: 550).
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A reaco do intrprete de Hamlet, a ter tido lugar, seria de mobilidade total, de impossvel representao, ocupando todos os lugares e posies e no permanecendo em nenhum deles, substituindo-se a todos os intervenientes, a partir de uma indeterminao primeira e essencial aquilo a que chamo substituibilidade. Em termos conceptuais, a substituibilidade prende-se com outras duas noes que j foram sendo aqui aoradas e complicadas: a de representao e a de indivduo. Por Mller nem sempre articular claramente aquilo que pretende opor a estes dois conceitos, socorro-me aqui de um texto de Giorgio Agamben que, com as devidas diferenas, se aproxima surpreendentemente daquilo que Mller parece estar a propor, no livro A comunidade que vem. Nesta comunidade o ser que vem o ser qualquer (Agamben, 1993: 11) o qual se aproxima do homem sem qualidades de Musil: uma pura potncia, um ser tal qual (ibid.). O ser qualquer, derivado de quodlibet ens (ser qual se quer), implica vontade e desejo, visto que o ser (), seja como for, no indiferente (ibid.). No seguimento desta exposio, Agamben recorre ao Talmude e refere que a o que uma criatura tem de mais prprio torna-se assim a sua substituibilidade, o seu ser no lugar do outro (ibid.: 25), elaborando, em seguida que:
hipcrita co da insubstituibilidade do indivduo, que na nossa cultura serve apenas para garantir a sua universal representabilidade, [ope-se] () uma substituibilidade incondicionada, sem representante, sem representao possvel, uma comunidade absolutamente no representvel (ibid.: 26-27, meu sublinhado).
Isto parece paradoxal primeira vista. Normalmente o fenmeno da representao dar-se-ia pela substituio do representado: aquele que fala fala por algum, fala a par10
Mein Platz, wenn mein Drama noch stattnden wrde, wre auf beiden Seiten der Front, zwischen den Fronten, darber. Ich stehe im Schweigeruch der Menge und werfe Steine auf Polizisten Soldaten Panzer Panzerglas. Ich blicke durch die Flgeltr aus Panzerglas auf die andrngende Menge und rieche meinen Angstschwei. Ich schttle, von Brechreiz gewrgt, meine Faust gegen mich, der hinter dem Panzerglas steht (). Ich bin der Soldat im Panzerturm, mein Kopf ist leer unter dem Helm (). Ich bin mein Gefangener (Mller, 2001: 550-551).
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tir do lugar do representado, substitui-o. Pelo contrrio, Agamben diz claramente que a representabilidade precisa da co da insubstituibilidade do indivduo, e de facto isso que se passa, porque a representao assenta numa estrutura no de substituio, mas de sobreposio. O representante fala no a partir da posio do representado, mas a partir de um ponto acima deste (uma sobre-posio), em cima dessa posio, que funciona como base. Representante e representado no esto, assim, ao mesmo nvel e seria por o representado ser um indivduo nico, insubstituvel, que ele/ela necessitaria de representao, algum que fale por ele/ela sem ocupar o seu lugar, mas a partir de outro lugar, mais acima. Contudo, aquilo que encontramos na substituibilidade incondicionada que impede qualquer tipo de representao uma base mvel, um conjunto de sujeitos que no um conjunto, em que cada um pode ocupar outras posies (e ver a sua posio ser ocupada). Este ser uma singularidade qualquer, potencial, indeterminada, substituvel, uma singularidade sem identidade (ibid.: 52). Nesse caso, no h representao possvel, porque no h nada que representar no h uma base xa em que um representante se possa apoiar. A consequncia lgica deste raciocnio exposta por Agamben num captulo intitulado Tienanmen, onde se diz
[O] facto novo da poltica que vem que ela no ser j a luta pela conquista ou controlo do Estado, mas luta entre o Estado e o no-Estado (a humanidade), disjuno irremedivel entre as singularidades quaisquer e a organizao estatal (ibid.: 67, itlico no original).
Estas singularidades quaisquer, substituveis e irrepresentveis, so uma ameaa clara entidade Estado e, como tal, onde quer que estas singularidades manifestem pacicamente o seu ser comum, haver um Tienanmen e, tarde ou cedo, surgiro os tanque armados (ibid.: 68). Voltando pea de Mller, podemos dizer que este tipo de singularidade, incondicionalmente substituvel e irrepresentvel, uma ameaa ao Estado e reprimida por tanques armados, uma descrio exemplar11 do papel que o intrprete de Hamlet
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interessante que, pouco antes de falar da substituibilidade, Agamben fale do caso do exemplo, adiantando logo alguns elementos necessrios para entender as suas breves consideraes sobre a substituibilidade, nomeadamente o argumento espacial que usei h pouco. Vale a pena citar Agamben quando este fala da pregnncia do termo que em grego exprime o exemplo: para-deigma, o que se mostra ao lado (como o alemo Bei-spiel, o que joga ao lado). Porque o lugar prprio do exemplo sempre ao lado de si prprio, no espao vazio em que se desenrola a sua vida inqualicvel e inesquecvel (Agamben, 1993: 16). A conrmar este estatuto paradoxal do exemplo, surge a seguinte considerao de Jacques Derrida, que, referindo-se ao testemunho e ao exemplo, acaba por tocar na questo da substituibilidade: O exemplo no substituvel; mas, ao mesmo tempo, e sempre a mesma aporia que subsiste, essa insubstituibilidade deve ser exemplar, isto , substituvel. O insubstituvel deve deixar-se substituir in loquo. Ao dizer: juro que digo a verdade a onde fui o nico a ver ou a ouvir, e onde sou o nico a poder
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desempenharia, caso o seu drama tivesse tido lugar, caso o manuscrito no se tivesse perdido (cf. Mller, 1983: 48). Mas a admisso do fracasso faz-se com o retorno ao fato, mscara e ao papel de Hamlet nova substituio, de facto, s que desta vez o retorno mscara do ressentimento em relao gura paternal (S COSTAS O FANTASMA QUE O FEZ [ibid.: 50]12), que culmina com machadadas nas cabeas de Marx, Lenine e Mao. Este fracasso da gura do intelectual, representado por Hamlet, um tema recorrente em Mller que, num texto sobre Althusser, fala do talvez necessrio fracasso do intelectual. () um fracasso de representao (Mller, 2005: 241, minha traduo)13. Referindo-se mais frente a Michel Foucault, Mller desenvolve a tese de que o intelectual no pode mais ser um representante (ibid.: 244, minha traduo)14, devendo entender-se aqui o termo representao como na exposio de Agamben, ou seja, no podendo este continuar a ser algum que, numa posio acima, fala por um indivduo insubstituvel. Mller desenvolve este tema noutro texto ainda, armando que a nossa civilizao uma civilizao de representao. E representao requer seleco; Auschwitz e Hiroshima so produtos nais de um pensamento selectivo (Mller, 2003: 314, minha traduo)15. Colocar a mscara de Hamlet admitir o fracasso, o retorno cena da seleco e da representao, quilo que Mller e Agamben pretendem deixar para trs. Mas o outro fracasso, o fracasso do prprio sistema de representao e seleco que a substituibilidade incondicionada precipitaria, est j avanado hipoteticamente pelo intrprete de Hamlet (nos seus mltiplos posicionamentos na cena da revolta) e, como vimos h pouco, caber gura de Oflia, na quinta cena, a continuao desta revolta atravs do jogo de mscaras e substituies, num texto saturado em termos de densidade intertextual. A prpria gura de Oflia na pea de Mller tem sido objecto de algumas discusses. Se Oflia d continuidade ao jogo da irrepresentabilidade iniciado pelo intrprete de Hamlet, afastando-se de qualquer programa poltico denvel, compreende-se mal que esta fale Em nome das vtimas (Mller, 1983: 51)16, anal a estratgia de representao por excelncia. Jean-Pierre Morel explica que vrios comentadores tentaram, a partir desta frase, identicar os grupos representados por Oflia (cf. Morel, 2003: 42). Contudo, o
atest-lo, verdade na medida em que quem quer que estivesse no meu lugar, nesse instante, teria visto ou ouvido ou tocado a mesma coisa, e poderia repetir exemplarmente, universalmente, a verdade do meu testemunho (Derrida, 2004: 38).
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IM RCKEN DAS GESPENST DAS IHN GEMACHT HAT (Mller, 2001: 553). das vielleicht notwendige Versagen von Intellektuellen. ein stellvertretendes Versagen (Mller, 2005: 241). der Intellektuelle kein Reprsentant mehr sein kann (Mller, 2005: 244). Unsre Zivilisation ist eine Zivilisation der Stellvertretung. Und Reprsentation bedingt Selektion, Auschwitz und Hiroshima sind Finalprodukte selektiven Denkens (Mller, 2003: 314). Im Namen der Opfer (Mller, 2001: 554).
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prprio Morel avana que no h aqui qualquer identicao com uma comunidade real ou virtual, mas apenas uma identicao impossvel, no sentido de Jacques Rancire (cf. ibid.), sendo possvel aproximar esse conceito do de Agamben: uma pura pertena, sem identidade nem uma representvel condio de pertena (Agamben, 1993: 67). O interesse de Mller pelos grupos terroristas das dcadas de 1960 e 1970 (sobretudo a RAF) percebe-se, assim, pelo facto de estes actuarem em seu prprio nome, sem delegao ou representao (cf. Morel, 2003: 41) e, mais ainda, por se tratar de actos sem qualquer tipo de sentido. Segundo Mller, Que 100 pessoas entrem em confronto com um tal aparelho de estado [aqui a RFA] no faz sentido. o sem-sentido que torna isso agressivo (Mller, 2005: 342, minha traduo)17. Mller avana ento para um entendimento destes grupos, bem como da recente revitalizao dos fascismos, como um sintoma de que h necessidades que os estados ocidentais no conseguem satisfazer, surgindo assim aquilo a que Mller chama ilhas da desordem (ibid.: 245, minha traduo)18, grupos com liaes instveis e sem identidade slida. Voltamos Tienanmen de Agamben e reencontramos, ento, as suas singularidades quaisquer, substituveis e irrepresentveis, talvez a maior ameaa contempornea entidade estado, e, nas palavras de Hamletmaschine, ESPERANDO FURIOSAMENTE (Mller, 1983: 51)19. Percorrido este caminho, falta ento ver de que forma a tcnica do fragmento sinttico de Mller se adequa a esta nova expresso da revolta. Mller comea por lembrar que a literatura dramtica alem particularmente rica em fragmentos (pense-se em Bchner e no fragmento Fatzer de Brecht, por exemplo), por ser um reexo do carcter fragmentrio da prpria histria da Alemanha e do teatro alemo, criando rupturas e interrupes nas relaes entre literatura, teatro e pblico. Mas a necessidade de ontem a virtude de hoje: a fragmentao de um fenmeno acentua o seu carcter de processo (Mller, 2005: 175, minha traduo)20, pelo que o projecto de Mller comea ento a passar pela fabricao de fragmentos, ou seja, pela escrita de fragmentos sintticos, articiais. Na expresso de Florence Baillet, Ceci nest pas vraiment un fragment (Baillet, 2003: 156). Hamletmaschine oferece-se-nos assim como um texto com as caractersticas do fragmento: descontnuo, desequilibrado nas propores, hermtico, enigmtico, pleno de referncias obscuras e contradies. Mas o prprio texto, em toda a sua breve extenso, que nos aparece como um fragmento dessa outra pea de 200 pginas, que Mller dizia pretender escrever sobre o prncipe da Dinamarca. O projecto revela-se impossvel em 1977, pelo menos nos termos de uma pea com in17
Das 100 Leute gegen einen solchen Stattsapparat antreten, ist sinnlos. Das Sinnlose ist es, was aggressiv macht (Mller, 2005: 342). Inseln der Unordnung (Mller, 2005: 245). WILDHARREND (Mller, 2001: 553). Die Not von gestern ist die Tugend von heute: die Fragmentarisierung eines Vorgangs betont seinen Prozecharakter (Mller, 2005: 175).
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cio, meio e m, algo de que Mller desiste, por se ter tornado perfeitamente obsoleta (cf. Mller, 2005: 175). A fragmentao e a reduo, enquanto tcnicas literrias, servem ento para transferir a fragmentao histrica da Alemanha (e a fragmentao da relao da Alemanha com o mito de Hamlet) para o prprio corpo do texto. Para permanecer na prosopopeia, ser este mesmo corpo do texto que, mutilado e travestido, se oferecer como substituto (e como admisso do fracasso de uma tentativa de substituio) de um texto (Hamlet, de Shakespeare) que se ligou, como poucos outros textos, aos fracassos e derramamentos de sangue na Alemanha, numa ligao instvel e inquietante entre barbrie e alta cultura: no fundo, o lugar do intelectual. Encontramos uma das descries mais anatomicamente exactas dessa ligao na epgrafe que abre outra reescrita shakespeariana de Mller, desta vez Anatomie Titus Fall of Rome, a partir de Titus Andronicus:
Abrir as veias humanidade como um livro Folhe-lo num rio de sangue (apud Cintra, sd: sp)21
Bibliograa:
AGAMBEN, Giorgio (1993). A comunidade que vem. Trad. de Antnio Guerreiro. Lisboa: Editorial Presena. BAILLET, Florence (2003). Heiner Mller. Paris: Belin. CINTRA, Lus Miguel (s.d.). 86 Anatomia Tito Fall of Rome Este espectculo. In http:// www.teatro-cornucpia.pt/htmls/conteudos/EEIuAVpEIVKiquta aF.shtml (visto a 19 de Outubro de 2007). DERRIDA, Jacques (2004). Morada. Maurice Blanchot. Viseu: Vendaval. MOREL, Jean-Pierre (2003). Reprsentation, Demokratie. In LEHMANN, Hans-Thies, PRIMAVESI, Patrick (eds.). Heiner Mller Handbuch. Stuttgart/Weimar: Verlag J.B. Metzler, 39-45. MLLER, Heiner (1983). A Misso e outras peas. Trad. de Anabela Mendes. Lisboa: apginastantas. (2001). Werke 4 Die Stcke 2. Ed. Frank Hrnigk. Frankfurt/M.: Suhrkamp. (2002). Werke 5 Die Stcke 3. Ed. Frank Hrnigk. Frankfurt/M.: Suhrkamp. (2003). Krieg ohne Schlacht: Leben in zwei Diktaturen Eine Autobiographie. Colnia: Kiepenheuer & Witsch. (2005). Werke 8 Die Schriften. Ed. Frank Hrnigk. Frankfurt/M.: Suhrkamp.
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Der Menschheit / Die Adern aufgeschlagen wie ein Buch / Im Blutstrom blttern (Mller, 2002: 99). A traduo deste excerto, bem como da pea de onde este se retirou, Anatomie Titus Fall of Rome, na sua encenao pela Cornucpia, de Joo Barrento.
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Resumo: Neste ensaio proponho-me elaborar uma leitura da pea Hamletmaschine (1977), de Heiner Mller, entendendo-a como um exerccio radical de reescrita de Hamlet, de William Shakespeare. No seguimento da sua traduo de Hamlet para alemo, Mller escreve esta pea de apenas nove pginas como um comentrio situao poltica da Europa de Leste nas dcadas de 1960 e 1970. A pea, pela sua brevidade, surge tambm como uma forma densa e prxima do fragmento, congurando a aproximao ao ps-modernismo que caracterizar a escrita de Mller nas dcadas seguintes. Hamletmaschine ser, assim, considerada como fragmentao e substituio da pea de Shakespeare, focando-se sobretudo a importncia da gura da substituio para a compreenso da pea de Mller. Abstract: I was Hamlet: desire for substitution in Heiner Mllers Hamletmaschine In this essay I propose a reading of Heiner Mllers play Hamletmaschine (1977) as a radical exercise in rewriting William Shakespeares Hamlet. As a follow-up to his translation of Hamlet into German, Mller writes this nine-page play as a comment to the political situation in Eastern Europe in the 1960s and 1970s. Because of its size, the play strikes us as a dense form, close to the fragment form, foreshadowing Mllers growing immersion in post-modernism, which will characterize his writing during the following decades. I will then stress Hamletmaschines fragmentation and substitution of Shakespeares play, focusing above all on the importance of the concept of substitution for our comprehension of Mllers play.
Na ampla rea das composies dramticas de natureza popular, as Papeladas de Valongo (distrito do Porto) conformam uma complexa e persistente manifestao cultural que tem sido pouco mais do que menosprezada pelos vrios domnios das cincias, indiferentes aos dados que a poderiam obter1. Trata-se de teatro popular autntico, que no se resume a literatura monoltica mas sim a literatura em movimento, no sentido em que veicula mensagens que o povo reconhece, aces ou quadros do quotidiano que a sua preparao cultural e literria permite descodicar, revelando-lhe as suas estruturas mentais, os seus mitos, medos e aspiraes. Esclarea-se desde j que entendemos aqui o termo povo na acepo de camada da populao desfavorecida do ponto de vista do acesso aos produtos culturais destinados a elites, embora sem esquecer que este um conceito sempre ambguo, sobretudo nos nossos dias, devido crescente democratizao da cultura e permeabilidade ou contaminao prprias dos objectos culturais e das classes sociais. A primeira recolha de papeladas remonta a um ou dois anos aps o 25 de Abril de 1974, por aco de um grupo que intentava fazer o levantamento do patrimnio cultural do concelho de Valongo. Sem o recurso a meios tcnicos de reproduo, foram
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A dignidade que estes textos merecem, a concretizar na sua edio em livro, tarefa que esperamos empreender brevemente, resulta do interesse de que se revestem no apenas para a Literatura, mas tambm para a Etnograa, para a Histria, para a Sociologia, para a Lingustica, para a Cultura em geral. Neles encontramos aluses a usos e costumes, traos sociolectais e dialectais, acontecimentos, mentalidades.
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reunidos vrios manuscritos, alguns dos quais datados do incio do sculo XX, da autoria de um guarda-rios Joaquim Fozca (que trouxe a tradio de Vila Nova de Foz Ca, como a alcunha toponmica deixa perceber) , autor que permanece ainda na memria de muitos valonguenses pelo repentismo potico que evidenciava em certos momentos. Com o desaparecimento das instalaes provisrias do museu de Valongo, perdeu-se o paradeiro dos originais manuscritos e das cpias dactilografadas, cuja reconstituio el, a partir de relatos orais a nica fonte possvel , se revela, obviamente, impraticvel. Muitos dos informadores potencialmente mais competentes actores e autores, sempre homens , alis, j faleceram, pelo que resta recorrer ao esforo de rememorao de alguns assistentes mais apaixonados por esta tradio. Para alm dos fragmentos xados da oralidade, as papeladas de que hoje dispomos so as mais modernas, oriundas do esplio recolhido por um grupo amador, a Associao Cultural e Recreativa Vallis Longus, a operar no levantamento do patrimnio de Valongo desde Setembro de 1983. O seu grupo de comdia representa ainda as papeladas de So Mamede, na festividade popular homnima, ou na Festa de Santa Justa, j com projeco e promoo no exterior, mesmo sem a adeso afectiva (compreensvel) das geraes mais novas. Talvez se deva falar aqui j mais de teatro amador do que de teatro popular merc da imitao das tcnicas do teatro prossional, do prossionalismo dos ensaiadores, etc. , com a curiosa particularidade de os actores se integrarem numa cadeia intergeracional, na medida em que, multiplicadas vezes, do continuidade a uma tendncia histrinica familiar, actualizada nas representaes cclicas das papeladas. Esta relao gentica ocorre tambm no momento mais embrionrio da unidade sistmica constituda pelas papeladas o da produo , que, semelhana de vrios ofcios materiais ou fsicos, tantas vezes transita de pais para lhos ou de parente para parente, dentro de clulas familiares que estruturam grande parte da sua auto-estima nessa produo cultural herdada. O trabalho de Joaquim Fozca, por exemplo, ou Fozca velho, como coloquialmente conhecido, foi continuado por um seu sobrinho, tambm chamado Joaquim Fozca. Jos Taio, um dos mais eminentes continuadores da tradio instaurada por Joaquim Fozca, que, numa das raras excepes, no pertencia famlia, prestava homenagem ao mestre nesta deixa, quando a doena que o vitimou se encontrava j numa fase avanada:
E aqui pr Quim Fozca Que ir o Entrudo deixar? melhor no deixar nada Pra no cares a cismar. Pr ano quero que venhas Ocupar o meu lugar E as deixas que eu no deixei Que as sejas tu a deixar.
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Tradio e patrimnio familiar partilhado com a comunidade, hoje pertena sobretudo de Antnio Alves do Vale, por direito de transmisso mas tambm por vocao e empenhamento pessoal, direccionado para a manuteno de um legado cultural e humano, as papeladas tm resistido s mos de sucessivos Fozcas que acreditam nas suas virtualidades. Gente de pouca instruo escolar, mas munida de intuies e saberes erigidos custa de sucessivas experincias; gente habituada a conviver com linguagens e formas speras, desajeitadas e grosseiras, abertamente desbocadas, na interpretao dos inmeros detractores de qualquer arte popular, exasperados perante a energia destes espectculos livres. O vocbulo papeladas refere o veculo instvel e efmero o papel, as folhas soltas , ao mesmo tempo que atribui a estas composies um tom ligeiro, desprendido, decorrente da precariedade do suporte e da ligeireza do contedo textual. O suxo de conjunto ada, com valor pejorativo ou, pelo menos, indicativo de objecto plural de pouco valor, sugere uma supercialidade que visa a legitimao, de certa maneira por antfrase, do espectculo teatral que cada papelada congurava. O seu principal argumento residia precisamente nessa suposta irreexo, na assuno da pea, antes de mais, enquanto edifcio ldico-verbal construo sempre provisria que acolhia outros signicados mais profundos, mais ou menos desmontveis ou perceptveis de acordo com a rede mltipla de recepes. Se bem que o possamos rotular de popular, o pblico destes espectculos era compsito, o que implicava necessariamente adeses e interpretaes dissemelhantes, mas unvoco nas reaces e no interesse revelados, mensurveis pelo conjunto de pessoas que enchiam o recinto, comunicavam directamente com a aco da pea atravs das expresses faciais e da ateno dispensada, faziam comentrios num tom discreto, manifestavam simpatia ou antipatia pelas personagens, viviam intensamente os acontecimentos. Esta espcie de crtica teatral popular desdobrava-se em dois momentos sequenciais: durante a representao, o silncio protocolar, exigido pelas condies logsticas, denunciava o interesse e o respeito pela pea e pelos actores; depois, na anlise dos aspectos mais signicativos, na troca interpessoal de pontos de vista. As papeladas manobravam num macrodiscurso festivo que se dirigia a um vasto pblico com aptides e gostos diversos: a uma elite cultural de participantes cultos ou pelo menos com um elevado ou considervel grau de escolaridade, presentes porque politicamente correcto ou porque verdadeiramente os atraem os jogos de engenho popular; a um pblico mdio e a um grande nmero de iletrados, alheios sosticao dos mecanismos exegticos, mas nem por isso impossibilitados de captar por outras vias o signicado desses eventos. Alis, era sobretudo a este ltimo pblico que as papeladas eram e ainda so, nas representaes da referida Associao endereadas. Como noutros gneros da literatura oral, os papis de emissor e de receptor invertiam-se, embora sem a frequncia e a dimenso permitidas por espcies textuais como a quadra, a cantiga narrativa ou o conto e o romance tradicionais: alguns
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dos espectadores tornavam-se tambm actores diferidos, ao xarem e recriarem partes das rplicas, fragmentos de sentido que se autonomizavam e passavam a circular na corrente literria oral do concelho (extravasando por vezes as suas fronteiras). O modo de criao artstica das papeladas, evidenciando certa similitude com a constituio de vrios gneros da literatura popular ou de transmisso oral, designadamente a origem individual e a difuso por via da oralidade, distingue-se dos outros, contudo, na plataforma constituda pelo texto escrito, que permanece inalterado, no obstante as modicaes que vai sofrendo, sempre que objecto de concretizao como texto teatral, atravs do processo de retextualizao (Franco Rufni). Seja como for, a autoridade desse registo escrito, til, como bvio, enquanto ponto de partida para os ensaios, valia sobretudo como testemunho de uma propriedade autoral que s vezes se perdia , podendo ser substituda pela verso memorial oral de algum que se encarregava de a transmitir aos actores. Dada a sua especicidade, todavia, visvel sobretudo no carcter fugaz e pontual das representaes, a papeladas no chega verdadeiramente, mesmo nos excertos que integram a corrente oral, ao estdio da anonimizao-colectivizao. Falta-lhe uma iterao ritualizada, insistente e obsidiante, para que surjam incises profundas e duradouras na memria colectiva. As papeladas eram representadas ao ar livre, nos locais de maior concentrao de pblico, em particular nos largos, nas praas da vila, em cima de carros de bois ou de tractores, sem pano de boca, para maximizar a sua visibilidade. A sua representao, que ocorria sobretudo na Festa de Santo Antnio ou dos Almocreves, verica-se agora especialmente a 15 de Agosto, como dissemos, na Festa de So Mamede, padroeiro da vila, em tablados improvisados, com os problemas inerentes amplicao sonora, ou no Teatro Vallis Longus. Vocao ambulante, portanto, mau grado a sua xao moderna num palco e o privilgio de algumas representaes no antigo Cine-Teatro Valonguense, tpica da matriz tradicional / popular em que se enquadram estas manifestaes artsticas, que no esgotam a integridade do vigente patrimnio literrio oral de Valongo. Pela sua especicidade, as deixas do ano novo / velho e as deixas do Carnaval, largadas, at h cerca de dez anos, a p, de porta em porta, ou a partir de carros de bois ou, mais prximo de ns, de camioneta, reclamam tambm um olhar atento, que no cabe neste espao (mas que faz parte dos nossos planos de investigao), seno nos seus aspectos fundamentais, at porque enformam uma espcie de proto-teatro. O seu reduto agora a memria colectiva, cada vez mais circunscrita e esbatida pela eroso do tempo, que guarda alguns textos e algumas situaes assim escritas na histria individual-colectiva. Modalidade potica repentista, naturalmente com um certo grau de programao anterior sua distribuio oralizada, a deixa consiste numa pequena composio rimada uma forma breve, portanto, com a mesma tenso explosiva da quadra e de outras formas poticas minimais, mas bem audveis de quatro, seis, oito ou doze versos heptassilbicos, com esquema rimtico varivel, que se ocupa da crtica
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e da stira impudentes, disparadas contra pessoas, costumes, actos maiores ou menores. O intrprete destes contundentes objectos verbais o Momo ou Entrudo , herdeiro dos bobos que se atreviam a falar dos seus senhores, a quem tudo se consentia e a quem tudo se perdoava, protegido e arrojado nas suas mascaradas cmicas com mmica, ousava proferi-los porta daqueles que os justicavam, sem distines de classes ou de estatutos sociais. Com esse memorando pblico teatralizado, por via do velho preceito latino ridendo castigat mores, buscava-se a correco dos desvios s regras construtoras do que se entende por sociedade justa e equilibrada. Os alvos privilegiados desta espcie de revista do ano (Pavo, 1999: 419)2 eram, por isso mesmo, instituies pblicas ou privadas. Claro que a vox populi podia comprazer-se quase exclusivamente no registo joco-srio, por vezes cruel e desapiedado, de pequenos incidentes ou (in)felicidades pessoais, como sucede nestes excertos de uma deixa de Jos Taio, dirigida a uma solteira j avanada na idade, que o poeta, num discurso jocoso e metafrico, pretende converter aos prazeres da carne:
Apesar de eu ser vidente, Jamais posso adivinhar O que pra certa donzela O Entrudo ir deixar. Sei apenas que lhe peo Esta graa e pouco mais: No levar pra Santo Hilrio O que pertence aos mortais. Peca na Terra, donzela, No queiras morrer casta e pura, Nem castigues o santinho A roer carne to dura.
A movimentao cnica processava-se de modo linear e uente, sem entradas nem sadas de personagens, cuja troca se fazia por simples deixa no interior do mesmo quadro cnico, a partir da proteco oferecida por uma porta, um painel, ou mesmo um banco ou uma escada junto ao pblico. A escassez de indicaes cnicas, de resto, promovia o improviso e a arte do ensaiador, tambm ele, muitas vezes, actor, como autorizava os actores a uma interveno criativa na fabricao potico-dramtica legada pelo autor inaugural. Teatro gesticulado, mas no gritado, inteligvel por todos fora da voz poderosa dos homens-actores, numa altura em no se colocava a contingncia da poluio sonora. O processo de mediao e adequao ao pblico da matria fabular verbal lembremos que no havia explicaes antes do espectculo dependia gran2
O autor refere-se aos Bandos do Faial e do Pico que, segundo Manuel Dionsio, eram (e ainda so) recitados por um mascarado, na poca do Carnaval, sobre um muro ou um balco.
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demente da articulao anada entre estes dois agentes. Tratava-se de uma simbiose sensvel, se pensarmos que era no cmico que estas peas concentravam o coeciente capital da sua capacidade de comunicao. Em cada pea (remetemos sempre para o testemunho escrito) surpreendamos uma gura ou um conjunto de guras que se socorria do cmico para instaurar a actualizao da crtica de costumes, imprescindvel puricao moral, harmonizao dos desvios e das presses sociais. Crtica que quase sempre cava diluda, diramos mesmo subjugada ou esquecida, embora ainda actuante na estrutura psicossocial aps a representao, em gracejos velada ou explicitamente obscenos, transportados por metforas e trocadilhos ousados e brejeiros. Atente-se, a ttulo de exemplo, no discurso deliberadamente dbio, apesar de no oferecer ao pblico quaisquer diculdades de descodicao, de uma das personagens da papelada Os Canos a Rosinha ou moa nova, indignada por ter sido enganada dum jeito to traioeiro pelo empreiteiro:
Sabe o grande desconforto Que me causou esse senhor? Meteu-me o cano to torto Que me estragou o corredor. E agora, Sr. Presidente, A coisa anda a ser falada. J diz para a toda a gente Que eu tenho a casa estragada. At me di a barriga Desta asneira que me arrasa. Por muitas coisas que eu diga J ningum me quer a casa.
Os temas das papeladas radicavam, sem excepo, no pulsar dirio da vila, consubstanciados, no poucas vezes, em formas proverbiais de alcance mais alargado, mau grado a sua aparente vacuidade ou debilidade ou o seu carcter datado. Os julgamentos podiam (e podem) parecer simples, as dissidncias e os desacordos inoportunos ou anacrnicos, mas a verdade que conguravam espelhos analgicos de conitos cclicos e universais, dos quais no se fazia um mero registo fotogrco. A caracterizao das personagens, construda mais pelas rplicas e pela coliso de perspectivas em aco do que pelos adereos usados, comungava igualmente dessa reduo ao essencial. As personagens acumulavam no raro funes contraditrias, reexo da sua surpreendente e dir-se-ia insuspeitada complexidade. Censoras e censurveis, adoptavam modos graciosos que alternavam com ocorrncias escabrosas e momentos de mordacidade crtica, na linha das personagens vicentinas e ps-vicentinas. Mas com a diferena assinalvel de a caricatura no assumir contornos exagerados
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de deformao satrica. Da a sua profunda e magntica humanidade. Algumas perderam o seu carcter conformativo de tipos sociais, desaparecidas as estruturas socio-histricas que as suscitavam: por exemplo, o Brasileiro do Par da papelada As Botinhas, o Regedor e o Guarda-Rios da papelada O Toso, o Moleiro e o Almocreve de O Barbeiro Pobre. O pblico que acorria a estes espectculos muito mais pela seduo ldica do que para se cultivar ou apreender o valor ou a subtileza dos textos e a correco das interpretaes absorvia de forma atenta as palavras vibradas pelas personagens, numa efuso sensorial espontnea e contida, sintonizado com a fora e a expanso do cmico da palavra, mas tambm com as inexes bruscas produzidas pelo cmico de situao e pelo cmico de carcter. Certos pormenores grotescos, extemporneos ou exagerados da indumentria (sapatos altos, cabeleiras vistosas, maquilhagens garridas, etc.) e o travesti era frequente um chefe de famlia vestir-se de mulher cumpriam tambm esse papel de detonao do riso ou do sorriso comedidos e de subverso carnavalesca. Os smbolos sexuais, na maioria das suas ocorrncias , ligados s vivncias e s situaes do quotidiano da vila, eram aceites por um pblico que lhes reputava genuinidade, mesmo na malcia dos ditos ambguos. Irmanados num ambiente de coeso antropolgica, s alcanvel em momentos de comunho artstica como este, pblico e actores contagiavam-se mutuamente, tornando cada representao nica e irrepetvel. A arte potica emergente do texto verbal principal (o discurso das personagens) inscrevia-se na continuidade do padro literrio oral / popular: a quadra, cuja extenso, articulada com a mtrica heptassilbica a estrutura prosdica mais natural e exvel da lngua portuguesa potenciava o andamento contnuo dos versos, que se volviam assim em depsitos seguros de uma prxis individual-comunal. Claro que s a performance contextualizada dos actores podia transmutar o mutismo da letra escrita, morta, em voz reveladora e vivicante, mas a perpetuao por escrito continuava, mesmo assim, a impor-se, pr-texto mudo de futuras realizaes orais ou, pelo menos, evocao das suas pretritas exploses performativas. A rima nal, geralmente de p quebrado, suportava a memorizao e a transmisso textual, ao mesmo tempo que, conjugada com outros procedimentos fnico-estilsticos mais ou menos ocasionais e intencionais (aliteraes, assonncias, rimas internas, etc.), cumpria funes de modulao esttica (ou estticopragmtica). Essas variaes, cuja amplitude no podia ser muito marcada, para no criar interferncias insuportveis com o horizonte de expectativas dos espectadores, dependiam da percia ou do estilo do autor, como decorriam do engenho pessoal de actores e ensaiadores, que recriavam constantemente o texto original. Um rasgo formal que de imediato aanava em favor da solidez da congurao popular deste tipo de teatro era o seu carcter breve caracterstica partilhada, alis, com toda a histria da literatura oral / popular , de que a Papelada do Abono constitui um dos exemplos mais perfeitos de conteno dramtica, no obstante as seis personagens que nela deslam. Os textos comportavam cerca de 200 a 300 quadras, estimadas
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para um tempo de representao de 30 a 45 minutos, numa procura bvia de equilbrio teatral, com vista a uma resposta concorde com as caractersticas do espectculo ao ar livre e do pblico. Prova, mais uma vez, da vocao da papelada para a ltragem de excrescncias supruas e para a edicao de universos formulveis em rpidos conceitos teatralizados. Funcionava aqui a eccia elementar de uma linguagem artstica cuja funo expressiva (e emotiva) se misturava a cada passo com a conotativa, numa exigncia da contextura festiva do espectculo global em que a papelada se incrustava. As papeladas convocavam uma apoteose interiorizada de todos os sentidos, sem a necessidade de apoios em forados elementos ideolgicos. Na estrutura da papelada, tambm neste plano liberta de complexos aparatos arquitectnicos, avultava, no desfecho, um elemento coesivo que os autores denominavam de cantigas ou quadras nais, cantadas e danadas em roda, num ritmo cadenciado e enleante. Num procedimento simblico pelo que encerrava de conciliao exorcizante, as personagens rematavam a sua interveno entoando uma cantiga que resumia toda a sua interveno na pea, em forma de quadra ou de sextilha com versos setessilbicos, acompanhada e enriquecida por instrumentos como os ferrinhos, o acordeo e o bombo. Repare-se, por exemplo, na cantiga confessionalista do velho (Mateus), na Comdia da Mini-Saia, stira bem-humorada, descontrada, moda que se vericou no pas nas dcadas de 60/70 do sculo XX:
Eu j fui tubaro E agora sou peixe manso; Eu sou como muitos so, Tanto ralho como dano.
Como variaes a este esquema, havia cantigas interpretadas por todas as personagens, congraadas num objectivo poltico-social comum, como acontece na Papelada do Abono3, e vrias peas que incluam tambm uma cantiga no incio, como no Barbeiro Pobre, tambm aqui no sentido da instaurao de uma atmosfera esttica que apagava ou atenuava a dor de viver (como dizia Fernando Pessoa):
H trs dias sem comer E sem ver as cruzes ao cobre. No h barbas a fazer, Mas h um barbeiro pobre!
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Boas festas queira dar Deus a quem nos escutou; E coroas para pagar A quem tanto trabalhou. O Senhor vos d o Cu E tudo o que h de bom, Mas no deiteis no chapu S moedas de tosto.
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Rosinha, no h caf? No h dois golos de ch? No h gua de unto? E uma batatas, Rosa, no h?
O teatro popular de Valongo extinguiu-se, mutatis mutandis, na sua autenticidade primitiva, mas deixou o rasto de uma manifestao cultural sui generis, que importa registar e estudar com seriedade, sem desdns disfarados ou recalcados. A partir do exemplo empenhado de uma valonguense que no desistiu da divulgao destas obras a Dr. Jacinta Quelhas, a quem devemos preciosas informaes para a redaco deste texto , compete agora aos valonguenses a procura sria do muito que ainda est por encontrar, seja na memria prpria ou de outrem, seja em papis, folhas, folhinhas ou em registos magnticos. S atravs de um empenho integrado que o acervo recolhido pela Associao Vallis Longus cerca de quinze peas poder ser substancialmente enriquecido. Trabalho que, sabemo-lo por experincia prpria, no nada fcil, j pela recusa posta pelos possuidores dos textos originais, j pela cautela e desconana de que aqueles rodeiam os seus emprstimos, chegando a impor prazos de devoluo, tal como aconteceu autora, conforme documenta Jos de Almeida Pavo no prefcio da obra O Teatro Popular em S. Miguel (Pavo, 1916: 20). Nas palavras judiciosas de A. Machado Guerreiro, lcido estudioso do teatro popular portugus, esta expresso artstica no deixar de ser, se sobreviver, para os que a fazem com amor, uma forma de enriquecer a personalidade, de trabalhar em conjunto, de agir sem o mbil do interesse material, de tomar maior conhecimento, mais conscincia, de si mesmos e do mundo circundante, em vrios planos poltico, social, religioso, numa palavra, cultural (Guerreiro, 1976: XLII). Vemos assim como Valongo merece gurar, de pleno direito, entre as terras portuguesas s quais indissoluvelmente se liga um riqussimo patrimnio dramtico, mediante o qual o microcosmo comunitrio traa alguns dos seus contornos essenciais enquanto grupo portador de uma identidade que lhe prpria, vazada em arquetpicas imagens autobiogrcas. Expresso do homem como sujeito criador na continuidade do tempo, que entretece histrias da vida com as malhas de que a prpria vida se tece, O teatro a vida em metfora de gente, numa feliz denio de Lus Miguel Cintra4.
Bibliograa
GUERREIRO, A. Machado (1976). Nota introdutria. In VASCONCELOS, Jos Leite de, Teatro Popular Portugus, I (Religioso). Coimbra: Por Ordem da Universidade, VII-XLIII. PAVO, Jos de Almeida (1996). Apontamentos sobre um notvel estudo. In FRANCO, Maria do Bom Sucesso Medeiros Franco. O Teatro Popular em S. Miguel Seus Temas e Formas. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 11-20.
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Resumo: Papeladas o termo usado para designar o teatro popular que, em Valongo (distrito do Porto, Portugal), com razes em nais do sculo XIX e incios do sculo XX, ainda hoje persiste na memria dos valonguenses mais dedicados s tradies culturais do seu concelho, e na prtica cultural da comunidade (atravs de uma Associao local). Este patrimnio em movimento, familiar mas, simultaneamente, comunitrio, nasceu do impulso migrante de um poeta popular um Fozca , que trouxe na sua bagagem textos e papis (in)signicantes. Produo semental que haveria de conquistar Valongo e os forasteiros que a esta vila acorriam para assistir s papeladas, como haveria de fecundar em profundidade a sua multmoda expresso artstica. A simplicidade e a rapidez da trama, a parcimnia ou a escassez de processos cnicos, o recorte concreto das personagens e dos seus dilogos, o humor ora prazenteiro ora satrico e os retratos histricos operados so apenas alguns dos vectores de uma arte teatral que procura o seu lugar na sociedade moderna; sociedade ultramediatizada e global que aspira preencher as junturas indiciadoras de crise com os elementos culturais identitrios mais proeminentes adstritos a cada regio. Abstract: Papeladas is the term used to designate the popular theatre performed in Valongo (Oporto region, Portugal) which goes back to the end of the 19th century or beginnings of the 20th century. It still persists nowadays in the memory of the locals who are more devoted to the regions cultural traditions and the communitys cultural practice (through a local association). This patrimony in motion, simultaneously familiar and communitarian, was born from the migrant impulse of a popular poet a Fozca that carried (in)signicant texts and scattered texts in his luggage. This seminal production would win over both Valongo and the foreigners who came to town to attend the papeladas and was to leave a deep imprint on their multifarious artistic expression. The simplicity and swiftness of the plot, the scarcity of the staging resources, the concrete contours of both characters and dialogues, the charming satirical humour and the historical portraits provided are just some of the key-features of a theatrical craft that seeks to nd its place in modern society, an ultra-mediatic and global society that attempts to ll in the gaps exposed by the present crisis with the most prominent cultural identity elements from each region
Palavras-chave: Teatro de marionetas, Bonecos de Santo Aleixo, Formas teatrais, Dilogo teatral. Keywords: Pupett Theatre, Santo Aleixo Pupetts, Theatrical Forms, Theatrical Dialogue.
A presente abordagem do tema aqui proposto para debate, o do teatro mnimo, recorre ao estudo do caso dos Bonecos de Santo Aleixo, que se inscreve num gnero antigo e novo ao mesmo tempo, o do teatro de marionetas. Trata-se, como tentaremos mostr-lo, de uma forma de teatro que poder ser adjectivada como mnima em vrias acepes do termo, mas a nossa pesquisa incidir essencialmente no aspecto genolgico do seu repertrio, em que se verica um predomnio de formas textuais e cnicas breves, que vivem estritamente do uso do dilogo enquanto componente formal mnima da aco cnica, mas no qual o teatro encontra a plenitude da sua especicidade enquanto expresso artstica. 1. Vejamos em primeiro lugar como retratar o nosso objecto de estudo, o teatro de marionetas e, em particular, o dos Bonecos de Santo Aleixo. hoje sabido que, se bem que presente em todas as culturas e pocas, o teatro de marionetas, apenas recentemente conseguiu libertar-se de uma relativa marginalidade artstica e consolidar o seu espao no campo teatral. O reconhecimento do teatro de marionetas enquanto forma de expresso artstica ter beneciado da reviso e do questionamento contemporneos dos limites do prprio conceito de teatro, que se viu alargado a ponto de se diluir, o que, porm, tornou mais complexa a sua denio: na percepo actual do teatro, o que se entende por teatro de marionetas? Ainda
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ser um gnero caracterizado por um tipo de destinatrios especcos (um pblico restrito infantil ou dito popular; no-erudito)? Ou s-lo- pelo lugar e pela funo que assume em termos artsticos relativamente criao teatral contempornea de conservao patrimonial ou de experimentao pura? Hoje a competio existe e tambm a colaborao inter-gneros entre a marioneta e o teatro em formatos nobres j consagrados (de que ser exemplo o trabalho das Marionetas do Porto, com a nova relao entre actor-marioneta-encenao no trabalho de Joo Paulo Seara Cardoso quando retoma a obra do Judeu do sc. XVIII) ou ainda em reas inovadoras associadas performance ou ao teatro de objectos, etc. Com maior visibilidade na oferta teatral contempornea, o gnero tambm conquistou, consequente ou simultaneamente, um segundo espao de consagrao, o dos estudos de teatro associados ao ensino especializado. Hoje considerado por um nmero crescente de teatrlogos como um objecto pertinente para o estudo do teatro em geral (Zurbach, 2002), passou a constar da lista dos tpicos habituais da bibliograa recente dedicada a diversos domnios da teatrologia: o da histria, da esttica e da teoria do teatro e das artes performativas a cargo de centros de investigao conceituados como o CNRS em Frana ou o Institut del Teatre de Barcelona. No caso presente, trataremos um exemplar proeminente da tradio portuguesa do teatro de marionetas, o esplio dos Bonecos de Santo Aleixo que tem sido conservado e mantido em actividade at nossa poca e que, tendo hoje um lugar de destaque na vida cultural nacional e internacional, tambm tem desaado a investigao (Passos, 1999; Zurbach, Ferreira e Seixas, 2007). De origem remota, e difcil de datar com alguma abilidade mas remontando pelo menos ao sculo XIX , trata-se de uma prtica artstica sediada inicialmente na regio de Borba, no Alentejo. Conotada e designada habitualmente como uma forma do teatro de tradio popular, foi transmitida oralmente pelos marionetistas proprietrios do esplio, at ao ltimo quartel do sc. XX. Em risco de desaparecimento, o conjunto dos objectos e o contedo cnico, verbal e musical dos espectculos foram transmitidos e conados, por volta dos anos 1980, aos actores prossionais da companhia do actual Centro Dramtico de vora (CENDREV) que, ao incluir representaes regulares desse tipo de espectculo teatral na sua programao, confere dramaturgia que o caracteriza um estatuto institucional e artstico equiparado ao da produo regular de uma companhia de repertrio. Numa primeira acepo do termo quase literal , a aplicao do adjectivo mnimo ao nosso objecto de estudo no se desenquadraria totalmente dessa forma de teatro em ponto pequeno conforme a expresso do investigador e especialista McCormick. Tal qualicao poder-se-ia justicar pela natureza reduzida (em volume e em nmero) dos meios envolvidos, quer materiais quer humanos, prprios da tradio do teatro de marionetas, favorecendo a sua mobilidade e adaptabilidade aos contextos. No caso presente, o conjunto dos recursos usados cabe em duas arcas: cerca de uma
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dzia de cartes reversveis para os cenrios pintados, setenta e quatro marionetas com pequenas dimenses, uma dzia de pequenos adereos; os espectculos envolvem cinco actores, um dos quais msico guitarrista. Mas hoje, tambm no faltam exemplos de projectos artsticos de teatro de ou com marionetas com exigncias que podem exceder de longe aquelas associadas ao teatro de actores (ser o caso dos trabalhos da companhia francesa dirigida por Philippe Gentil entre outros). Ou, situando-nos numa perspectiva de natureza esttico-artstica, pelo carcter rudimentar dos espectculos, que servem peas, geralmente curtas na sua extenso e lineares nos seus enredos, entendidas como formas espectaculares menores porque mnimas em termos de encenao, de cenrios e dos trajes utilizados. Ou, ainda, no plano literrio, pela qualidade dos textos que constituem o seu repertrio, onde proliferam formas que dicilmente se integram no modelo genolgico do cnone tradicional. De facto, ou pertencem a gneros menosprezados (e infelizmente subestimados na sua potencialidade teatral) por serem demasiado pobres em termos literrios e tambm lingusticos - recorrem no nosso caso a uma lngua com conotaes dialectais e regionais no contempladas pela lngua padro, e at a expresses grosseiras e escatolgicas em certos casos sendo por essa razo arredados do cnone, ou revelam uma surpreendente capacidade de hibridao formal algo desconfortvel para a sua classicao segundo a norma estabelecida: como entender, em termos teatrais, um repertrio que, por exemplo, inclui nos seus autos de temtica religiosa momentos de pura farsa e fantasia burlesca, ou nmeros danados e cantados, mais comuns nos espectculos de variedades ou de entretenimento de feira? Admitindo-se a eventual pertinncia de tais consideraes derivadas da observao emprica dos meios verbais e no-verbais que materializam esse teatro , pensamos todavia que o carcter mnimo dos Bonecos, em particular do seu repertrio textual, alm de no constituir um sinal de pobreza ou menoridade, carrega antes uma extrema riqueza teatral, em particular se olharmos para a singularidade do conjunto. Na verdade, a dramaturgia que sustenta o conjunto no se esgota nos textos: fortemente associada ao contributo imprescindvel da msica, do canto e da dana que, revelia do peso tradicional do texto no centro do espectculo de teatro, tecem num discurso coerente, uma forma nica, aparentada ao modelo do espectculo de arte total. Assim, analisar este conjunto textual com ferramentas tradicionais poderia revelar-se pouco producente, da o nosso interesse pelo recurso ao conceito de teatro mnimo aqui
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2. Centremos agora a nossa ateno na problemtica do texto desse repertrio, tendo em conta a sua posio frgil (como acabmos de ver) no territrio do literrio em geral e do literrio no teatro. hoje quase um lugar comum armar que o teatro tem uma existncia anterior do texto dramtico entendido como componente verbal reconhecidamente literria, ou como expresso do que se entende por literrio no contexto da nossa tradio europeia. No caso presente, o repertrio dos Bonecos de Santo Aleixo agrupa textos inseparveis de uma performance cnica com a qual tecem uma relao de dependncia recproca, alm de permitir que a componente verbal intrnseca dos espectculos possa acolher ainda que esta congure um repertrio textual xo a cargo dos marionetistas , uma interaco verbal constante com o pblico, feita de maneira improvisada, ou relativamente regulada e codicada. Os textos constitudos pelos dilogos das personagens, ou seja as peas propriamente ditas, so um exemplo do vasto patrimnio textual alentejano de transmisso oral (Lima, 2004) cujas origens no so datveis, e que foram decorados e transcritos no momento da passagem de testemunhos entre o ltimo bonecreiro, Mestre Talhinhas, e os actores-marionetistas em nais dos anos 1980. Julgo importante referir que, juntamente com a tcnica de manipulao das marionetas, com a encenao das peas, as indicaes de jogo e de dico, as canes e as partituras musicais, tambm foi transmitida e conservada toda a estratgia de organizao dos espectculos (em trs grupos de peas coerentes e estveis que veremos mais frente) e de relacionamento com o pblico. O conjunto dos elementos recolhidos congura assim um modo especco de prtica teatral, prxima de um cerimonial (ou quase ritual) estruturado luz do modelo da relao teatral consagrada na tradio ocidental. Vejamos agora o corpus dos textos que foram conservados e que acabam de ser disponibilizados em livro (Zurbach, Ferreira e Seixas, 2007) numa transcrio anotada e acompanhada de um quadro de variantes muito esclarecedoras quanto especicidade (e instabilidade) da sua matriz de transmisso oral. Dando um particular destaque componente ritualizada referida anteriormente, o volume apresenta na sua segunda parte, os textos das peas segundo trs grupos de modo a reectir os programas de espectculos potenciais mais solidamente constitudos e recorrentes para as apresentaes hoje levadas cena. Qualquer um dos trs grupos de textos enquadrado por duas peas breves, uma de abertura, sem texto intitulada Baile dos Anjinhos, constituda por uma coreograa de anjos portadores de uma vela acesa, acompanhada guitarra, e outra, de fecho do espectculo, com dilogos animados entre populares, os dois apresentadores, o Padre Chancas e o Mestre-Salas, em que tambm gura uma marioneta que apresenta um preto e se assiste a uma pega de touro com uma cano nal cantada em coro, seguida de foguetes festivos.
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Cada um dos programas estruturado em torno de um auto de temtica bblica: a Criao do mundo, a Natividade e a Paixo de Cristo, cuja apresentao ocupa a 1 parte do espectculo. Aps um intervalo, seguem-se os quadros ou os sketchs em princpio directamente pedidos pelo pblico apesar de hoje haver algum entendimento prvio com membros da assistncia que sero interpelados. Assim, o auto da Criao, reminiscncia provvel do espectculo medieval do Jogo de Ado, composto por nove quadros seguidos, aps um intervalo, pelos quadros danados e cantados dos bailinhos ou saiadas, e pelo fado cantado em dueto do Senhor Paulo dAfonseca e da Menina Virgininha. O auto da Natividade seguido pelo Passo do Barbeiro, farsa tpica, algo violenta, com um texto relativamente extenso, composto por uma sucesso rpida de cenas breves, pelo Baile dos Cgados, quase desprovido de texto, a cano brejeira do Lar e o Baile das Leiteirinhas cantado em coro feminino. Numa sequncia fortemente contrastada, entre o auto da Paixo de Cristo e a folia carnavalesca, com o terceiro programa, o pblico pode ver a Consso da Beata, o Sermo do Padre Chancas, de homenagem bquica ao vinho, a Consso do Mestre Salas, os fados de Aldonso e Doroteia, Filomena e Zeferino, e do Marinheiro. Podemos constatar que so textos que, em termos genricos, compem uma srie heterognea, sendo que, apesar de agrupados em programas estabilizados hoje, podem funcionar de maneira autnoma no corpus dramtico. Sem ambio literria, so textos distintos dos gneros conceituados do teatro erudito: so caracterizados pela sua brevidade (no sentido da sua curta extenso textual)1, pela pobreza da sua versicao, por uma relativa pobreza dramtica, pela linearidade das suas fbulas construdas em torno do prazer do engano, e associam o quotidiano e o potico na sua linguagem com evidentes desvios da norma lingustica, sem se privarem de recorrer conhecida expressividade gestual prpria do cmico da farsa. Na relao com o espectador, revelam, no entanto, a eccia comunicativa de formas no cannicas (ou no ortodoxas e por isso, consideradas como menores na hierarquia dos gneros), que a irreverncia permitida ao teatro de marionetas pode manter vivas at hoje. Em termos genricos, torna-se visvel o peso da tradio cmica medieval nos passos, ou na consso e no sermo cmicos, subgneros da forma-matriz da farsa que, apesar do seu estatuto marginal relativamente dramaturgia dos grandes gneros que dela se demarcaram progressivamente a partir do perodo neoclssico, sobreviveu at hoje com extrema vitalidade. Tais formas contaminaram, por sua vez, os trs autos de temtica religiosa, inspirados na liturgia crist (com excepo compreensvel de Os martrios do senhor ou Auto da Paixo cujo quadro de recepo circunstancial ainda
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No utilizamos aqui a designao no seu sentido restrito, que apenas se aplica a realizaes literrias breves com valor de verdade universal, mas enquanto designao de produes em formatos pequenos, com poucas personagens e de pouca extenso no tempo
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bastante consensual nos nossos dias e requer alguma gravidade no tratamento do tema). Aqui subvertidos e reformulados de modo carnavalesco e farsesco, os dois autos adoptam um recorte estrutural de sucesso de cenas ou pequenos quadros cmicos, em que no faltam aluses satricas actualidade nos improvisos com os espectadores, numa aproximao ao modelo moderno (e urbano) da revista (outro descendente da antiga comdia ateniense). Assinalemos que, nesse aspecto, o repertrio dos Bonecos de Santo Aleixo no ser nico no seu gnero, partilhando com numerosos esplios europeus tradicionais idntico modelo satrico e cmico-burlesco2. A esses textos estruturados como peas no sentido tradicional devemos acrescentar as estrofes dialogadas dos fados, o coro cantado nos bailinhos ou saiadas, e as cenas apenas danadas com base num guio coreogrco, sem texto, (Baile dos Anjinhos), ou com um nmero muito reduzido de rplicas (Baile dos Cgados). E , de facto, na presena constante, no espectculo em cena, da msica e do canto, aliados s palavras dos dilogos rimados e ritmados, aos movimentos coreografados das marionetas, que se encontra a dimenso verdadeiramente teatral do repertrio dos Bonecos de Santo Aleixo. Numa fuso entre diversas artes consagradas, o teatro menor das marionetas aproxima-se do sonho da obra maior, da obra de arte total. 3. luz do nosso entendimento do conceito de teatro mnimo, o repertrio desse teatro mostra, efectivamente, possuir uma coerncia, uma gramtica, no sentido da designao de um conjunto complexo (equivalente a uma retrica ou uma potica) em que formas breves e espectculo total se conjugam, e podem ser entendidas como constitutivas de um sistema no qual o elemento estruturante recorrente o da cena dialogada ou da troca em dilogo. O teatro dos Bonecos identica-se desse modo, em termos textuais, com uma denio aristotlica do teatro, reavivada no seu enraizamento renascentista e conservada por uma longa tradio europeia, mas tal forma no se esgota nos textos em si, contamina a prpria forma do espectculo a qual requer uma intensa interaco verbal com o pblico destinatrio3.
Assinalemos todavia que a componente textual do teatro de marionetas no corresponde necessariamente a esse retrato, sendo que numerosos autores da modernidade europeia se interessaram pelo teatro de marioneta. De facto, existem hoje uma escrita e uma dramaturgia erudita para o teatro de marionetas como o mostra o estudo entre outros de Jos Manuel Pedrosa no VI Seminrio (2005) sobre a marioneta na literatura.
Assinala-se aqui as anidades entre o enquadramento do espectculo dos Bonecos, fortemente apoiado na comunidade dos espectadores presentes, e aspectos particulares do funcionamento da farsa medieval que, nas suas origens, constitua um elemento fulcral das festas de Carnaval ou dos Loucos, e ainda outras festividades e rituais da sociedade, em que grupos teatrais formais ou informais satirizavam os costumes nas sotties, nos sermes jocosos ou moralidades, troando tambm dos faits divers, nomeadamente dos desaires da vida conjugal que constituem a matria central da maioria das farsas que chegaram at ns.
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De facto, por um lado, as peas dessas marionetas reproduzem, como o teatro para actores, o modelo dramatrgico baseado no princpio da mimesis como representao de aces e de homens em aco, em que falar sinnimo de agir, fazendo assim do recurso ao dilogo enquanto forma uma forma-sentido ideal par a expresso dialgica das relaes inter-humanas. No corpus hoje existente, em termos quantitativos, alm de alguns monlogos ou canto coral, o dispositivo enunciativo predominante a troca de rplicas curtas entre pares de personagens, que comunicam na forma restrita do dilogo, quer no interior das cenas na co representada por personagens (por exemplo, nas peas breves que so as farsas do Passo do Barbeiro, da Consso da Beata, do Mestre Salas ou do Sermo do Padre Chancas), quer no quadro de comunicao entre personagens assumido pelos dois apresentadores, o Mestre Salas e o Padre Chancas, cruzada com intervenes por parte do pblico quando por eles solicitado (dar nomes aos animais, etc.). Por exemplo, o Auto da Criao do Mundo vive da partilha da palavra entre os dois apresentadores que anunciam, comentando-as de maneira cmica, as cenas respectivas, retiradas do Antigo Testamento e que se sucedem em cena, desde a Criao da Luz, a Disputa do Sol e da Lua, a Criao de Ado e Eva, a Passagem dos Animais (momento privilegiado para uma verso burlesca do acontecimento com a colaborao do pblico), at aos quadros da Tentao da Serpente e da Expulso do Paraso, aps as quais surgem as cenas de Ado e a Fiandeira, Abel e Caim, acabando no Inferno. Exclumos desse grupo componentes do espectculo apenas danadas ou cantadas em coro4), se bem que dos quatro fados, trs sejam duetos. Optando por uma abordagem descritiva numa investigao morfolgica, a forma dos textos (e desse tipo de teatro, eventualmente mnimo) que nos interessou, como susceptvel de ser apreendida como objecto [possuindo] sua validade e coeso prprias (Jolles, s/d: 29). Constata-se que a questo da nomenclatura e da lista de todas as formas oferecidas neste caso no se levantou, tratando-se de formas conhecidas, ainda que para alguns a nomenclatura usada possa parecer pouco rigorosa: entre passo, consso e sermo, o denominador comum a farsa, mas ela predomina no hibridismo dos autos. Mas se denirmos o teatro como espectculo da palavra em aco, em que o dilogo, forma mnima por excelncia, assume uma funo central para a realizao da aco dramtica (Ubersfeld, 1977; 1996), tambm podemos armar que o repertrio dos Bonecos de Santo Aleixo cumpre e materializa a prpria essncia do teatro, ainda
Sabemos que o ltimo bonecreiro ainda mantinha o hbito de se inteirar dos assuntos locais que poderiam ser satirizados na segunda parte do espectculo (Passos, 1999) .
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So trs danas: o Baile dos Anjinhos, o Baile dos Cgados, o Baile das Leiteirinhas e uma Contradana dirigida pelo Mestre Salas; os textos cantados em coro na cena da Criao da Luz, as estrofes dos pastores diante do prespio; os fados ou canes, e as danas ou saiadas cantadas pelos bailarinhos.
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que congurada na (e pela) sua aparente pobreza textual e/ou verbal que o manteria s portas do literrio, do lado de fora... E nessa aparente reduo ao mnimo necessrio para que o teatro acontea que o teatro de marionetas se revela como objecto pertinente de pesquisa dramatrgica, pelo modo como nele sobressai a eccia de um teatro el forma dialogada. Resta-nos evocar uma ltima problemtica relativa aos textos que aqui descrevemos e uma eventual contradio. O projecto de investigao sobre os Bonecos de Santo Aleixo, sediado no Centro de Histria da Arte na Universidade de vora, e lanado em 1997, tem promovido um trabalho de recolha e xao da memria material desse teatro, agora protegido pelo seu novo estatuto artstico, como vimos. Alm da catalogao dos objectos que compem o esplio (marionetas, cenrios, adereos) com acesso num site prprio, a equipa tambm teve que organizar um trabalho de edio das peas, optando por uma frmula de tipo tradicional, ou seja, por uma edio impressa num livro, com critrios devidamente fundamentados. Mas, se o uso actual e respectivo estatuto das peas do repertrio, em que a reproduo do modelo aprendido foi estabilizado aps a passagem de testemunhos realizada nos anos 1980, (simultaneamente) de ordem patrimonial e artstica, por seu lado, a xao formal dos textos, apesar de justicada, comporta aspectos problemticos que so prprios de toda a edio escrita e impressa de textos de tradio exclusivamente oral. Sobre o assunto, bastar-nos- citar George Steiner que, na sua obra recente Le Silence des livres, evoca as relaes histricas entre as prticas da escrita e da oralidade, armando: Lcrit dessine un archipel dans les vastes eaux de loralit humaine. Lcrit, sans mme sarrter aux diffrents formats de prsentation du livre, constitue un cas part, une technique particulire au sein dune totalit smiotique largement orale (2007: 8). Tambm importa, nesta reexo nal, recordar a obra (menos recente se bem que particularmente pertinente aqui), LInvention de la littrature de Florence Dupont, que propunha uma reviso crtica da nossa concepo algo errnea da escrita enquanto sinnimo de progresso civilizacional e de abandono da oralidade que a antecedeu: Ce livre se propose donc de retrouver lorigine de notre culture europenne une double tradition. Dun ct, une tradition dcriture, plus rcente, plus limite sans doute quon a bien voulu le dire, de lautre, une tradition de posie (orale) (1994:12), de uma verdadeira cultura potica que no apenas oral no sentido tcnico, mas mobilizadora dos sentidos e fonte de lao social, por vezes efmero, entre todos os participantes. Os textos, que analismos luz da sua condio de teatro mnimo, foram-no de acordo com um modelo literrio, ou seja, inscrito na dimenso de escrita para a leitura que Dupont chama literatura. Pela sua classicao num sistema de gneros ou de formas, passaram da abertura e da variabilidade dinmicas da produo oral que sempre os caracterizou para o
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silncio do texto escrito. Mas sabemos que, na representao teatral dos Bonecos de Santo Aleixo, existe e funciona um outro texto decisivo, e de que no falmos aqui, aquele que tecido no dilogo aberto e vivo entre os participantes artistas e pblico presente , em que a oralidade desse teatro plenamente realizada. Incumbe, assim, edio impressa dos textos, assegurar a funo no menos aberta e dialogante de facultar a esses textos de tradio oral a possibilidade de dialogar com o experimentalismo da actual produo erudita de tradio impressa.
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Resumo: Devido sua posio tradicionalmente marginal no conjunto das formas conceituadas de teatro, o teatro de marionetas possui um repertrio de grande interesse para uma reexo sobre o que se pode entender por teatro mnimo. Esta comunicao visa demonstr-lo a partir de um estudo de caso, o do teatro dos Bonecos de Santo Aleixo. Alm de recorrer a um repertrio em que predominam formas derivadas da farsa forma breve por excelncia ou por ela contaminadas, um tipo de espectculo em que o dilogo enquanto forma mnima de teatro ou forma-sentido, assume uma visibilidade e um papel predominantes, reenviando desse modo para a prpria essncia do teatro na sua acepo aristotlica. Abstract: Since it has traditionally occupied a marginal status within the system of reputed theatrical forms, puppet theatre possesses a repertoire of great interest for a reection on what can be understood as minimal theatre. This paper intends to highlight this notion by focussing on a case study, the theatre of the puppets of Santo Aleixo. Apart from resorting to a repertoire which covers several forms either derived from farce typically a short form or contaminated by it, it is a kind of performance in which the dialogue as a minimal form of theatre or meaning-form adopts a predominant role and visibility, thereby hailing the essence of theatre itself in the Aristotelian sense.
Se calhar nem mesmo teatro: o texto dramtico para a infncia de Manuel Antnio Pina
Sara Reis da Silva
Universidade do Minho
Palavras-chave: Manuel Antnio Pina, literatura infantil, texto dramtico, humor. Keywords: Manuel Antnio Pina, childrens literature, theatre, humour.
A escrita polifacetada de Manuel Antnio Pina (MAP), inaugurada, em 1973, com O Pas das Pessoas de Pernas para o Ar Contos para Crianas, desdobra-se em mais de trs dezenas de obras de poesia, crnica, ensaio, conto, novela e texto dramtico, muitas delas traduzidas em numerosas lnguas. Tendo em conta o potencial receptor da sua produo literria1, salienta-se um maior nmero de obras poticas destinadas a adultos, enquanto, para a infncia, o texto dramtico que possui um notrio relevo, assinando o autor mais de duas dezenas de ttulos. Com efeito, MAP um dos autores que juntamente, por exemplo, com Antnio Torrado mais tm contribudo para a legitimao da literatura dramtica e/ou do teatro para crianas em Portugal. A sua ligao profunda, entusiasmada e conhecedora ao teatro reecte-se, por exemplo, no facto de, em 1978, ter sido um dos scios-fundadores da Companhia portuense P de Vento, de, em 1982, ter sido bolseiro do Centro Internacional de Teatro de Berlim junto do Grips Theater, e de ter recebido, em 1988, o prmio do Centro Portugus para o Teatro para a Infncia e a Juventude (CPTIJ),
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Neste sentido, curioso lembrar um breve extracto do depoimento Sob forma de carta, um autoretrato em que MAP arma: Em geral, o que escrevi e publiquei em livro , acho eu, e falta de melhor designao, literatura. E literatura destinada (comercialmente destinada, e j vamos no territrio de novo controvrsia, a do leitor) a gente particularmente inclassicvel: os leitores de poesia e as crianas. Sem me querer meter no que uma e outra sejam, estaria tentado a dizer que tudo o que tenho escrito , ao mesmo tempo, tanto poesia quanto literatura, digamos assim, infanto-juvenil () (Pina, 1997: 36).
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pelo conjunto da sua obra neste domnio. Acrescente-se, ainda, o elevado nmero de textos seus levados cena por companhias de teatro como P de Vento, TEP (Teatro Experimental do Porto), TELA (Teatro Experimental de Leiria), entre muitas outras2. Alm disso, em contextos diferentes, MAP detm-se, com frequncia, em reexes de carcter metaliterrio, debatendo a prpria literatura e problematizando questes relativas escrita dramtica. Veja-se, a este ttulo, o seguinte excerto de uma entrevista conduzida por Ado Moreira:
J escrevi coisas para crianas (peas de teatro inclusive) que hoje talvez no escrevesse. Algumas delas talvez um pouco complexas, o que quer que isso signique. A explicao que tenho a nica explicao aceitvel, acho eu, num juzo literrio que foram escritas por prazer. E que, se as tivesse podido escrever de outra maneira, certamente o teria feito. Hoje no escreveria possivelmente (mas que sei eu?) O maior intelectual do mundo, por exemplo: mas na verdade julgo que, se o no tivesse escrito, e escrito da maneira como o z, no escreveria as coisas que hoje escrevo e da maneira como hoje as escrevo. (Pina, 1987a: 75)
O breve depoimento que acabmos de citar, parte-integrante de um importante paratexto includo no nal da obra O Invento (Aventuras do Maior Intelectual do Mundo), sugere uma reexo por parte do autor acerca de questes como a recepo preferencial/potencial e/ou o leitor modelo e/ou a pretensa simplicidade da escrita para crianas. O carcter metaliterrio de que se reveste este enunciado um entre muitos, alis, na obra de MAP acaba, pois, por denunciar um especial posicionamento face colectnea mencionada, uma atitude simultnea de distanciamento perante o criado e de reconhecimento relativamente relevncia atribuda a estes textos em particular no processo de construo do eu-autor/escritor. Para objecto deste ensaio, e por razes que se prendem com a nossa rea preferencial de investigao3, seleccionmos precisamente a obra O Invento (Aventuras do Maior Intelectual do Mundo), um dos ttulos mais marcantes de MAP que merece destaque no s pelo facto de ter sido duplamente premiada4, mas tambm pelo surpreendente nmero de encenaes e representaes a que foi sujeita. Esta colectnea veio a lume em 1987, aps a publicao de O Pas das Pessoas de Pernas para o Ar Contos para Crianas (1973); Giges & Anantes (1974); O Tpluqu (1976) e O Tpluqu e outras histrias (1995 2 ed. aumentada); O Pssaro da Cabea (1983); Os Dois Ladres
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Para completar estas informaes, veja-se http://www..ul.pt/CETbase/default.htm Presentemente, encontramo-nos a elaborar uma tese de Doutoramento acerca dos textos para a infncia de Manuel Antnio Pina e das questes da intertextualidade humorstica e da competncia literria. A esta colectnea foi atribudo o Prmio Calouste Gulbenkian Melhor Livro Infantil Publicado em Portugal em 1986/1987, tendo obtido tambm, em 1988, uma Meno do Jri do Prmio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pdua.
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(1983); Histria com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984); A Guerra do Tabuleiro de Xadrez (1985); Os Piratas (1986/1997). Deste conjunto, inscrevem-se no modo dramtico os ttulos Os Dois Ladres, Histria com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas e A Guerra do Tabuleiro de Xadrez. A estes vieram juntar-se, anos mais tarde, Aquilo que os Olhos Vem ou o Adamastor (1998), uma verso teatral da novela Os Piratas (1997) e, ainda, A Noite (2001). Resumidamente, nos trs primeiros ttulos citados avulta uma construo ccional herdeira do nonsense anglo-saxnico, um teatro humorstico sustentado pelo absurdo, pelo inesperado e pelo despropositado. J os trs ltimos, com uma estruturao mais complexa, so perpassados por tpicos como a hesitao entre o sonho e o real, a memria histrica e a questo do duplo ou da fragmentao do eu. A nota dominante de todos eles reside, quanto a ns, na libertao dos padres convencionais de uma moral e de uma linguagem artstica retrgradas (Rebello, 1989: 150), testemunhando a mais importante alterao na produo dramtica/teatral infanto-juvenil do ps 25 de Abril de 1974, como sublinha Luiz Francisco Rebello. Numa entrevista concedida a Sandra Sousa para o Jornal de Letras, MAP esclarece que As peas que esto no Invento foram-me encomendadas pelo Vasco Graa Moura, para serem levadas cena. No foram feitas espontaneamente. Ainda assim, um gnero que combina com as crianas, a infncia toda teatral, dramtica (Pina, 1993: 14). Anos mais tarde, questionado por Jos Antnio Gomes acerca da relevncia que parece conceder ao texto dramtico, o autor refere, igualmente, que houve circunstncias concretas que me levaram a escrever peas de teatro particularmente uma encomenda de Vasco Graa Moura, quando, em nais dos anos 70, presidiu RTP (foram-me ento encomendadas 52 peas, das quais, mesmo assim, consegui escrever 12!) (Pina, 2000b: 4). As breves peas de teatro em verso contidas na colectnea em anlise foram, em alguns casos, concedidas para encenao companhia P de Vento. Antes de serem editadas ou de tomarem a forma de livro, integraram um conjunto de espectculos cuja representao foi inaugurada, em 1978, com Ventolo5, designao de uma trilogia composta por Ventolo O maior intelectual do mundo6, Trabalhadas e Trapalhadas7 e Homenagem aos Ps8. Em nota paratextual na abertura da obra, MAP relata, com
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Conforme esclarece Joo Luiz, o famoso boneco Ventolo foi criado por Virgnio Moutinho para o Grupo de Teatro P de Vento (Luiz, 1999: 1). P de Vento, 1978 65 representaes; texto: Manuel Antnio Pina; msica: M. J. Reynaud; Ventolo e pensamentos: Virgnio Moutinho; vozes e manipulao: Artur Miranda, Carlos Almeida e Joo Luiz; execuo musical: Jos Martins; realizao: Joo Luiz.
P de Vento, 1979 80 representaes; texto: Manuel Antnio Pina; msica: Jorge Pauprio; cenrios: Miguel Cameira; interpretao: Artur Miranda, Carlos Almeida e Joo Luiz; realizao: Joo Luiz. P de Vento, 1979 63 representaes; texto: Manuel Antnio Pina; cenrio e gurinos: Rosa Ramos; colaborao: Victor Valente e Josm; dos msicos Antnio Figueiredo e Rui Esteves, e ainda de Amlia e
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pormenor, algumas das encenaes de que foram alvo estes textos, bem como as suas ocorrncias em outras obras da sua autoria:
O Invento rene parte dos textos escritos para uma srie de 12 lmes para TV que a RTP transmitiu em 1979 e 1980 com o ttulo geral de Histrias com ps e cabea, produzidos e realizados por Cinequanon e RTP e com direco de Amilcar Lyra. Alguns foram levados cena pela Companhia do Colectivo de Animao Teatral P de Vento, do Porto, entre 1978 e 1983: O Maior Intelectual do Mundo (no includo no presente volume), Viva liberdade fora da cabea!, A homenagem aos ps, O homem do saco e A Arca do No . Vrios outros integram o texto da pea Histrias com reis, rainhas, bobos, bombeiros e galinhas, representada em 1983 pela mesma companhia, como as anteriores com direco de Joo Lus. Outros ainda foram representados pela companhia do Teatro Experimental de Leiria, em 1984 e 1985, em espectculos intitulados O mgico dos contos e Histrias com ps e cabea. Por m, os textos Viva a liberdade fora da cabea! e Ano Ano & Assim Assim foram cena pela companhia de Teatro Construo, de Joane (Famalico), em 1984 e 1985. Excertos do presente volume esto publicados em livro: O Pssaro da Cabea (A Regra do Jogo Ed., Lisboa 1983) e Histrias com Reis (Ed. P de Vento/Col. Borboletra, Porto 1983); outros em disco: O Invento (DIAP 16026), com msica de A. Jos Martins, O bando dos gambosinos (POLYDOR 2480634) e O beco dos gambosinos, ambos com msica de Suzana Ralha. (Pina, 1987a)
Assim, a publicao das peas de O Invento, semelhana do que se vericou com as obras Aquilo que os Olhos Vem ou o Adamastor e Os Piratas, possui um importante valor acrescentado em relao a uma mera edio de uma obra literria de teatro, na medida em que estas foram testadas no palco ao mesmo tempo que escritas para o palco e no palco (Pina, 1999: 12). Na primeira edio de O Invento (1987) renem-se sete ttulos: Viva a Liberdade fora da Cabea!, A Homenagem aos Ps, O Homem do Saco9, A Cabea no Ar, A Arca do No 10, Nada na Cabea e Ano Ano & Assim Assim. Na segunda edio
Isabel Pauprio, Paula Seabra e Maria Joo; msica: Jorge Pauprio; interpretao: Adelaide Seabra, Artur Miranda, Joo Luiz, Jorge Pauprio e scar Branco; realizao: Joo Luiz.
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P de Vento, 1980 149 representaes; cenrios e gurinos: Rosa Ramos; msica: Jorge Pauprio; interpretao: Antnio Fonseca, Isabel Roxo, Jorge Mota e Jorge Pauprio; arranjo musical: Antnio Figueiredo com a colaborao para a gravao de Rui Esteves, Filipe Coelho, Fernando e Armindo; realizao: Joo Luiz.
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Deste texto de MAP, foram levadas a cena pela P de Vento duas verses. 1 verso 1981 92 representaes; cenrio: Rosa Ramos; msica: Jorge Pauprio; colaborao na dramaturgia: Maria Joo Reynaud; tcnica: Miguel Diaz; texto do programa: Maria Joo Reynaud; carpintaria: Manuel Oliveira; guarda-roupa: cedido pelo TEP; interpretao: Antnio Moreno, Jorge Pauprio e Paula Seabra; colaborao: Antnio Figueiredo, Mrio Arajo, Amlia e Isabel Pauprio; cartaz e programa: Maria Augusta Arajo; gravao:
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(2003), a anteceder os sete textos que mencionmos, MAP colocou O Maior Intelectual do Mundo, ampliando-se, assim, esta colectnea para oito textos. por via do ttulo O Invento, elemento paratextual fundamental a partir do qual se celebra o primeiro contacto com a obra, que nos preparamos para o inusitado e para a inovao lingustica e semntica. De facto, o vocbulo invento, afasta-se do previsvel, consubstanciando uma original matriz ldica, enquanto objecto neolgico, que teve a sua origem nas palavras inventar e inventor e que parece ter nascido de um processo de derivao suxal, j que a se constata a presena do suxo aumentativo o. A corroborar o carcter hiperblico que ressuma do ttulo, encontra-se o subttulo Aventuras do Maior Intelectual do Mundo, que surge colocado entre parntesis e apenas na folha de rosto das duas edies da obra em apreo. Ainda do ponto de vista paratextual, h a destacar a dedicatria repartida em dois Maria Joo e ao Joo Lus11 e a epgrafe12:
Penso coisas to profundas e sinto-me to mal que penso se no serei um Intelectual. E penso coisas to mal e sinto-me to profundo que devo ser o Maior Intelectual do Mundo! Pensamento de Invento. (Pina, 1987)
O jogo quiasmtico, que, nesta quadra, se celebra, uma construo verbalmente econmica que se baseia no recurso repetio de um conjunto restrito de palavras, faz prever a ludicidade que pautar todos os textos da colectnea. A ironia subtil, a par da hiperbolizao, na primeira pessoa, do estado do esprito do sujeito de enunciao, motivam ainda o cmico, trao que tambm marcar de forma determinante a obra em anlise. O tpico da Razo ou do exerccio intelectual igualmente ensaiado, estabelecendo-se uma ligao semntica quer com o prprio subttulo da obra, quer com alguns dos ttulos dos textos que a enformam. O texto de abertura da colectnea possui o ttulo exclamativo Viva a liberdade fora da cabea!, uma expresso que suscita surpresa pelo carcter nonsensical.
Fernando Rangel; realizao: Joo Luiz // 2 verso 1983 51 representaes; encenao: Joo Luiz; cenograa e gurinista: Rosa Ramos; organizao musical: Pedro Fresch; intepretao: Antnio Fonseca, Cristina Costa e Jorge Mota; Luminotecnia: Ursula Zangger.
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Maria Joo cremos ser Maria Joo Reynaud, docente da faculdade de Letras da Universidade do Porto, responsvel pela dramaturgia da P de Vento, e Joo Luiz, o encenador desta companhia, ambos, alis, scios fundadores, com MAP e outros, desta.
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Esta epgrafe encontra-se nas duas edies, embora na segunda se detecte uma ligeira alterao: Penso coisas to profundas e sinto-me to mal / que penso que sou um Intelectual. / E penso coisas to mal e sinto-me to profundo / que devo ser o Maior Intelectual do Mundo (Pina, 2003). Atravs da substituio da expresso se no serei por que penso que sou elide-se a ideia de dvida, subjacente forma verbal condicional, e arma-se uma certeza.
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Esta pea curta dominada pelo dilogo entre a personagem que d ttulo obra, o Invento, um boneco que paradoxalmente um intelectual, e os seus prprios pensamentos, assumidos aqui como realidades concretas, com vida prpria. A didasclia inicial prope uma cenograa simples e no realista alis, muito comum aos textos dramticos para a infncia , ao nvel dos adereos, sendo preenchida, em exclusivo, pela presena do Boneco chamado Invento que se apresenta simultaneamente como personagem e espao de actuao, j que tambm uma barraca de fantoches. a partir da sua cabea que entram em cena os fantoches, que representam o segundo actante, gura colectiva, coincidente com os seus pensamentos, personicados e tornados voz independente. O reverso da complexidade que decorre desta congurao dual do Eu, sujeito de enunciao, reside nos seus originais efeitos cmicos, factor de aproximao e de seduo do leitor/espectador. Reectindo acerca da especicidade do discurso dramtico, em particular sobre a importncia das personagens enquanto meios de contacto com as peripcias e com as diversas concepes da realidade, Glria Bastos apresenta como exemplo de uma variao inovadora precisamente o texto em anlise. Neste, conforme destaca, duas personagens, ao mesmo tempo distintas e uma s, confrontam diferentes perspectivas sobre o real:
INVENTO Boneco que no faz nada coisa mal empregada! No consigo car em sossego Se no arranjo emprego! CORO DOS PENSAMENTOS DO INVENTO Um boneco a trabalhar Seria caso bem invulgar Bonecos so para brincar, E Invento deve estar a brincar Quando diz que quer trabalhar! Se est a falar a srio No h-de ser grande o mistrio: Um mecanismo mal oleado Ou parafuso desaparafusado. No vale a pena entrar em pnico, preciso chamar o mecnico (Bastos, 2005: 75)
Esta dualidade ao nvel das personagens, que acaba por substantivar uma das recorrncias ideotemticas da obra de MAP a questo do duplo ou da ciso do eu
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repercute-se no seu posicionamento distinto relativamente importncia e ao gosto pelo trabalho e pela brincadeira. Do surpreendente elogio do trabalho por parte de um Boneco e do desconcerto que isso suscita no s na personagem Pensamentos, mas tambm, em momento posterior, num Mdico13 e num Chefe de Escritrio, transparece uma viso de um mundo, de certa maneira, s avessas, onde no cabem a rigidez e os esteretipos. O tpico da liberdade individual, em oposio s limitaes sociais, surge aqui tambm ccionalizado atravs, por exemplo, das intervenes da personagem Chefe do Escritrio, gura que, no sem alguma ironia e crtica social, representa a passividade, a subservincia e a ausncia forada de voz prpria14. Neste, como em outros textos da colectnea, a utilizao assdua de sequncias de formais verbais, de expresses exclamativas, de enumeraes e, ainda, de paradoxos acaba por servir a veiculao de um discurso de carcter reexivo acerca do eu (e do seu duplo) e do mundo. O segundo texto da obra, A homenagem aos ps, conduz o leitor desde uma extremidade superior, a cabea, at extremidade inferior do corpo humano, os ps. Como acontece no primeiro texto da obra, neste as didasclias sugerem que a realizao cnica pode materializar-se a partir de elementos mnimos. A escassez de informaes relativas construo do espao dramtico e dos meios cnicos parece conrmar o carcter abstractizante e, por conseguinte, de certa forma, livre da aco. neste sentido tambm que podemos entender a ausncia, por exemplo, de indicaes do mbito da iluminao, bem como o facto da referncia ao som ou aos signos auditivos exteriores aos prprios actantes consistirem apenas sugesto da msica em forma de canto. Nesta pea, o cmico, nos seus trs tipos de carcter, de linguagem e de situao , fundamental, sendo, neste contexto, determinante o recurso como no primeiro texto diviso ou duplicidade, neste caso, a partir da autonomizao de uma parte do corpo do protagonista. Os Ps do Invento actuam individualmente e surgem personicados, com sentimentos prprios. O discurso de todos os intervenientes do Invento, dos Meninos, do Bailarino, dos Viajantes e do Prestidigitador destaca a importncia dos ps, a partir da referncia a elementos e a aces com eles relacionados. Veja-se, por exemplo, logo a primeira fala do Invento e a enumerao: ()
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Cf. Este boneco no tem nada incomum vi-lhe os parafusos e no falta nenhum, um Boneco absolutamente vulgar s com uma grande vontade (bleugh!) de trabalhar. Receito-lhe um emprego oito horas por dia A ver se assim lhe passa a mania! (Pina, 1987: 12).
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Cf. Pois , no podes c car a trabalhar No o gnero de empregado que procuro! Pensas demais, e isso acaba por incomodar Quando puderes parar de pensar Tens aqui um lugar de futuro (Pina, 1987: 15).
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Convidei os meus sapatos, as minhas meias, / os atacadores das botas, as botas, os chinelos, / fui prateleira das toalhas e convidei-as, / fui ao armrio dos sabonetes convenc-los; / limpei as sapatilhas, tirei as sandlias da gaveta, / falei aos patins, aos pedais da bicicleta, / amiga alcatifa, passadeira, ao tapete () (Pina, 1987: 17-18). A presena da personagem Prestidigitador contribui fortemente para a congurao humorstica da pea, na medida em que este representa o equvoco ou o engano. A tolerncia dos Ps que se vem, por esta gura-tipo, preteridos em relao s Mos, bem como a compreenso do Invento Mas um engano qualquer pessoa tem ()! (Pina, 1987: 23) parecem consubstanciar a ideia de convvio ameno mesmo em situaes marcadas pelo imprevisto e pela imperfeio. O homem do saco coloca em primeiro plano uma das guras tipicadas do imaginrio infantil, uma personagem conotada com o medo e com a actuao intimidadora da gente crescida relativamente aos meninos (Pina, 1987: 25). A referncia enumerativa a partir do paralelismo anafrico a situaes-tipo em que esta personagem invocada pelos adultos aproxima o receptor infantil da aco, criando cumplicidade e deixando escapar uma das ideias-chave do texto: a dicotomia ser/parecer. tambm este o efeito conseguido quer atravs da autodesmiticao desta gura que se diz amigo dos meninos, no querendo assust-los e que o Invento acaba por apelidar de camarado (ibid.: 26) , quer do facto de este se identicar com o Pai Natal. Ainda a interveno das personagens Bruxas, Fadas, Papes, um Lobo, Polcias e Ladres, evidenciando todas um comportamento frgil e totalmente oposto aos modelos habituais e subvertendo, portanto, algumas das convenes sociais, refora o enquadramento ideotemtico desta pea. Assim, tcnicas discursivas como a rapidez e a vivacidade dos dilogos, a combinao de opostos, os jogos de palavras, os trocadilhos, as repeties, as enumeraes, a reiterao de estruturas de negao, alm de individualizarem a escrita dramtica de MAP, conguram o tratamento de tpicos como o medo, a liberdade, infantil vs. adulto e real vs. imaginrio. O quarto texto presente na obra, intitulando-se A cabea no ar, expresso idiomtica que, por si s, indicia alguns dos tpicos tematizados ao longo da pea, abre com a autocaracterizao do protagonista precisamente como um cabea no ar (ibid.: 37). Igualmente signicativa a participao de guras como um Homem que Pensa em Pssaros (ibid.: 38), Anjinhos e um Aviador, e, portanto, a sugesto das ideias de ar e de fuga ao terrestre, sinnimo de real, enquanto avesso do imaginrio, do sonho e da liberdade, aspectos determinantes tambm ao nvel do enquadramento ideotemtico deste texto, em concreto, e da colectnea, em geral. Alis, logo a didasclia inicial coloca em evidncia as linhas ideolgicas apontadas, sinalizando a presena das ideias de irreexo, distraco e devaneio: Invento fala no ar. A sua cabea utua, rodeada de nuvens e de gente que anda nas nuvens:
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Bobos, Bombeiros, Homens que pensam em Pssaros, Fantoches Fora, Anjinhos, Aviadores (ibid.: 37). O quinto texto da colectnea, Arca do No , possui como protagonista a personagem No , gura que parece ter como matriz, como refere Maria Jos Costa, a lengalenga, na forma de antiguri15, conhecida como Era, no era:
Era, no era, andava lavrando chegaram-lhe novas Do lho Fernando: O lho era morto E o pai por nascer. Olha o pobre homem, O que lhe havia de acontecer! Deitou os bois s costas, Deixou o arado a comer. (Costa, 1996: 40)
A novidade e a estranheza que a gura chamada No suscita desempenham um importante papel na seduo do leitor, despertando nele, pelo jogo paronmico, o nome e o episdio bblico e motivando a criao de expectativas, por exemplo, ao nvel das personagens que faro parte desta aco. Na verdade, tambm a gura criada pelo Invento, No , mete numa Arca s bicharada, mas, no seu caso, inventada: bichos caretas, bichos de 7 cabeas / pssaros bisnaus, gambosinos, piupardos, / macacos me mordam, leopoldos, leonardos, / e toda a bicharada que no se conhea / e em que nunca se tenha pensado! (Pina, 1987: 48-49). No , semelhana de outras personagens da obra, testemunhando a negao do , ou seja do que existe, materializa o imaginrio ou o irreal. A proximidade com o receptor infantil que este desle de personagens faz prever , ainda, fortalecida pela referncia directa a um tu a quem a gura que d ttulo pea se dirige directamente em tom apelativo: J alguma vez ouviste o bicho do ouvido / ou viste o abelhudo ou o piolho encardido? / Tu que existe, vem ver o lado de c, / a Arca do No s com bichos que no h! (ibid.: 49). A sexta pea da obra O Invento, a penltima, intitulada Nada na Cabea, parece, por via do ttulo, aproximar-se semanticamente do registo prprio do universo da magia, dada a aparente transformao da expresso nada na manga em nada na cabea, sugerindo-se, por exemplo, a inexistncia de segredos, bem como a possibilidade de vazio e de total ausncia de pensamento ou reexo. Ao confessar a sua vontade de no pensar s me apetece passear / e mandar passear os Pensamentos (ibid.: 57) ,
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Sobre esta forma tradicional, que se situa no universo das rimas infantis, arma Maria Jos Costa: Os antiguris so o reino do nonsense por excelncia: a rima determina descabeladas associaes vocabulares que geram verdadeiros curto-circuitos semnticos (Costa, 1996: 39).
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o protagonista deixa escapar uma particular atitude perante a vida, manifestando o desejo de apenas viver e de gozar o momento presente: passear, no pensar em nada, brincadeira, conversa ada, um jardim, uma praia (ajardinada), uma esplanada, limonada & pezinhos com marmelada (ibid.: 57). A oposio divertimento/reexo encontrase, pois, sugerida pela atitude do protagonista. Como no texto subsequente, destaca-se neste a interveno de uma personagem que representa uma negao, os Pensonetos, e que se autodenem como Pensamentos nenhuns / de quem no est a pensar em nada (ibid.: 58). A abstraco torna-se, assim, mais uma vez, concreo e/ou personicao. De destacar, igualmente, a presena de Crianas, gura-colectiva atravs da qual se estabelece um divertido contraponto entre o universo infantil e o universo adulto16. Tambm neste texto o jogo verbal fundamental e o cmico, em particular de linguagem, funciona como importante factor de aproximao ao destinatrio. Jos Antnio Gomes, num ensaio em que reecte acerca de alguns exemplos recentes de ecos da literatura oral tradicional na literatura para crianas, refere-se a este texto de MAP, em particular fala do chins Ping Pong, considerando que, nesta, o autor no se limita a alterar provrbios, frases feitas e versos de outros poetas. Existe um impulso subversivo cujo efeito se faz sentir tambm nos planos fnico e lexical, convertendo o texto num autntico trava-lnguas:
Chalo ns e vendo bravatas na inventria do Invento. Sou um toca trintas, um tapralho: Ossos do vcio dos esgravatas. Fiz excelentes cios da China com chinesices, fragatas nas. Mas hoje quem no Celrio Impeste Gravatas veste na praa as preste. Perdeu-se o vesto pelo gosturio: gola apertada, roupas rabatas. O que feito dos pataratas, dos leques, lacas e lampadrios? A Nova China massou das parcas: pr-fabricados, gs, gasolina. minha Chau da Chinta da Tina, Chombras sinesas, biombros, arcas (Gomes, 2001: 55)
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Cf. Isto no para crianas. / para gente velha e chata / do gnero que usa gravata / e percebe de nanas! // Para intelectuais, psiquiatras, pais, professores prossionais e outros tantos que tais! (Pina, 1987: 59-60).
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A pea com que encerra O Invento intitula-se Ano Ano & Assim Assim. O inusitado perspectiva-se, pois, desde o ttulo, na medida em que estes dois nomes prprios resultam do criativo jogo vocabular nascido da composio de vocbulos a partir dos advrbios de negao e de armao e, ainda, da coexistncia de duas palavras reiteradas pertencentes a universos semnticos distintos, uma associao que se situa aparentemente no plano da agramaticalidade. Criadas pela imaginao do protagonista, as personagens Ano Ano e Assim Assim so os representantes da armao e da negao levadas ao extremo, congurando-se, portanto, a partir da hiprbole. De salientar tambm a participao da personagem colectiva Meninos, que interage animadamente com o Invento e com as outras duas guras. A interaco entre o grupo de crianas e os heris desta pea testemunha algumas das caractersticas da infncia ou dos gostos infantis, aspecto determinante na captao da ateno do destinatrio preferencial deste texto. Uma referncia breve ainda ao texto O Maior Intelectual do Mundo, pea que, como mencionmos, o autor juntou segunda edio de O Invento. Nesta, assiste-se actuao oposta de duas guras criadas, novamente, com recurso concreo e personicao: o Pensamento de Pernas para o Ar e Pensamento de Ps Assentes no Cho. Esta dualidade sugere, partida, algumas das linhas ideotemticas que perpassam toda a colectnea, com particular destaque, por exemplo, para os tpicos da duplicidade, da relatividade, da incerteza, da imaginao e at da aceitao da diferena. Algumas notas, tambm, acerca da componente pictrica17 da obra em anlise. As duas edies existentes possuem ilustraes distintas, assinadas por Antnio Lucena (1987) e por Luiz Darocha (2003). Compostos a partir de tcnicas distintas e de um atraente policromismo, os registos visuais dos dois exemplares colocam em evidncia as personagens da obra. Os valores cmicos das guras que participam na aco so recriados em tons fortes e a partir de uma profuso de elementos. Rera-se, ainda, que o discurso visual da primeira edio se agura mais pormenorizado, integrando, de forma mais evidente, elementos inovadores no contemplados no texto verbal. Em sntese, O Invento, de MAP, evidencia alguns dos traos mais recorrentes da escrita dramtica para a infncia. Seguindo a sntese de Isabel Tejerina (2004) acerca do texto dramtico para crianas, nesta obra, predomina o dilogo gil de enunciados curtos e uma linguagem predominantemente coloquial, com recurso desconstruo de lugares-comuns. Ainda ao nvel lingustico, destaca-se tambm a tendncia para a transgresso verbal, rompendo com as regras gramaticais, a presena expressiva de
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Victoria Sotomayor Sez considera que a presena da componente ilustrativa nos textos dramticos para a infncia se justica pela condio destes objectos enquanto teatro para ler que caracteriza uma parte substancial da produo infantil e juvenil (Sotomayor Sez, 2007: 23).
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jogos de palavras, de frases feitas18 que, por vezes, se alteram e ampliam, e de uma criatividade verbal que resulta da explorao das potencialidades ldicas da lngua e que se reecte, por exemplo, nos nomes das personagens e na inveno de vocbulos, mediante compostos e derivados, sobretudo aumentativos. Com uma sintaxe simples, o discurso versicado (muitas vezes, em quadra rimada) e integra, por vezes, segmentos cantados, sendo composto frequentemente por sries de oraes exclamativas e constantes elipses. Observa-se tambm o uso de disfemismos, visvel, por vezes, no prazer de nomear o proibido. No que diz respeito ao texto secundrio, so de destacar a extenso reduzida das indicaes cnicas que se pautam pela economia informativa, bem como a ausncia de listagens de personagens no incio de cada pea, estratgia que funciona como importante factor de captao da ateno do destinatrio que acaba por ser constantemente surpreendido pelo desle de criaturas invulgares que participam na aco. A iterao de temas como a liberdade, o sonho, a infncia ou, ainda, imaginao vs. real, ser vs. parecer, identidade vs. alteridade e mundo individual vs. mundo social (dicotomias conguradas a partir da construo ambivalente do prprio protagonista, gura que distingue, de forma reiterada, o fora da cabea e o dentro da cabea), por exemplo, a partir de aces fantsticas e, muito particularmente, de personagens imaginrias e/ou invulgares, herdeiras do nonsense e at do surrealismo, bem como o recurso constante ao humor, permitem no s uma leitura de carcter intertextual, pela ligao com outras obras do autor19, mas tambm a deteco de um conjunto de valores que reectem uma singular viso do mundo e da prpria literatura. Assim, em O Invento, MAP concretiza, com originalidade, aquilo que preconiza acerca da literatura, em geral, e da escrita dramtica ou do teatro infantil em particular. Opondo-se rmemente didactizao do texto literrio, MAP arma: Penso que o teatro infantil no deve ser nada. Dever ser o que quer que seja exactamente o contrrio do que, julgo eu, a arte: liberdade. () A imaginao, como tempo e lugar privilegiado de liberdade, naturalmente tempo e lugar privilegiado da arte. () Eu no escrevo para provar nada; nem para ensinar nada, muito menos s crianas. () O teatro infantil (o teatro!) no deve ser nada, no tem que ser nada. Se calhar nem mesmo teatro (Pina, 2007: 126).
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Cf., por exemplo, gua que se pe na fervura (Pina, 1987: 42); () dizem cobras e lagartos () (ibid.: 43); Pela boca morre o peixe (ibid.: 45); Oh ir ao ar / e perder o lugar () // Ir ao vento / e perder o assento ()! (ibid.: 62); Cada cabea / sua sentena (ibid.: 64).
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No s preferencialmente destinadas ao leitor infantil, mas tambm ao adulto, j que os implcitos no texto possibilitam diferentes nveis de leitura.
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se calhar nem mesmo teatro: o texto dramtico para a infncia de Manuel Antnio Pina
Bibliograa
Obras/textos de Manuel Antnio Pina: PINA, Manuel Antnio (1987a). O Invento (Aventuras do Maior Intelectual do Mundo). Porto: Afrontamento (ilustraes de Antnio Lucena). 2 ed. id, 1989; 3 ed. id., 1993; (2003 4 ed.) (ilustraes de Luiz Darocha). (1987b). Literatura Dramtica para crianas. Jornal de Notcias, 01 de Setembro de 1987 (texto, resumido, de uma conferncia proferida em 21/03/87, no CIFOP da Universidade de Trs-Os-Montes e Alto Douro). (1993). A poesia como forma de vida (entrevista conduzida por Sandra Sousa). Jornal de Letras, Artes e Ideias 556, 02/03-08/03 1993, 13-14. (1997). Sob a forma de carta. Jornal de Letras, Artes e Ideias 704, 08-21/10/1997, 36-37. (1999). Experincia de Trabalho II. Rumos e Perspectivas. Junho de 1999. Porto: P de Vento, 12. (2000). Escrevo, acho eu, para mim, isto , para outros (entrevista conduzida por Jos Antnio Gomes). Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infncia e a Juventude] 2, Abril de 2000, 3-5. (2004). Histria com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas e A Guerra do Tabuleiro de Xadrez. Porto: Campo das Letras/P de Vento. (2007). Se calhar nem mesmo teatro (entrevista conduzida por Ado Moreira para Teatro/ Revista da Companhia ArtImagem 4, Porto, Set/out 1983). In Dito em Voz Alta. Entrevistas sobre literatura, isto , sobre tudo. Coimbra: P de Pgina Editores (apresentao de Ins Fonseca Santos), 121-126.
Bibliograa passiva:
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REBELLO, Luiz Francisco (1989). Histria do Teatro Portugus. 4 ed. Mem Martins: Publicaes Europa-Amrica. ROIG RECHOU, Blanca-Ana, SOTO LPEZ, Isabel e LUCAS DOMNGUEZ, Pedro (2007). Teatro Infantil. Do Texto representacin. Vigo: Edicins Xerais de Galicia. SOTOMAYOR SEZ, Mara Victoria (2007). Literatura dramtica infantil y juvenil: texto y representacin. In ROIG RECHOU, Blanca-Ana, SOTO LPEZ, Isabel e LUCAS DOMNGUEZ, Pedro (2007). Teatro Infantil. Do Texto representacin. Vigo: Edicins Xerais de Galicia, 11-33. TEJERINA, Isabel (2004). Dramatizacin y teatro infantil. Madrid: Sculo XXI de Espaa Editores (1 ed. 1994).
Resumo: Analisa-se, neste ensaio, uma das obras mais emblemticas de Manuel Antnio Pina, O Invento, a partir de alguns conceitos associados escrita dramtica para a infncia. Abstract: In this article we analyse one of the most emblematic works by Manuel Antnio Pina, in the light of some concepts pertaining to dramatic writing intended for children.
Palavras-chave: conto, dramatizao, pea de teatro, palco, gesto, dilogo, espao, tempo. Keywords: short story, drama, theatre play, stage, gesture, dialogue, space, time.
Contar histrias uma competncia que a criana adora desde muito cedo e j no jardim de infncia h muitos momentos de narrao, alguns controlados pelos docentes, outros espontneos: quanto a estes ltimos, decorrem na sala e nos recreios, com um pblico-alvo explcito (o educador, o vigilante, os coleguinhas), ou mesmo como um monlogo em voz alta, em que a criana autoverica aprendizagens, reecte sobre acontecimentos reais e imaginrios, formula julgamentos; quando se trata de actividades pedaggicas, geralmente o educador sistematiza essas narraes, permitindo que as crianas lhes contem coisas nos perodos lectivos em que fazem trabalhos manuais, ou mesmo mais formalmente, durante uma actividade semanal conhecida como a hora do conto1. Por tudo isto, quando as crianas atingem o 1 ciclo (EB), contar histrias um dos procedimentos em sala de aula a que as crianas mais aderem, pois transpondo para as novas aprendizagens lingusticas uma linguagem maternal, seguem as vias do afecto para a organizao do mundo. Alis, podemos armar que narrar exige comunicao e expresso lingusticas e que o uso oral de muitas das categorias informativas, mesmo ccionais, leva as crianas a dar voz sua verdadeira linguagem, sua experincia particular, s suas motivaes e interesses.
J estudei a organizao deste tipo de interaco pedaggica na minha obra A Hora do Conto (2000).
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Assim, e tendo em vista um contributo pedaggico para a melhoria do processo narrativo, irei mencionar a narrao no na sua estrutura unidimensional possvel de auto-expresso, mas antes em estratgias de criao imaginativa dialogada, que sempre envolve o outro, colegas e/ou professor. Portanto, mais concretamente, vamos falar de produo interactiva de histrias, e mais precisamente do modo como a fbula se converte em dramatizao e esta se transforma em pequena pea de teatro. Para tal, partimos de alguns pressupostos, nomeadamente que estas reconverses de texto permitem s crianas criar livremente histrias, explorando novas (ou velhas) ideias; que atravs delas podem comunicar novos sentidos para a vida, quer na narrao simples quer nas representaes orais. Alm disso, aprendem a interagir com experincias vividas por outrem e a defender o seu ponto de vista. Realmente, est provado que as crianas que se entregam habitualmente a actividades de narrao oral revelam uma maior autoconana, sem falar de uma indiscutvel capacidade de partilhar com o grupo e de compreender questes sociais. Alm disso, denotam uma melhoria signicativa no falar e especialmente no inquirir, alm de demonstrarem grande -vontade em expressar linguisticamente relaes de causa e efeito. No desenvolvimento do nosso projecto de estudar a Literatura para a infncia no seu modelo mais tradicional, os contos maravilhosos, com especial importncia para os contos de fadas, fomos enfatizando diversas caractersticas das histrias, nomeadamente o seu pendor formativo e a identicao que as crianas, em geral, fazem com o simblico veiculado. No meu entender, este elemento de preceito comportamental e mesmo tico que estrutura os contos formaliza-se atravs do surgimento do Heri, de um heri em demanda que procura as respostas fundamentais para a vida; e estas, so encontradas, no dizer de Bettelheim, atravs das eternas questes: Como realmente o mundo? Como que vou viver a minha vida nesse mesmo mundo? Como que posso ser eu mesmo?. Sem querer entrar aqui no debate literrio sobre a nalidade moral e/ou os objectivos da Literatura para a infncia, reconhecendo contudo a funo de mentor do adulto que convive com a criana, pretendo apresentar algumas experincias, em que a dramatizao complementou o conhecimento dos pequenos intervenientes da sua narrativa preferida, servindo tambm para potencializar a sua actualizao e a sua interaco com as vivncias individuais de cada criana. A escolha da histria que vamos utilizar como exemplo tem a ver com uma organizao pedaggica desses mesmos contos, que nos fez separ-los em diversas categorias, de acordo com a evoluo das personagens, seu relacionamento entre si, organizao e sequncia dos eventos, tipo de concluso, etc. Uma das constantes mais alargadas a todas estes tipos e modelos tem a ver com a presena activa de uma personagem adulta que se revela como o guardio da moralidade e dos bons princpios: assim
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sucede, por exemplo, em O Prncipe R que o rei que obriga a lha a cumprir as promessas; nAs Doze Princesas Bailarinas em que o rei, muito preocupado, cria uma recompensa para quem guardar as princesinhas e lhe explicar o que fazem elas noite; ou mesmo n O Capuchinho Vermelho, em que a me que faz as recomendaes menina antes de ela partir para casa da Av. Este adulto, surgido no nvel do textual, mantm a funo do educador por excelncia, vigiando, recomendando, punindo se tal for necessrio. Contudo, nos ltimos anos, temos vindo a assistir a uma preferncia revelada pelas crianas quando questionadas sobre o conto de que mais gostam, que aponta para histrias em que o adulto no tem razo: assim sucede, por exemplo, com A Princesa Pele-de-Burro que expulsa de casa pelo pai, que no compreende a profundidade do amor da lha, quando esta lhe declara que o ama tanto quanto a comida ama o sal; o mesmo acontece com O Gato das Botas, em que o jovem lho do moleiro se queixa da sua sorte por ter recebido em herana um simples gato; ou ento, o mesmo acontece com Joo e o Feijoeiro mgico, em que a me repreende e castiga o Joo por ele ter trocado a vaca por feijes mgicos. Em qualquer destes contos, a personagem adulta no tem razo, e toda a histria nos vai demonstrar que a intuio da personagem principal infantil no para desprezar, deixando em aberto a ideia da necessidade de dilogo, como promotor de uma vida equilibrada. Pelo entusiasmo que provoca nas crianas actuais, vamos exemplicar a nossa argumentao, recorrendo ao conto Joo e o Feijoeiro mgico, introduzindo com o auxlio das crianas, diversos elementos imaginativos, ou criativos, que permitem novos desenvolvimentos da mesma histria. No devemos esquecer, alis, que este conto que um conto ingls medieval se organiza essencialmente volta de um menino, muito despachado, que tira a um gigante rico e malvado as coisas necessrias para o seu sustento e a sua felicidade. Ideologicamente, no h nada de condenvel, para a comunidade camponesa a que dava voz, num relato em que se apresenta um pobre rapaz, que rouba um gigante mau e avarento para obter o necessrio para que ele e a me no morram de fome. Por isso, assente que nos encontramos perante uma histria cheia de fantasia, humor e optimismo, em que os fracos triunfam sobre os fortes, atravs da inteligncia e da esperteza. Como nos explica B. Bettelheim, ao interpretar conteudisticamente Joo e o Feijoeiro Mgico,
este conto narra que, enquanto a crena na magia pode ajudar na audcia de enfrentar o mundo sozinho, em ltima anlise, ns que temos de tomar a iniciativa e estar dispostos a correr os riscos que envolvem o domnio da vida. Quando do a Joo as sementes mgicas, ele trepa pelo feijoeiro por sua iniciativa e no porque outra pessoa qualquer lho tenha sugerido. (Bettelheim, 1984: 239)
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O conto tem surgido com diversas e inmeras verses, o que predispe as crianas a inovar e a sentir o texto como aberto. De entre as variantes mais signicativas, apontamos: 1) diferentes justicaes para a venda inicial da vaca: ou se explica que me e lho passavam muita fome naquele duro inverno e que s tinham a vaca como bem; ou que a vaca era uma vaca leiteira e tinha deixado de dar leite; ou ento que a vaca tinha envelhecido e s constitua uma fonte de despesa e cuidado; 2) interveno diferenciada de um auxiliar mgico inicial (mas sempre humano): em algumas verses o doador dos feijes mgicos um velho alquebrado; noutras um feiticeiro de longas barbas; noutras ainda um estrangeiro que ningum conhecia. Em comum, em todas as verses o facto de que esta personagem s surge uma vez, no comeo da histria, desaparecendo sem explicao plausvel; 3) do mesmo modo, a personagem oponente, a personagem malca, toma diversas faces, podendo aparecer como um gigante, um ogre, ou mesmo um troll horrendo. Contudo, qualquer destas personicaes do Mal tm em comum serem adjuvados por uma mulher boa e protectora, e sobretudo por comerem meninos: Cheira-me aqui a criana tenrinha!. Esta indenio de elementos decisivos da histria leva as crianas-ouvintes a jogos de participao em que do asas fantasia, mantendo-se em graus variveis dentro das ideias veiculadas pelo conto original, manipulando as personagens que so muito vivas, ou interferindo no cenrio, ou recriando mltiplas peripcias na linha do enredo. De um modo muito simples, comemos as nossas sesses de estudo do conto Joo e o Feijoeiro mgico, partindo da imagem da capa que invariavelmente igual em todas as verses, mostrando a personagem principal a ver, ou a subir, o feijoeiro. Pedimos s crianas da turma para se conservarem imveis como na ilustrao e apenas usarem o rosto e o corpo para comunicarem as suas emoes. Segundo Gilles Ouellet, o gesto dene-se como sendo toda a atitude corporal, animada ou no (Ouellet, 1980:49). A importncia atribuda ao gesto, na actual linguagem do teatro, provm da certeza que, alm da fala, ele constitui o sistema de signos mais exvel de qualquer dramatizao, podendo provocar inmeros sentimentos, ou pensamentos mltiplos. Por isso, e seguindo as sugestes de algumas crianas-participantes, permitimos tambm imagens em grupo, o que as obrigava a uma organizao de quadro mais complexo: neste caso seria tambm necessrio recriar a interaco entre as personagens, comunicando ao observador a interpretao que as crianas atribuam a cenas especcas, a situaes e mesmo histria na sua globalidade. Contudo, revelou-se como fundamental transmitir aos pequenos actores que todos os gestos se deviam articular de acordo com uma gramtica prpria, no se desviando do objectivo de codicarem uma
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mensagem que os espectadores conseguissem decifrar e nunca limitarem-se a representar interpretaes individualistas sobrepostas. Portanto, e de acordo com a tipologia proposta por Pierre Larthomas, o gesto divide-se em trs categorias funcionais: gestos que substituem (a fala), gestos que acompanham (a fala) e gestos que prolongam (a fala) (Larthomas, 1972:81 a 100). Na primeira categoria temos ento os gestos que surgem em substituio da fala e durante os momentos de produo destes quadros vivos, inicialmente elaborados pelas crianas, esta competncia que estamos a treinar. Estes ditos quadros vivos2, ponto de partida do jogo dramtico, podem ser, ou apenas supervisionados pelo professor, ou mais directamente solicitados, se as crianas no apresentarem sugestes prprias. Exemplicamos, explicando que pedimos aos elementos das turmas envolvidas na experincia para representarem os seguintes quadros: o Joo tem fome, j que no h comida em casa; ou o Joo est a levar a vaca para o mercado, sentindo-se preocupado, triste, indiferente, etc; o Joo encontra o estranho e troca a vaca pelos feijes (quais so os sentimentos do Joo?). Esta elaborao de quadros vivos pelas crianas tem certamente um efeito reforativo das cenas principais e introduzimo-los sempre que a narrativa atinge um ponto essencial: quando o Joo mostrou me os feijes; quando abriu a janela de manh e viu o feijoeiro, quando, muito determinado, o Joo subiu at s nuvens, etc. Passmos depois para o segundo tipo de gesto supracitado, em que este acompanha a fala, e pedimos s crianas para representarem para o grupo o momento mais triste da histria, ou o mais feliz, e todos eles pediram para documentar o desenlace da narrativa que, surpreendentemente, resolviam de modos diversos: por exemplo, o Joo ganhava e o gigante morria; o gigante vinha buscar as coisas que lhe pertenciam, a me pegava no Joo e ia embora daquela terra maldita; a me, o Joo e o casal dos gigantes cavam amigos; o gigante era o pai do Joo que fora enfeitiado, etc. Na realizao desta actividade, notmos que temos de dar ateno a alguns procedimentos: 1. antes de mais, devemos vericar se as crianas compreendem o que tm a fazer e quem, ou o que que representam; 2. embora esta actividade possa ser executada no momento, devemos dar s crianas algum tempo para reectirem, ou mesmo para discutirem, no caso de ser preparada em grupo; 3. sempre que possvel, deve-se dar a oportunidade s crianas, para redenirem o quadro, especialmente se no estiverem acostumados a este tipo de dramatizao;
Este tipo de estratgia educacional tem sido muito utilizada no contexto anglo-americano. Para saber mais sobre este assunto, ver, entre outros estudos, Hendy, L. & Toon, L. (2001). Supporting Drama and Imaginative Play in Early Years. Buckingham: Open University Press.
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4. fundamental que se proceda a uma partilha e a uma interpretao dos quadros produzidos; isto , importante vericar como as outras crianas da turma lem, ou criticam, os quadros elaborados pelos outros. 5. especialmente til colocar lado a lado imagens contrastantes: sentimentos iniciais/sentimentos nais, m feliz/m infeliz, etc. Estes quadros em que as crianas permanecem imveis como fotograas, mas j se encontrando dentro do plano da histria, facilitam os outros dois tipos de actividades a que tambm recorremos: as cenas de expresso do pensamento e a dramatizao de um episdio3. Neste caso, os gestos necessrios j prolongam as falas, servindo como complementar importante. Comeando pelas cenas de expresso do pensamento, pedimos s crianas que nos comunicassem o que pensavam certas personagens, num momento determinado da histria. A maioria das vezes, usmos a actividade anterior, em que os meninos se integravam em quadros e sugeramos que ganhassem vida, passando a explicar-nos em discurso directo o que sentiam nesse preciso momento. Exemplico, retomando a cena esttica em que as crianas representam o momento, em que o Joo trocou a vaca pelos feijes. Explicmos turma que, quando tocssemos no ombro de um dos meninos, ele voltaria vida e partilharia com todos os outros o que estava a pensar. Os pensamentos expressos variaram muito, desde a criana que apenas declarou que bom! J consegui vender a vaca!, a um outro que explicou Quando chegar a casa, vou plantar estes feijes... e depois, quem sabe?, vamos ter uma horta!, at a crianas que revelaram pensamentos mais pessoais: tenho a certeza que a minha me vai car zangada, como o costume!, ou bolas! Acho que no devia ter feito isto! Como zemos perante a actividade anterior, tambm no que diz respeito a esta, gostaramos de deixar algumas advertncias: 1. no deve ser obrigatrio o contributo das crianas: o silncio individual deve ser respeitado e os meninos tm de ser informados disso. Se quando tocamos no ombro da criana ela nada diz, passamos rapidamente para uma outra, sem deixarmos que os silncios ou as omisses se arrastem, quebrando o ambiente de jogo e de criatividade; 2. esta verbalizao de pensamento no ainda uma pea de teatro e no se pretende que o resto da turma entre em dilogo. Do mesmo modo no queremos que as crianas se repitam umas s outras; logo, o que pretendemos enfatizar uma diversidade de respostas possveis, numa tentativa de promover e compreender a complexidade do comportamento humano e sobretudo, as interpretaes mais profundas que as crianas fazem da vida e dos eventos possveis.
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Esta sequncia de actividades de preparao da pea nal teoricamente justicada em detalhe por Bolton, G. (1979). Towards a Theory of Drama Education. Harlow: Longman.
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Passamos agora terceira actividade dramtica que, mais uma vez, pode resultar dos quadros iniciais: a dramatizao de uma cena. Como exemplo, iremos recorrer ao momento em que o Joo entrega os feijes me, permanecendo, em inferncia, as respostas a mltiplas questes: o que diz o Joo? O que diz a me? Como se desenvolve o dilogo? Que estado de esprito foi sendo apresentado pelas duas personagens em cena? Transcrevo um dos dilogos espontneos dos alunos, registado em gravao udio:
Joo Toma, me. Vendi a vaca a um homem... e ele pagou-me com estes feijes. Me (com voz zangada) mas tu s parvo, ou qu?eu no quero feijes nenhuns! Quero dinheiro pela vaca. Joo me, desculpa. Julgava que estava a fazer bem: o homem disse-me que eram mgicos... Me pega j nos feijes e vai lev-los de volta ao homem. E depressinha! Joo no posso, no sei aonde ele mora! Me d-me ento essa porcaria que eu vou p-los fora, pela janela fora! E tu, vai j para a cama sem jantar, seu desgraado! (Tiago e Susana, 8 anos).
De um modo geral, gostaria de explicar que este tipo de dramatizao deve ser sempre pouco extensa: no mais de meia-dzia de falas. S assim possvel criar no mesmo grupo de crianas interpretaes diversas de cada momento narrativo e no permitir aos primeiros solicitados que controlem a actividade e se alarguem em consideraes que nada tm a ver com a histria. Se algumas das interpretaes forem muito surpreendentes, usa-se um jogo dramtico complementar que faz com que a criana-personagem seja colocada na cadeira das condncias, estratgia em que se recorre a uma cadeira vazia, sempre presente na sala e onde a criana se senta para responder a perguntas do professor ou dos colegas sobre as motivaes, as decises e os pensamentos/emoes da cena que ela acaba de representar. Exemplico, colocando na cadeira a personagem-Joo a quem os colegas pretendem questionar sobre a primeira subida no feijoeiro: como foi? O que encontrou? como se sentiu? O que planeava fazer? Teve muito medo?etc., vo esclarecendo a turma sobre as implicaturas da representao possvel. Todas estas actividades e estratgias preparatrias tm como nalidade passar das dramatizaes espontneas, elaboradas de imediato pelas crianas, para formas mais conscientes de representao teatral. Comemos ento por ressaltar caractersticas tpicas do teatro de palco, como a importncia da representao4, por ns apenas sumariada atravs da relao gesto/fala. Com efeito, e no meu entender, qualquer dos dois componentes representa dilogo, se
Para saber mais sobre este assunto, to importante na linguagem de palco, ver, por exemplo, Brook, P. (1968). The Empty Space. Londres: Penguin.
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bem que o teatro contemporneo, ps-brechtiano, no considere esse elemento fundamental existncia do teatro. Contudo, no caso do desenvolvimento das competncias de representao infantil, essa categoria evidencia-se como incontornvel, pois o dilogo sentido pelos pequenos intervenientes como um elemento absolutamente necessrio ao prprio gnero; isto , as palavras, como disfarce natural de uma conversa, so assumidas pela personagem em cena, que troca falas com as outras personagens, dando voz ao que o autor pretende. Assim, e apesar de sabermos que na histria do teatro o dilogo entre as guras em cena no permanece como um critrio absoluto para julgar o carcter dramtico de um texto, apesar de termos demonstrado por algumas das estratgias j desenvolvidas que o intercmbio verbal entre as personagens em cena pode ser substitudo por monlogos, em que o actor verbaliza os seus sentimentos ou as suas dvidas, o certo que o dilogo nunca se ausenta. Com efeito, neste modelo de teatro infantil, mesmo quando a personagem recorre a um aparente monlogo, mantm-se a presena dominante e quase absoluta do dilogo, visto que existe sempre em comunicao um interlocutor de respeito: o pblico circundante. Nesta forma espontnea de teatralizao, a criana/actor parece cumprir as teorias de Brecht, dirigindo-se sempre a um pblico que considera, no s testemunha, como um participante activo. Realmente, se nestas representaes teatrais conseguimos que os diversos actores se reduzam ao silncio para dar espao s falas dos outros, no pudemos evitar as constantes intervenes (muitas vezes crticas) das crianas que escutavam a pea. Alis, a prpria postura do colectivo, em crculo fechado, limitando o palco a um centro sob permanente escrutnio do pblico, revelava bem o modo como as crianas interpretavam o seu relacionamento com os pequenos actores em palco, como sentiam que podiam criticar, aconselhar, sugerir, e mesmo substituir os actores em cena. O conjunto de actividades preparatrias para uma representao dramtica do conto foram organizadas do seguinte modo: duas sesses dedicadas aos quadros vivos, trs sesses s cenas de expresso de pensamentos e outras trs sesses dramatizao de um nico episdio. Cada sesso, alis, nunca ultrapassou a durao de uma hora. Todo este trabalho, estas diversas vias de conhecimento do conto, se renem ento para facilitar uma melhor representao da pea Joo e o feijoeiro mgico. Esta representao ser organizada numa sesso de preparao e concretizada na sesso a seguir: na primeira sesso escolhem-se as personagens, previamente nomeadas pelos pequenos alunos. A maior surpresa surgiu-nos quando das dez escolas participantes, nove delas suprimiram a personagem-doadora, comeando a representao logo com o Joo, muito entusiasmado, a mostrar os feijes me e a deni-los como mgicos. Por isso, a maioria das turmas intervenientes considerava ento como fundamentais para a histria o Joo, que era a personagem principal, e trs personagens secundrias: o gigante, a me do Joo e a mulher do gigante.
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Partindo do facto que a representao seria de improviso, achmos por bem pedir voluntrios para os papis e permitir que algumas das crianas procedessem a uma identicao natural com uma ou outra das guras em cena, argumentando que o papel era ideal para elas. Alis, a criana que melhor representou o Joo anunciou-o convictamente, armando sou eu quem faz melhor de Joo. Atribudos os papis, estabelecemos com as crianas as linhas fundamentais da aco e sobretudo as caracterizaes das personagens, necessrias e fundamentais para a actuao de cada um em cena. Resumimos essa sesso to elucidativa, transmitindo apenas as concluses: 1. o Joo era um menino esperto, vivo, dado a marotices e o tipo de criana que todos gostariam de ter como amigo. Todos concordaram que no era bonito roubar o gigante, mas defenderam que ele merecia por ser to mau. Tambm confessaram que, se tivessem um amigo como o Joo, o acompanhariam neste tipo de proezas; 2. o gigante era mau, bruto e perigoso. Tambm um pouco ridculo. A ferocidade aparente do gigante convence pouco as crianas actuais e a sua actuao em cena, frequentemente com gestos exagerados, provocou sobretudo o riso dos pequenos espectadores. Curiosamente, as crianas achavam que ele era mau, porque tratava muito mal a mulher, havendo mesmo um menino que armou convicto que lhe dava muita pancada. 3. a mulher do gigante rene a simpatia de todos os meninos: humilde, ajuda a personagem principal, sacrica-se; 4. a me do Joo encarada como constantemente preocupada. No h destaque nas representaes infantis para a injustia inicial, como se considerassem que erros todos cometemos. O desaparecimento do lho no alto das nuvens provoca-lhe grande angstia, pedindo o auxlio dos vizinhos e o seu apoio na crise. No m, partilha da felicidade do lho; 5. as outras crianas da turma, a quem no foram distribudos papis mais especcos, so os vizinhos do Joo que vm auxiliar a me, quando ela se aige com o lho. De acordo com as escolhas colectivas, fazem em grupo trs intervenes: na primeira subida de Joo ao feijoeiro vm partilhar com a me a sua aio, comentando o atrevimento, mas tambm a coragem, da personagem principal e fazendo companhia me at ao regresso do Joo; numa segunda interveno decidem subir ao feijoeiro para resgatar o Joo, apesar de cheios de medo; encontram-no j de volta e alegremente fazem em conjunto o caminho de retorno; numa terceira interveno, particularmente interessante e extratextual, os vizinhos recebem o gigante, quando, no nal da histria, ele cai do feijoeiro, para o repreender e ensinar a mudar os seus comportamentos. De novo, as crticas incidem sobre o tratamento que ele d mulher, recriminandolhe a violncia e prometendo-lhe a aceitao na comunidade se ele mudasse de actuao.
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Porque so indissociveis, fui comentando alguns pontos da representao que se sucedeu sesso de discusso da linha de acontecimentos necessrios chegada ao palco de Joo e o Feijoeiro Mgico. Gostaria aqui de esclarecer que as crianas no sentiram a pea como uma simples adaptao fundada no conto, mas antes como a dramatizao teatral, el histria que eles to bem conheciam e apreciavam. Se comemos por falar do gesto, expresso necessria do actor, e depois tratmos da personagem, veculo de palavra e da aco, ao mesmo tempo elemento de expresso e via de identicao do pequeno pblico, no podemos deixar de mencionar outras categorias do texto narrativo que se destacam especialmente e se ajustam na transformao do contado para o representado; referimo-nos ao espao e/ou tempo, fundamentais para credibilizar as produes em palco e aumentar a iluso da vida. Quanto ao espao que, pela sua funo, ultrapassa o mero cenrio5, serve para ambientar a personagem e para conferir um maior realismo actuao da gura em cena. O espao, no teatro para a infncia, mesmo estando ausente, revela-se como o despoletar de todos os problemas; assim acontece, por exemplo, com o mercado em Joo e o feijoeiro mgico, lugar onde o Joo vai vender a vaca. Apenas referido no texto, sem este espao incluso no haveria conito, visto que o Joo no teria sido enganado, no receberia os feijes mgicos, no teria acesso casa do gigante. Geralmente, nestas produes teatrais feitas por crianas estes espaos ausentes/actuantes so considerados como excessivamente complexos, para serem colocados como espaos fora de cena, o mesmo sucedendo com os espaos paralelos que consubstanciam aces paralelas: assim acontece no caso da representao de Joo e o feijoeiro mgico, em que as crianas, deparando-se com a complexidade de cenas em que o Joo est no mercado e a me em casa, suprimem a cena da doao pelo viajante, colocando o Joo a conversar com a me e a narrar retrospectivamente o encontro no mercado e a troca ento ocorrida. Nesta adaptao em estudo ainda mais assinalvel o modo como as crianas resolveram o problema da representao dos dois mundos paralelos: o mundo da pobreza real de Joo e o mundo imaginrio onde morava o gigante. Notemos que era fundamental que as crianas demonstrassem que esses dois mundos estavam profundamente interligados, visto que, se o Joo no vivesse numa realidade de pobreza extrema (assinalada num primeiro espao/ponto de partida), no necessitava de correr riscos, aventurandose num segundo espao (espao de esperana e de soluo dos problemas). Assim, no texto narrativo original, o conto decorre no espao da casa materna de onde sai o feijoeiro e o Joo faz incurses rpidas aos domnios do gigante malvado. Quando as crianas procedem adaptao do texto narrativo para o palco, alteram o espao, deslocando toda a aco para o mundo do gigante e o mundo do real, aps a
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O espao, em todo o tipo de modalidades e em todo o tipo de funes, estudado, por exemplo, por Jouvet, L. (1965) Esthtique Gnrale du Dcor du Thtre. Paris: CNRS.
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conversa inicial do Joo com a me, desaparece de cena, como se fosse sentido como triste e incmodo. tambm de ressaltar a cena nal representada por estes pequenos actores, em que o gigante cai do feijoeiro (escorregando para fora da cena) e os elementos do pblico, que se dispem volta do palco improvisado, arrastam-no para a boca da cena para a ser repreendido por todos. Esta deslocao espacial do texto narrativo de origem muito curiosa, evidenciando, nas implicaturas discursivas, uma rejeio da infelicidade expressa pelo protagonista por ser pobre; enquanto o mundo do gigante, com comida abundante e conforto, se converte no objectivo a atingir pelo Joo, que se recusa assim a sujeitar-se de novo misria. Ento, esta alterao do espao do conto acaba por se tranformar numa reduo no palco, ou mais concretamente, numa centralizao, ampliando-se assim um dos espaos activos do narrado e convertendo o outro num espao meramente passivo, mesmo desactivado. Contudo, a meu ver, este procedimento no revela a expresso de uma adaptao literria muito elaborada, antes a necessidade da infncia de simplicao, que no lhe permite entender noes espaciotemporais de simultaneidade. Quanto ao tempo, categoria essencial da narrativa, simplicada espontaneamente nesta transio para a representao do conto, em consequncia directa da reduo e afunilamento do espao. Alis, esta reduo do espao que leva os pequenos actores a tornarem o tempo menos complexo, visto que se converte em sequencial, evitando o simultneo. Agora que toda a pea se passa num s espao, a casa do gigante, o protagonista apresentado em trs momentos temporais sucessivos, correspondentes aos trs roubos que o Joo pratica na casa do gigante em trs visitas distintas. Nesta representao cnica infantil, a passagem entre momentos marcada por uma fractura temporal, que no corresponde a um intervalo bvio, mas antes pela ausncia da personagem principal, que sai do palco para reentrar logo a seguir, dando incio ao episdio subsequente. A pea ento constituda por um nico acto, subdividido em trs momentos temporais em sucesso cronolgica, indiciados por um prlogo (Joo e a me numa conversa introdutria) e um eplogo (os meninos do pblico, em conjunto repreendem o gigante, chamando-o ao bom caminho). Nesta apresentao necessariamente breve pusemos de lado outros componentes possveis da produo cnica, como o recurso a cenrios e caracterizao, como a importncia da indumentria para a identicao das personagens, ou mesmo a utilizao da msica ou outros sons de fundo, ou mesmo da iluminao, para indiciar variantes da aco. Apenas pretendemos reectir sobre as capacidades naturais da infncia para a produo de peas de teatro e para o estudo conjugado do narrativo com o dramtico.
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Bibliograa:
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Resumo: Retomando a paixo infantil por contar histrias, vamos transformar o texto narrativo das histrias preferidas da infncia em peas de teatro elaboradas no momento. Para tal, iremos recorrer a diversas estratgias de converso do texto, em que ao familiarizar as crianas em palco com o conto original, estamos a facilitar mecanismos de representao teatral. Abstract: Taking into account the childrens interest in telling stories we will transform the narrative text of some stories for children into short plays, produced in that instant. To do so, we will analyse several strategies for changing the text, so that by making the children familiar with the original story we will be fostering strategies involved in dramatic performance.
Il existe donc un thtre du silence, un thtre du corps et du cri destin atteindre plus profondment la sensibilit du spectateur. Cette utopie dun au-del des mots plus puissant que les mots, senracinant dans lindicible, retrouve de la vigueur chaque fois que le thtre sessoufe et sempoussire, que le texte nest plus que le refuge dune reprsentation machinale perptuant des rituels vids de leurs sens, ou lalibi dune culture coupe de toute ncessit (Ryngaert, 1996 : 28) O Teatro um espao desvelador. Ilumina o escuro. Povoa de vozes o silncio. Descortina, exibe, repercute os conitos latentes. (Torrado, 2001: 11)
Palavras-chave: teatro, silncio, Antnio Torrado, cenograa, encenao, representao, texto dramtico Keywords: theatre, silence, Antnio Torrado, scenography, mise en scne, representation, dramatic text
Com uma actividade literria longa e reconhecida, Antnio Torrado tem dedicado especial ateno escrita teatral, tanto para crianas como para adultos, que tem desenvolvido em parceria com diferentes grupos teatrais, dos quais se destacam companhias como Teatro do Noroeste, de Viana do Castelo, onde desempenhou funes como dramaturgo residente, e a Comuna Teatro de Pesquisa. Bastante activa tem sido, igualmente, a sua colaborao com o teatro radiofnico, nomeadamente com o programa Teatro Imaginrio, para o qual escreveu vrios textos, alguns dos quais entretanto publicados. Nos ltimos anos, podemos mesmo armar que a escrita para teatro e tambm para cinema ocupa parte muito signicativa da actividade literria do escritor que anunciou ter j fechado a porta poesia. Contudo, ela, de forma sub-reptcia, vai irrompendo no seio de outros gneros, como o caso dos textos dramticos, que lhe pedem de emprstimo o lirismo e a conteno, quando no o encaixe de fragmentos
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poticos, autgrafos e algrafos. A atraco pelas formas breves e pelo minimalismo que as caracteriza est patente em outros gneros trabalhados pelo autor, desde a poesia prosa. No primeiro caso, e dando apenas o exemplo de um volume recente destinado ao pblico infantil Como quem diz1 (2005) verica-se como a concentrao formal refora os jogos de palavras e de sonoridades que estruturam os textos poticos que integram a publicao. Tambm aqui, assduo o recurso a composies que assumem uma forma dialogada, numa espcie de duetos improvveis, de que A Urtiga e a Mo, O Bacilo e o Antibitico ou A Baqueta e o Tambor so exemplos elucidativos. Na prosa, destaquem-se, por exemplo, os textos de Almanaque Lacnico (1991), onde visvel a inuncia de um discurso de tipo aforstico, cuja conteno favorece a hesitao do leitor perante as possibilidades que o texto prope, feito de sugestes e de noditos. Mas a anidade com o texto dramtico, e com a prpria ideia de dramaticidade que parece poder funcionar como chave de leitura para a obra de Antnio Torrado, ainda mais evidente na colectnea De Vtor ao Xadrez (1984), onde os breves contos assumem frequentemente uma estrutura dialogada ou monologada, afastando-se da tradicional narratividade do conto. Veja-se, por exemplo, o caso dos contos O anti-H, Dilogo ou Os Rudos, e ainda dos monlogos Geograa ou Os velhos. A atraco por peas breves, levadas cena com poucos recursos materiais e humanos, encontra explicao em motivaes econmicas2 e culturais, uma vez que, a partir de meados do sculo XX, o teatro, enquanto expresso artstica, se democratiza e se descentraliza, saindo dos grandes palcos, das capitais e deixando de estar ligado, pelo menos de forma exclusiva, s grandes companhias. Os textos de Antnio Torrado parecem, no que diz respeito estrutura, assumidamente contida, espelhar a inuncia de Samuel Beckett, uma vez que se assiste a uma concentrao efectiva da estrutura dramtica em torno de uma ou duas personagens em cena, ou entre uma personagem e ela prpria, uma vez que a sua voz se desdobra (ou se estilhaa) em mais do que uma. A fora dramtica do monlogo3, defendida desde h muito, conhece, nesta altura, algumas das suas melhores expresses, apoiando-se no confronto directo da personagem com o seu pblico. De qualquer modo, h sempre a ideia de que, de alguma forma, le monologue peut tre pris comme une sorte de limite de lcriture dramatique (Ryngaert, 2000: 73).
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Caracterizados pela brevidade da forma e da mtrica so mesmos designados por versos miudinhos , os poemas da colectnea so muitas vezes construdos a partir de trocadilhos e apresentam uma forma dialogada que promove quase a sua dramatizao, correspondendo, assim, a mais um exemplo de como a escrita dramtica um elemento central na obra de Antnio Torrado, podendo quase ser transformada em chave de leitura para toda a vasta arte potica do autor.
Confrontar com: Sans doute pour des raisons conomiques, les petites formes , des pices brves pour un petit nombre de personnages et parmi celles-ci, bon nombre de monologues, rgnent sur les dramaturgies des annes 70-80 (Ryngaert, 2000:70).
Assiste-se multiplicao de textos teatrais para um nico actor, conduzindo, nos ltimos anos, evoluo do teatro para uma espcie de representao de uma voz nica.
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A escrita dramtica, fragmentada e descontnua, incentiva ainda o questionamento sobre os processos de ligao e articulao das diferentes partes (que se tornam alvo privilegiado da ateno do leitor/espectador), o que acentua a sugesto de inacabamento, de ruptura4 e de inquietao to cara a alguma escrita literria contempornea, promovendo mais a sugesto e a interrogao do que a armao: lcriture thtrale contemporaine exprime une mance pour tout projet didactique, pour toute intention dclare daction sur le spectateur. La tendance aux uvres ouvertes , la rexion sur la libert du spectateur et sur sa dmarche de rception rendent les auteurs avares de dclarations fermes sur leurs intentions (Ryngaert, 1996 : 16). O dilogo com outras artes e a forma como elas alastram, invadindo o territrio cnico, outra das experincias que caracteriza o teatro contemporneo, promovendo a hibridez genolgica e a consequente questionao quando no o derrube dos seus limites e convenes: toutes ces recherches autour des langages artistiques, ces mtissages ente la parole, limage, le mouvement, exercent une inuence probable sur les textes dauteurs. Ceuxci se sentent moins contraints par des conventions scniques qui voluent trs vite et qui reculent les limites du reprsentable vers davantage de libert et dabstraction, en tout cas vers un rapport moins troit avec le rfrent (Ryngaert, 2000: 54) Ainda no mbito das inovaes trazidas por um certo teatro experimental, destacase a presena da mise en abme, uma vez que algumas peas apresentam uma estrutura prxima da do encaixe, uma espcie de teatro dentro do teatro que, simultaneamente, acentua o cariz ctivo, actuando como uma espcie de efeito de distanciamento, da cena e promove o questionamento, a dvida e a reexo. Alis, le thtre dit de labsurde a ouvert les portes, par le jeu de massacre des conventions et par lusage massif de la drision, linclusion dans nimporte quel texte de moments plus ou moins fugitifs ne renvoyant rien dautre qu lespace de la scne. Il a rendu plus admissible pour la suite la prise au srieux dune criture que enfreint les rgles spatio-temporelles convenues (Ryngaert, 2000: 87). Por isso, analisar a questo do espao e do tempo nos textos de Antnio Torrado, atendendo ao facto de estes dois elementos serem aqueles que mais tm reectido a inovao das vanguardas, possibilita uma reexo e um questionamento sobre os prprios limites da teatralidade. Veja-se, por exemplo, como, em alguns casos, o aqui e o agora da representao so inuenciados pelo discurso narrativo/ccional, sendo propostas ao leitor/espectador outras coordenadas espaciotemporais, nomeadamente o dantes/antigamente e o ali/noutro lugar. Neste sentido, merece referncia o facto de, em algumas peas, a perspectivao da Histria decorrer da observao e descrio de conitos e dilemas interiores, pessoais e subjectivos, onde se revelam as consequncias trgicas dos grandes acontecimentos histricos que, assim, ganham um relevo diferente e uma dimenso mais humana por4
Confrontar com: La cration contemporaine et lcriture moderne sinscrivent demble dans ce thtre de la rupture, du renouvellemente et de linterrogation (Ryngaert, 2000: 31).
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que resultam em/de aces do foro ntimo e privado. Trata-se, parece, de uma nova leitura da Histria e de uma perspectivao dos acontecimentos, tomados no no seu todo mas em pequenas partes. Cada um desses estilhaos e fragmentos reectir, de forma pessoal, anal, a grande Histria, retirando-lhe alguma da impessoalidade que caracteriza o seu discurso. A ilustrar esta ideia, vejam-se a peas de Antnio Torrado que reectem, de forma diferenciada, as consequncias da Guerra Colonial. Esta ancoragem na Histria, que condiciona o comportamento e a actuao das personagens, no dilui, no entanto, a dimenso alegrica do teatro deste autor. No mbito deste estudo, e atendendo especicidade do gnero em anlise, repartiremos a nossa ateno tanto por textos destinados ao pblico infantil como ao adulto, unidos por dinmicas e preocupaes similares que resultam, em muitos casos, das inuncias recebidas pelo autor e das suas prprias reexes sobre estas questes. Vamos, nesta abordagem, passar ao lado, por questes metodolgicas, da diferenciao entre texto dramtico e teatro e, consequentemente, da distino entre dramaticidade e teatralidade que tomaremos como assentes, tal a insistncia e a validade das reexes que apontam no sentido da no identicao do teatro com o texto que lhe serve de suporte. A transio da ditadura do dramaturgo para a do encenador reecte o crescimento da importncia dos elementos teatrais e cnicos sobre o texto que, nos ltimos anos, parece ter perdido relevo e permite constatar a considervel independncia entre o texto e o espectculo. A comprov-lo, basta pensar na existncia de teatro sem palavras, de que o mimodrama o melhor exemplo. Alguns conitos entre a produo de texto literrio destinado teatralizao e a ideia de que a criao textual resulta do prprio processo de dramatizao, valorizando o improviso e a criao colectiva, explicita uma fractura com razes antigas e de presena assdua nas reexes sobre esta questo. Em ltima instncia, a valorizao do trabalho de improvisao do actor e do seu trabalho de criao corresponderia a uma nova ditadora, desta vez a do actor. Assim, entendemos, como mote para este trabalho, a sugesto do adjectivo mnimo associado ao teatro em diferentes acepes: (1) brevidade dos textos, condensados num nico acto e, s vezes, numa nica cena; (2) conteno de recursos humanos e materiais, incluindo cnicos (gurinos, cenrios, etc.); (3) reduo a mnimos surpreendentes da componente lingustica do texto dramtico, substituda pela expresso corporal e pela movimentao cnica; (4) amputao da componente visual, concentrando todas as potencialidades dramticas no exerccio vocal e sonoro. Tais acepes correspondero, evidentemente, a diferentes tipos de representao de que a obra de Antnio Torrado oferece exemplos consistentes e polifacetados: o caso do (1) teatro infantil e/ou para a infncia (representado por crianas e/ou para crianas, em contexto escolar ou fora dele), do (2) teatro do silncio e ainda do (3) teatro radiofnico, as trs formas sobre as quais se debruar esta anlise.
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Ver, por exemplo, Bastos 1999 e 2006. Foi galardoado com o Prmio Calouste Gulbenkian de Livros para Crianas (1980), o Prmio de Teatro Infantil da Secretaria de Estado da Cultura (1984), o Grande Prmio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianas (1988), entre muitos outros. Alguns dos seus livros foram includos na Lista de Honra do IBBY Internacional Board on Books for Young People , nos anos de 1974 e 1996.
Confrontar com: Os espectculos de teatro para a infncia e a juventude ocupam, ainda, em Portugal, um territrio perifrico. Dados ao pblico em espaos desadequados, com escassos elencos, onde a boa
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meios (ibid.). Assumindo quase a forma de manifesto em defesa do reconhecimento do teatro para a infncia, o autor conclui armando que se exige () um teatro adulto para crianas, que contenha motivos de fascnio to contguos das crianas e dos jovens como adultos (ibid.). O teatro infantil e/ou para a infncia enquanto teatro mnimo no sentido em que aposta na simplicidade de recursos cnicos, de mensagem e at de exigncias de representao est claramente patente na obra Teatro s trs pancadas. As sete peas a compiladas retomam temas, motivos e formas (como o caso da fbula) da tradio e adaptam ainda textos narrativos do autor, devidamente identicados no posfcio da obra. Atribuindo especial ateno dimenso humorstica, que surge de diferentes contributos (linguagem, personagem e situao), os textos apontam, sobretudo por aco da versicao ou de vrios jogos sonoros, para a efectiva encenao, como o sublinham as didasclias e indicaes cnicas frequentes e relevantes. Sobre os textos agrupados nesta antologia, ouamos ainda outras leituras que sublinham a funcionalidade do recurso a formas breves:
Marcados por uma acentuada narratividade, pelas inuncias assumidas da tradio oral e popular e pela recriao de episdios conotados com o cmico, frequentemente suscitado pelos jogos de opostos (por exemplo, gordo/magro), pelos equvocos, pela hiprbole / caricatura, ou, ainda, pelas situaes de pancadaria ou de correria em cena, os textos de Teatro s trs pancadas, de Antnio Torrado, ilustram a vertente dramatrgica do autor e a sua veia de encenador, apontando ou conduzindo para a representao enquanto momento concretizador das vrias potencialidades que o texto encerra, sem esquecer o ludismo que a caracteriza (Gomes et alii, 2007: 289).
Destaque-se, ainda, na obra do autor, a importncia de que se revestem os ttulos8 e as indicaes que fornecem sobre o contedo, o gnero e at a forma dos textos que encabeam. Verica-se um cuidado particular dedicado a este elemento paratextual por parte de Antnio Torrado que lhe sublinha a especicidade, uma vez que os ttulos parecem capazes de concentrar, s vezes com recurso metfora e polissemia, um conjunto amplo de signicados, promovendo, em simultneo, uma leitura literal e outra gurada. Esta sobreposio de leituras tambm parece decorrer da opo por ttulos que retomam objectos ou realidades do quotidiano, marcando a sua singularidade e apelando a uma leitura mais profunda (mais atenta tambm, capaz de ver para alm das simples aparncias) do real. O ttulo parece fugir ao bvio e, atravs do texto e da sua representao, revelar faces ocultas, carregadas de signicado, sendo a sua
vontade mal disfara o amadorismo de meios tcnicos e humanos, no so quase nunca, h que diz-lo, atraentes (Torrado, 2001: 38).
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Elementos decisivos no estabelecimento do contrato de leitura com a obra, os ttulos abrem quase sempre vrias possibilidades de leitura e articulam, frequentemente, dilogos intertextuais.
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descoberta, s vezes, fruto do acaso. o que acontece, por exemplo, nos textos de Fecho clair e Outros Desfechos (2002), onde o ttulo, construdo a partir de um jogo de palavras, destaca, como elemento central, um objecto de uso comum que, contudo, se revelar absolutamente crucial para provocar o cruzamento e a interaco das duas personagens principais do texto. Outro exemplo o da colectnea de textos preferencialmente vocacionados para o pblico infantil Teatro s trs pancadas (1995) cujo ttulo, recorrendo a uma expresso idiomtica, se desdobra em dois sentidos distintos, para alm de funcionar como indicador claro de gnero: um remete para a simplicidade e facilidade, podendo ser lido quase como tpico da humildade do autor; o outro recupera um elemento decisivo na representao, as pancadas de Molire que iniciam o espectculo teatral.
2. Teatro do Silncio
Em Teatro do Silncio (1988), por seu turno, o dramaturgo agrupa um conjunto de cinco textos a que, desde o subttulo, designa como exerccios dramticos. O carcter experimental, sublinhado desde aquele paratexto, documentado pela forma como o autor exercita prticas teatrais inovadoras, pondo prova alguns dos limites das convenes cnicas e abrindo portas para vias de evoluo alternativas. Se tivermos em linha de conta que estes textos foram escritos durante a primeira metade da dcada de 70 do sculo XX (alguns podero ser consideravelmente anteriores), notria a atraco do dramaturgo por elementos inovadores que so introduzidos em cena, como o caso das cmaras de lmar, do projector de diapositivos e do gravador. Com anidades com o teatro do absurdo, assumidamente experimentais e herdeiros da tradio europeia do teatro de Beckett9, os textos aqui compilados permitem uma leitura que, sem contornar a sua dimenso mais ancorada a uma corrente esttica particular e a um determinado contexto histrico-cultural, envolve questionamento e pe em relevo, de forma crtica, os limites da teatralidade e da sua prpria relao com o texto literrio, para alm da inquietante actualidade e pertinncia das temticas propostas. Nos textos de O Teatro do Silncio, transparece, como arma Fernanda Botelho, uma condio humana que, da abjeco e degradao, da insociabilidade e violncia, de uma primria e limitada existncia, poder ascender a uma dignicao do ser individual e social. Tambm nestas peas perpassam sentimentos que em silncio melhor se revelam: a solido, a angstia, o desespero (Botelho, 1989).
O Teatro do Silncio, de A. Torrado, tem anidades com Act without Words I e Act without Words II (1956), de Samuel Beckett, com Concert la carte, de F. X. Kroetz e com Le pupille veut tre tuteur, de P. Handke, sobretudo na viso minimalista, encriptada e pessimista como percepciona a condio humana.
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O primeiro texto, destacado com uma meno honrosa, na modalidade das peas breves, no concurso da SPA em 1975, Os Obscuros, sob inuncia beckettiana, alegoriza, quase sem recurso palavra proferida em palco, o conito humano e a articialidade da socializao, uma vez que as trs personagens em cena parecem anteriores vida organizada em sociedade, marcadas pelo individualismo e pela incapacidade de ser relacionarem entre si e, por isso, ainda procura de um sentido e de uma ordem comuns, de que a linguagem parece ser um dos maiores trunfos, o que, neste caso, no se verica. A aprendizagem da vida em sociedade resulta de uma espcie de jogo em que a progresso realizada por tentativa e erro sucessivos e onde a lei do mais forte e a sorte parecem ter um papel considervel. evidente, pois, a amarga desiluso que, de forma pessimista, parece encerrar o texto, no permitindo esperana para a espcie humana face ao egosmo e incapacidade comunicante que a caracteriza. So visveis os sinais de abandono e de isolamento extremos que parecem animalizar as personagens, deixando-as merc dos instintos. As didasclias iniciais sublinham esta dimenso extrema da condio humana atravs da repetio sucessiva deste adjectivo. O abandono da condio verbalizadora igualmente sintomtico do estado de descrena pr ou ps-verbal a que as personagens se entregam. As sugestes de uma animalidade crescente decorrem sobretudo da movimentao e da interaco das personagens tal como as didasclias as descrevem, de que a luta corpo a corpo pelos bens (e pelo poder que simbolizam) um exemplo convincente. O universo alegrico-simblico que contextualiza o desenrolar de uma intriga lacunar e embrionria (construda mais a partir de sugestes do que de efectivas concretizaes dos intervenientes) colabora na avaliao crtica dos comportamentos das personagens, lutando pela posse de uma chave que d acesso a roupas e acessrios sem qualquer qualidade ou valor extraordinrios. Uma leitura atenta da pea poder perceber a crtica subjacente valorizao de componentes acessrias, como o vesturio, no estabelecimento de uma oposio subtil entre essncia e aparncia. evidente o signicado simblico dos objectos em questo, em particular a chave, que se assume como elemento que permite desvendar um segredo oculto, conferindo poder (e controlo sobre os restantes) quele que a possuir e a manusear com pertinncia e eccia. A forma como so retratados Fulano, Beltrano e Sicrano (e a escolha dos nomes10 no , obviamente, inocente) permite inferir acerca do pessimismo do dramaturgo em relao condio humana, muito prxima do animalesco, apenas diferenciada pelo culto da aparncia e pelo uso, com caractersticas rudimentares, da linguagem. Publicado tambm na mesma colectnea, o texto As ligaes aposta, mais uma vez, na tematizao das relaes humanas, expondo o absurdo da existncia e a forma obsessiva de perspectivar a ruptura afectiva. Assim, o ttulo, como o desenrolar da
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Mais bvia no mbito da literatura para a infncia, a carga semntica dos nomes das personagens no um elemento despiciendo na obra de Antnio Torrado, em particular a dramtica.
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pea mostrar, revela-se ambivalente, na medida em que aponta, em simultneo, para as comunicaes telefnicas (ou para a falta delas) e para as relaes afectivas entre o par amoroso desavindo. O texto, protagonizado pela personagem masculina, que parece lutar com os fantasmas do passado, rememorando recordaes, imagens e sons da mulher amada, apresenta-se entrecortado por vrios fragmentos textuais, poticos e outros, que sublinham a poeticidade e a dramaticidade da cena recriada, na qual a palavra ressuma um peso e uma espessura particulares, smbolo de uma comunicao e de um afecto interrompidos. A personagem feminina , pois, uma gura ausente mas obsessivamente invocada e presenticada, quer atravs da projeco da sua imagem, quer da audio da sua voz em mltiplas gravaes. Estas desempenham um papel central, assegurando a verbalizao em cena, e surgindo como xaes ou cristalizaes de momentos fugazes e perecveis, uma espcie de fotograas sonoras destinadas a resistir aco corrosiva do tempo, do esquecimento e, sobretudo, do desamor. Assim, atravs de fragmentos de conversas que o leitor/espectador reconstri, analepticamente, a histria do par, acompanhando a sua runa e o crescimento da obsesso da personagem masculina que, de forma repetida, telefona mulher mas no lhe fala, conduzindo-a a fazer dolorosos monlogos. O silncio, que empresta o nome colectnea, , neste caso, obstculo comunicao e ao entendimento entre as personagens mas tambm parece ser uma espcie de ponte frgil que as mantm prximas ou em contacto. A afasia do homem pode ser entendida enquanto forma de resistncia ou incapacidade de se abrir ao outro. O clmax da pea ocorre no momento em que a mulher anuncia uma ruptura denitiva, uma vez que os telefonemas regulares pareciam, de algum modo, assegurar uma estranha continuidade ligao, qual se segue o rudo do toque de telefone. Promotor do suspense e da expectativa acerca de uma hipottica aproximao, o telefonema faz ruir a esperana, traduzindo o desmoronamento da ligao e reiterando a dimenso ctiva da representao, uma vez que a voz, ao telefone, inquire a personagem perguntando-lhe se fala do teatro. Estratgia prxima da mise en abme, esta aluso ao teatro dentro do teatro tambm perturbadora da construo ccional que a encenao realiza, apelando ao distanciamento do leitor/espectador do universo recriado. Muito signicativo em termos das poticas ps-modernas, este tipo de exerccio parece resultar da constatao da perda de inocncia do leitor de que Umberto Eco (1991) fala. A iluso dramtica , pois, um motivo assduo nos textos dramticos de Torrado, tanto para o pblico infantil como para o adulto, atravs da constatao da ccionalidade pela materializao dos seus limites. O dramaturgo exibe sem pudor as costuras da co, que surgem expostas aos olhos de todos. Assim, mais do que o assumir de uma fragilidade, a mostra de elementos habitualmente ocultos insere-se no mbito das inuncias do teatro de vanguarda, questionador das convenes e dos seus limites e assumidamente auto-reexivo.
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O texto A borracha introduzido por uma reexo paratextual, que serve de introduo pea, e onde o autor d conta de algumas das suas preocupaes no que diz respeito representao ao nvel da microgestualidade. Defendendo o recurso a um teatro anatmico, capaz de, com ou sem auxlio de meios tcnicos, amplicar os mais pequenos gestos e movimentos, o autor sublinha a subtileza de elementos habitualmente tidos como mnimos ou irrelevantes. Ao criar uma situao protagonizada por uma personagem com comportamentos prximos dos de um obsessivo-compulsivo, todos e quaisquer movimentos em cena ganham um signicado que tem de ser medido ao milmetro, tornando-se cruciais para o tipo de relaes desenvolvidas e para a forma, inslita, quase obtusa, de ligao da personagem ao mundo e aos outros. A insistncia na opo da designao das personagens como Fulano, Beltrano e Sicrano permite concluir acerca do carcter annimo, mas recorrente, das mesmas, alegorizando, atravs da particularizao, comportamentos gerais. Neste texto, a linguagem (corporal e verbal) reveste-se de um papel especialmente relevante, promovendo inclusivamente a introduo de reexes motivadas pelas teorias psicanalticas que a denem enquanto forma de exprimir a solido essencial. Em termos mais globais, a situao encenada permite concluir como a ausncia do uso da linguagem verbal surge associada loucura e a diculdades de sociabilizao, protagonizadas por Fulano, ao mesmo tempo que sua volta se assistem a variaes sbitas de comportamentos e de postura, utuando as restantes personagens entre a irritao e a conteno, a fria e a compreenso, a crtica e a solidariedade. Apesar das vrias crises de que o texto d conta, as relaes humanas, em gnero e grau variados, parecem poder funcionar como uma espcie de ltimo reduto de uma Humanidade condenada e patologicamente perturbada, numa hesitao no resolvida entre uma leitura optimista ou pessimista do universo recriado. O quarto texto dramtico includo na colectnea introduzido por uma reexo sobre o cinema mudo e as particularidades deste modo de representao que apresenta muitas semelhanas com o universo dramtico aqui recriado. Trata-se de uma espcie de exerccio entre o ensaio e a representao destinada a ser lmada (da a existncia de cortes, de avanos e recuos e de repeties) no qual o lugar de relevo ocupado pela voz que dirige (ou pelo menos tenta dirigir) os actores em cena. Estes representam sem recurso linguagem verbal, mimando, com maior ou menor rigor e empenho, as situaes e as emoes que a voz de comando lhes dirige. A sugesto de que se jogam e confrontam foras antagnicas resulta quer da temtica da pea as sucessivas e frustradas tentativas de regicdio do usurpador do trono quer da forma como, perante o relevo dominador da voz off, de aparncia ditatorial, se revoltam, de tempos em tempos, os actores, ignorando explicitamente as suas directrizes. As indicaes cnicas sublinham, contudo, o facto de aquela voz nunca perder a compostura, parecendo optar por ignorar as pequenas revolues que se vericam no palco, at acabar tambm destituda de funes, numa nova insistncia no carcter ccional da aco, explicitamente
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apresentada como espectculo, numa nova mise en abme, em que cada representao corresponde a uma nova aco, de desfecho aberto e, possivelmente, imprevisvel. A duplicao de objectos e de personagens e a troca de identidades (para alm do disfarce, associado mscara e camuagem, indcios bvios do ngimento e da prpria ccionalidade) permitem a associao deste texto a uma das temticas mais fortemente conotadas com o ps-modernismo11, como o caso do duplo, com implicaes reveladoras ao nvel da crise de identidade. O questionamento sobre o lugar do eu e sobre o papel que desempenha num jogo em que se cruzam foras opostas e dinmicas vrias parecem alegorizar esta crise e consequente incerteza que daqui resulta, apresentando a vida (e tambm o teatro que a imita ou recria) como um exerccio de sobrevivncia (Torrado, 1988: 90). Finalmente, no ltimo texto, Entre parntesis, toda a dimenso verbal da responsabilidade da voz off e de outras vozes que procedem leitura de textos poticos. O relevo dado personagem de quem se fala, como o leitor/espectador perceber mais perto do nal, e cuja histria, ainda que fragmentada, se reconstri aqui. Mais do que uma aco com princpio, meio e m, o texto confronta os seus interlocutores com estilhaos, pontas soltas de um o de vida que se quebrou com o suicdio e para o qual so avanadas vrias hipteses (no conclusivas) de explicao. Assim, apesar de haver alguma predisposio ntima, em resultado de uma sensibilidade particular, de que a presena dos poemas indcio, o contexto poltico e social, em resultado da vigncia da Ditadura e da participao na Guerra Colonial, actuam decisivamente numa espcie de acossamento da personagem, encaminhando-a para a solido, conduzindo-a ao desespero. A leitura dos poemas e o sublinhar de versos, atravs da sua repetio, funciona como uma espcie de mapa para o universo interior da personagem de quem se fala e cujos vestgios nais so alvo da eccia da mulher da limpeza, metfora do esquecimento, possivelmente do branqueamento a que so votadas as consequncias ntimas e particulares, mas igualmente trgicas, da Histria. A incapacidade da personagem de se reconstruir e de se reerguer depois das perdas est tambm reforada no ttulo, uma vez que se revela incapaz de fechar o parntesis aberto com a partida para a frica, em resultado da conspirao falhada. O ttulo do texto aponta, parece-nos, para essa dimenso particular da Histria, para a forma como interfere com o indivduo, num choque de foras desiguais. Pelo que fomos observando, ao modelo clssico da intriga estruturada segundo uma sequncia lgica e completa, fornecendo todos os indicadores de leitura, a modernidade ope um modelo diferente, largement trou, dune criture qui ne sessoue ps fournir du rcit mais qui, si elle est russi, impose ses manques come autant
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Ainda que no exclusivamente, uma vez que o tratamento desta questo assduo em momentos marcantes da histria da cultura ocidental, nomeadamente os nisseculares, tradicionalmente associados a alguma crise e incerteza.
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daimants attirer du sens, exciter limaginaire pour construir ela scne venir (Ryngaert, 2000: 7). Assim, so cada vez mais frequentes os textos cujo sentido fugitivo parece tentar escapar ao leitor ou, pelo menos, adiar o momento de lhe aceder a chave de leitura, fazendo da representao uma espcie de jogo de sentidos onde vrias hipteses de interpretao so avanadas e no conrmadas. Verica-se, em alguns casos, uma espcie de crise existencialista que parece atingir as personagens, subitamente incapazes de agir ou agonizantes perante dilemas (morais ou outros) aparentemente irresolveis. Daqui decorre a ideia da paralisia das personagens que, no caso do Teatro do Silncio, parece converter-se tambm em afasia e que possibilita avanar com a ideia de que a perda de identidade um tema recorrente nos textos contemporneos e, em particular, nas obras em anlise.
3. Teatro Radiofnico
No que diz respeito ao teatro radiofnico, h alguns pontos prvios a estabelecer. Em primeiro lugar, a no uniformidade da crtica quanto a este modo de representao cuja origem est associada a um modo de comunicao especco. Assim, assiste-se recusa de tericos em considerar o teatro-radiofnico como verdadeiro teatro12. Samuel Beckett13, contudo, refere-se aos textos dramticos para a rdio como sendo destinados a vozes e no a corpos. Aqui, contudo, interessa-nos particularmente este gnero e a possibilidade de ser lido enquanto teatro mnimo, uma vez que a interpretao cabe exclusivamente aos elementos sonoros, com particular destaque para a voz e para as mltiplas inexes de que capaz. Assim, so elementos a ter em conta a melodia, a harmonia, o ritmo, a entoao e a gesto das pausas e dos silncios. Em termos de suporte, de acordo com Garca Vzquez (2000), os factores decisivos na traduo sonora da informao audiovisual so, alm da palavra, a msica, os efeitos sonoros, o silncio e a montagem. O signicado dos rudos de fundo ajudam a criar a necessria cor local capaz de assegurar verosimilhana a esta forma de arte que, apesar de tudo, continua fortemente marcada do ponto de vista cronolgico. O caso de Antnio Torrado revela-se, no entanto, paradigmtico, uma vez que a escrita de teatro radiofnico parece ultrapassar as limitaes temporais e fsicas do gnero, descobrindo nesta forma de representao potencialidades que excedem as restries tcnicas que lhe so inerentes. Interrogado, no mbito de uma reportagem sobre o teatro radiofnico contemporneo, sobre a sua ligao a este tipo de representao, Antnio Torrado confessa a
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Confrontar, por exemplo, Barbosa (1982: 147-144). Apud Garca Vzquez, 2000.
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sua paixo recente por este meio, funcionando como uma compensao de algumas frustraes de outras reas do audiovisual, onde no tem tanto espao para criar e dar largas ao que a sua imaginao ditar. Na sua primeira pea para rdio, Histria Natural, deu voz a animais, rvores e a um muro esta personagem interpretada por Ruy de Carvalho , procurando uma fraternidade com a natureza. Com a vontade de tirar o mximo partido da rdio, o autor diz poder criar todo o tipo de universos com os poucos meios que se tem. Torrado diz isto com o -vontade de quem sabe poder escrever monumentais batalhas ou situar a aco num paraso longnquo sem comprometer a concretizao da obra (Mendona, 2001). O dramaturgo acrescenta que h aqui a circunstncia de se virtualizar a palavra como mandante exclusivo da aco (idem), sublinhando a interactividade do meio em questo. Alm disso, considera que a prtica da visualidade que caracteriza o pblico facilita a escrita, sendo apenas necessrias subtis sugestes sonoras. A colectnea de textos dramticos ligados ao teatro radiofnico, Fecho clair e Outros Desfechos (2002), agrupa cinco peas onde a surpresa e o inesperado ocupam um lugar de relevo, propondo, sobretudo no que diz respeito aos desenlaces, situaes imprevistas e solues surpreendentes. A valorizao dos eplogos como momentos decisivos da intriga sublinhada desde o ttulo e do jogo semntico e sonoro que ele prope, nomeadamente entre fecho e desfechos, incentivando uma leitura atenta polissemia. Nesta colectnea, o carcter mnimo decorre, em simultneo, da brevidade dos textos, 4 peas em 1 acto e de serem escritas para teatro radiofnico. Introduzida por um paratexto claricador onde, em primeira pessoa, o autor caracteriza os textos aqui reunidos e apostrofa o leitor a realizar uma leitura que lhes proporcione uma teatralidade que a verso impressa lhes suprime. E redeno que, segundo o dramaturgo, explica o exerccio de conteno ao nvel das indicaes cnicas, incomparavelmente menos densas do que em o Teatro do Silncio. Recorrendo metfora do jardineiro que, para facilitar a viso, apara os arbustos que a impedem, Antnio Torrado parece pesar os prs e os contras da presena das didasclias, perspectivando a leitura enquanto forma de o texto dramtico encontrar o seu sentido nal e no depender exclusivamente da mise en scne. E esta capacidade do leitor de, atravs da sua viso mental, criar uma imagem daquilo que l que, no entender do autor, aproxima a publicao de textos dramticos do prprio teatro radiofnico, a exigir ao leitor/ouvinte a mesma capacidade de, a partir do que l/ouve, construir mentalmente uma imagem. Salientando a dimenso experimental do teatro radiofnico (que muitos denem como minsculo nicho criativo de resistncia visualidade substantiva e adjectiva que nos cerca (Torrado, 2002: 11)), considera-o como um lugar privilegiado para a experimentao e apesar de contar, como nicos artefactos, com a nudez [da] voz, a intensidade da palavra, o impulso da msica, o poder do silncio, no tem de ser um
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teatro amputado, mas outro modo de ccionar os sentidos, libertos da tirania da viso unnime (ibid.). Ao propor, quimericamente (Torrado, 2002: 12), como tambm arma, uma arte teatral diferente, feita de radicalidade potica, onde a voz das coisas sem voz () ganhem direito fala e a pratiquem com a voz interior de cada um de ns (ibid.) est a pugnar pela legitimao de uma forma teatral que, apesar de adjectivada, no se quer assumir como menor, incompleta ou amputada de alguns dos seus elementos vitais. Em Fecho clair, partindo de um encontro absolutamente ocasional e motivado por uma situao to constrangedora quanto cmica, mas absolutamente trivial, o texto desenrola-se com base no dilogo de duas personagens de geraes diferentes. De consso em consso, o leitor deduzir que a identidade de ambas se cruza, ao mesmo tempo que se recuperam as memrias do passado e se preenchem os vrios espaos em branco sobre as vidas das personagens e sobre o que as une e separa. Revisitando um tempo particularmente importante e simblico da Histria portuguesa recente, com as referncias Guerra Colonial e Ditadura, assim como Revoluo de 74 e aos tempos conturbados que se lhe seguiram, o texto, de alguma forma, parece defender a tese, como alis j aconteceu em pelo menos um texto do Teatro do Silncio, de que os homens so consequncia do seu tempo e de que a Histria condiciona a sua actuao, interferindo, de forma muito clara e marcante, nas suas vidas. Texto de forte pendor alegrico, O Tnel tematiza a trade pecado arrependimento/contrio redeno/salvao, exaltando o valor e a dimenso humana e redentora do perdo. Oscilando entre uma dimenso realista e outra fantstica, o texto permite acompanhar o movimento de introspeco da personagem N, metaforizado14 sob a forma da viagem de comboio num tnel inndvel. Utilizando uma das formas mais antigas da dramaturgia o dilogo como forma edicante de aprendizagem e de construo do saber, no texto em questo podero ainda ser lidas inuncias do teatro alegrico vicentino, em particular das moralidades como o Auto da Alma, pela dimenso moralizadora que encerra. Original recriao da temtica das desigualdades sociais e da forma como elas afectam a existncia humana, Doce perfume encena um dilogo estabelecido entre recm-nascidos, sublinhando as gritantes diferenas existentes entre eles, desde a concepo ao nascimento. De alguma forma, o texto parece refutar a tese do senso comum de que, no momento do nascimento, todos os homens so iguais, evidenciando o desequilbrio existente do ponto de vista social e a forma como ele afecta tantas reas da vida humana, incluindo os afectos. A perspectivao da sociedade desta forma, dos
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As aluses de ndole metafrica so assduas e visveis ao longo de todo o texto. As mais pertinentes esto associadas ideia da viagem, do tnel e da escurido que o caracteriza, assim como da prpria cegueira. Veja-se, alis, como N necessita de deixar de ter viso para melhor compreender e ver o rumo da sua vida e das suas aces.
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seus mecanismos de funcionamento e, sobretudo, das suas injustias, assume contornos trgicos, sobretudo pela forma desapaixonada, quase crua, como parece tratar a temtica da morte, em especial a infantil e a materna, estabelecendo uma espcie de crculo entre as duas extremidades da existncia humana. No est ausente, contudo, a valorizao da componente afectiva, em particular da ligao entre me e lho, cuja associao olfactiva retomada como ttulo do texto, para alm de motivos como a dor de pensar, o medo de existir, entre outros. O Calendrio, texto que encerra a colectnea, , possivelmente, aquele onde, de forma mais evidente, se cruzam uma vertente cmica e outra trgica, ao servio da ridicularizao do comportamento humano, dando conta das mltiplas contradies que o caracterizam. Uma situao episdica, de contornos realistas, como a visita a um barbeiro tradicional portugus, permite a revisitao do motivo do marido enganado, cuja ingenuidade e conana inabalveis, prximas da obsesso e da loucura, fazem dele um tipo psicolgico com tradio na literatura tradicional e nas farsas vicentinas. A reactualizao deste topos e a conjugao de diferentes tipos de cmico, em particular o de situao e o de personagem criam um texto que aposta tambm no carcter inesperado do nal como forma de surpreender o leitor e castigar o marido e o cliente. De mltiplas formas e em diversos registos, os textos desta colectnea parecem procurar cristalizar, atravs da xao de instantes, o absurdo da existncia humana, dando conta dos diferentes matizes que a colorem. Assim, a partir de uma potica apostada no fragmento, perspectivada, sob diferentes prismas, a condio humana, sobretudo no que diz respeito a uma dimenso oculta, viciada, que o teatro, neste caso atravs da voz, parece querer iluminar. Em Algum e Mais Trs (2001a), o autor agrupa quatro textos que, desde o promio paratexto claricador e contextualizador caracteriza como assumidamente distintos, no que ao tema e forma diz respeito. O primeiro, Algum, revisita o universo garrettiano, propondo uma continuao para a tragdia mais conhecida do autor portugus, Frei Lus de Sousa. Destaque-se o dilogo intertextual com aquele texto de Almeida Garrett e a forma como Antnio Torrado consegue recriar as personagens e a ambincia que suporta a intriga. Revisitao de elementos conotados com o mito sebstico, o texto pode ainda ser lido luz da inuncia do drama histrico, no se afastando completamente da inteno comemorativa que o origina. A vertente intertextual est tambm presente na ltima pea da colectnea, Mestre Gepeto, onde so discutidos vrios conceitos ligados educao, relao entre pais e lhos, aos afectos e ao prprio processo de crescimento e envelhecimento humanos. Teia complexa de sentimentos e emoes contraditrias, a relao entre Pinquio e o seu criador, Mestre Gepeto, alegoriza, de alguma forma, a relao do homem com deus ou com a prpria ideia da criao, problematizando as ideias de individualidade, de originalidade de cada indivduo.
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Palavras h muitas, por sua vez, aproxima-se de um exerccio dramtico e verbal em torno da lngua e das palavras, mais ou menos comuns, que a integram. As palavras constituem, assim, tema e forma do texto, sendo alvo de reexes que sublinham e valorizam as suas dimenses fnica e semntica, mas tambm a sua leitura implcita, o universo de sugestes e de no-ditos que, a par das palavras, interferem na comunicao. A pequena intriga que o dilogo entre as duas mulheres permite reconstituir apenas o pretexto para uma reexo mais profunda sobre o signicado e at a utilidade comunicativa das palavras e sobre a forma como a linguagem decisiva na apropriao do sentido do mundo e na interaco do homem com ele e com os outros. Em Que Dia! jogam-se (e digladiam-se!) os conceitos de verdade e mentira, realidade e efabulao, na relao esgotada e decadente de um casal. A imaginao delirante do marido e as intrigas que cria para justicar a sua ausncia mulher esbarram com o conhecimento que esta tem da realidade e da verdade que ele lhe esconde. O leitor/espectador , assim, confrontado com incapacidade de ambas as personagens enfrentarem, com verdade e franqueza, a realidade onde vivem, optando, em contrapartida, por viver num mundo de co. Mais uma vez, o quotidiano e o esgotamento de algumas das suas frmulas e convenes que motiva a escrita dramtica e, sobretudo, a reexo. Em termos globais, verica-se, nestes textos produzidos para o teatro radiofnico, uma signicativa evoluo ao nvel da presena das indicaes cnicas que, nas publicaes mais recentes, deixaram de ocupar o espao absolutamente central dos textos do Teatro do Silncio. Constata-se o relevo e a importncia da multiplicidade de didasclias e de indicaes de encenao nas peas de Antnio Torrado que, deste modo, parece hesitar entre as funes de dramaturgo e encenador, ocupando-se de ambas actividades logo no momento da escrita /criao literria. Assim, de alguma forma, o leitor transformado, tambm por esta via, em espectador, uma vez que lhe devolvida uma visualidade que o texto, por si s, no contempla. Ao nvel da escrita contempornea, esta uma caracterstica que tem vindo a ser sublinhada por alguns tericos ao amarem que certains auteurs accordent une place considrable aux indications scniques, comme sils dnissaient lavance la forme de reprsentation, ou comme sils ne pouvaient imaginer le texte des personnages indpendamment du cadre dans lequel il serait produit (Ryngaert, 1996 : 41).
4. Concluses
Depois das vrias linhas de leitura e anlise trilhadas neste estudo, possvel perceber o lugar absolutamente central que a produo dramtica desempenha na obra de Antnio Torrado e at mesmo nas suas reexes de ndole metaliterria. Nos seus textos desembocam muitas das reexes, correntes e escolas que, nas ltimas dcadas,
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procuram uma espcie de redenio da teatralidade, um pouco semelhana do que aconteceu tambm com o romance, na tentativa de integrar os contributos das vanguardas teatrais. Merece destaque, de acordo com a leitura defendida, o profundo lirismo que resulta de muitos textos que assentam numa linguagem contida, apostada na sugesto e no autocontrolo, sublinhando a importncia de outros elementos da representao (movimentos nos e grossos, postura, expresso facial, luz, meios tcnicos, etc.) que ganham considervel relevncia. Regra geral, o dramaturgo aposta num nmero reduzido de personagens em cena que concentram em si, nos seus movimentos, gestos, expresses, toda a aco. As designaes, mais ou menos generalizadas, atribudas s formas teatrais vanguardistas, sobretudo a partir da segunda Guerra Mundial, sublinham a dimenso desconstrutiva das manifestaes dramticas, incapazes de darem conta da realidade humana sua contempornea, marcada pela incoerncia e pelo cepticismo. As experincias inovadoras (porque questionadoras da tradio do teatro clssico) eram, contudo, consideravelmente anteriores e os estudiosos da histria do gnero so unnimes na evocao da pea Ubu Rei, de Alfred Jarry, cuja estreia, em 1896, lanaria as sementes dos movimentos dramticos de vanguarda posteriores, em particular do teatro do absurdo. Avesso a catalogaes fceis e redutoras, o teatro contemporneo parece fugir a classicaes de gnero que se sucedem a um ritmo veloz mas de eccia reduzida. Com razes no teatro invisvel, associado aos happenings, mas tambm ao teatro experimental e de vanguarda, a representao contempornea, frequentemente apodada de anti-teatro, resulta, como cremos a anlise ter deixado patente, num teatro limite, na medida em que aposta na ideia de fractura, questionando a escrita teatral e a prpria representao e os seus aspectos convencionais.
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Resumo: objectivo deste estudo proceder caracterizao da produo dramtica de Antnio Torrado a partir da noo de teatro mnimo. Assim, sero alvo de anlise alguns dos seus textos mais breves destinados ao pblico infantil, os textos para teatro radiofnico e ainda uma colectnea de textos dramticos, O Teatro do Silncio, cuja conteno ao nvel da linguagem verbal utilizada em palco permite l-la enquanto exemplo de forma mnima. Abstract: The objective of this paper is the characterisation of the dramatic works of Antnio Torrado from the perspective of minimalist theatre. The focus of this paper will be on some of his shorter texts aimed at children, radio plays and a collection of dramatic texts called Teatro do Silncio, whose contained verbal discourse allows them to be read on stage in a minimalist fashion.
Outros estudos
Escrever, neste lugar, ser arrebatar o inerte, extasilo. O inerte aqui, simultaneamente, a linguagem, com os seus tufos semnticos, e o leitor que ainda-no-sabe. Inerte no ainda a palavra justa, porque dir-se-ia amorfo. Ora o inerte que se extasia um inerte palpitante, aquele que tambm no deduz, mas est esperando. Augusto Joaquim
Palavras-chave: Llansol, interseco de gneros, narratividade, textualidade, cenas fulgor.1 Keywords: Llansol, genre intersection, narrativity, textuality, cenas-fulgor.
Maria Gabriela Llansol Nunes da Cunha Rodrigues Joaquim nasceu em Lisboa em 24 de novembro de 1931 e dedicou-se ao curso de Direito (1955) e Cincias Pedaggicas (1957) antes de marcar o sculo XX com original criatividade. A sua viso aguda que recolhe elementos de naturezas diversas resiste ao sistema das massicaes e faz conuir em seu universo literrio, muitas vezes, a insignicncia da realidade e a elaborao ccional. Essa resistncia ao cnone inaugura uma linguagem repleta de imposturas e coloca-a em lugar de destaque entre os escritores portugueses contemporneos. Isso se comprova pelo reconhecimento da crtica que a galardoou duas vezes pela Associao Portuguesa de Escritores (APE), em 1990 com Um beijo dado mais tarde e, em 2006, com Amigo e amiga curso de silncio de 2004. A sua escrita transita pelas artes e promove um intenso dilogo que desestabiliza as estruturas xas dos moldes pico, lrico e dramtico. Desse modo, as tentativas que se prestam a delimitar as suas obras enfrentam limites inslitos e transbordantes. Sua composio nega qualquer leitura serena, obrigando-nos a percorrer os que se entrelaam e se enredam numa arquitetura que transcende a palavra e rompe com a
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Com o apoio e colaborao da Professora Doutora Snia Helena de O. Raymundo Piteri, professora de Literatura Portuguesa na UNESP de So Jos do Rio Preto, So Paulo.
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tradio de um pensamento contnuo. Estamos diante de uma narrativa que no quer se desenvolver tematicamente ou ser desencadeada por aes que comuniquem, pois promove um intenso processo de envolvimento ou ns construtivos que delineiam o que a autora chama de cenas fulgor:
O meu texto no avana por desenvolvimentos temticos, nem por enredo, mas segue o o que liga as diferentes cenas fulgor. H assim unidade, mesmo se aparentemente no h lgica, porque eu no sei antecipadamente o que cada cena fulgor contm. O seu ncleo pode ser uma imagem ou um pensamento, ou um sentimento intensamente afectivo, um dilogo. (Llansol, 1985: 130-131)
O trecho selecionado discutido pelos crticos como uma forma de adentrar o labirinto de Llansol, mas devemos estar atentos com as categorizaes que dele possam surgir. A prpria autora se vale de estratgias para nos despistar do seu modus operandi, pois dizer que no sabe e que pode ser no se limitar e no impor contemplaes denitivas que se prendam exclusivamente s suas consideraes presentes em Um falco no punho. So tantos ous e tantas variveis que o ncleo de cada cena fulgor se expande e depende da transformao do leitor em legente. Pedro Eiras em Esquecer Fausto pautando-se em carta escrita por Llansol a Eduardo Prado Coelho transcreve: o texto precisa de encontrar no o leitor abstracto, mas o leitor real, [...] legente que no o tome nem por co, nem por verdade, mas por caminho transitvel (Eiras, 2005: 539). Temos um grande impasse porque os caminhos no so retilneos e a sinuosidade de cada linha apresenta um texto multifacetado, e, dessa forma, transitar torna-se, s vezes, uma tarefa to rdua, que prefervel para muitos leitores considerar a obra llansoliana como impenetrvel. Tcnica e talento associam-se no entrelaamento dos discursos, os gneros so esfumaados e a linguagem transpe seus prprios limites: Fiquei a saber que o dom potico a lngua tocada pela expanso do universo, que este caminha para o vivo (Llansol, 2000: 21). A palavra imbuda do dom potico potencializa-se e ganha contornos lricos desde a sua primeira publicao Os pregos na erva (Llansol, 1962), que, embora considerado uma coletnea de contos, est impregnado de poesia, havendo uma explorao do signicante em contraposio ao signicado. Segundo Pedro Eiras perante o perigo dissimulado de pregos camuados na erva, confundidos na aparncia da segurana, h todavia menos deciso em situaes do que expectao (Eiras, 2005: 592). O diferencial da escrita de Llansol reside justamente no eixo da combinao dos elementos: as palavras nos so familiares, mas os deslocamentos, as associaes inusitadas, tornam-nas singulares. Os signos, ao serem retirados de seu uxo normal, resistem funo comunicativa, construindo o universo potico de Llansol.
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Selecionamos o texto A pedra que no caiu (Llansol, 1987: 47-56), um dos treze contos do seu primeiro livro, com o propsito de vericarmos a recusa da narratividade e dos modelos cannicos por meio de uma linguagem dissimuladora e envolvente, permeada pelo fulgor da lrica. Esse conto desprende-se da supercialidade da lngua dicionarizada e corriqueira, foge a qualquer tentativa de aprisionamento em gneros e liberta-se do Campo dos Prisioneiros (Llansol, 1987: 51), para adquirir autonomia potica. Ao focarmos o nvel narrativo, contemplamos um enredo que no se desenvolve enquanto ao, e isso se detecta j a partir do seu ttulo, que enfatiza a negao no caiu e d preferncia palavra pedra, um slido que condensa em si toda a fora da inrcia. A prpria personagem destaca no conto esse trao de imobilidade pertencente ao signo: uma pedra no cai sozinha, sem que a empurrem (Llansol, 1987: 53) e uma pedra no cai sozinha, [...] como se morre de morte natural (Llansol, 1987: 53). Negar a progresso narrativa no um procedimento simples, embora a histria narrada parea comum: Ins e Cristina conversam sobre a falta de acontecimentos dentro da casa, de repente, escutam um barulho e encontram um prisioneiro que pede abrigo. Ao negarem ajuda, ele foge e elas voltam para o quarto. Terminamos a leitura com a sensao de vazio, porque o aspecto linear, ou seja, progressivo, esfacelado e o nada torna-se matria de uma composio textual que no nos conduz a um desfecho, mas nos convida a mergulhar nas artimanhas da textualidade:
[...] operar uma mutao da narratividade e faz-la deslizar para a textualidade um acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor, nos possvel. Mas que pode nos dar a textualidade que a narratividade j no nos d (e, a bem dizer, nunca nos deu?). A textualidade pode dar-nos acesso ao dom potico [...]. (Llansol, 1994: 120)
Esse excerto reitera a preocupao da autora com o material literrio que vai muito alm do aspecto narrativo, pois o conto j no conta e se liberta da noo de acontecimento e do seu trao factual, porque a representao cede lugar apresentao do signo, de tal forma que sob o vu de uma aparente simplicidade, deparamo-nos com o desejo de explorar ao mximo o potencial da linguagem. No captulo sobre Onde vais, drama-poesia?, presente no livro O fulgor mvel, Jos Augusto Mouro discute essa repulsa da linearidade nas narrativas de Llansol, iniciando pelo enfoque da estrutura cienticista: A lgica que rege o discurso acadmico linear, hierrquica, separvel, carceral (Mouro, 2003: 24-25). Para o crtico, a autora elabora a sua obra de maneira distinta e moderna, centrada no movimento, proporcionando aos seus textos um carter uido e hbrido. Mouro enfatiza a circularidade deleuzeana e a repetio com diferena, como forma de libertao das amarras textuais: os signos circulam, repetem-se na diferena pura, em si mesma, fora de toda
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a progresso, de qualquer dialtica integrativa, ou nalidade, num campo de foras e de pequenas sensaes (Mouro, 2003: 24-25). Em A pedra que no caiu acreditamos ser possvel associar a iniciativa declarada da escritora de moldar a metamorfose lrica moderna, tendo em vista que a transformao do mundo e da lngua se d por meio de uma escrita embebida na experimentao. A circularidade e o obscurantismo de suas composies dicultam a nossa capacidade de percepo, deixando-nos abismados e perplexos, uma vez que lanam um constante desao que agua o nosso imaginrio num processo que envolve o desatar de os e o enovelar de uma tessitura imbuda de imprevisibilidade. Considera Maria Joo Cantinho, no artigo Imagem e tempo na obra de Maria Gabriela Llansol (http://www.ucm.es/info/especulo/numero26/llansol.html), que, embora os textos de Llansol paream desconexos ao romper com a unidade narrativa, a coerncia sua linha decisiva. num espao de fulgurizao que a sua escrita descontextualiza e anula a cronologia temporal, estabelecendo a cena fulgor, como um processo de irradiao que fragmenta e d autonomia s partes textuais, de modo a mostrar uma realidade descontnua e composta por imagens que rompem com o comum e afastam a composio metafrica ou simplesmente anloga. Precisamos estar atentos, porque esse rompimento com a representao no implica total abandono da esfera narrativa, surgindo como uma proposta que tensiona elementos no estanques, assim, fazer e pensar literrios so simultneos. Ao dobrar-se sobre si mesma, a linguagem comunica o que aparentemente negado, ou seja, enquanto a comunicao entre as personagens no acarreta conseqncias, a combinao das palavras promove um intenso dilogo entre os gneros, especialmente, como j dissemos, entre a lrica e o conto. Esse processo de liricizao da narrativa pode ser observado, a ttulo de exemplicao, no trecho que segue:
Um desejo oblongo azula, vagamente pressentido, o silncio da sombra incerta. No quarto, a realidade a altura, o comprimento e a largura, o espao limitado ocupado pelos mveis e o tapete (Llansol, 1987: 40, grifo nosso)
Ressaltamos em negrito a lateral alveolar /l/ que se alonga e se repete, assim como as vogais nasais e a consoante nasal m. A sonoridade e o ritmo frasal se estabelecem pela incessante explorao de alguns fonemas, como o r e as fricativas /s/ e /z/. A autora esmia os pares mnimos extraindo a tenso surdo/sonoro, de tal maneira que a alternncia das oclusivas /p/ e /b/, /t/ e /d/ e /k/ e /g/ movimenta a composio imagtica enquanto a elaborao artstica extrapola os traos distintivos das unidades mnimas da lngua. Llansol manipula vocbulos que culminam em rimas internas azula, altura, largura, espao limitado ocupado-, e se aproximam da estrutura circular da linguagem potica. O aspecto ruidoso e perturbador, instaurado a partir dos
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fonemas e das slabas, acentuam a angstia da espera pelo devir. As repeties sonoras se contrapem ao vazio do espao e ao prprio signo silncio enquanto circunscrevem uma atmosfera tediosa e sufocante. A articulao meticulosa dos sons acarreta o tom montono do enredo, solo em que sempre recomeava a monotonia verde (Llansol, 1987: 50), pois, no texto, a histria narrada, como vimos, no conta grandes peripcias, o desejo e no as aes de Cristina ou Ins que esto em foco, so os movimentos sutis das palavras que se repetem e se desdobram contrapostos descrio da inrcia que se tornam objeto de fascinao. Desejo de quem l, de quem escreve, da personagem ou da prpria escrita? No importa, porque at a manifestao do signo desejo, associada sintaticamente ao artigo um indene e anuncia uma linguagem que escapa s nossas tentativas referenciais. Assim, todas as dimenses comprimento, altura e largura ganham contornos polissmicos, o espao no apenas o quarto descrito, ou uma categoria narrativa, pode ser o prprio conto, ou seja, o espao textual com poucas descries mveis e tapetes, acontecimentos mais um dia morto em nossa casa vazia (Llansol, 1987: 49) e iniciativas No precisamos de vender-lhes nada. No modiquemos nada (Llansol, 1987: 50). Llansol minimiza os recursos narrativos e potencializa cada uma de suas escolhas, trazendo consigo a fora do estranhamento, to caro aos formalistas e a Julio Cortzar em Valise de Cronpio: A gnese do conto e do poema, , contudo, a mesma, nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar-se, que altera o regime normal da conscincia (Cortzar, 1993: 234). Se a destreza do contista, segundo Cortzar, est em saber guardar a tenso desde as primeiras linhas, semelhante ao poeta, que se vale do princpio da economia de meios, podemos sugerir que na obra de Llansol essa tenso atinge no s o texto, pois alm de combinar os elementos at o m da leitura, o conto da autora deixa-nos tensos no pelo desfecho que encerra, mas pela ausncia de progresso narrativa que nos nocauteia. A singularizao se d, portanto, no nvel do inesperado e do arrebatador, o estranho deixa de ser apenas o que nos leva contemplao do texto para nos provocar como leitores a percorrer caminhos incertos, visto que nossas certezas de conhecimento de mundo so abaladas. Desalojados de nossos lugares confortveis, somos obrigados a adotar uma postura crtica diferente, porque a teoria literria tradicional no consegue abarcar essa liberdade de criao que se desenraza das estruturas convencionais. Forma e contedo neste conto convergem no para o acontecimento, pois a linguagem desvincula-se do aspecto representacional e encontra, na imagem, o ncleo impactante da cena fulgor. Octavio Paz em O arco e a lira cogita inmeras signicaes para o termo imagem, entre elas, vulto, representao, gura (real ou no) evocada pela imaginao, ou ainda, toda a forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o
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poeta diz e que unidas compem um poema [...] comparaes, smiles, metforas, jogos de palavras, paronomsias, smbolos, alegorias, mitos, fbulas, etc (Paz, 1987: 119). Paz observa o fato de que cada imagem preserva a pluralidade de signicados, numa dimenso que abarca as oposies de muitos deles, sem faz-los desaparecer, sem suprimi-los. Dessa forma, h uma reconciliao do que dspar, num processo de exaltao das potencialidades das palavras: toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto , submete unidade a pluralidade do real (Paz, 1987: 120). Contrariedade e dinamismo movimentam a composio imagtica de Llansol, que promove o encontro dos contrrios: real x irreal a realidade a altura e Ins sentia a plenitude do existir inerte: [...] os retratos de coisas irreais porque a nenhuma delas acontecera (Llansol, 1987: 49), imobilidade x movimento O co acordou e apoiou a cabea na mo de Cristina que repousava sobre a dobra do lenol, mas este movimento no constituiu um som que percutisse a imobilidade que continuava (Llansol, 1987: 51) e luz x sombra Fechou os olhos e imergiu na escurido que o silncio da luz (Llansol, 1987: 49). Matria pulsante o poliedro construdo pela autora, que faz do seu texto um slido capaz de difratar todo o fulgor das palavras:
Cristina e Ins esto em face do existir slido, como um cubo ou como um prisma, sem o qual no seria possvel reectir-se a luz da lua que baloia apoiada na janela. (Llansol, 1987: 48) Viu a sua face espera, sobre o travesseiro, e o sobressalto do seu corpo, logo que o co ladrava. (Llansol, 1987: 50) Ins imaginou-se em face do espelho, com a concavidade de uma das mos sobre o cabelo que ia ser visto e que assim se libertava da qualidade de inerte, pela admirao criadora de outros olhos. Depois pensou na coleira que era o nada da sua casa vazia. s vezes pressentia-a como um espao espera que nele criassem qualquer coisa. (Llansol, 1987: 50)
A sonoridade novamente destacada pela predominncia das fricativas e da consoante l, que desencadeiam um ritmo encantatrio, seja pela alternncia dos pares mnimos, seja pela experimentao silbica dos segmentos que se repetem com diferena, associando-se a novos vocbulos, como o caso de luz-lua, sobre-sobressalto, espelho-espao-espera, com a-concavidade-qualidade, casa-coisa e vazia-vezes. Em Cristina e Ins esto destacamos em negrito a repetio das codas que participam da formao da outra palavra, como se o nome Ins oscilasse entre o nal do nome Cristina e o incio do verbo estar. Dessa forma, baloiar torna-se uma ao que no s sugere como tambm apresenta e compacta os movimentos da escrita.
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Os matizes poticos no se encontram apenas nos fonemas ou na construo das slabas, pois a palavra no conto explorada em toda a sua dimenso polissmica, adquirindo feies mltiplas, como o caso de face, utilizado na sua forma substantiva, sinnimo de rosto, e tambm na locuo em face de (diante de). No h supresso de signicados, a tenso face x em face de acentua o carter inerte das personagens e as coloca em frente do signo espera. Podemos observar que face aponta no s para o existir das personagens, mas tambm para a textualidade, que fortemente marcada por associaes geomtricas: cubo (seis faces iguais), prisma (vrias faces), slido, altura, comprimento, largura, concavidade e oblongo. Em um outro trecho A colcha da cama de Ins pendia para o cho e unia-se ao tapete numa pequena gura triangular. O co acordou e apoiou a cabea na mo de Cristina [...] (Llansol, 1987: 52) , os trs elementos colcha-cho-co desdobram-se em som e imagem, sugerindo alm da gura, um tringulo fnico, quase anagramtico, pela alternncia da oclusiva, da fricativa e das vogais. A construo das guras incessante dentro do texto, de modo que poderamos citar inmeros outros desenhos, como a luz que entra pela janela do quarto e absorvida pelo caixilho projetando uma cruz, ou a claridade da lua e dos holofotes que penetram a casa formando um ngulo obtuso. As imagens proporcionam formas plsticas aos sons, assim, a coleira repete-se O arame farpado uma coleira (Llansol, 1987: 51) e [...] pensou na coleira [...] da sua casa vazia (Llansol, 1987: 50), entrelaando os espaos, casa e Campo dos Prisioneiros, e a angstia das personagens pela impossibilidade de evaso. A coleira traz em si o impacto geomtrico do crculo e das repeties que o texto encerra:
Para ela, a viso era o sentido primordial na captao da permanncia circundante. A sua vida tinha sido uma sucesso de percepes pictricas, em que era possvel a visualizao de todas as abstraes e at mesmo das realidades apreendidas atravs dos restantes sentidos. Via que o cheiro tem uma forma, que o som um gesto e que o tacto tem uma cor. Na infncia, ao contemplar um evnimo em que vira uma lagarta transformar-se em borboleta dissera: Cheira a borboleta. E o cheiro da borboleta (azul, encarnado, amarelo) existira, criado pelo desejo. (Llansol, 1987: 50)
Podemos perceber nessa passagem o uso constante dos verbos ser e ver, que se arrastam por todo o texto, reiterando, mais uma vez, o aspecto circular, a permanncia circundante, o no movimento. Se, por um lado, esses verbos no implicam dinamicidade, por outro, participam da construo de imagens sinestsicas, reetindo, como um prisma, diversas cores que saem do mesmo objeto, a palavra. Dessa maneira, at os verbos so desenraizados de seus traos tpicos, ao serem tocados por um dom que subverte o comum.
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A coleira traduz a idia de aprisionamento, enquanto a borboleta surge como uma gura de libertao e metamorfose, deslocando os signos de sua convencionalidade: no simplesmente a lagarta que vira borboleta, mas o cheiro que se decompe em azul e amarelo e adquire forma pela percepo criativa. Alm das imagens que se multiplicam a cada leitura, outra aproximao possvel entre prosa e poesia est na postura adotada pelo narrador llansoliano, pois este tambm se assemelha ao poeta moderno na medida em que participa como o operador da lngua, como artista que experimenta os atos de transformao de sua fantasia imperiosa (Friedrich, 1978: 17), cultuando a palavra em suas entranhas plurissignicativas. Visualizamos, dessa forma, o dom potico a que se refere Llansol, num estilo que alinhava a mistura dos elementos heterogneos. Segundo a escritora, uma co no pode ser simples, o encontro inesperado do diverso (Llansol, 1984: 18). No conto de Llansol as palavras no querem dizer ou se explicarem, elas simplesmente so arrebatadoras em sua essncia. O campo da narratividade aprisiona e provoca construes subversivas que desencadeiam a repetio dos fonemas, das slabas, dos signos e da identidade dos contrrios, numa motivao que extrapola o signicado de possveis insignicncias. Assim o nada e a recusa marcam o texto com sombras e silncio, enquanto as imagens difratam o fulgor da lrica, exaltando som e sentido. Entendemos que pela explorao intensa do poliedro da linguagem que o conto se constri, ou seja, pela mobilidade textual que contrasta com um enredo no qual no contemplamos devir nem expectativa de mudana, que a textualidade acontece e desdobra o ato da escrita. A pedra que no caiu ecoa a imagem inerte da espera por acontecimentos, lapidando, simultaneamente, a associao pedra-palavra, num movimento que metamorfoseia a tentativa de fuga, seja pelo prisioneiro que no encontra abrigo, seja pela escrita que em sua impostura da lngua nega os moldes xos, fazendo aorar a conscincia artstica.
Bibliograa
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RESUMO: A escrita de Maria Gabriela Llansol desestabiliza as estruturas xas dos gneros literrios, promovendo um intenso dilogo entre eles. No conto A pedra que no caiu (Os pregos na erva, 1962) identica-se um enredo desprovido de aes em contraposio a uma estrutura que exalta os sons e explora as potencialidades do texto por meio das cenas fulgor (expresso da autora). H, portanto, um deslocamento da narratividade para a textualidade que nos convida a encarar a pedra-palavra como um poliedro capaz de difratar inmeras imagens. ABSTRACT: Maria Gabriela Llansols writing destabilizes the xed structure of literary genres, allowing an intense dialogue among them. In the short story A pedra que no caiu (Os pregos na erva, 1962) it is possible to notice an action-free plot over a structure that exalts the sounds and explores the potentiality of the text trough the cenas-fulgor (in the authors own expression). Therefore, there is a dislocation of narrativity towards textuality that invites us to face the stone word as a polyhedron able to emanate innite imagery.
Palavras-chave: Antnio Ramos Rosa, imagem literria, erotismo.1 Keywords: Antnio Ramos Rosa, literary image, eroticism.
O poema A or que ainda no nasceu na pgina, de Antnio Ramos Rosa (Rosa, 2001: 42-43) se inicia com um verso emblemtico que j anuncia a movimentao de todo o texto de encenar a escrita potica. Desse modo, ele no poderia ser entendido apenas como metalinguagem, mas como uma escrita que abre seus procedimentos aos olhos do leitor e convida-o a construir as imagens e segui-las durante toda a leitura. O verso inicial se potencializa ao se estender para alm da linha, pelo recurso do encavalgamento, na tentativa de prosseguir na explorao das pecularidades do objeto que pretende descrever. Desse modo, o no acabamento e o adiamento da criao do signo or, dentro do universo do poema, mostrado pelo sentido parcialmente incompleto do verso que se prolongar por toda a estrofe, num jogo de desvendamento e ocultao. O verso ainda parece centrar-se sobre a signicao da iminncia, presente em expresses como ainda no, as quais, aliadas aos outros elementos dos versos, se colocam como negao e promessa. A estruturao da estrofe, feita a partir de versos livres, se por um lado no permite a averiguao de acentos xos, por outro, mostra novamente a necessidade de um leitor que aceite participar do jogo que ela prope e possa declamar o texto potencializando as palavras as quais julgar mais importantes (Goldstein, 1994: 37). De
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Com o apoio e colaborao das Professoras Doutoras Snia Helena de O. Raymundo Piteri e Maria Helosa Martins Dias, professoras de Literatura Portuguesa na UNESP de So Jos do Rio Preto, So Paulo.
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outra forma, no entanto, a sonoridade do poema se faz presente de uma maneira mais pontual na repetio das vogais nasais nos dois primeiros versos da estrofe que inicia o poema. Essa insistncia em explorar a nasalidade acabaria por sugerir o alongamento dos versos como que j mimetizando a busca pela formao da palavra potica. A repetio, como recurso explorado em todo o texto, tambm aparece em seguimentos determinados, focalizando, na maioria das vezes, a negao e a armao. O que se v uma troca entre o ser e o no ser, realizada pelas locues no ou j no , seguidas de signos que formam uma imagem potica; assim, a negao e a armao se equivalem, rearmando o desejo de realizao/concretizao do poema pela escrita. De uma maneira geral, ao relacionar os primeiros versos do poema com os restantes, nos lembramos das armaes de Barthes em Aula (1980) a respeito do poder impregnado na lngua. Segundo ele:
[...] a lngua entra a servio de um poder. Por um lado, a lngua imediatamente assertiva: a negao, a dvida, a possibilidade, a suspenso de julgamento, requerem operadores particulares que so eles prprios retomados num jogo de mscaras linguageiras [...] Por outro lado, os signos de que a lngua feita, os signos s existem na medida em que so reconhecidos, isto , na medida em que se repetem; o signo um seguidor, gregrio; em cada signo dorme um monstro: um esteretipo: nunca posso falar seno reconhecendo aquilo que se arrasta na lngua. (Barthes, 1980: 15)
Em seu texto, o crtico prossegue na reexo de que a nica forma de combater esse poder dentro da prpria lngua, num exerccio que ele chamou de trapaa salutar (1980: 16), modo como ele entende a literatura. Pensando a respeito do trecho de Aula (1980) escolhido e tendo em mente o poema que analisamos, percebemos o trabalho com a linguagem de forma a subverter os poderes da lngua. Os signos presentes na poesia diferem-se daqueles utilizados na comunicao corrente: eles no so proferidos de modo a serem percebidos como instrumento para se chegar a um sentido ou como meios de se armar as mesmas coisas. No poema, a repetio sempre ir reatualizar os signicados da palavra, alm de produzir um efeito de singularizao que faz com que o leitor contemple esse novo objeto de forma diferenciada. De outro modo ainda, a repetio presente na escrita potica no teria como objetivo a xao de um sentido, mas produziria a sensao de seduo pela reiterao de sons que lhe conferem um ritmo alternado, de retorno e avano. O impedimento percebido na linguagem corrente da expresso das sentenas que fujam da assero no vericado na linguagem literria. No poema lemos a tenso nascida do paradoxo da aproximao dos termos ser e no ser, como a tentar criar um intervalo entre as armaes absolutas que tentam denir a imagem da or. A possibilidade da contradio difere a linguagem literria da linguagem para a comunicao, subvertendo as noes de clareza da lngua e denunciando as mscaras utilizadas pela
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a imagem no poema a flor que ainda no nasceu na pgina, de antnio ramos rosa
ltima para esconder o carter arbitrrio do signo e a articialidade dos posicionamentos encontrados em cada discurso no-literrio. Dentro do texto, a repetio da palavra or gera sua formao como imagem potica no cristalizada e em constante movimento. Essa movimentao pode ser contemplada visualmente no poema ao se enxergar o signo or em diversos pontos da pgina impressa. A diferenciao armada entre a or e seu referente desdobra-se num intervalo: a or como imagem ou objeto esttico que, no correspondendo ao real nem ao signo na comunicao verbal, preservaria o sabor do primeiro e a concretude do segundo e devolveria a viso do objeto em si e da palavra em suas potencialidades (Chklovski, 1975: 45). As imagens que armam a existncia de um intervalo entre o objeto artstico que se cria e seu correspondente na realidade (No ainda uma or de palavras e j no a or vegetal/ mas nesse intervalo a or do desejo) nos chamam a ateno ao lembrar uma denio de imagem trabalhada por Bosi em O ser e o tempo da poesia (1977). Nela, o autor arma que A imagem um modo de presena que tende a suprir o contado e a manter juntas, a realidade do objeto em si e sua existncia em ns. O ato de ver apanha no s a aparncia da coisa, mas alguma relao entre ns e essa aparncia: primeiro e fatal intervalo (Bosi, 1977: 19). Assim, o ser e o no ser da linguagem potica, alm de atrair o leitor, revela a relao do eu-lrico com os elementos que articula. Ainda dentro do contexto que seguimos, entendemos que o poeta, como ser representado no poema, tem, na leitura, uma existncia plena apoiada em sua tentativa de realizao da poesia, se envolvendo de maneira quase que inseparvel nas imagens que vai modulando. Bosi, em outro momento de seu livro, defende o fenmeno verbal como um modo de franquear o intervalo que medeia entre corpo e objeto (1977: 28). Tal armao nos leva a reiterao do lugar da escrita potica como presente naquele intervalo a que o eu-lrico se refere. Um lugar que compartilha negao e armao sem optar por nenhum deles e existe como espao de relao entre o eu e a palavra e ainda entre o eu e o leitor. O jogo de armao/negao presente em todo o poema, no ainda e e j no , tambm impede a estagnao do discurso e rearma-se enquanto busca. O erotismo que aora da investigao do objeto e da sua focalizao por diversos campos, estabelecendo as relaes or-pgina, or-ramo, or-palavra, or-vegetal, alm de possibilitar o intercalar das diferentes naturezas do objeto, enquanto signo ou enquanto realidade, se revela de maneira mais acentuada na locuo or do desejo, que tambm nos alerta a outros signicados. A locuo nos remete a simbologia da palavra or ligada ao feminino, smbolo que ser retomado em outras estrofes do poema. Pela movimentao da linguagem literria no texto de Antnio Ramos Rosa, pela tentativa de explorao dos sons e da plasticidade da palavra, salientando-se nessa
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ltima a esfera icnica do signo, poderamos enxerg-lo luz da armao de Barthes de que a literatura encena a linguagem (1980: 19). Nesse sentido entendemos que todo o poema trabalharia para o ecoar e o confrontar de sentidos diversos a partir das potencialidades dos signos. No processo de leitura do poema ainda somos levados a pensar a armativa de Barthes de que a literatura preservaria o fulgor do real (1980: 19), j que a escrita daquele tambm parece de certa forma revitalizar os signos, redirecionando-os e mantendo-os vivos e abertos a diferentes interpretaes. O poema, feito a partir de enunciaes, denuncia a linguagem como meio de implicaes, ambigidades, rodeios. Assim, a insistncia em procedimentos calcados na repetio, ao mesmo tempo em que desarmam nossos saberes j arraigados sobre a signicao das palavras e suas referncias no mundo extralingstico, aceitam o signo como elemento de convencimento ou encantamento. Ainda na primeira estrofe, notamos a relao do eu-poemtico com a linguagem a partir da presena do verbo ver na primeira pessoa do pretrito perfeito do indicativo, ao mesmo tempo em que entrevemos a relao entre texto e leitor, j que a imagem potica vai se transformando no decorrer da leitura. Assim, novamente entendemos o texto como o espao de relao do leitor e do eu-lrico pela palavra potica. Ligao esta que passa pela questo do erotismo ao se colocar como seduo, jogo de revelao e ocultamento. A referncia ao verbo ver tambm permite que desenvolvamos uma outra reexo a partir do seguinte apontamento de Bosi (1977: 20):
A imagem, mental ou escrita, entretm com o visvel uma dupla relao que os verbos aparecer e parecer ilustram cabalmente. O objeto d-se, abre-se (latim: apparet) viso, entrega-se a ns enquanto aparncia, esta se parece com o que nos apareceu. Da aparncia parecena: momentos contguos que a linguagem mantm prximos.
Tal comentrio desperta-nos para o fato de a viso ser um dos nicos sentidos do eu-lrico destacados no texto. No momento em que ele se prope a escrever o poema, retoma a lembrana do deslumbrar a or vegetal com a qual a or-palavra vai manter um jogo de aproximao e afastamento. A aparncia desenvolvida pelas imagens no texto, no entanto, vai ganhando uma autonomia relativa com relao or real, na medida em que se coloca como revelao ou nascimento de um outro tipo de realidade: a da escrita, a da fantasia. A formao da or como imagem potica mostrada na segunda estrofe, a qual indica seu nascimento a partir do verbo despontar. Esse, por sua vez, demonstra uma polissemia no contexto do poema que permite a existncia de signicados distintos em seu vocbulo: podemos entend-lo como nascimento ou ainda como uma referncia ponta do lpis. Desse modo, despontar seria nascer do grate que escreve. A referncia ao ar ainda deagra outro elemento da poesia, a qual no apresenta a concretude do
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signo apenas como manifestao escrita, mas tambm como fala na leitura declamada. Sua presena, ento, ressaltaria o aspecto fsico da criao potica, j que o ar ligase a respirao que se prepara para a fala. A referncia ao ato fsico de escrever e o modo de v-lo como resultado de um gesto, como esforo e construo presentes na citao do verbo despontar e do substantivo ar acaba por proporcionar a possibilidade de levantamento de questes j apontada por Martins (1985: 25). A autora no momento inicial de sua dissertao, faz as seguintes armaes:
Escrever um ato fsico em que a mo roa o papel, a ponta do lpis coincide com a ponta da sombra do lpis, a folha, feliz falha, se abre ao escorrer da tinta, o pulso acende as palavras. Estas imagens exploradas por Ramos Rosa presenticam a concepo da poesia como um fazer; a linguagem um ser com o qual o eu mantm uma relao activa, presente e contnua, marcada sensorial e sensualmente.
Entendemos que esse comentrio acaba por apontar para as questes que levantamos: o poema ao discutir o seu fazer tambm o coloca como ato fsico, no sentido de intimamente ligado ao corpo, por meio das sugestes provindas do uso dos termos despontar e ar e ainda pela referncia ao olhar quando o eu-lrico diz que v o objeto que vai transgurar na sua escrita. O aspecto sonoro tambm trabalhado na segunda estrofe por meio da repetio de fonemas nasais e sibiliantes e pelo paralelismo sinttico dos dois ltimos versos. A presena dos fonemas nasais e sibilantes, alm de novamente apontar para um alongamento dos versos, mimetiza a presena do ar na formao da imagem or e ressaltam sua condio efmera ao mostrar sua existncia no momento da leitura, na relao entre leitor e texto. A explorao da sonoridade e o uso do encavalgamento em outros momentos do poema acabam por ressaltar a questo da temporalidade necessria formao da imagem potica em contraposio com a imagem visual. De modo contrrio a essa, que se d de maneira imediata, a imagem na poesia se coloca em formao a ir se enriquecendo em cada slaba e a coloca em movimento, enredando-a em novos signicados. Alm desses aspectos, entendemos que a repetio uma forma de referncia ao tempo, como uma maneira de recuar e avanar, aglutinando novos sentidos a palavra or, por exemplo. A esse respeito, Bosi (1977: 42) arma que A volta no reconhece, apenas, o aspecto das coisas que voltam: abre-nos tambm, o caminho para sentir o seu ser [...] A volta um passo adiante na ordem da conotao, logo na ordem do valor. Se a repetio da palavra or pode, de alguma forma, gerar a idia de retorno, os paralelismos tambm se servem a esse papel, gerando uma volta a um esquema sinttico e uma reiterao de sons semelhantes, causado pelo uso das mesmas palavras, mas ao mesmo tempo trocando alguns de seus elementos e modicando seus sentidos.
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De modo um pouco distinto do que Bosi parece defender, Paz, em O ser e o tempo da poesia (1982), aborda a imagem como uma realidade que se mostra de modo inteiro e pleno de uma s vez. Na verdade, tambm trabalhando com a diferenciao da imagem utilizada na linguagem corrente e a imagem potica, o crtico aponta para o fato de a primeira ser utilizada como meio, instrumento para a comunicao enquanto a outra bastaria a si mesma e conteria algo de indizvel, captvel apenas na poesia. A imagem no poema guardaria uma unidade e uma multiplicidade, ou seja, garantiria em sua organizao e conteno o mximo de signicados. Sobre isso, interessante notarmos a existncia de armaes e negaes a respeito da gura or no poema. Na formao da or de palavras existiria uma multiplicidade de possibilidades, de sentidos e de caminhos a serem percorridos; dentro da imagem potica caberia a tenso entre o ser e o no ser, e o sim e o no. A presenticao da formao do objeto esttico ressaltada pela repetio dos vocbulos so agora, de modo a indicar as mudanas que nele ocorreriam. O apelo imagtico parece ligado nesse momento, de certa forma, a uma iconicidade que se faz pela indicao das cores do objeto descrito. A referncia cor branca ganha uma signicao ambgua parecendo se ligar tanto or como pgina em que se escreve, como se as manchas brancas fossem os espaos entre as palavras, os intervalos para a passagem de ar. A presena da cor branca, ao salientar o espao para a ausncia da voz, tambm explora de outro ngulo o jogo de claro-escuro da linguagem potica, apontando novamente a existncia e a falta da palavra e dos objetos a que ela se refere. As demais cores parecem sugerir o amadurecimento da or em que as cores tnues adquiram a vivacidade do verde e do vermelho. A presena do verbo ser no presente, aliado ao advrbio de tempo agora, dramatizam o amadurecimento da or, na medida em que o leitor decifra o texto. A mudana dessa imagem vai se projetando desde a possibilidade do seu nascimento at a sugesto de sua morte no nal do poema. Esse trajeto parece ainda ser trespassado pela sensualidade, principalmente no tocante transformao das cores tnues em vermelho e pela referncia indireta ao miolo da or, sugerindo fertilidade. No trabalho com o som, a troca do p pelo s em ptalas e spalas novamente mostra as mudanas que se operam e que so declaradas de forma mais explcita pelo verso: A cada momento o seu aspecto modica-se, situado bem no meio da estrofe de maneira a potencializar a sua idia como um dos aspectos centrais do poema. A continuidade do discurso ainda mostrada pelo polissndeto, ligando o que foi dito ao que ser revelado. A sonoridade dos fonemas nasais tambm ser explorada na terceira estrofe. Nela, o uso do gerndio sugere, alm da continuidade, uma circularidade que produz um efeito de vertigem. Outros fonemas como a vogal o so explorados, mas em sua potencialidade icnica. A vogal o apresenta o crculo ao que o texto se refere aos olhos do leitor:
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uma realidade feita de palavras. Alm do recurso da repetio da forma dos verbos no gerndio, novamente o encavalgamento ilustra o desdobrar da linguagem sobre si mesma. A estrofe ainda parece se colocar no centro do poema, percepo reforada pela presena das palavras centro e crculo. Tal forma nos lembra o miolo da or e, sua relao com as demais imagens, demonstra mais uma vez o erotismo da linguagem de Rosa. O miolo da or se apresentaria como um espao para a fecundidade da escrita ao aproximar-se ao mesmo tempo do tero que gera o lho e do rgo masculino sugerido pelas hastes. Nesse movimento existe novamente uma tenso entre os elementos masculinos e femininos, j que o substantivo fulva no deixa de sugerir sonoramente o vocbulo vulva. Nessa estrofe ainda a presena da abelha que recolhe o plen nos lembra as relaes j destacadas nessa anlise: ela poderia ser vista como o escritor que recolhe nas palavras novos meios de construo e signicao ou do leitor que l o que lhe oferecido. Na passagem ainda podemos notar outro recurso utilizado na poesia de Ramos Rosa que a ligao entre o mundo natural e o corpo, tanto do ser humano como o da escrita. Se em outro momento da anlise ressaltamos as manchas brancas como pertencentes or que o poema parecia descrever, na estrofe em que nos detemos, as hastes fulvas, por exemplo, j mostram em si a conjuno entre a imagem natural e a fsica pelos aspectos que j exploramos. A palavra plen poderia ser entendida como a prpria palavra potica que gera e se desdobra em mltiplos sentidos. Relacionando o poema com outras observaes de Paz, poderamos compreender como procedimento de singularizao a aproximao de elementos distintos para a criao da imagem no texto. Nos termos do crtico: a imagem resulta escandalosa porque desaa o princpio da contradio (1982: 120), a partir de tal comentrio compreendemos o porqu do poema de Rosa nos causa um sentimento de estranhamento. Na verdade, as construes repetidas muitas vezes tentam se centrar em armaes assertivas que giram em torno de metforas como em A or que ainda no nasceu na pgina [...] a or do desejo, [...] sua contradio sua coincidncia. Nas seqncias que nos vo sendo apresentadas, no bastasse a tenso gerada entre a armao e a negao, os prprios termos comparados podem ser vistos como opostos. A insistncia no uso da metfora ainda acaba por conferir ao poema uma compactao: ele consegue dizer em poucas palavras outros sentidos, dando a impresso de que alguns deles no sero atingidos pela simples discursividade. O ltimo trecho de versos citado nos choca por percebermos tambm a troca de sentidos proposta por Paz; segundo ele, na linguagem potica, os elementos contrrios ao mesmo tempo em que se fundem, mantm a sua individualidade. Assim a contradio coincidncia sem deixar de ser contradio. Dentro ainda dessa observao, vemos que eles adquirem uma fora maior em sua carga semntica, pois compartilham, mas tambm, se denem a partir da negao da outra palavra.
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Apesar de termos atentado-nos mais diretamente com a questo da unidade e da individualidade, entendemos, com a leitura de Paz, que esse no o elemento diferenciador entre a imagem provinda da observao do real e aquela presente dentro do texto. Na realidade, e nos termos do crtico, o que se v no poema que a imagem no apenas uma representao de um objeto, mas, como elemento de arte, recria suas referncias e cria uma existncia diversa. A imagem se teatraliza dentro do poema; nele, a imagem colocada diante de ns. Tal constatao remete-nos de maneira mais vigorosa a tentativa de presenticao do amadurecimento da or no texto. A sonoridade do poema e o tempo de sua leitura sugerem o nascimento e a morte dessa or de palavras, viva apenas enquanto posta em movimento pelo leitor. Na estrofe que aqui nos detemos, vemos a citao de certos elementos que sugerem o aspecto ertico do texto. No entanto e como pretendemos explorar, entendemos que esse aspecto deva ser trabalhado tambm estruturalmente e para isso nos apoiaremos no livro O prazer do texto (1978) de Roland Barthes. Em sua obra, Barthes no segue um mtodo tradicional de exposio de conceitos e uma aplicao dos mesmos, isso porque, justamente, sua viso crtica v a literatura enquanto uma prtica que, por meio do desvio e conuncias de linguagens, produz o que ele denomina paz dos textos. Sua teoria estaria calcada na noo de que a linguagem utilizada como meio para a signicao nos mais diversos discursos acaba por favorecer a criao e propagao de esteretipos, enquanto que a literatura, por se calcar numa teatralizao da linguagem combateria a doxa dentro de seu prprio ponto de surgimento. O sentido do erotismo ganhar ainda mais facetas nessa obra de Barthes e tais noes podem esclarecer algumas passagens do poema que analisamos. Para o crtico, o texto de fruio faz com que o seu leitor seja uma espcie de revolucionrio no momento em que entra em contato com o objeto artstico. A leitura aproximaria-se do gozo e mais ainda revelaria o erotismo provindo do jogo com a palavra. Novamente salientamos que aquele no precisa necessariamente ser trabalhado tematicamente, mas se traduz em um prazer que vem da observao do trabalho artstico. O ertico do texto surgiria da intermitncia, do intervalo entre o dito e o no dito, o revelado e o oculto. dessa fenda, que estimula a investigao e que nunca acaba em revelao que esgota o texto, que nasce a excitao da leitura. No texto que lemos podemos observar esse fato justamente pelo jogo entre o ser e o no ser, envolvido na criao da imagem potica or. Essa, por sua vez, estaria situada em um intervalo entre uma aproximao e um afastamento do real. Como espao de fruio, o texto literrio pode colocar-se como uma espcie de paz, como j salientamos. Para produzi-la, ele no se ocuparia da representao para chegar a um determinado discurso, mas se ocuparia da gurativizao. Alm desse aspecto, a literatura se afasta dos demais discursos por no se ligar a uma gura de autoridade por detrs dela, por no conter referentes extralingsticos diretos e por
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inverter aspectos da lngua como o lxico ou como a sintaxe. Esse trabalho de desligamento do mundo real, porm, nunca completo, j que a ideologia produz uma sombra e um jogo de claro e escuro no texto artstico (Barthes, 1978). No poema, a realizao de um texto para a fruio feita principalmente pela repetio, paralelismos e polissndetos. Nos discursos cotidianos podemos perceber a repetio de mesmos conceitos a respeito dos fatos de modo a propagar os esteretipos e produzir um efeito de naturalizao dos eventos. Para Barthes, a repetio pode ser ertica quando excessiva ou quando mostra o inesperado. Nesse sentido, entendemos que os paralelismos, em sua abundncia, fornecem uma sonoridade expressiva ao texto ao mostrar a imagem potica em constante transformao. O poema prossegue em sua proposta de criao da palavra potica na estrofe seguinte. Na verdade, desde o seu incio, o texto aponta para uma discusso possvel sobre o reconhecimento da existncia da linguagem literria e a questo da representao. As questes que se envolvem aqui podem ser entendidas como, at certo ponto, referentes ao nascimento da literatura como imagem transgurada do mundo. A referncia ao grmen da palavra nos remete, sonoramente ao plen, j citado, pela poro nal do vocbulo. Esse, que na nossa leitura pode corresponder s potencialidades signicantes do signo, auxilia na interpretao do signo grmen tanto como se referindo aos aspectos microscpicos da palavra, a serem trabalhados meticulosamente pelo poeta, como a um embrio, o que novamente aponta para o nascimento e a criao. Na movimentao que o texto realiza percebemos o deslocamento incessante da linguagem pelas referncias s imagens da or que se intercalam e no permitem a xidez de um sentido uno. Entendemos que a correspondncia a qual o signo or teria com sua realidade material seria exatamente seu fulgor enquanto linguagem literria que assume uma vida prpria. A movimentao do texto ainda aparece pelo uso dos tempos verbais que passam do presente, para o gerndio e para o futuro nas estrofes 2, 3 e 4 e nos remetem novamente ao desejo referido na primeira estrofe: da transformao sugerida nas estrofes 2 e 3, passa-se ou volta-se, novamente a uma vontade de apreenso do objeto que parece se esquivar. No que consta a materialidade da nova realidade descrita pelo texto, a or palavra se confundiria com a or vegetal, j que a folha em que se escreve provm do trabalho com o elemento natural. A variao temporal dos verbos, j observada, revela um movimento ativo ou passivo do eu-poemtico, no qual suas atitudes de criao so, de certa forma, desaadas pela contrariedade da imagem que se cria. Na tentativa de comparao, o eu-lrico mostra a sua inteno de construir a imagem da or como objeto esttico pelo uso do verbo descrever no tempo futuro. A citao pequena ninfa, alm de nos remeter a idia de delicadeza, nos faz voltar
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a ateno mitologia grega. Nela, a imagem da ninfa est intimamente ligada natureza dos bosques, mares e ventos. Como imagem feminina relacionada natureza, ela retoma as ligaes entre a palavra potica, o corpo da mulher e a fecundidade, trabalhados nas outras estrofes do poema. A descrio que se projeta no futuro e a sua realizao na enunciao a ligam a palavra potica ao mundo do mito e da fantasia, armando um distanciamento da realidade para o trabalho com a linguagem literria. A comparao repete-se ligando a or como objeto esttico imagem da gota de gua de dedos oridos. Nela, ento, h um retorno ao elemento ligado ao corpo pela citao aos dedos que personicam a imagem da gota de gua. Notamos nesse instante as relaes que se estabelecem entre o signo que sugere uidez, gota de gua, e o que remete ao concreto ou ao corpo, dedos. Como j colocamos, podemos imaginar que a terceira estrofe, por discutir a questo da circularidade e pela presena do substantivo centro, estaria demarcando a parte medial do texto. Se assim a entendemos, ainda podemos compreender as demais como momentos que a circundam. Mais precisamente e atentando-nos s imagens mais visveis do texto diramos que as estrofes 2, 3 e 6 se ocupam mais em descrever a or que se forma como objeto esttico enquanto que nas demais h ainda o espao para que o eu-lrico coloque suas impresses diante dela. Tal o caso da estrofe 5; nela, o eu-lrico se arma como algum que simultaneamente v o objeto artstico ganhando vida por si e que o constri. O efeito do paralelismo se mostra no estabelecimento de relaes entre os diferentes elementos postos. No caso da estrofe na qual nos detemos ele consegue relacionar contradio e diferena e coincidncia e identidade. No jogo proposto pela metfora, marcada pelo uso do verbo , as palavras comungam signicados mesmo dentro da anttese em que se colocam. Na verdade, novamente, o que os versos tematizam a diferena entre o objeto real e o esttico. Nesse sentido, so a contradio e a diferena entre o objeto na poesia e o da realidade que permitem sua existncia plena. No entanto, ao mesmo tempo, aquele s reconhecvel pela sua relao com o objeto extra-textual. Assim, o signo or no texto se refere e no se refere realidade extralingstica. Outra vez, o poema refere-se a sua prpria natureza como elemento que se caracteriza pela impossibilidade de denio una. Ela e no num intervalo que revela o prprio jogo de seduo do texto que revela e oculta seus sentidos, convidando a um novo olhar que decifre essa iminncia j marcada na primeira estrofe. A referncia ao vislumbre e ao ato de ver do eu-lrico mostram a realizao da imagem potica aos olhos tambm do leitor, fato que ressaltado pela armao desse mesmo eu que cria as perspectivas de onde o objeto pode ser contemplado. A referncia aos gestos do objeto criado no s apontam para a sua vida autnoma, desligada do momento em que
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foi escrita e reativada por cada leitura como, novamente, a ligam a uma corporalidade, unindo a palavra ao corpo humano, que se move para signicar. Por m, a ltima estrofe parece querer se mostrar como um fechamento das questes j suscitadas. No entanto, no o que se v. Na verdade, dentro do texto, ela adquire uma ambigidade gerada por toda a leitura. A morte do elemento or, representada pelo ato de ela cair no solo se faz justamente no momento nal do poema, o que parece nos sugerir que a morte dela equivale ao silncio gerado aps a leitura. O solo, nesse sentido, poderia relacionar-se ainda com a prpria pgina em branco em que outros signos da palavra or foram escritos. O encavalgamento utilizado entre o segundo e o terceiro verso acentua essa interpretao, podendo promover a leitura de cada um deles de forma independente ou em continuidade. A concretude do signo potico ainda armada pela ltima forma escolhida para se referir ao elemento or. O uso da inicial maiscula e de seu posicionamento no nal do texto, alm de nos remeter a sua repetio na primeira estrofe do poema, mimetiza iconicamente o efeito da or que cairia no solo, ou melhor, do signo que se escreveria por m na pgina. A citao a essa palavra ainda confere ao texto um efeito de circularidade, tambm dado pelas primeiras palavras da estrofe, A or, que correspondem quelas que iniciam o poema. A circularidade ainda acentuada pela ausncia de pontuao em todo o poema, fato que sugere sua leitura sem pausas. Tambm chamamos a ateno para o fato de que os atos nais relacionados imagem da or ocorrem como que independentes da vontade do eu-lrico, que apagado nesse momento do texto, o que mostra novamente a formao da poesia como um elemento que foge a uma xidez e parte em busca de novos signicados.
Bibliograa
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Resumo: Esse trabalho pretende analisar o poema A or que ainda no nasceu na pgina de Antnio Ramos Rosa a partir da observao da discusso que ele realiza sobre o prprio fazer potico. Desse modo, para realizarmos nossa interpretao, partimos de um levantamento de seus procedimentos formais, principalmente no que se refere a repetio e reformulao do signo or, como um objeto artstico que se realiza e se desvenda durante o processo da leitura. Acreditamos que o debate sobre a natureza da linguagem literria proposto pelo poema de Rosa recoloca esse objeto como um espao para a vacilao dos mais diversos discursos bem como de nossa relao com a palavra e com o mundo. Para lermos o poema dessa maneira, nos apoiamos principalmente nas observaes de Chklovski (1973), Barthes (1978), Bosi (1977) e Paz (1982). Abstract: This paper aims to analyze Antnio Ramos Rosas poem A or que ainda no nasceu na pgina (The ower which hasnt been born on the page yet), by observing the discussion that the author himself proposes about poetic writing. So, in order to present our interpretation, we begin by surveying his formal procedures, focusing on what is encompassed in the sign ower, as an artistic object that is realized and unmasked in the reading process. We believe the debate about the nature of literary language raised by Rosas poem relocates this object as a space for hesitation of various discourses, as well as our relationship with the word and the world. In order to interpret the poem this way, we mainly resorted to Chklovski (1973), Barthes (1978), Bosi (1977) and Paz (1982).
Palavras-chave: aprendizagem literria, acto criativo e impostura, subverso mimtica, redescrio, performatividade. Keywords: literary apprenticeship, creative act and imposture, intransitive mimesis, rewriting and performance.
Expresso usada por Quine (1995: 95-138) para aludir impossibilidade de qualquer dado emprico relevante poder por servir para atribuir referncia especca (entre diversas alternativas incompatveis) s palavras usadas por um falante.
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exmia, apta a concretizar o crime perfeito o que produz o efeito desejado nos seus intrpretes e a exclui de uma condenao moral. Resume-se brevemente o argumento deste conto. Aps a morte de seu pai, Emanuel Zunz, que lhe conara em segredo a injustia que sofrera (a falsa acusao de um roubo), Emma dispe-se a executar a vingana deste contra o impostor do passado que simultaneamente o seu actual patro (Loewenthal). A imaginao de Emma condu-la a inventar e tornar credvel uma histria de violao protagonizada por Loewenthal. Esta acusao planeada para funcionar como libi de Emma Zunz para esta assassinar impunemente o acusado (com a justicao de legtima defesa) e vingar o sofrimento e morte do pai. Contudo, a execuo do plano vai afectar Emma de modo imprevisto os intentos iniciais, a concepo do seu passado, a relao com os homens ; a protagonista do nal difere em muito da que planeou a vingana impulsionadora da sua metamorfose. Aos olhos do pblico, a mudana imperceptvel. Apesar da matriz policial do conto, no faz sentido o apelo linear a provas j que a nfase dada s sucessivas aces discursivas difamaes, segredos, delao e justicao ilibatria deixa perceber que, para Borges, os factos so, em grande medida, o resultado das crenas pessoais idiossincrticas do indivduo e do uso que este faz da linguagem, a verdade produzida (ou negada) no decurso da aco narrativa, de acordo com a mestria do impostor. Com efeito, o acto de escrita sistematicamente comparado a uma impostura bem sucedida, e nessa medida que Paul de Man sublinha, a propsito de Borges: o objecto das suas histrias a criao do prprio estilo (de Man, 1988: 125). Ser til recorrer a outra gura da galeria dos impostores Borgianos para sublinhar o modo como a entorse interpretativa/ criativa, inerente ao impostor poderoso, desvincula a verdade de um problema de correspondncia especular (entre passado e presente; entre a vida e a arte ) na criao de histrias e se constitui como mimese intransitiva. Rerome ao protagonista do conto O Impostor Inverosmil Tom Castro (includo em Histria Universal da Infmia) que se prope, apesar da sua falta de esprito, fazer-se passar por um morto junto da me deste com o to de ser seu herdeiro. A inaptido de Tom Castro compensada pelo gnio de Bogle, um criado negro que se mostra um hbil impostor e que o instrui. O sucesso inicial de tal projecto radica nas Virtudes da Disparidade j que, ao invs da previsibilidade fcil que consistiria em imitar dedignamente o morto, Bogle adopta a estratgia (menos bvia e menos impugnvel) da disparidade entre Tom Castro e o morto que este quer substituir. O fracasso de Tom Castro, aps a morte de Bogle, que logo se desmascara quando se v forado a dirigir ele mesmo o embuste, revela uma teoria peculiar sobre impostores (e sobre autores). Assim, a consagrao do impostor deriva da capacidade inventiva e da perversidade para se subtrair servil imitao, emancipando-se dos constrangimentos morais ou do preenchimento de expectativas dos leitores, os quais derrotaram o idiota Tom Castro.
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Nos termos deste excerto, a morte do pai inaugura o acto de vingana lial. Emma, nesta primeira etapa, est subjugada pela autoridade do segredo antigo de que se fez depositria. O projecto inicial de redimir a injustia do passado aspira, como qualquer programa de resgate, correco do passado defeituoso sob a forma de um futuro sem mcula. Se o plano no sofresse entorses, triunfaria o modelo determinista de explicao, a sequencialidade stricto sensu que uma perspectiva historicista consagra; no entanto, tal no se concretizar. Ao invs, a vingana vai revelar-se, instrumental, a Borges, para conceber um vnculo inevitvel entre coisas distantes (1932:111) que, ao promulgar a conjugao entre tempos, lugares e pessoas dspares (em termos mimticos inconciliveis), reinventa nexos de causalidade sui generis. Na verdade, como todos os que se acolhem numa teoria consoladora e de acesso restrito, Emma sente um poder extraordinrio que acredita fortalec-la ao ponto de vencer todas as vicissitudes a enfrentar. Para esta, o segredo contagia qualquer objecto de descrio na medida em que determina toda a atribuio de sentido no presente e condiciona as previses do futuro. Ainda na sequncia das relaes com o passado, o carcter revisionista do conto torna-se notrio quando se aproxima a Emma de Borges da Emma Bovary de Flaubert, o seu antecedente literrio preponderante, como procurarei enfatizar ao longo do ensaio. Com efeito, a protagonista francesa surge como uma mulher crdula e perturbada pelas
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suas leituras romanescas que ensaia sem sucesso traduzir para o seu prosaico quotidiano de esposa de um mdico medocre de provncia. no contexto da recusa deste mundo exguo que o adultrio e o suicdio ocorrem como gestos de insubordinao. Por seu turno, Emma Zunz divide-se entre o mundo secreto e poderoso determinado por uma injustia impune e o mundo irreal (para si) do quotidiano que, qual autmato, ocupa. A fuso destes mundos parece iniciar-se quando decide produzir os mbeis que incriminaro o impostor do passado. A falta de conciliao entre o imaginado e o vivido que aniquilou Mme Bovary , no conto de Borges, atenuado e Zunz sobrevive porque aprender a usar a seu favor (tornando verdade) aquilo que a sua imaginao concebeu. Borges recorre aos clichs do modelo hermenutico da herona injustiada que far triunfar a verdade ou do pecador forado pelo castigo a arrepender-se para os implodir. No poderia ser mais obliterada a eccia e funcionalidade desse modelo afecto ao parentesco policial da intriga: a histria tem por objecto uma justia pstuma e intil em que no s a primeira vtima j morreu como o seu impostor castigado por causa de outra impostura da autoria de outro. Regressando ao universo do conto e ao conito com o antepassado que provoca a vingana, a morte do pai emancipa a lha que reage a esse bito exacerbadamente, ressuscitando o fantasma de Emmanuel Zunz, num esforo de emulao. Porm, o acto criativo impe-se como paradoxo: depende de antecessores e, ao mesmo tempo, exige o esquecimento destes e a sua superao3. Neste caso, a negatividade impulsiona a imaginao de Emma, e, no seu percurso, a protagonista levada a repetir a cena primitiva de Freud, assumindo o papel da lha que mata simbolicamente o pai para se impor. Esta subverso do modelo hermenutico instaura-se logo pela suspenso cptica do narrador em relao protagonista:
Narrar com alguma realidade os factos dessa tarde seria difcil e talvez improcedente. Um atributo do infernal a irrealidade, um atributo que parece diminuir os seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verosmil uma aco na qual quase no acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memria de Emma repudia e confunde? (1949:585)
O narrador refora a sua anidade com a protagonista ao perlar-se como intrprete falvel, desvinculado de qualquer reconstituio historicista: ambos se deparam com a urgncia de produzir uma histria para iludir a descontinuidade (caos) e o vazio. No s o narrador assume que no tem acesso privilegiado mente de Emma e, por consequncia, vai atribuir-lhe atitudes proposicionais e crenas que julga coe3
Com efeito, o conto Funs, el memorioso, tambm de Borges, encena a hegemonia funesta da memria que avassala o protagonista aquele que se lembra de tudo e que, na sequncia disso, ca esmagado pelo passado e morre.
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rentes; como Emma, divergindo muito daquela que foi outrora, se subtrai tambm ao exerccio restaurador da memria. Tal como Borges, a protagonista procura produzir uma histria a raticar pela sua audincia e depende do sucesso de tal acto para se armar.
A centralidade deste momento decorre, ento, de este expor a protagonista ao colapso das suas previses, e inaptido da sua teoria para dar sentido sua experincia drstica e imprevista com o marinheiro. Como aprendiz incauta, Emma, fora do distanciamento temporal (entre o passado e o presente) e ccional (entre aquilo que foi e aquilo que se fora a ser), ter-se-ia julgado erradamente espectadora impassvel da infmia que criou, como se esta lhe fosse alheia ditada pelo destino ou por Deus ou
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como se tudo se pudesse restringir a uma doutrina e sua aplicao. Nesta ptica, o episdio tematiza o acto de escrita e a sua vertente performativa a qual impugna os pressupostos prvios e a ideia de que escrever se possa cingir a um mero jogo de palavras ou a uma tcnica. Com efeito, o talento ccional de Emma, longe de se restringir a um mero artifcio incuo ou inconsequente (como na verso estetizada das artes), multiplica-a e vincula-a de modo indelvel s suas imitaes: aqui, prostituta, mais tarde, delatora, e, por m, vtima de violao. O smile, ao preservar a identidade dos dois termos em causa, vai conjugar paradoxalmente, numa s gura, a inexperincia de quem age uma jovem a quem os homens inspiravam ainda um terror quase patolgico e a violncia de uma cena de prostituio; catapultando a personagem para a vertigem ou o inferno do no reconhecimento. A proliferao especular incentivada ainda pela presena, nesta passagem, dos espelhos, que multiplicam as imagens da jovem Zunz, e implicitamente do labirinto (o tortuoso caminho que percorre com o marinheiro), ambos to familiares aos leitores de Borges. Sem regresso possvel a um estado prvio, Emma perde o controle intencional do processo que iniciou. Torna-se, ento, prioritria a sada do breve caos de tal modo o impasse interpretativo se mostra insustentvel. Quine sublinha esta ideia ao armar que no h objectos em absoluto j que eles so sempre reportveis a uma teoria de fundo. Ora, o colapso da teoria anterior (a da injustia perpetrada contra o pai) vai exigir a sua urgente reviso: Emma substitui o passado disponvel (o dos dias felizes) e transfere a violncia masculina (traduzida para si no acto sexual), retroactivamente amplicada, para a interpretao da sua prpria origem ela seria a incarnao de tal acto sexual perpetrado contra a me. A sua experincia actual determina a reconstituio de uma histria pessoal que estabelea a continuidade com o passado. No entanto, longe de um triunfante progresso Hegel, a recongurao retrospectiva denuncia o carcter forjado dos nexos causais (a causa intencionada a partir do efeito) e mostra a dependncia absoluta entre quem conta e o que contado. A nfase revisionista coloca, ento, srios entraves a uma viso progressista promulgada habitualmente pela histria literria. A metamorfose de lha em mulher representa uma fbula potica em que, imagem das histrias da mitologia4, no h limites para o mpeto vingativo que, reforo, aqui sinnimo do mpeto potico e do seu poder de usurpao. A cena de aprendizagem converte-se na cena primitiva em que a lha, imagem do que acontece com o poeta forte, mata o pai5 (com o consecutivo esquecimento do morto que
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A tragdia clssica que aqui serviria como o antecedente remoto do conto de Borges parece-me ser a Electra de Sfocles. Emma s aprende porque suspende a colagem gura paterna, expressa desde logo no seu nome: Emma um segmento truncado de Emmanuel o nome do pai. O signicado deste Deus est connosco resulta
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motiva aquele sacrifcio), o qual passa categoria genrica e annima de criminoso: Pensou (no pode deixar de pensar) que o seu pai tinha feito sua me a coisa horrvel que lhe faziam agora. Emmanuel Zunz regressa agora, no sob a espcie de gura redimida mas como antagonista maior. Na viso feminista do mundo que a revolta da protagonista inaugura, s cabem o homem violentador e a mulher vitimizada. No entanto, ela no age em inteira liberdade, constrangida a defender-se e a encontrar, na gama restrita de papis a que a sua experincia lhe deu acesso como mulher, aquele que se coaduna com a sua fria. Sujeita-se, ento, a uma alucinao orientada, embora no intencional ou controlada por si. Mais uma vez, o mpeto de incarnar sentimentos (o dio neste caso) tem profundas anidades com o ofcio do escritor. Borges reitera, atravs de Emma, a consecutividade das aces lingusticas e o carcter autobiogrco destas. Apesar de a protagonista agir contra algum, essas mesmas manobras retroagem sobre si mesma e , ela prpria, num rasgo de ironia, a principal vtima, impugnando, assim, a utopia da emancipao total do sujeito que faz a sua histria. Por ltimo, gostaria de frisar a indeterminao intensa gerada pela proliferao das cenas de violao: ter o projecto prvio de Emma provocado diferentes emanaes da violao de modo a tornar verdadeira a difamao? Ou a Emma violada replica de modo fantasmtico a sua experincia drstica de molde a transformar o pai e Loewenthal em violadores?
Um exemplo breve desta conjuno entre quem escreve e o que escreve pode encontrar-se no texto Everything and Nothing sobre Shakespeare, includo na obra El Hacedor de J.L. Borges.
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propsitos e sistemas de referncia muito distintos, sem nada em comum. Os equvocos e a duplicidade regulam todas as relaes neste conto, inclusive a associao com o marinheiro; -nos dito: [o marinheiro] foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justia. A coexistncia no mesmo espao e tempo serve um m idiossincrtico e, de acordo com ele, cada um dos intervenientes atribui ao outro as intenes e propsitos que lhe permitem interpretar o seu comportamento, vedado que est o acesso mente de outrem. A vertente relacional da aprendizagem condiciona a protagonista a usar a linguagem ou as guras ao seu dispor para se tornar a si mesma inteligvel. Quebrado o dolo paterno, Emma passa a assumir as suas aces em nome prprio. No momento decisivo em que deve concluir a vindicta o assassinato de Loewenthal a protagonista reajusta os objectos da vingana do pai em objectos da vingana do seu ultraje:
As coisas no correram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, vira-se muitas vezes apontando o revlver, forando o miservel a confessar a culpa miservel e expondo o corajoso estratagema que permitiria justia de Deus triunfar sobre a justia humana (no por medo, mas por ser um instrumento da Justia, ela no queria ser castigada). Depois, uma s bala no meio do peito rmaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas no ocorreram assim. Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgncia de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. No podia deixar de mat-lo, depois desta minuciosa desonra. Tambm no tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tmida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou ( maneira de uma delatora) as obrigaes de lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conseguiu que Loewenthal sasse para ir buscar um copo de gua. Quando ele, incrdulo com tal agitao, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma j tinha tirado da gaveta o pesado revlver. Apertou o gatilho duas vezes. O volumoso corpo caiu como se os estampidos e a fumaa o tivessem rasgado, o corpo partiu-se, o rosto olhou-a com assombro e clera, a boca injuriou-a em espanhol e em yddish. Os palavres no cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No ptio, o co acorrentado ps-se a ladrar, e uma efuso de sangue escuro brotou dos lbios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusao que tinha preparado (Vinguei o meu pai e no me podero castigar), mas no a concluiu, porque o Sr. Loewenthal j estava morto. No soube nunca se ele chegou a compreender. (1949: 587)
O desajuste, nesta passagem, entre as crenas actuais e o papel que Emma persiste em representar manifesta-se nas falhas (nomeadamente a precipitao ansiosa) ao programa prvio entretanto desactualizado. Consecutivamente, a execuo como previra perde todo o sentido: j no tinha tempo a perder com teatralidades. Quer Zunz quer
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Bovary so coagidas a usar modelos prvios e sofrem, consequentemente, pela inaptido destes7. No entanto, Emma Zunz aprende depressa a reajustar-se s exigncias da situao e a confundir-se com os papis que desempenha, enquanto Bovary se consome neste desfasamento incontornvel entre o que imagina e o que vive. Na ptica revisionista de Borges, contar uma histria supe a perverso8 de antecessores ainda que as alteraes possam agurar-se subtis, note-se que o resultado nal aparentemente o mesmo: Loewenthal morre e Emma acaba ilibada. Do mesmo modo que o Don Quixote de Mnard e no o de Cervantes. O castigo inigido a Loewenthal agura-se uma vingana desfasada (e uma injustia) que perpetua o ciclo de injustias ( espera de resposta) em que Emma participa. No ser assim, nos termos de Borges, todo o acto de escrita? As aces decorrem numa cadeia de equvocos que geram sempre mais equvocos porque a linguagem foge ao controlo intencional de quem a usa e provoca a derrapagem sucessiva. De tal modo assim que surgem cada vez mais dvidas sobre a autoria ltima desta impostura: ter sido Emmanuel que usou Emma como instrumento da sua vingana pstuma? Ou, ter Emma recorrido histria do pai como pretexto para desencadear a violncia que at a contivera? Ou, ento, Deus que fez de todas as personagens seus instrumentos para alegorizar a justia divina? Por ltimo, sublinharia o diferimento entre o acontecimento e a sua atribuio de sentido que se declara na autopunio de Emma em nome de outrem e no castigo de Loewenthal para expiar um crime alheio conrmam a perda de autonomia das personagens, sempre includas num feixe de relaes com ausentes.
Repare-se numa das muitas passagens de Mme Bovary que podem exemplicar esta situao: Entretanto, segundo as teorias que ela supunha boas, Emma quis cultivar em si o amor. Ao luar, no jardim, recitava todas as rimas apaixonadas que sabia de cor, e suspirando, cantava-lhe adgios melanclicos; mas, em seguida, achava-se to calma como anteriormente, e Carlos no parecia por isso mais enamorado nem mais comovido. Depois de ter usado o corao como isqueiro sem conseguir fazer saltar a chama, incapaz de compreender o que no sentia, como, alis, de crer no que quer que fosse que no se manifestasse por formas convencionais, Emma persuadiu-se sem custo que a paixo de Carlos nada tinha de exorbitante (1857:54).
Quine sublinha devidamente este aspecto ao armar: O que faz sentido no dizer, falando absolutamente, o que so os objectos de uma teoria, mas como que uma teoria dos objectos interpretvel e reinterpretvel noutra (1995:120).
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Os tensos latidos lembraram-lhe que ainda no podia descansar. Deixou o div em desordem, desabotoou o casaco do cadver, tirou-lhe os culos sujos e deixou-os sobre o arquivo. Em seguida, pegou no telefone e repetiu o que tantas vezes repetira, com essas e com outras palavras: Aconteceu uma coisa inacreditvelO Sr. Loewenthal fez-me vir com o pretexto da greveAbusou de mim, eu matei-o A histria era incrvel, com efeito, mas imps-se a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o dio. Verdadeiro era tambm o ultraje que sofrera; s eram falsas algumas circunstncias, a hora e um ou dois nomes prprios. (ibid.: 188)
Se a verso de Emma se torna verdadeira com a aceitao pblica da sua justicao, ento, resulta preponderante a impossibilidade de escrutinar a referncia. De modo similar, a suposta relquia que Teodorico, a personagem de Ea de Queiroz, em A Relquia, traz para a sua tia beata s deixa de ser verdadeira devido a uma troca de embrulhos do sobrinho que lhe revela os maus intentos; pelo contrrio, um crime bem sucedido ser aquele que nunca poder ser descoberto: no tem testemunhas e no deixa provas. Mme Bovary, ao invs, sofre pela disparidade cada vez maior entre a sua imaginao febril e a sua exgua e frustrada experincia; a cada tentativa de tornar verdadeiras as suas fantasias literrias sucede o malogro. Neste ponto, Borges procura apostar antes na indiferenciao entre imaginao e vida. Eis como, para Borges, a verdade no se declara substancial mas o produto de uma histria de sucessivas revises, erros e equvocos, e o seu resultado nal. Consequentemente, a continuidade engendrada a posteriori pela protagonista da aprendizagem que, forada a reajustar o seu sistema de crenas, holisticamente refaz as descontinuidades da sua histria. Como aprendiz, a protagonista beneciou, nesta performance nal, da experincia adquirida nas actuaes anteriores. O tom de vtima, o pudor de jovem sem experincia sentimental, o dio contra o sexo masculino e o ultraje inigido pelo marinheiro constituem todo o reportrio que Emma usa com exmia mestria. Em concomitncia, sobressai aqui um certo diferimento entre a crise e a interpretao que agora, neste episdio nal, lhe atribudo. Suponho, no entanto, que permanece especialmente indeterminado o papel de Emma: ser uma alucinada, uma mulher desesperada, uma impostora ou uma actriz? O aspecto mais surpreendente do conto decorre possivelmente da total adeso do pblico ao mundo alucinatrio de Emma. Assim, agura-se-me ainda mais reforado o carcter autobiogrco de Emma em relao a Borges o qual, em prol da ideia de que a iluso cria a realidade (Pascoaes, 1993:51), defende que o poder de usurpao de uma obra junto do pblico pragmaticamente aferido e justicado pelo acolhimento deste. Julgo que, em sentido inverso, tambm se poder ler esta cena como a representao de um drama estereotipado que a imaginao sanguinolenta dos arrabaldes facilmente
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reconheceu e certicou. A interdependncia da aprendizagem que a protagonista faz, em concomitncia, de si mesma, dos outros e do mundo impugna a hierarquia cognitiva cartesiana nos termos da qual o conhecimento de si mesmo constitua o sustento exclusivo do conhecimento do mundo e dos outros. No quadro exguo de papis disponveis que Emma, como mulher, pode usar, estava-lhe reservado este: de gura de melodrama em que a aco de vingana acaba por coincidir com a sua auto-imolao. Como Emma Bovary, E. Zunz vive condicionada por uma posio insignicante na sociedade que tolhe a sua potncia abrasadora; primeira restou a iniciativa de um suicdio por envenenamento segunda um outro herosmo tambm de ndole negativa cujo corolrio consiste numa confuso cada vez maior de Zunz com as ces criadas at se dissolver ou amplicar na categoria mais vasta a de mulher que se vinga, no assassnio de Loewenthal, de todos os homens. Emma no se presta cura psicanaltica porque em vez da conciliao de duas pessoas numa s, as ces criadas multiplicam-na em muitas. Assim, deixa de haver qualquer apelo apaziguador memria que, retomando Hume, funda os nexos de identidade e o sistema de crenas. A Emma que premeditou a vingana no j a mesma que a executa e, por sua vez, tambm no se reconhece em toda esta narrativa que j esqueceu. Borges, como Flaubert, perla a sua narrativa enquanto uma biograa feminina. Estranha biograa esta em que o prprio critrio de identidade (conjunto de caractersticas pessoais com alguma continuidade) aqui profundamente questionado. A aprendizagem da protagonista em causa tambm literria ou artstica: Emma aprendeu com Bovary e Electra e, graas a esse inuxo, pode descrever-se de outro modo. Mais do que aprender com actividade invivel porque a idiossincrasia do percurso individual impede a imitao a metamorfose faz-se contra algum: no caso de Emma Zunz, contra o pai como promotor de uma violncia masculina que passou a incarnar. Esta dependncia absoluta da tradio determina que a aprendizagem se faz sempre com e contra um conjunto especco de textos ao qual se vincula e do qual procede a redescrio, refutando, nas palavras de Borges, a ignorante superstio de originalidade. Nesta ptica, o amor e o dio, longe de oferecerem uma panplia de atitudes psicolgicas, guram a dimenso intersubjectiva, imprevisvel e passional da escrita na medida em que, furtando-se a uma racionalidade estrita tal no exige o abandono de toda a racionalidade apenas a sua tutela imaginao e aos sucessivos imprevistos. Os imprevistos so sobretudo os da linguagem, relembro que o segredo de Emmanuel e a difamao de Loewenthal correspondem a descries de aces cujos efeitos escapam totalmente a quem teve a veleidade de os querer controlar.
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Bibliograa
BORGES, Jorge Lus (1997 [1932]). Discusin. Madrid: Allianza Editorial. (1998 [1949]). Emma Zunz. In Obras Completas, vol.1. Traduo de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Teorema. (1993 [1954]). Histria Universal da Infmia. Traduo de Jos Bento. Lisboa: Assrio e Alvim. DE MAN, Paul (1988 [1964]). A Modern Master: Jorge Lus Borges. In Critical Writings 19531978. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 123-129. FLAUBERT, Gustave (1960 [1857]). Madame Bovary. Traduo de Joo Pedro de Andrade. Lisboa: Estdios Cor. PASCOAES, Teixeira de (1993 [1937]). O Homem Universal e Outros Escritos. Lisboa: Assrio e Alvim. QUINE, W. V. (1995 [1969]). Relatividade Ontolgica. In Filosoa e Linguagem. Porto: Asa, 95-138.
Resumo: O propsito deste ensaio reectir, tomando como objecto de anlise o conto de J.L. Borges Emma Zunz, sobre a aprendizagem literria como acto de reescrita e de insubordinao mimtica que encontra o seu correlato na infmia. Abstract: The aim of this paper is to reect upon J.L.Borgess short story Emma Zunz which, due to the protagonists course, permits us to analyse her apprenticeship as an emblem of literary apprenticeship, emphasizing intransitive mimesis, rewriting and performance.
Palavras-chave: Cames, Os Lusadas, descobrimentos, alteridade. Keywords: Cames, The Lusiads, the age of discoveries, otherness (alterity).
1. Da gente remota
Talvez nada seja mais conhecido no pico camoniano, at mesmo por muitos daqueles que no o leram, do que os versos que integram sua Proposio. Agindo como uma espcie de metonmia do poema e, claro esteja, a metonmia no d conta da inteireza de que representante a Proposio traa um plano geral, mostra a que veio um texto pico; j o era assim na Ilada, na Odissia, ou na Eneida. Nesse trecho de abertura dOs Lusadas, dois momentos, pela prpria aparncia desfocada, de algo que mesmo enquadrado se encontra situado em segundo plano, convidam a uma leitura mais atenta. A estrofe inicial anuncia o tempo da viagem comandada por Vasco da Gama1 como era de se esperar no pico cujo tema central a saga do povo portugus em sua busca de uma rota martima possvel para a ndia. Ali, j nos primeiros versos, em meio grandiloqncia destinada aos bares assinalados, surge uma presena intrigante, carregada de certa nebulosidade, turva ao olhar:
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Cleonice Berardinelli, em A estrutura dOs Lusadas, aponta a existncia de uma articulao de tempos diferentes na construo do pico camoniano. O tempo central compreende a viagem de Vasco da Gama, na voz do narrador principal, e a partir desse eixo temporal tem-se ainda o tempo passado ou presente, representado pela histria de Portugal, e ainda um tempo futuro, constitudo pelas profecias, os dois ltimos, nas vozes de narradores secundrios (Berardinelli, 2000: 21). Esta a diviso estrutural utilizada neste ensaio.
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As armas e os bares assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda alm da Taprobana, Em perigos e guerras esforados Mais do que prometia a fora humana, E entre gente remota edicaram Novo Reino, que tanto sublimaram; (I, 1)
Quem, e como, essa massa que constitui tal gente remota? Na estrofe seguinte, em meio anunciao de que ser cantado o tempo da histria de Portugal, representado principalmente pela memria dos reis que contriburam para a formao da ptria portuguesa, surgem os versos
E tambm as memrias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A F, o Imprio, e as terras viciosas De frica e sia andaram devastando, [...] (I, 2)
Dois feitos aparecem como complementares e simultneos. Como os dois lados de uma moeda, dilatar f e imprio e devastar terras de frica e sia aparecem como constituintes necessrias de um s sentido expansionista. A f, colocada em primeiro lugar no verso, ressalta o discurso usado para justicar desde as cruzadas at a expanso e a prpria manuteno de um imprio portugus e a devastao em outros continentes , o discurso de levar o cristianismo aos lugares viciosos e s suas populaes. A prpria opo pelo termo devastando tambm aponta a existncia de um outro lado, um segundo plano, no to admirvel, em meio a essa histria de feitos gloriosos, e atravs da trama de os que pelo avesso expe, como aponta Jorge Fernandes da Silveira, que Cames deixa vir tona indcios de inquietantes questionamentos, tenses, at mesmo denncia e crtica em relao sociedade portuguesa de seu tempo, culminando em um doloroso grito no Canto X: no mais. Em cada pequena contradio que Cames pergunta quem so os verdadeiros mseros e mesquinhos (Cf. Silveira, 2000: 17). Os Lusadas e nesse ponto convergem com a lrica camoniana trazem, assim, nesse avesso que s vezes se deixa ver, uma srie de sutis questionamentos e contradies, que podem ser relacionados tambm ao contexto em que o poema foi escrito. Como arma Eduardo Loureno, estes [pontos contraditrios] no so ameaa coerncia do universo potico camoniano, pois integram simultaneamente uma experincia vital e espiritual da qual as chamadas contradies constituem os plos de tenso. No toa que Loureno se refere a Cames como o primeiro portugus dilacerado, caracterstica que causa fascnio em seus leitores at os dias de hoje (Loureno, 2002: 26).
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O contexto de Cames ainda trabalha numa espcie de digesto dos resultados de todas as mudanas por que passou o mundo, e a prpria compreenso do homem sobre este, ao longo dos XV e XVI. At o entendimento do homem sobre si mesmo sofreu transformaes vertiginosas e irreversveis, em um perodo, de quase dois sculos, intensamente marcado pelo signo do descobrimento, termo, contudo, at hoje um tanto controverso. Deve-se ressaltar aqui, impreterivelmente, que, como arma Vitorino Godinho, descobrir apenas tem sentido do ponto de vista do outro do exterior e no caso das navegaes, da ignorncia europia. Segundo o historiador, Antnio Vieira j apontava a relatividade implcita em descobrir. Os navegadores puderam, ento, levantar uma tampa que nos escondia qualquer coisa (Godinho, 1998: 56). Poderia essa qualquer coisa ser lida como uma gente remota espalhada por terras viciosas? O que resulta desse encontro com o outro o que neste ensaio particularmente interessa como elemento a ser observado nOs Lusadas. Busca-se compreender as tramas e possveis contradies da construo da imagem de um homem no-europeu e no-cristo numa co feita por um europeu cristo, um humanista do Renascimento, e, acima de tudo, um portugus que escreve no sculo XVI, Lus Vaz de Cames. Sobretudo, pretende-se demonstrar o que tais incongruncias so capazes de expor ao leitor. Integram esses povos outros nOs Lusadas a estranha gente como diria o texto camoniano povos africanos espalhados pela vastido de seu continente, com crenas religiosas variadas, inclusive muitos convertidos ao isl; os indianos, principalmente hindus, tratados geralmente pelo termo idlatras; por m, os mouros, povos islmicos espalhados pelo mundo, desde a Europa, no prprio territrio portugus, at ao longo da frica e da sia.
A nota de Emanuel Paulo Ramos para sua edio dOs Lusadas explica que Faton [...] tendo um dia conduzido o carro do pai (= Sol), tanto se aproximou do continente negro, que tornou pretos seus habitantes. Como castigo, Jpiter fulminou-o e deixou-o cair no rio P, onde morreu afogado (Ramos, 1987: 378).
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O termo descobrimento j por si mesmo polissmico, mas provavelmente ganhou mais vastos e vrios sentidos, todos de certa maneira ligados entre si, na diversidade de situaes que passou a designar a partir da expanso martima. Havia, ento, diversas maneiras de se descobrir. Havia ilhas ou arquiplagos que realmente foram encontrados, que eram desabitados e desconhecidos, como o caso de Cabo Verde, e que serviram de referncia fundamental para o estabelecimento de rotas. Havia reas habitadas porm isoladas, das quais o conhecimento era entre o mtico e o real. Havia oceanos e mares cujas rotas no estavam delineadas, dos quais pouco se conhecia sobre ventos e correntes martimas, como o ndico meridional. Havia tambm vastos espaos de povoamento difuso, mantendo apenas raras relaes com o exterior, de economias agrcolas bastante simples e de recoleo, como partes das Amricas. Existiam os economias agro-pastoris, com povoamento organizado em aldeias e que mantinham certo grau de relao comercial com outras sociedades, como eram a frica do Sul e Antilhas. E existiam tambm as Civilizaes complexas, de Estados organizados, cidades numerosas e ligadas entre si por intensa circulao, foi este o caso da ndia e da China (Cf. Godinho, 1998: 62-63). Estes so apenas alguns exemplos da diversidade dos locais que passaram por um descobrimento e cuja tampa que os separava da Europa foi retirada pelas navegaes. Um continente em especial pode ser marcado por apresentar a maior parte dessas diferenas e desses tipos de povoamento, a frica. Podiam os descobridores, ou mesmo Cames, perceber diversidade entre aquelas populaes? O primeiro aparecimento de uma sociedade africana nOs Lusadas retrata a chegada da armada de Gama Ilha de Moambique, ainda no Canto I, local que aparece referido nos versos como costa de Etipia (I, 42-43), termo antigo que em si j generalizante, designando uma parte qualquer da frica. O olhar detalhista, mas refora o esteretipo:
De panos de algodo vinham vestidos, De vrias cores, brancos e listrados; Uns trazem derredor de si cingidos, Outros em modo airoso sobraados; Das cintas pera cima vem despidos; Por armas tem adagas e terados; Com toucas na cabea; e, navegando, Anas sonorosos vo tocando. (I, 47)
No encontro, Gama oferece-lhes comida e bebida, e Os de Feton queimados nada enjeitam (I, 49), comportamento este que sugere alguma falta de polidez entre aqueles nativos. Mas a narrativa converge com a idia de que o encontro pode gerar muitas
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reaes, choques, conitos, estranhamento, mas tambm a curiosidade, a colaborao, a troca de objetos, de idias, de tcnicas e formas de vida (Godinho, 1998: 77):
Comendo alegremente, perguntavam, Pela Arbica lngua, donde vinham, Quem eram, de que terra, que buscavam, Ou que partes do mar corrido tinham? [...] (I, 50)
O dilogo que ento se encena traz tona a diferena da lngua, a possibilidade ou no de se estabelecer uma comunicao, o que nOs Lusadas ser um ponto importantssimo de questionamento sobre o outro, pois envolve as noes de verdade e mentira, a recorrente contradio, no poema, entre ser e parecer na gura desse outro. Ainda o mesmo dilogo servir para reforar a Proposio. Porm, antes da resposta portuguesa, dois versos na mesma estrofe deixam bem claro que Os fortes Lusitanos lhe tornavam/ As discretas repostas que convinham (I, 50). Assim, sutilmente, o leitor pode ser levado a perceber que os portugueses manipulavam, adequavam, ajustavam seu discurso diante dos povos que encontravam. Mas de qualquer forma, dado espao para que os portugueses se rearmem, como faro ainda por muitas vezes ao longo do poema: Os Portugueses somos do Ocidente, / Imos buscando as terras do Oriente. (I, 50) Os africanos descritos naquele local j so muulmanos:
Do sculo XI ao XV, desenvolveram-se feitorias rabes no litoral e na Ilha de Moambique; surgiram cidades dominadas pelos comerciantes rabes, persas e sualis (africanos bantos arabizados ou islamizados, que prolongaram as feitorias muulmanas da costa da Somlia, Melinde, Mombaa, [...] Quloa, Moambique, Sofala). Essa regio da frica Oriental fazia parte do complexo mercantil do Oceano ndico. (Oliveira, Cf. Secco, 1999: 10)
no mnimo curioso o fato de Cames, relatando uma viagem de expanso de cunho religioso, mercantilista e colonialista, situar em mares da frica ocidental os grandes obstculos e ciladas enfrentados por seus heris; nada mais turbulento do que penetrar nos interesses de outrem. Atravs das vrias ciladas empreendidas contra a armada, mais uma vez, nota-se que a questo mouro contra portugus fundamental, perto ou longe de casa. Os povos dessa costa da frica da Ilha de Moambique, de Sofala, Mombaa e Melinde so descritos de forma semelhante, estereotipada, extica e com a marca da traio, da inveja, um dio oculto e um intenso conito entre o que parecem pretender e o que pretendem ou sentem realmente. Do contato com sociedades diferentes sempre resulta certa opacidade, e Godinho relata que isto ocorre geralmente em relao esfera das mentalidades e principalmente s prticas e atitudes religiosas; basta
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lembrar tambm que a expanso ultramarina tem como fundamento ideolgico a evangelizao do globo (Godinho, 1998: 76-77). Cames, trazendo tona mais um daqueles ns do avesso de seu poema pico, coloca em seqncia, ainda na Ilha de Moambique, duas descries, a primeira na voz de um muulmano da Ilha,
Somos (um dos das Ilhas lhe tornou) Estrangeiros na terra, Lei e nao; Que os prprios so aqueles que criou A Natura, sem Lei e sem Razo. Ns temos a Lei certa que insinou O claro descendente de Abrao, [...] (I, 53)
seguida por alguns versos em que explica a relevncia daquele local para as rotas de navegao no ndico. Deve-se notar que o muulmano considera o africano originrio como gente sem religio e sem racionalidade. Poucos versos depois, o narrador principal3 reete acerca dos muulmanos locais:
[...] Qualquer ento consigo cuida e nota Na gente e na maneira desusada, E como os que na errada Seita creram Tanto por todo o mundo se estenderam. (I, 57)
Magistralmente, surge um olhar relativo, duas diferentes compreenses religiosas arranjadas em seqncia, a primeira pela voz do personagem muulmano e outra pela voz do narrador central, isto, em meio a um poema em que a ordem rearmar, pela repetio, o mesmo discurso da Proposio. Os termos Lei certa e errada Seita entram em choque justamente porque designam a mesma religio. Nesse momento, Cames d passo frente dentro de sua cultura nacional, produzindo nessas estrofes uma sutilssima mas mordaz crtica. Os islmicos, na voz do personagem, denem-se como Estrangeiros na terra e o narrador questiona-se como teriam estes, com sua f, conseguido estender-se por todo o mundo. Este no seria justamente o tema dessa epopia, porm em relao aos portugueses? Os povos muulmanos e avessos portugueses sero abordados ainda neste ensaio, assim como ciladas e tenses. Por enquanto, sero observadas ainda outras paragens africanas. No so to numerosas nOs Lusadas as passagens que tratam de povos africanos no-muulmanos. Cames demonstra, no entanto, em alguns trechos do poema, certo
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Cleonice Berardinelli, ainda em A estrutura dOs Lusadas, expe no poema a existncia de diversos narradores. H um narrador principal, encarregado do relato da viagem de Moambique a Melinde, e outros secundrios, como Vasco da Gama, Paulo da Gama, Tethys. Alm disto, h tambm a voz do Poeta, responsvel pelos excursos (Berardinelli, 2000: 18-19).
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grau de conhecimento sobre sociedades e culturas locais. Certos pontos se destacam. No primeiro, Vasco da Gama narra ao rei de Melinde, no Canto V, os lugares pelos quais passou durante a viagem pela costa da frica ocidental, o que inclui sua passagem por Cabo Verde e So Tom. Logo aps deixar o arquiplago caboverdiano, faz da costa uma descrio que traz informaes locais estranhas at mesmo a muitos europeus e africanos de hoje em dia:
[...] A provncia Jalofo, que reparte Por diversas naes a negra gente, A mui grande Mandinga, por cuja arte Logramos o metal rico e luzente, Que do curvo Gambeia as guas bebe As quais o largo Atlntico recebe; (V, 10)
Basta observar que o prprio Emanuel Paulo Ramos aponta Jalofo como Nigrcia (Ramos, 1987: 468). Qualquer dicionrio de lngua portuguesa mostra que Nigrcia terra, pas ou regio de negros, ou seja, a nota explicativa aparece mais generalizante do que o prprio texto do poema. Jalofo4 diz respeito a uma etnia, conhecida como os Yoloff, da mesma maneira que Mandinga, uma outra etnia que era extremamente vasta na poca da viagem de Gama5. Pelos versos, pode-se deduzir que Jalofo, provavelmente por metonmia, designou o local em que habitava o grupo, prximo ao encontro do curvo Gambeia, ou rio Gmbia, com o Atlntico, territrio farto em metais preciosos. Ali localizava-se ao nal do sculo XV o Imprio Mali, que realmente englobava muitos grupos tnicos, ou naes, onde hoje cam o Senegal e a Gmbia, na ponta ocidental da frica. Deve-se reparar que na mesma nota para esta estrofe, o termo naes encontra-se denido como raas, o que no mnimo merece uma interrogao. Logo na estrofe seguinte encontram-se outras noes geogrcas mas so colocadas misturadas ao campo do mtico. Narra-se provavelmente a passagem pelo arquiplago de Bijags, localizado na costa da Guin-Bissau, ilhas que hoje em dia formam uma reserva ecolgica da Unesco. O lugar ligou-se atmosfera mtica por ter-se acreditado que era habitado pelas trs Grgonas, ou Drcadas (V, 11). O texto camoniano referese ao local atravs da meno s trs irms. Depois da dcima segunda estrofe, em que narrada ainda a passagem pela Serra Leoa e So Tom, aparecem informaes sobre a costa do Congo, j como um reino
Cames utilizou-se reconhecidamente de muitas fontes da literatura de viagem de sua poca, o que j foi estudado e apontado por outros ensastas; acredita-se que nesse ponto especicamente, e em relao a grande parte da frica ocidental, seja devedor das informaes geogrcas trazidas pelo historiador Joo de Barros, mas infelizmente este estudo no poder entrar nesse demasiadamente vasto mbito.
possvel que alguns grupos tnicos ali presentes j estivessem islamizados tambm.
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cristo cortado pelo rio Zaire: Ali o mui grande reino est de Congo,/ Por ns j convertido F de Cristo, [...] (V, 13). Outro ponto interessante, mas no surpreendente em um portugus da dispora nem tampouco e sobretudo em um leitor da literatura de viagem da poca como Cames, aparece na voz de Tethys, no Canto X. Fica claro que o autor tem conhecimento do Imprio xona Monomotapa, uma civilizaao suntuosa (cujas runas ainda existem no Zimbbue, fronteira com Moambique. Tal imprio tinha relaes comerciais com partes do Oriente e teve seu apogeu no sculo XV, quando subjugou as tribos locais, na regio entre o Zambeze e o Limpopo (Cf. Secco, 1999: 11):
Olha essa terra toda, que se habita Dessa gente sem Lei, quase innita. V do Benomotapa o grande imprio, De selvtica gente, negra e nua, [...] (X, 92-93)
Prevalece ento a opacidade frente outra sociedade. Mesmo os homens de uma civilizao desse porte so reduzidos a uma massa de gente selvagem negra e nua, uma bruta multido, ou bando espesso e negro de estorninhos, como dir a estrofe seguinte. Mas nesta mesma h um trecho intrigante:
Olha as casas dos negros, como esto Sem portas, conados, em seus ninhos, Na justia real e defenso E na delidade dos vizinhos; (X, 94)
Em um pico com tantos conitos histricos entre portugueses e castelhanos, versos que mostram e estranham a conana em vizinhos podem signicar muito. O episdio da aventura de Ferno Veloso, narrado por Vasco da Gama, passado na costa ocidental da frica. O primeiro contato com o estranho habitante local, selvagem e de pele preta, resulta na captura deste per fora, sendo logo depois libertado. O africano, conta Gama, Nem ele entende a ns, nem ns a ele.. Em seguida seu povo aparece, Todos nus e da cor da escura treva. Desse bando negro, espessa nuvem, sairo setas e pedradas a afugentar os portugueses. Sobre os perigos daquela gente bestial, bruta e malvada, o prprio Veloso conta ao Gama para justicar sua corrida desenfreada e medrosa (V, 27-35):
Mas, quando eu pera c vi tantos vir Daqueles Ces, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estveis c sem mim. (V, 35)
O termo Ces utilizado para descrever esses habitantes tambm usado para designar mouros e indianos no decorrer do poema. Nesse caso, pode-se dizer que o olhar
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aquele que respalda (...) o prprio acto da conquista, como um bem, a ser feito ao cristianizar e civilizar aqueles povos (Secco, 2000: 40).
A viagem fez-se. Vencidos os obstculos, a esquadra avista Calecut em 17 de maio de 1498. Terra de Calecu, se no me engano, diz alegre no nal do Canto VI dOs Lusadas o piloto que os guiou desde Melinde. Conta o prprio dirio da viagem de Gama que no dia 20 de maio os navios j puderam ancorar em guas prximas cidade (Ramos, 1987: 501). Do descobrimento d-se o encontro; o espao conduz realmente, efetivamente, ao outro (Bornheim, 1998: 24). E no pico camoniano essa descoberta expe as imagens do oriental, do indiano, do hindu, a arquitetura, a vestimenta, os costumes, as crenas, a organizao social, poltica e econmica. Na chegada ndia, o poema faz uma descrio, inicialmente, dos reinos em que o imprio do Samorim dividido, e Calecut aparece como cabea de Imprio, rica e bela (VII, 22). O narrador central descreve o estranhamento da populao indiana frente ao mensageiro portugus encarregado de avisar ao rei local sobre a chegada:
Entrando o mensageiro pelo rio Que ali nas ondas entra, a no vista arte, A cor, o gesto estranho, o trajo novo, Fez concorrer a v-lo todo o povo. (VII, 23)
Ao ccionalizar a viso dos indianos sobre o portugus, Cames completa o sentido do encontro, do que se trata de descoberta e revelao. Descobrir implica um outro lado, o de ser tambm descoberto (Godinho, 1998: 65). Logo na chegada o mensageiro encontra um mouro cristianizado nascido na regio da Berberia, Monaide, que o recebe muito bem: com ele come e bebe. Vasco da Gama conversa com ele e surge mais uma vez a questo da lngua. Ouvindo clara a lngua de Castela, Gama colhe informaes sobre a terra e a gente indianas (VII, 28-29):
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Sabei que estais na ndia, onde se estende Diverso povo, rico e prosperado De ouro luzente e na pedraria, Cheiro suave, ardente especiaria. Esta provncia, cujo porto agora Tomado tendes, Malabar se chama; Do culto antigo os dolos adora, [...] (VII, 31-32)
Em sua narrativa, durante doze estrofes, Monaide conta a histria da converso de Samar Perimal6 ao islamismo e a conseqente diviso do imprio em vrios reinos, alm de retratar a sociedade indiana dividida em castas: a dos Naires, apresentada como nobre; a dos Poles, que no pode se misturar primeira. Descreve tambm os Bramenes, os Brmanes, os religiosos:
Das carnes tem grandssima abstinncia. Somente no venreo ajuntamento Tem mais licena e menos regimento. Gerais so as mulheres, mas somente Pera os da grao de seus maridos. Ditosa condio, ditosa gente, Que no so de cimes ofendidos! (VII, 40-41)
O contraste religioso e cultural extremo nesse momento do poema. Os sacerdotes da religio local so apresentados de maneira absolutamente contrria aos padres catlicos. As maneiras das mulheres e as unies matrimoniais so retratadas tambm como opostas s do uso europeu. O estranhamento no outro rearmado pela voz de Monaide; assim como este rearma tambm o discurso do narrador central, ou seja, da Proposio do poema. No episdio de So Tom, no Canto X, os Brmanes, sacerdotes dos Gentios, ou da gente inica, gente que os dolos antigos adorava, so responsveis pelos obstculos enfrentados por Tom em pregao na ndia; neles penetrado tinha enveja, por receio de perder a autoridade. exatamente o mesmo discurso de Monaide e do narrador principal, com as mesmas adjetivaes, s que agora rearmado na voz de Tethys (X, 108-119). Torna-se importante observar as tramas e o contexto em que o pico camoniano se encontra submerso quando parece demonizar o sacerdote hindu e as crenas, ou
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O Samar Perimal, de acordo com a nota de E. P. Ramos foi o ltimo soberano da ndia unicada (segundo a tradio). O texto camoniano conta que ao se converter ao Isl decidiu partir para Meca; para poder ir, dividiu seu imprio em reinos e os repartiu entre os seus (Ramos, 1987: 511).
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invalidar a instituio matrimonial do lugar. Mas imprescindvel tambm perceber a sutileza de algumas crticas e questionamentos espalhados pelos versos sobre os reais interesses portugueses. So pontos relegados quase sempre s entrelinhas, muito provavelmente pela prpria necessidade de passar pela rgida Inquisio em vigncia para que o livro existisse. A descrio das imagens religiosas feita explicitamente atravs de um olhar cristo7:
Ali esto das Deidades as guras, Esculpidas em pau e em pedra fria, Vrios de gestos, vrios de pinturas, A segundo o Demnio lhe ngia. Vem-se as abominveis esculturas, Qual a Quimera em membros se varia. (VII, 47)
Vistas como se esculpidas por inspirao demonaca, as imagens religiosas ou os dolos, como chama so descritas; uma tem na cabea cornos; uma num corpo rostos tinha unidos; outra, vrios braos; outra com fronte canina (VII, 48); so os mesmos Deuses vos, surdos e imotos da narrao da Ninfa (X, 15). A reao de espanto, curiosidade e medo que Cames recria. No contato com o desconhecido, com as imagens da religio alheia, o estranhamento parece agravado pela representao de divindades to pouco humanizadas, to diferentes das esttuas e imagens sacras do cristianismo catlico que inclusive j tinham sido atacadas pela Reforma como prticas de idolatria. Mas, para alm do medo, a ndia surge tambm como lugar de exotismo, fascnio e maravilhas, com jardins odorferos fermosos, aposentos reais suntuosos, construdos por entre arvoredos deleitosos, e mais uma srie de esteretipos que marcam a imagem do habitante e das terras locais (VII, 50-51). O sonho do rei D. Manuel tem um papel fundamental no poema no que se refere ndia e sua conquista. Nesse sonho, narrado por Gama no Canto IV, os dois rio que atravessam o territrio indiano aparecem ao rei portugus sob a forma de dois homens mui velhos e de aspecto venerando. A descrio assemelha-se de ancios indianos, ou sbios: A cor da pele, baa e denegrida,/ A barba hirsuta, intonsa, mas comprida (IV, 71). A cor da pele conrma, indianamente baa a cor do Ganges e do Indo, representantes de um povo e de uma terra. Quem dirige a palavra ao rei o rio Ganges, em uma das passagens mais intrigantes dOs Lusadas:
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Em minha dissertao de Mestrado as fontes desses versos so discutidas com mais detalhamento, no captulo intitulado Singradura Perfeita. Cf. Boechat, V. (2004). Singradura Perfeita. In Na rota das Navegaes: Sophia de Mello Breyner Andresen. Estudos de Literatura. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 72-106. Disponvel em rede na Biblioteca Digital do Sistema Maxwell, PUC-Rio.
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Ns outros, cuja fama tanto voa, Cuja cerviz bem nunca foi domada, Te avisamos que tempo que j mandes A receber de ns tributos grandes. (IV, 73)
Curiosamente, o prprio rio, que sagrado para os indianos, pede que Portugal domine seu territrio famoso e distante, e sua gente, recebendo, ento, os tributos grandes dessa conquista. Cleonice Berardinelli aponta a possibilidade de tal sonho representar uma desculpa para algum escrpulo de conscincia que permanecesse sob a sede de glria e poder do rei. Desculpa necessria, muito bem ressaltada pela co sempre alerta do Poeta e seus avessos (Cf. Berardinelli, 2000:105). O rio continua seu relato, que proftico em relao ao tempo de D. Manuel:
Custar-te-emos, contudo, dura guerra; Mas, insistindo tu, por derradeiro, Com no vistas vitrias, sem receio A quantas gentes vs pors o freio. (IV, 74)
Cleonice Berardinelli observa ainda que a imagem de pr freio to corrente na lngua portuguesa que muitas vezes ca esquecida a pea de metal que se pe na boca das cavalgaduras; esse sentido literal o que prevalece, j que na estrofe anterior o rio se refere a seus patrcios como aqueles cuja cerviz bem nunca foi domada. E o rei ento teria ganhado a permisso sagrada, vinda da prpria terra a ser dominada, para mandar pr freio e domar suas populaes, como animais (Berardinelli, 2000: 105). Na chegada ndia, alm de Monaide, outro personagem no-portugus ter bastante importncia no poema, o Catual. O termo usado para designar o cargo de governador de cidade ou praa no Malabar, devendo ainda, os catuais, obedincia ao Samorim, o imperador (Ramos, 1987: 512). Um desses governadores, tratado apenas por Catual, recebe Gama com festa; logo em seguida toma a palavra, porm refora a Proposio do poema: Aqui se escrevero novas histrias/ Por gentes estrangeiras que viro; [...] (VII, 55). O Catual pede informaes a Monaide, que adquire papel de intrprete, ao apresentar ambos os povos e possibilitar a comunicao entre eles. Esse mouro, que geralmente ajuda os portugueses, fala sobre eles, porm indica problemas futuros:
[...] na Africana Parte, cortando os mares procelosos, Nos no querem deixar viver seguros, Tomando-nos cidades e altos muros. (VII, 70)
O idolatra ardia de curiosidade (VII, 73), o que o leva, ento, Capitnia, onde encontra Paulo da Gama. O interesse do Catual, maravilhado com os estandartes que ali
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se vem, o que d margem para que quase metade do Canto VIII seja a rearmao da capacidade blica e das glrias histricas portuguesas, na voz de Paulo da Gama; uma intimidao, talvez. Mais um ponto que chama a ateno que a esquadra, ao partir para Portugal, leve especiarias vrias, mas tambm alguns Malabares, tomados Per fora, mesmo depois que os prisioneiros portugueses tinham sido devolvidos (IX, 14). Uma troca no to correta para quem adjetivado como gente verdadeira (VII, 72). Cames tem suas sutilezas.
4. De mouros inis
[...] aquele milagre de Ourique, celebrrimo, quando Cristo apareceu ao rei portugus, e este lhe gritou, [..], Aos inis, Senhor, aos inis, e no a mim que creio o que podeis, mas Cristo no quis aparecer aos mouros, e foi pena, que em vez da crudelssima batalha poderamos, hoje, registrar nestes anais a converso maravilhosa dos cento e cinqenta mil brbaros que anal ali perderam a vida, um desperdcio de almas de bradar aos cus. (Jos Saramago, Histria do cerco de Lisboa)
A presena moura na Pennsula Ibrica chega a cerca de oito sculos. Teve incio no ano de 711, com a chegada de um exrcito de soldados berberes que, atravessando o estreito de Gibraltar, empreendeu o incio da conquista da pennsula; terminou com sua expulso de Granada, no sculo XV. Com to longo perodo de convvio conituoso, era de se esperar que se tenha tornado extremamente profunda a marca da presena moura no imaginrio portugus. Talvez no seja vivel, em to curto ensaio, fazer um levantamento completo, ou mesmo detalhado, sobre o mouro nOs Lusadas, possivelmente o texto mais representativo deste imaginrio. A parte aqui dedicada a esta tarefa limita-se, assim, a procurar e destacar os pontos mais relevantes relativos ao muulmano no decorrer do poema. O plano temporal da histria portuguesa dentro das narraes de Vasco da Gama ao rei de Melinde e de Paulo da Gama ao Catual apresenta um entendimento mais amplo sobre a fora da presena moura em Portugal. Com excesso das guerras contra castelhanos, quase tudo o que se refere, no poema, a feitos histricos est ligado a alguma vitria sobre mouros. A batalha de Ourique, travada em 25 de julho de 1139, considerada como o facto mais clebre da histria dos sculos da luta contra os Mouros [...] pelo facto, pelo mito e pela desmiticao (Saraiva, 1993: 69). Nessa primeira grande batalha
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contra mouros narrada por Vasco da Gama no poema, os inimigos muulmanos, assim como em Salado, so valorizados em suas artes da guerra e em quantidade:
Que to pouco era o povo bautizado, Que, pera um s, cem Mouros haveria. [...] Que pera um cavaleiro houvesse cento. Cinco Reis Mouros so os inimigos, Dos quais o principal Ismar se chama; Todos exprimentados nos perigos Da guerra, onde se alcana a ilustre fama. (III, 43-44)
De acordo com Saraiva, todas as fontes so concordes em salientar o elevadssimo nmero de mouros, mas o exagero fazia parte desse gnero [crnicas] (Saraiva, 1993: 70). Ourique nOs Lusadas conrma uma das caractersticas mais marcantes desse pico, e da cultura portuguesa, a de construir uma espantosa sntese dialtica do literrio entre o mtico e o histrico (Silveira, 2000: 7). Na lenda e no poema, as tropas de Afonso Henriques receberam uma ajuda crucial, e mais do que ilustre, simplesmente do prprio Cristo, que surge ao rei na Cruz, milagre que anima os soldados a aclamar D. Afonso alto Rei de Portugal e a lutar novamente inamados (III, 45-46):
Qual cos gritos e vozes incitado, Pola montanha, o rbido moloso Contra o touro remete, que ado Na fora est do corno temeroso; Ora pega na orelha, ora no lado, Latindo, mais ligeiro que foroso, At que, enm, rompendo-lhe a garganta, Do bravo a fora horrenda se aquebranta: [...] (III, 47)
A semelhana com a descrio de touradas bvia, como salienta a nota desta estrofe (Ramos, 1987: 420) No a nica vez, no poema, em que mouros sero igualados a touros, ou outros animais Latindo e vale ressaltar que a mitologia crist liga irremediavelmente a imagem do chifre presena demonaca. O mouro atnito e torvado no foge, conado em sua capacidade blica, tendo em seguida o peito atravessado pela lana portuguesa (III, 50). Ao m da batalha, destroado o Mauro Hispano,
Trs dias o gro Rei no campo ca. Aqui pinta no branco escudo ufano,
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Que agora esta vitria certica, Cinco escudos azuis esclarecidos, Em sinal destes cinco Reis vencidos. E nestes cinco escudos pinta os trinta Dinheiros por que Deus fora vendido, Escrevendo a memria, em vria tinta, DAquele de Quem foi favorecido. (III, 53-54)
Nasce ento o escudo de Portugal, sob o signo da ajuda divina e da vitria sobre o mouro. Saraiva arma que a independncia portuguesa nessa poca se denia pela oposio a Castela (Saraiva, 1993: 70). possvel acrescentar ainda que a identidade portuguesa se fazia e fez-se durante sculos depois grande parte em oposio ao mouro. Pela diferenciao diante desse outro marcou-se cultural e historicamente o ser-se legitimamente portugus e catlico. Basta reparar, nesse sentido, que no prprio escudo de Portugal, at mesmo l, est eternizada a presena do outro, como sombra; esto l as cinco quinas, Em sinal destes cinco Reis vencidos. Tal contraposio encontrada na imagem da grande maioria dos heris de ambas as narraes dos irmo Gama. D. Afonso participa do cerco a Lisboa, para destruir o povo Sarraceno (III, 58), e ajuda a bani-lo de vrias regies. Sancho I faz correr vermelho o rio em Sevilha Co sangue Mauro, brbaro e nefando (III, 75) e depois tambm cercado em Santarm por Mauro povo cego, em uma batalha contra Treze Reis Mouros (III, 78-80), alm de diversas outras investidas contra o Isl. D. Fuas, No mar tambm aos Mouros dando a morte, em troca tem a glria/ da primeira martima vitria (VIII, 16). Da mesma sorte, Henrique de Bonn e Teotnio Prior ganham glria contra o povo de Mafamede (VIII, 18-19). D. Paio Correia com blica astcia ao Mouro ganha (VIII, 26). Os condes D. Pedro e D. Duarte de Menezes ganham estandarte com suas guras no texto pico por fazer cercos contra toda a Barbaria, na tomada de Ceuta (VIII, 38). Afonso II toma Alccer do Sal aos mouros, fazendo-os pagar por terem-no tomado primeiro (III, 90). Afonso IV vai em socorro da lha, D. Maria, rainha de Castela, contra as gentes Mauritanas. Segundo conta a rainha em sua splica ao pai, os muulmanos: Trazem ferocidade e furor tanto,/ Que a vivos medo, e a mortos espanto (III, 103). Cleonice Berardinelli aponta que preciso venc-los para dar incio arrancada rumo ao sul, que chegar ao Algarve e continuar pelo mar afora (Berardinelli, 2000: 58). A lista de heris e seus feitos imensa no poema, e nem sequer se abordou aqui o contedo das profecias, que, por sua vez, relatam diversas vitrias sobre o povo islmico nesse mar afora. NOs Lusadas, com o contato entre portugueses e muulmanos na frica e sia durante a viagem da armada de Vasco da Gama ndia, percebe-se que se mantm a oposio portugus-mouro.
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Na Ilha de Moambique, a gente estranha com quem a armada portuguesa se depara muulmana (I, 49) e fala a Arbica lngua, assim como nas outras regies da frica oriental em que os navegantes aportam. Um fator muito signicativo nessas paragens a viso do outro como portador de uma falsidade inerente, um dio ancestral, e inveja:
Porm disto que o Mouro aqui notou E de tudo o que viu, com olho atento, Um dio certo na alma lhe cou, H a vontade m de pensamento. u Nas mostras e no gesto o no mostrou, Mas, com risonho e ledo ngimento, Trat-los brandamente determina, At que mostrar possa o que imagina. (I, 69)
Entra em evidncia a diferena entre ser e parecer, muito marcante nesses personagens. Um personagem do plano temporal mtico participa na construo desse dualismo e da ambigidade nos muulmanos, Baco, que arquiteta a maior parte das ciladas contra a armada de Gama. Disfarado, vestindo forma e gesto humano, de mouro Velho, sbio e co Xeque mui valido (I, 77), Baco usa de falsidade para alertar o moambicano sobre os Cristos sanguinolentos (I, 79) e incitar o ataque mouro. Porm o bravo portugus consegue defender-se e castigar A vil malcia, prda, inimiga (I, 92). A torpe gente de Mahamede (I, 99) e torpe um de seus adjetivos mais recorrentes no texto consegue, ainda, em sinal falso de fazer as pazes, entregar falso piloto. J em Calecut, Baco, novamente ngindo ser o que no , aparece em sonho ao Samorim, em forma do dito Profeta falso, Maom, incitando-lhe desconana sobre as verdadeiras intenes portuguesas e sobre a prpria identidade de Vasco da Gama.
No que tange ao conito entre verdade e falsidade, no se pode deixar de desviar um pouco o foco dessa leitura para os portugueses, numa co em que Vasco da Gama chaga ndia com propostas de amizade entre o rei portugus e o Samorim Vnculo quer contigo de amizade (VII, 60) e que poucas estrofes antes, em mais uma das sutilizas crticas camonianas, esto registradas as reais intenes que movem os navios: Onde vem samear de Cristo a Lei/ E dar novo costume e novo Rei (VII, 15).
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muito difcil acreditar que dar novo Rei seja sinnimo da amizade mencionada pelo capito; os interesses da viagem colonialista, religiosa e mercantil saltam aos olhos, inclusive a manipulao do discurso apresentado ao outro, como j foi aqui mencionado. Da mesma forma, em Melinde, Gama arma:
No somos roubadores, que passando Pelas fracas cidades descuidadas, A ferro e a fogo as gentes vo matando, (II, 80)
isto, no mesmo poema em que a Ninfa e Tethys falaro, no Canto X, exatamente, e em uma longa lista, sobre os lugares tomados, dominados e arrasados, cidades invadidas e subjugadas pelo poderio blico portugus, por seu rei e por sua lei, em todo o globo aps os descobrimentos. Um ltimo ponto relevante a ser sublinhado, aqui mais como uma questo em aberto, foi certa vez apontado por Jorge Fernandes da Silveira em uma de suas aulas sobre Os Lusadas na graduao da UFRJ. curioso que no poema pico do descobrimento do mundo e do outro, entre todos os personagens no-cristos e no-europeus encontrados pela armada de Gama, o nico a ter direito a um nome prprio seja Monaide, justamente o nico mouro j cristianizado do poema.
Bibliograa
BERARDINELLI, Cleonice (2000). Estudos Camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ctedra Pe. Antnio Vieira, Instituto Cames. BORNHEIM, Gerd (1998). A descoberta do homem e do mundo. In NOVAES, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. So Paulo: Companhia das Letras. CAMES, Lus Vaz de (1987). Os Lusadas. Introduo, organizao e notas Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto. GODINHO, Vitorino M (1998). O que signica descobrir?. In NOVAES, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. So Paulo: Companhia das Letras. LOURENO, Eduardo (2002). Poesia e metafsica; Cames, Antero, Pessoa. Lisboa: Gradiva. SARAIVA, Jos Hermano (1993). Histria de Portugal. Lisboa: Alfa. SECCO, Carmem Lucia (1999). As conotaes do mar na potica moambicana. In Antologia do mar na poesia africana de lngua poertuguesa do sculo XX, 3. Rio de Janeiro: FL/UFRJ. (2000). Mito mar e memria na poesia africana do sculo XX. In Antologia do mar na poesia africana de lngua poertuguesa do sculo XX, 1. Luanda: Kilombelombe. SILVEIRA, Jorge Fernandes da (2000). Discurso/ desconcerto: alguns ns na literatura portuguesa. Srie Conferncias, 8. Rio de Janeiro: FL/UFRJ.
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Resumo: O presente ensaio prope-se a observar nOs Lusadas o conjunto de informaes acerca de povos no-europeus e no-cristos africanos, indianos e muulmanos no intuito de compreender as caractersticas e contradies apresentadas em tais imagens. Busca tambm estabelecer relaes entre estas imagens e os interesses e a identidade portuguesa naquele tempo de nascimento do conceito de humanidade. Abstract: The present essay observes in Lus Vaz de Camess masterpiece The Lusiads the inventory of information regarding non-European and non-Christian people Africans, Indians and Muslims. Therefore, it aims at understanding the characteristics and contradictions of their images. Also, it searches for establishing relations between those images and Portuguese interests and identities in a time which marked the birth of the concept of humanity.
Palavras-chave: Ana Hatherly, aforismo, Arcimboldo, bestirio, fbula, fragmento, hibridismo, koan, microconto, tisana. Key words: Ana Hatherly, aphorism, Arcimboldo, bestiary, fable, fragment, hybridism, koan, short short story, tisane.
Tisanas so um conjunto de composies poticas breves que Ana Hatherly escreve desde 1969, constitudo at agora de 463 fragmentos numerados, que a autora chama de poemas em prosa. Foram publicadas seis edies desse livro, entre 1969 e 2006, e a cada nova edio foram includos novos textos, que oscilam entre o aforismo, a parbola, a narrativa ccional, o koan budista, o verbete de dicionrio ou enciclopdia, o dirio e a fbula, dispostos de maneira aparentemente catica, descontnua, sem uma ordem seqencial linear. Este um work in progress que desaa a prpria classicao dos gneros literrios, bem como a distino tradicional entre prosa e poesia. O carter hbrido ou miscigenado dessa srie de escrituras foi notado por Pedro Sena-Lino, para quem estes textos inclassicveis no se enquadram em nenhum subgnero literrio, mas, ao contrrio, incorporam vrios subgneros, do poema em prosa ao microconto, at as fbulas (Sena-Lino, 2006). O leitor dessa obra, diz ele, ca desorientado por sua variedade de registros, subgneros e temas, sem saber com que aspecto do real, da co, do maravilhoso ou da desconstruo (ou de nenhum destes) lida em cada texto (ibid.). Em sua pesquisa criativa das formas da narrao potica, Ana Hatherly incorpora nas Tisanas elementos das mais diversas espcies de texto, inclusive dos bestirios medievais (nas Tisanas 6 a 14, por exemplo, os personagens so insetos, galos, peixes,
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porcos e serpentes) e das prosopopias (como na Tisana 15, que narra a saga de duas ervilhas, a Tisana 17, cuja protagonista uma chave, ou as Tisanas 16 e 18, em que a prpria palavra personagem). A autora faz incurses na teratologia, criando seres singulares como o papa-sombras (Tisana 63), o homem-tringulo (Tisana 73), o monoasa (Tisana 83), o homem elstico (Tisana 219), inventa naes fantsticas, maneira de Jonathan Swift, como a ilha dos nufragos (Tisana 93), a ilha onde se perdia o tempo (Tisana 94), a ilha de vidro (Tisana 98), a ilha de manteiga (Tisana 191) e o pas dos coveiros (Tisana 212); em outros fragmentos, parodia verbetes de enciclopdia (A sabedoria do amor consiste na aprendizagem pelo sofrimento, do prazer nele contido, diz a Tisana 30; A civilizao consiste em aprendermos a fazer naturalmente tudo o que no natural, lemos na Tisana 28), o discurso erudito (como nas Tisanas 370 a 373 e a 377, onde so citados Schopenhauer, Kafka, Benjamin e Lou-Andras Salom), a epistolograa (Tisana 2, escrita em francs) ou o livro de memrias, com descries de sonhos, viagens e encontros com amigos. Em outros fragmentos do livro, descreve invenes inteis ou fantasiosas como a mquina chamada o suicida (Tisana 54), em que uma bolinha percorre um aparelho engenhoso at cair num buraco e produzir o som TILT; o jogo de xadrez sem pedras, que deve ser jogado no escuro para a descoberta tacteante das peas ausentes (Tisana 71); e ainda a escada mole, por onde ningum conseguia descer a no ser caindo e a escada elstica, que no s no cansava nada como devolvia os que subiam instantaneamente ao nvel da partida (Tisana 82). A autora recria elementos da natureza, que so transformados em objetos e seres inverossmeis como a lagosta cbica citada na Tisana 225, o ninho de gelo referido na Tisana 227 ou o letramoto (terremoto de letras) da Tisana 268; imagina aes irrealizveis, relacionando-as de modo irnico com a noo de verdade, que orienta a nossa concepo do real: querer tocar com a mo as alturas; secar o mar; defender a verdade; acreditar no crer (Tisana 290). Estas inslitas operaes verbais, que alteram o sentido e a funo de palavras e coisas, conrmam a estratgia criativa da autora, para quem o que resta da natureza s ponto de partida para a inveno (Tisana 225). O deslocamento geogrco um tema recorrente ao longo do volume (Passei anos de minha vida nas salas dos aeroportos espera de autorizao para levantar vo, diz a Tisana 384). So numerosas as referncias a viagens areas, estaes, hotis e tambm a cidades visitadas, como Amsterd, Praga, Varsvia, Rio de Janeiro, Cairo, Anturpia, Nova Dli, Bombaim, sugerindo de maneira metafrica que toda escrita um movimento incessante, descoberta de novas paisagens e mescla de diferentes repertrios culturais. O espao narrativo nas Tisanas mltiplo, mas a dimenso temporal indeterminada: no h qualquer referncia cronolgica dos eventos, ao contrrio dos registros habituais na memorialstica e nas obras ccionais de cunho tradicional, o que nos faz recordar um comentrio de Michel Butor sobre a Comdia Humana de Balzac:
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Trata-se do que se poderia chamar um mbile romanesco, um conjunto formado de um certo nmero de partes que pode ser abordado quase que na ordem por ns desejada; cada leitor traar (...) um trajeto diferente; como uma esfera ou um recinto circular com muitas portas. (Campos, 1976: 28)
A mobilidade est presente no prprio processo de composio da obra, que a cada nova edio igual e diferente de si mesma: a primeira edio do livro surgiu em 1969, com o ttulo de 39 Tisanas; no ano seguinte, sai uma nova edio, intitulada 63 Tisanas, e at 2006 sairiam mais quatro distintas verses da obra, sendo a mais recente as 463 Tisanas, livro que inclui tambm trs proto-tisanas e duas quase tisanas. Tratase, portanto, de uma obra em metamorfose contnua e incessante escritura que faz do provisrio a sua prpria categoria de criao, pondo em questo (...) a idia mesma de obra conclusa, instalando o transitrio onde, segundo uma perspectiva clssica, vigeria a imutabilidade perfeita e paradigmal dos objetos eternos, para citarmos comentrio de Haroldo de Campos sobre o Livro inacabado de Mallarm (Campos, 1976: 19). O movimento o o condutor que percorre todos os fragmentos que compem o volume, onde nada aparenta ser esttico. Todas as tisanas relatam um acontecimento, diz a autora, so um acontecer ou um acontecido (Hatherly,1997: contracapa). Estas aes podem ser banais ou inesperadas, verossmeis ou inverossmeis, concludas ou apenas esboadas, mas constituem o ncleo central em torno do qual se desenvolve cada trama potica. Na Tisana 1, a ao se resume ao passeio de uma criana pelo campo at se encontrar a porta de uma quinta, onde h um co enorme; na Tisana 7, uma barata escorrega suas patas em malas de bra; na Tisana 163, um caramujo que vivia feliz numa panela sofre de insnia quando apagam a luz, e assim por diante. Nenhuma dessas aes tem um carter linear, de feitio realista ou naturalista; ao contrrio, como diz Nadi Paulo Ferreira, a narrao engendra encenaes que cercam uma tentativa de dizer o impossvel de ser dito, ou seja, o que Jean-Michel Ribettes denomina fantasia real (Ferreira, 1993: 350). Ana Hatherly enfoca o que h de involuntrio nos gestos habituais, sabendo que em cada acto h uma fantstica abstrao (Tisana 58), colocando a nu o absurdo do cotidiano. Todos os temas referidos nas Tisanas so organizados em sries, dispostas no livro de maneira assimtrica, assistemtica, acronolgica, com cruzamentos, variantes e interpolaes temticas e estilsticas fora de uma ordem presumvel, do tipo inciomeio-m. Podemos citar aqui Ana Marques Gasto, para quem Ana Hatherly recusa o esprito de sistema, aderindo a uma esttica do fragmento, ao pensar experimental, descontnuo (Gasto, 2006), e tambm Umberto Eco, quando se referia desordem fecunda na obra de arte contempornea, que signica a ruptura de uma ordem tradicional, que o homem ocidental acreditava imutvel e identicava com a estrutura objetiva do mundo (Eco, 1976: 23). O espelhismo entre as novas vises da realidade
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trazidas pela fsica quntica, que sucedeu ao rgido determinismo da fsica clssica, com sua correlata noo de certeza (Campos, 1977: 16), e as formas de representao esttica da vanguarda est presente na idia de que os conceitos clssicos de continuidade, de lei universal, de relao causal, de previsibilidade dos fenmenos (Eco, 1976: 205-206) caram por terra, dando lugar a outros vetores conceituais, como a ambigidade, a instabilidade, a descontinuidade, a assimetria, o indeterminado, a probabilidade. Conforme diz Eco, a incerteza tornou-se um critrio essencial para a compreenso do mundo (ibid.: 224). Com o eclipse das formas de investigao baseadas em modelos monolticos, prossegue o autor italiano, qualquer descrio nossa dos fenmenos atmicos complementar (...), uma descrio pode opor-se a outra, sem que uma seja verdadeira e a outra, falsa. Pluralidade e equivalncia das descries do mundo (ibid.). Ou ainda, conforme Werner Heisenberg, autor do princpio da indeterminao: O que estabelecemos matematicamente s em pequena parte um fato objetivo; em sua maior parte, uma viso de conjunto sobre possibilidades (Campos, 1977: 16). Este novo paradigma, diverso do mecanismo lgico da tradio aristotlica, encontra paralelos na criao artstica em obras como Finnegans Wake de Joyce, o Livro de Mallarm, as composies musicais de Cage, Boulez, Stockhausen, os mbiles de Calder, e nesta seara que podemos incluir as Tisanas, texto de inveno desenvolvido sob o signo da ambigidade. Conforme diz o verbete de dicionrio, o termo ambguo pode ser entendido como indeterminado, impreciso, equvoco, indeciso, imprevisvel e com duplo sentido (Hollanda, 1986: 102), acepes relevantes para a compreenso dessa potica instvel e plurvoca. O demnio da ambigidade manifesta-se desde o aspecto conceitual das Tisanas at o estrutural e o temtico; inclusive as personagens, ou vozes dramticas, esto situadas fora da rbita mimtica, com a despersonalizao de quem fala e a alterao das funes ou caractersticas de pessoas, objetos e cenrios. As narrativas so realizadas, em sua maioria, na primeira pessoa; porm, esse narrador no nomeado, assim como outros personagens prximos a ele, com poucas excees, como o porco domstico Rosalina, que assume eventualmente aes humanas, como ler a transcrio de um telefonema, datilografar, ir ao salo de beleza ou agncia dos correios (Tisanas 10, 11 e 29). De maneira similar, a prpria narradora assume as lides de uma abelha, entrando numa loja para comprar plen, com o objetivo de fabricar mel (Tisana 23). A sensao de estranheza obtida pela alterao ou deslocamento do sentido de palavras e aes, numa recongurao semntica distinta das perturbaes lxicas e sintticas realizadas por Haroldo de Campos nas Galxias ou por Paulo Leminski em Catatau, por exemplo; Ana Hatherly adota outra estratgia de composio, atribuindo semntica novos contedos e rotas de leitura: as palavras esto pervertidas porque so cmplices da infelicidade dos homens e s pode haver liberdade na transgresso (Tisana 62).
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H nas Tisanas um violento antilirismo, a recusa da sinceridade, ou verdade sentidamente biogrca, no dizer de Sena-Lino (2006), em favor do engenho formal e imaginativo. No por acaso, a epgrafe adotada por Ana Hatherly um adgio de Epimnides de Cnossos que diz: Todos os cretenses so mentirosos e nunca deixam de mentir, indicando, j no prtico da obra, a negao de uma suposta verdade, valorizada por uma poesia de ndole confessional ou subjetiva. Conforme diz a autora, as Tisanas pertencem a um mundo criado pelo discurso, construdo pelas palavras. o mundo da criatividade onde o autor surge como um cego a quem dado ver numa pequena pausa fria (T. 262). As Tisanas so uma meditao potica sobre a escrita como pintura e ltro da vida (Hatherly, 1997: contracapa). A palavra ltro, aqui, remete ao prprio ttulo do volume: tisana, termo que deriva do grego ptisne, pelo latim ptisana, signica, conforme os dicionrios, cozimento de cevada; medicamento lquido que constitui a bebida comum de um enfermo (Hollanda, 1986: 1682), ou, segundo a prpria autora, infuses e no efuses, ou excessos lricos ditados pela inspirao (Hatherly, 2006a: 14), prprios de um romantismo anacrnico em relao s poticas da modernidade, satirizado na Tisana 35 (ah era poeta liricamente eu estava no estado privilegiado de sintonia e no sei talvez desejasse evocar a antiga lira dizer o que nunca me permiti dizer sabes palavras como saudade a primeira vez que escrevo coisas assim, texto pardico construdo maneira do uxo de conscincia joyceano, sem sinais de pontuao). Tisana um composto com nalidade teraputica e poderamos dizer que, neste livro, trata-se de um irnico medicamento elaborado para despoetizar a poesia, pelo uso da prosa em vez do verso e pela recusa de uma retrica do eu, que cede lugar pintura de eventos. A palavra tisana tambm nomeia o gnero potico criado pela autora a partir da mescla singular de outros gneros, numa escrita que incorpora os recursos estilsticos da poesia experimentalista, como o uso exclusivo de letras minsculas em algumas sees, a elipse e o uso no-gramatical da pontuao, alm de tropos tradicionais como o oxmoro, a hiprbole e a metonmia. Cada pea tem como ttulo apenas um nmero, e assim temos a tisana do amor sem par (293), a tisana de preo fantstico (294), a tisana de amor tranqilizante (295), a tisana do tempo (339), a tisana dos vizinhos (342), a tisana do sofrimento (382), a tisana da mulher (409), entre outras, de extenso desigual, nem sempre identicadas com esse complemento. A ironia um elemento construtivo essencial ao jogo intelectivo proposto pelas Tisanas, e convm recordar o seu sentido etimolgico: o termo deriva do grego eironeia, que signica interrogao. Esta gura, formada pela fuso da idia e do seu contrrio (Gasto, 2006), pode apresentar-se no texto de maneira paradoxal, trgica, risvel ou niilista (ibid.), parafraseando Schiller, dando fora de expresso emocional inteno crtica. A ironia, cidadela do inteligente (Pound, 1988: 127), colabora com o objetivo da autora, revelado no prefcio do volume, que realizar uma pesquisa da
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realidade atravs do estudo das estruturas da narrativa e da linguagem, bem como de suas correspondentes estruturas lgica e psicolgica (Hatherly, 2006a: 13). Nessa jornada crtico-criativa, inspirada, conforme diz a prpria autora, nas teorias da lingstica ps-saussuriana, no estruturalismo e no budismo zen (ibid.), ela utiliza uma tcnica de destruio da certeza e uma indeterminao deslizante (ibid.) para perturbar a estabilidade das formas de representao no discurso potico-ccional, sugerindo que o nosso conceito de realidade apenas um reexo da maneira como organizamos a linguagem e o pensamento, um tema caro doutrina zen. Conforme diz a autora, as Tisanas so uma reexo sobre a iluso da verdade que a arte, uma reexo sobre a cultura como projeo da inveno do real (Hatherly, 2006a: 14). Para concretizar sua meta de questionar as noes convencionais de arte e mundo, Ana Hatherly parodia (no sentido grego da palavra, canto paralelo) a forma narrativa dos koans, textos tradicionais zen-budistas em que o humor e o non sense so utilizados para perturbar a lgica habitual do discurso e, com isso, abalar a nossa viso rotineira da realidade, permitindo uma compreenso intuitiva e imediata dos fenmenos. Conforme diz Paulo Leminski em sua biograa de Matsuo Bash,
H centenas de koans, reunidos em grandes colees, com os ditos e feitos dos mestres mais famosos. Nas comunidades, os mestres apresentam, oralmente, um koan, para que o discpulo concentre-se, durante um tempo, que pode ser longo, trabalhando mentalmente sobre ele, absorvendo sua outra lgica. (Leminski, 1983: 73)
Como ilustrao dessa singular variante da parbola, que Leminski aproxima dos ensinamentos dos lsofos cnicos gregos, como Digenes, que caminhava luz do dia com uma lanterna, procura de um homem honesto (ibid.: 72), citamos um koan coletado por Taisen Deshimaru que narra a desavena entre a cabea e o rabo de um animal, que no chegavam a um consenso sobre quem deveria seguir atrs e quem caminharia na frente. Aps uma discusso, a cabea cede o seu privilgio ao rabo, mas, como este no tinha olhos, precipitou-se num buraco e ambos morreram na queda (Deshimaru, 1983: 33). Outra histria tradicional coletada por Deshimaru conta a histria de um pssaro de duas cabeas, ambas gulosas, que viviam em desavena por causa da disputa por comida. A cabea da esquerda, querendo todo o alimento para si, incita a cabea da direita a ingerir uma erva venenosa, acreditando que com a morte da rival caria enm livre para comer tudo o que desejasse; porm, o veneno causa a morte das duas (Deshimaru, 1983: 32). Conforme diz Ana Hatherly, os koans causaram-me uma profunda impresso e, em termos estruturais, deixaram sua marca na minha concepo das Tisanas (Hatherly, 2006a: 13), o que ca ntido, especialmente, na Tisana 12:
Era uma vez duas serpentes que no gostavam uma da outra. Um dia, encontraram-se num caminho muito estreito e como no gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra no cou nada. Esta histria tradi-
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cional demonstra que se deve amar o prximo ou ento ter muito cuidado com o que se comer (sic). (Hatherly, 2006: 23)
H numerosas anidades estilsticas entre o koan e a tisana como o humor, o paradoxo, a ao sbita, a aparente simplicidade textual e as denies por meio de imagens enigmticas, recurso que recorda procedimentos do barroco. Em A experincia do prodgio, bases tericas e antologia de textos-visuais portugueses dos sculos XVII e XVIII, de Ana Hatherly, lemos uma citao de Telo Braga, que dene o enigma como o exerccio de uma linguagem mtica em que as relaes de analogia so um rudimento de especulao e um primeiro estmulo mental (Hatherly, 1983: 224). Na mesma obra, Ana Hatherly arma que o gosto pela decifrao se baseia num conceito de que o signicado do mundo oculto (...) e nos obriga ao constante esforo da escolha atravs da interpretao. (ibid.: 222). A obteno da sabedoria por meio da decodicao de enigmas e paradoxos a meta do koan, mas, ao contrrio da relao fruitiva entre o espectador e a obra de arte no perodo barroco, em que o enigma poderia ser decifrado por quem conhecesse certo repertrio de smbolos, na relao do discpulo com o koan impera a perplexidade, j que nesse caso o enigma no tem respostas previamente estabelecidas, mas oferece, a partir de sua enunciao, toda sorte de experincias imaginativas, verbais ou no-verbais, que solucionam a questo proposta de maneira inusitada, intuitiva e no racional (Voltemos ao Koan. O que o sentido? Uma mala fechada que nunca teve fecho. Eis a ironia da humildade, diz a Tisana 275). Podemos considerar o koan como um mecanismo sutil que conduz a uma pluralidade de rotas de leitura e de construo de signicados (assim como a obra aberta na denio de Eco), e no como um mistrio decifrvel a partir de uma nica via interpretativa. A pintura outro elemento-chave na concepo estrutural das Tisanas, em que imagens e smbolos so agrupados de maneira alegrica (no por acaso, a autora se dene como um poeta-pintor na Tisana 348). Notamos, nessas aquarelas semnticas, um culto da retrica da imagem, a prtica constante do contraste e do exagero (Hatherly, 1997: 17) e um sentido ldico que rege a combinao das formas, como um demiurgo secreto. A representao de seres e eventos, nessas narrativas poticas, obedece a uma lgica da metamorfose, para citarmos uma expresso de Claudio Willer a respeito dos Cantos de Maldoror (Lautramont, 2004: 49), que altera e recombina a natureza e as funes dos objetos, numa operao de linguagem que recorda por vezes Arcimboldo (Era uma vez um mar de espaguete em que as praias eram de arroz doce, lemos na Tisana 86; vejo um grupo de velhos atletas desmobilizados dormindo como uvas em cacho, diz a Tisana 62; o artista ainda citado nominalmente nas Tisanas 58 e 130), e mesmo Lautramont e os procedimentos surrealistas (Era uma vez um relgio anacrnico. Quando batia as horas estas rolavam pela sala e depois transformavam-se em lindas mas de prata que se penduravam do teto, Tisana 70). Longe de buscar a alucinao ou o encantatrio, porm, Ana Hatherly faz uso da alquimia de imagens e
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do inverossmil com um sentido irnico, que se aproxima da caricatura e do absurdo intencional, para fazer a crtica do discurso e da prpria realidade, ao mostrar as ambigidades, dissimulaes e conitos entre a forma e o sentido de palavras e situaes humanas (e convm aqui lembrar que no pensamento budista, assim como na arte barroca, temos a idia de que o mundo uma grande iluso, um jogo ou um sonho, em comparao com o estado ilimitado do transcendente). A poesia aproxima-se da pintura para expressar, de maneira mais intensa, o carter transitrio, mutvel, ridculo ou tenebroso da histria pessoal e coletiva que costumamos chamar de realidade. Na Tisana 61, a autora aproxima-se de um estilo mais agressivo, beirando o grotesco, que recorda a tela Boi esquartejado, de Rembrandt (acervo do Museu do Louvre), ou ainda o trabalho pictrico de Francis Bacon:
vejo minha esquerda uma vitela inteira, viva e de p mas sem pele nenhuma, com os msculos vermelhos e as inseres dos msculos e dos tendes perfeitamente azuis. Que maneira de conservar a carne fresca penso eu olhando a vitela. Voltando o rosto para o carniceiro que cortava nesse momento alguns bifes vejo que tambm ele no tem pele alguma sobre a sua prpria carne e que os seus msculos, como os da vitela, so intensamente vermelhos e as inseres dos msculos perfeitamente azuis. Mais tarde contei tudo isto aos meus amigos mas eles disseram isso no pode ser. (Hatherly, 2006: 48)
A utilizao de recursos pictricos na escrita, alis, um tema recorrente na obra de Ana Hatherly, para quem poesia e pintura convergem num ponto essencial, que no apenas o da imitao, ligado aos conceitos de verdadeiro e verossmil, como arma em O ladro cristalino, um estudo sobre a poesia e as artes visuais no perodo barroco portugus (Hatherly, 1997: 15). Essa convergncia entre escrita e imagem pictrica ocorreria sobretudo no campo da simbolizao, destinada a transmitir os valores morais ocultos nas aparncias do real, ou seja, na realidade no imediatamente apercebvel pelos sentidos (ibid.). No caso da poeta portuguesa, e ao contrrio do que acontecia com os artistas barrocos, no existe uma preocupao de ndole teleolgica, nem a propaganda da salvao eterna, pela representao dramtica dos vcios e das virtudes, mas est presente a idia moral possvel em nossa poca sem utopias: a liberdade de pensar o mundo, a escrita e a si mesmo como seres mutveis, hbridos, contraditrios, que no esto xos ou imobilizados em nenhuma hierarquia ou sistema atemporal de valores. Essa mobilidade talvez o elemento essencial para a compreenso das Tisanas, uma obra em progresso que recusa a vocao para o eterno ou imutvel, incorporando a instabilidade e a mutao como eixos de construo formal e de leitura, numa metfora oblqua de nosso prprio estar no mundo.
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Bibliograa
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Resumo: Tisanas um conjunto de poemas em prosa de Ana Hatherly que mesclam diferentes formas narrativas, como a fbula, a parbola, o verbete de enciclopdia, numa escrita hbrida e pardica, sem uma seqncia linear. Os temas so organizados em seqncias assimtricas, assistemticas, com cruzamentos, variantes e interpolaes temticas. Abstract: Tisanas is a selection of prose poems written by Ana Hatherly, which mingles different narrative styles such as fable, parable and encyclopedia entries in a hybrid and parodic form, without a linear sequence. The themes are organized into asymmetric and irregular sequences, with variants, intersections and interpolations.
Palavras-chave: Octavio Paz, Modernidade, poeta-crtico, dialtica entre as obras crtica e potica, anlise de El Arco y La Lira. Keywords: Octavio Paz, Modernity, poet-critical, dialectic between critical and poetical works, analysis of El Arco y la Lira.
Introduo
Ao lado de Los Hijos del Limo (1972), El Arco y la Lira1 (1956) representa a suma potica de Octavio Paz (Mxico1914 / 1998Mxico). Neste ltimo volume concentrase praticamente todo o entendimento e esforo paziano em analisar a poesia, ocidental e oriental, e seus desdobramentos na modernidade. possvel armar, a despeito da obra prolca erigida por Paz, que toda suas teorias poticas j constam em El Arco y la Lira, ainda que embrionariamente, e se desenvolvem ao decorrer da ensastica e da poesia do poeta mexicano. Livro central, portanto. Tanto para o desdobramento da obra paziana quanto para a elucidao dos impasses estticos da modernidade literria. a partir desse volume que Octavio Paz insere-se no rol dos grandes poetas-crticos modernos, ao lado de T.S. Eliot e Ezra Pound, para somente apontar-se os mais clebres e cannicos. A denio poeta-crtico, guardadas as eventuais ressalvas tericas que o termo possa suscitar, a melhor forma de caracterizar um autor que, paralelamente escritura de criao
Para efeitos deste estudo se levar em conta a segunda edio de 1957, que incorporou como eplogo o ensaio Los signos en rotacin, mantido inclusive na obra completa organizada pelo prprio Paz.
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potica, tinha um mpeto voraz em analisar, questionar, criticar o arquivo literrio e propor teorias acerca dos poetas de seu tempo. Leyla Perrone-Moyss escreveu de maneira exemplar sobre o tema do poeta-crtico:
Contrariamente aos crticos de prosso, que pretendem analisar e classicar as obras segundo princpios implcitos, pretensamente objetivos e universais, os escritores [escritores-crticos] estabelecem e assumem pessoalmente os princpios que regem seus julgamentos de valor. Os autores escolhidos por eles so, ao mesmo tempo, a fonte e a conrmao desses princpios. (Perrone-Moiss, 1998: 144)
Em Paz vericvel alguns elementos tipicadores do poeta-crtico propostos por Leyla Perrone-Moiss, cujo estudo inventariou a axiologia de uma certa modernidade literria (1998: 154). Tais valores so: maestria tcnica, conciso, exatido, visualidade e sonoridade, intensidade, completude e fragmentao, intransitividade, utilidade, impessoalidade, universalidade e novidade. Essas valncias esto presentes em Paz, principalmente a maestria tcnica, a completude e a fragmentao, e a universalidade, conrmados pelos poemas Piedra de sol e Blanco, conforme se ver. Esclarecido o aparente oxmoro do termo poeta-crtico, prope-se neste estudo apontar a tenso dialtica entre a obra crtica e a sua fatura na obra potica, como elemento caracterizador do poeta moderno, tendo por objeto de anlise o importante volume El Arco y la Lira. Aponte-se, porm, que no se trata de esgotar o volume ensastico, mas assinalar as tpicas que tangenciem o eixo dialgico aduzido, na tentativa de demonstrar a hiptese auspiciada. Por bvio, e para diminuir-se o risco de ser simplista e redutor, sabe-se que desde o incio da escrita literria os intelectuais escrevem seus manuais poticos e retricos, sendo que a antiguidade greco-latina est repleta de exemplos de poticas, algumas escritas por lsofos, outras escritas por poetas, cujo exemplo mais ilustre a Epistola ad Pisones de Horcio, que chega aos dias de hoje sob o ttulo acadmico de Arte Potica. Seria possvel deduzir, portanto, que a tenso dialtica imposta como hiptese de investigao deste estudo seja imanente escrita potica, e como de fato, quase sempre o . Entretanto, o recorte aqui proposto pressupe que o dilogo entre a seara ensastica e a potica seja decorrente de um projeto de modernidade essencialmente crtica e consciente de sua pulso inquiridora e criativa. Em outras palavras: possvel constatar-se a modernidade, em Octavio Paz, materializada na explorao criativa do campo hermenutico da obra ensastica; e, por sua vez, a obra poemtica fundamentada na problematizao dessa modernidade para a aferio de sua poeticidade, inaugurando um eixo de auto-referencialidade de rara pluralidade semntica, em que a cadeia comunicacional projeta-se pela tenso sempre renovada entre o campo hermenutico crtico e a poeticidade da obra potica e viceversa.
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Para fundamentar-se a anlise do El Arco y la Lira, sero colacionadas passagens de poemas pazianos que corroboram a hiptese aventada, sendo, ao nal, exposto um breve comentrio guisa de concluso, que vericar se a hiptese passvel de comprovao dentro da estratgia de abordagem proposta para este estudo.
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potico, tanto no plano formal, da enunciao, quanto no plano do enunciado, j que Paz elege seus precursores de maneira a projetar a sua prpria obra, dialeticamente. Veja-se uma passagem de El Arco y la Lira que ilustra a eleio desse cnone:
Parece ocioso citar a Milton, Dryden e Pope. Estos nombres evocan un sistema de versicacin opuesto a lo que podra llamarse la tradicin nativa inglesa: el verbo blanco de Milton, ms latino que ingls, y el heroic couplet, medio favorito de Pope. Sobre este ltimo, Driden deca que it bounds and circunscribes the Nancy. La rima regula a la fantasa, es un dique contra la marea verbal, una canalizacin del ritmo. La primera mitad de nuestro siglo ha sido tambin una reaccin latina en direccin contraria al movimiento del siglo anterior, de Blake al primer Yeats. (Digo primer porque este poeta, como Juan Ramn Jimnez, es varios poetas.) La renovacin de la poesa inglesa moderna se debe principalmente a dos poetas y a un novelista: Ezra Pound, T. S. Eliot y James Joyce. Aunque sus obras no pueden ser ms distintas, una nota comn las une: todas ellas son una reconquista de la herencia europea. Parece innecesario a aadir que se trata, sobre todo, de la herencia latina: poesa provenzal e italiana en Pound; Dante y Baudelaire en Eliot. En Joyce es ms decisiva an la presencia grecolatina y medieval: no en balde fue un hijo rebelde de la Compaa de Jess. Para los tres, la vuelta a la tradicin europea se inicia, y culmina, con una revolucin verbal. (Paz, 1994: 95)
Torna-se claro, segundo o excerto acima, quais so os poetas com que Paz dialoga e se lia, ao analisar sincronicamente o cnone dos poetas provenais at os modernos, elegendo-os como precursores do projeto esttico do qual Paz ser um dos continuadores, ainda que no arme no texto expressamente tal idia. Outra caracterstica do texto paziano, muito visvel no primeiro pargrafo referenciado a aproximao da prosa potica (ou narrativa lrica como preferem os estudiosos portugueses) ao texto crtico. A construo do texto difere de uma ensastica acadmica ou de investigao tpica, como observou Maria Esther Maciel:
Se tomarmos, por exemplo, os textos crticos de Eliot, veremos que apresentam marcas de um ensaio convencional, onde o dito se sobrepe ao dizer. Ainda que escritos em linguagem desenvolta e despida de pretenses cientcas, apresentando eventualmente um eu que busca justicar a prpria viso crtica a partir de sua condio de poeta, o potico entra apenas como objeto e nunca como estrutura do texto. O texto de Paz, alm de dialogar com um fazer potico, ele mesmo uma poisis. (Maciel, 1995: 147-8)
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Denota-se, portanto, a presena de um hibridismo de gneros, sendo que Paz, assumidamente, contamina sua escrita ensastica com a pulso potica2, dominante em todo o discurso de El Arco y la Lira. Pode-se referir um poema correspondente, ao que concerne o tema poesia e poema, corroborando o armado sobre o hibridismo de gneros:
Palabras, frases, slabas, astros que giran alrededor de un centro jo. Dos cuerpos, muchos seres que se encuentran en una palabra. El papel se cubre de letras indelebles, que nadie dijo, que nadie dict, que han cado all y arden y queman y se apagan. As pues, existe la poesa, el amor existe. Y si yo no existo, existes tu (...) El poema prepara un orden amoroso. Preveo un hombre-sol y una mujer-luna, el uno libre de su poder, la otra libre de su esclavitud, y amores implacables rayando el espacio negro. Todo ha de ceder a esas guilas incandescentes. (Paz, 1995: 214-5)
patente a preocupao paziana em abarcar o tema nas duas searas de sua obra. Atente-se para o ttulo do poema citado: Hacia el poema (Puntos de partida)3 e pelo fato de se tratar de um poema em prosa, intensicando a interferncia entre os gneros, como se Paz j no diferenciasse as duas searas de sua obra, sendo que a crtica terica, por assim dizer, investisse na feitura do poema e a poeticidade do poema repercutisse no obra ensastica, criando a auto-referencialidade e a pluralidade semntica aludida na introduo deste estudo. T.S. Eliot j havia atentado para a funo criativa da crtica, no entanto no aplicava sua ensastica a pulso criadora, conforme consignou a citao declinada mais acima de Maria Esther Maciel. Leia-se:
Se de fato uma extensa parte do ato criador envolve a crtica, no seria autenticamente criadora uma extensa parte do que chamamos textos crticos? Nesse caso, no estaramos diante do que seria propriamente crtica criadora? A resposta parece ser a de que no se trata aqui de nenhuma equao. Admiti como axiomtico que uma criao, uma obra de arte, autotlica; e que a crtica, por denio, opera sobre algo que lhe distinto. Consequentemente, podemos fundir criao com crtica como podemos fundir crtica com criao. A atividade crtica encontra sua suprema
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Leia-se a viso de Enrico Mario Santi: Cmo escribir acerca de la poesa de Paz sin hacer uso de sus ensayos? Cmo explicar su poesa sin hacer eco de sus ideas (Santi, 1997: 246). Este poema tem duas verses diferentes em portugus, uma por Haroldo de Campos e outra por Horcio Costa. Campos traduziu o ttulo da seguinte forma: Para o poema (Pontos de Partida) (Campos, 1986: 197); j, Costa, traduziu: Em direo ao poema (Pontos de Partida) (Paz, 2001: 157). Na verso de Costa a idia programtica que o poema evidencia torna-se mais latente, como se fosse necessrio chegar de um ponto a outro, e no somente indicar tpicos para o poema, j que dirigir-se ao poema importa percorrer o desconhecido de si e do mundo, idia mais prxima inteno paziana.
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e verdadeira plenitude numa espcie de unio com a criao do trabalho do artista. (Eliot, 1989: 58)
Outra observao importante acerca das preocupaes construtivas do texto crtico paziano vericvel pela nota de rodap nmero I (Paz, 1994: 74). incorporada s edies de El arco y lira a partir de 1964, em que Paz atualiza seu pensamento acerca da frase ser a unidade mnima auto-suciente da linguagem, adequando-o s descobertas da Lingstica, em especial pela teoria de Roman Jakobson, que propalava como unidade mnima signicativa o morfema. Essa alteridade entre pensamento ensastico e preocupao com o desenvolvimento do processo de conhecimento acadmico-cientco denota o dilogo fulcral da metodologia paziana aplicada construo de seus textos. Esse mtodo, na falta de um termo mais preciso, pode ser lido como a essncia do esprito criticista e inquiridor da modernidade, em que todas as esferas da cultura se interligam dispostas a anularem a relao linear entre informao e arte, autor e obra; passando a impor uma relao mltipla, por vezes contraditria, altamente crtica e seletiva entre o substrato cultural e a produo ensastica e potica. Ou seja: a linguagem quase sempre potica e hbrida, porm as informaes tm preocupao acadmica, cuja validade epistemolgica Paz vericou durante as dcadas de reedies do livro. Como visto, o iderio paziano rejeita a diacronia da histria, e esse tema passa as ser de essencial interesse para o desenvolvimento de suas teorias, perpassando todo o volume de El Arco y la Lira. Em Paz, o que histrico o estilo e no a poesia. Em suas anlises, o grande poeta aquele que transcende a limitao temporal do estilo histrico, bem como o prprio poema, pois somente pode encarnar-se na histria quando negar a histria: Como la creacin potica, la experiencia del poema se da en la historia, es historia y, al mismo tiempo, niega la historia (Paz, 1994: 51). Esse trusmo proposto por Paz prenuncia a idia, de tradio da ruptura que ser desenvolvida amplamente no volume Los Hijos del Limo, eixo apical para a compreenso da Modernidade em Octavio Paz. Leia-se a percuciente anlise de Maria Esther Maciel:
Da a j mencionada relao ambgua da poesia moderna com a histria concebida como sucesso. Ela ingressa no uxo temporal, ao mesmo tempo em que faz a crtica da cronologia, colocando em coexistncia o presente e o passado reinventado. Ela pluraliza, assim, luz da agoridade, tanto o conceito de tradio quanto o de novo, evidenciando, de certa maneira, a controvertida tese de Valry segundo a qual o poeta moderno entra no futuro em marcha a r. nessa medida que o termo paziano tradio da ruptura pode designar tanto a ruptura explcita com o passado imediato quanto a ruptura silenciosa com os prprios valores da Modernidade. (Maciel, 1995: 192)
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Em Paz, como constatado, tanto a tradio quanto a histria so ferramentas ambguas que podem ou no encarnarem a modernidade, dependendo da profundidade da ruptura que a leitura sincrnica do acervo literrio operar. Urge neste instante esclarecer um ponto crucial: em Paz o termo ruptura no possui o condo de rompimento total com a tradio, seja imediata ou antiga. H, no entanto, uma sobreposio de modernidades, como camadas esttico-conceituais que se ampliam e retroagem de acordo com as convices e o contexto histrico instaurador da modernidade. Ao emparelhar dois termos naturalmente antitticos como tradio e ruptura, Paz demonstra a esteira paradoxal em que a poesia moderna desenvolvese. Conforme demonstrou Maria Esther Maciel:
Ao se armar como contnua descontinuidade, a Modernidade se revela, assim, como um conjunto fragmentado de modernidades. Do que advm no s sua pluralidade e sua heterogeneidade, como a diculdade de se deni-la. Com diz Henri Meschonnic, ela , simultaneamente, indivisvel e irredutvel unidade, tecendo menos denition do que innition. (Maciel, 1995: 180)
A relao, alis, em Paz, de todos os termos expostos at agora, so sempre conitantes e possuem vrios sentidos, dependendo de como empregados, sendo que, pelas citaes de Maciel infere-se que at a prpria modernidade relativizada pelo vis crtico-histrico que Paz empreende, e pela citao de Gonzalez verica-se que somente a criatividade (ou crtica criativa) pode entender as expanses da arte. Como se tem demonstrando, o aparato crtico paziano reete em sua produo potica. Um exemplo clebre o poema Piedra de Sol (1957). Conforme a anlise rmada por Horcio Costa:
De manera unnime, los estudiosos de la obra de Octavio Paz seala el papel fundamental de Piedra de sol, en su trayectoria potica. El carcter de este poema largo se vincula a la produccin ensaystica del poeta en la poca de su escritura, especialmente El arco y la lira. Judith Bernard considera Piedra de sol su most ambitious poetic creation and [] a declaration of his poetic creed mientras que Jos Emilio Pacheco dice: Dentro de esa capacidad admirable para cambiar sin traicionarse nunca a s mismo, Paz [en Piedra de Sol], inici una etapa a la que debemos, junto con
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sus mejores ensayos, libros excelentes como Salamandra (1962), Ladera este (1969) y otros dos grandes poemas: Viento entero (1965) e Blanco (1967) que, con serlo, y contrariando el juicio del autor, no creo superen a Piedra de Sol. (Costa, 1998: 345)
Neste poema, Paz recapitula o calendrio Asteca representado pela pedra de sol, tecendo correspondncias entre a estrutura poemtica e a simbologia mtica do ano venusiano, sendo que cada verso equivale a um dia venusiano, no total de 584 rotaes solares ou versos, sendo que ... el poema termina, literalmente en su comienzo. As, volvemos a encontrar al nal los mismos cinco versos y el hemistiquio del sexto del principio (Schrer-Nussberger, 1989: 130). H uma trama intrincada de relaes mitolgicas com o acervo histrico das civilizaes ancestrais mexicanas que resgatado e redimensionado, para o perodo de escritura do poema, como a passagem acerca da Guerra Civil Espanhola: Madrid, 1937/ en la Plaza del ngel las mujeres/ cosan y cantaban con sus hijos,/ despus son la alarma y hubo gritos,/ casas arrodilladas en el polvo,/ torres hendidas, frentes esculpidas... (Paz, 1995: 253), para citar-se apenas um exemplo. Dada a complexidade do poema e todas as suas facetas, seria necessrio um estudo detalhado somente para ele, o que no o objetivo deste estudo. No entanto, o que se quer demonstrar como Paz relaciona o passado remoto mexicano com o sculo vinte e como essa relao fruto de suas teorias, em especial de El Arco y la Lira, atentando para o fato de que ambas as obras foram escritas em um perodo muito prximo de tempo, no incio dos anos 50, e que o poema brevemente posterior ao livro ensastico. A interpenetrao do tempo mtico com a modernidade dada, na estrutura de Piedra de sol, por um procedimento caro aos modernistas: o simultanesmo. Esse processo cria no bojo do poema a sensao de mistura temporal, borrando as barreiras entre o incio e o m de cada poca, processada pela circularidade referida por SchrerNussberger. Pode-se supor, mesmo sendo uma ilao extensiva, que Paz utiliza a idia metafrica do ano venusiano tambm para indicar o carter cclico da apreenso temporal humana. Esse ciclo, transportado para a seara crtica, pode ser aproximado aos ciclos de leitura sincrnica do cnone paziano. Ou seja, o tempo reelabora a tradio luz de conceitos e acontecimentos atuais da histria, notadamente exposta na frase: La poesa no es nada sino tiempo, ritmo perpetuamente creador (Paz, 1994: 52), reavaliando a histria por uma reescritura da histria, assim como o poema emaranha o tempo histrico. Leia-se um excerto do poema, ilustrativo de algumas caractersticas j indicadas:
todo se transgura y es sagrado, es el centro del mundo cada cuarto,
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es la primera noche, el primer da, el mundo nace cuando dos se besan, gota de luz de entraas transparentes el cuarto como un fruto se entreabre o estalla como un astro taciturno y las leyes comidas de ratones, las rejas de los bancos y las crceles, las rejas de papel, las alambradas, los timbres y las pas y los pinchos, el sermn monocorde de las armas, el escorpin meloso y con bonete, el tigre con chistera, presidente del Club Vegetariano y la Cruz Roja, el burro pedagogo, el cocodrilo metido a redentor, padre de pueblos, el Jefe, el tiburn, el arquitecto del porvenir, el cerdo uniformado, el hijo pedilecto de la Iglesia que se lava la negra dentadura con el agua bendita y toma clases de ingls y democracia, las paredes invisibles, las mscaras podridas que dividen al hombre de los hombres, al hombre de s mismo, se derrumban por un instante inmenso y vislumbramos nuestra unidad perdida, el desamparo que es ser hombres, la gloria que es ser hombres y compartir el pan, el sol, la muerte, el olvidado asombro de estar vivos; (Paz, 1995: 254-5).
Nesse excerto caracterizam-se os volteios temporais do poema, como se o ciclo venusiano elidisse a idia de incio e m, propondo a todo tempo um reincio mtico e sem idade da perspectiva histrica, como j exposto mais acima por outras palavras. Declina-se, ainda, a aproximao feita entre Piedra de Sol e El Arco y la Lira, feita por Horcio Costa:
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Octavio Paz em El arco y la lira expone sus pontos de vista sobre la confundibilidad de los impulsos potico y religioso, que llevan, segn l, a productos nales totalmente distintos. En este aspecto, podemos percatarnos de la integridad de su postura crtica: si se puede vincular el impulso de Piedra de sol a lo religioso, la concrecin de la poesa, al problematizar una existencia individual, la del poeta, se aleja de la idea de un registro colectivo o de una super-voz globalizante, caracterstica de lo puramente religioso, para denir-se dentro de los lmites de la creacin potica, en la que, a partir de la voz individual, habla la voz del grupo. A travs del rasgo ante sealado, el poema mantra, inspirado por un calendario circular mandlico, se vuelve un rito verbal de pacicacin. (Costa, 1998: 352)
Ou seja, pode-se inferir que no volume de ensaios h uma enunciao (dado que foi escrito anteriormente) da assuno do individual ao coletivo propugnada no poema em questo, como metfora da presena do divino. Somente para que se esclarea os objetivos centrais de El Arco y la Lira, antes de o relacionar com outro poema, veja-se as intenes pazianas, no remate do primeiro captulo do volume:
Las tres partes en que ha dividido este libro se proponen responder a estas preguntas: hay un decir potico el poema irreductible a todo otro decir?; qu dicen los poemas?; cmo se comunica el decir potico? Acaso no sea innecesario repetir que nada de lo que se arme debe considerarse mera teora o especulacin, pues constituye el testimonio del encuentro con algunos poemas. (Paz, 1994: 51)
V-se, textualmente, que Paz quer fundamentar sua teoria com a devida aplicao nos poemas, provando a dialtica essencial aventada como hiptese deste estudo. Outro poema central da obra de Paz que se pauta com El Arco y la Lira, Blanco. Elaborado entre 23 de julho a 25 de setembro de 1966, composto da soma de fragmentos escritos em diversas cores e tipograas, num nico papel desdobrvel. Esta congurao simula uma partitura musical, seja pela espacialidade mesma do poema, seja pelos diferentes tipos grcos regendo uma leitura diferenciada a cada mudana de cor e tipo dos caracteres. Assim, dada as innitas possibilidades de leitura do poema, disposto a signicar, matematicamente comparando, uma dzima potico-peridica, em que cada excerto pode ser combinado com qualquer outro e em qualquer seqncia, uma espcie de quebra-cabeas do universo; demonstra-se a complexidade estrutural em que Blanco foi escrito, guardando intertexto com as vanguardas estticas do sculo vinte e instaurando, de forma contundente, a tradio da ruptura paziana.
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Essa complexidade fruto do desenvolvimento esttico moderno. Desde o germe da modernidade em Les eurs du mal de Baudelaire, at a radicalidade de Un coup de Ds de Mallarm, observa-se um percurso esttico com grande teor crtico, para citar apenas esses dois exemplos celebrrimos. Se em Baudelaire iniciou-se a concepo de modernidade e a postura do poetacrtico, foi em Mallarm que se questionou pela primeira vez a prpria feitura linear e temporal do discurso potico, iniciando-se, dada a sua postura crtica e inquisitiva, a crise do verso. Na mesma linha, o poema paziano visa insurgir-se contra a prpria limitao e concepo de verso (discurso temporal), tentativa de alar um novo prisma esttico escritura que j no podia ignorar as valncias que a tridimensionalidade de Un Coup de Ds havia proposto (discurso espacial). No entanto, da potica de Baudelaire, que Paz elabora seu pensar potico e crtico. A tenso entre os contrrios um eixo fulcral da obra baudeleriana, e tambm elemento compositivo de Blanco, que ao se iniciar com uma pgina em branco, ou mais precisamente, com uma lacuna latente de fora simblica e sgnica, presta-se a ser lida4 como possibilidades das seguintes analogias: do vazio, do paraso, do tero primevo, da origem da vida, da iluminao bdica, do absoluto, do nada, da suprema compreenso, do orgasmo (la petite morte), do princpio do universo, da mquina do mundo, da pedra losofal, do aleph de Jorge Luis Borges e etc. Todas essas analogias so possveis por intermdio da enorme atrao entre signos e valores opostos que permutam sua natureza antittica. Blanco, assim como o poema mallarmeano, opera a ausncia de pontuao diacrtica, que em certa medida pode ser lida como recusa submisso aos padres da lngua escrita; a espacializao dos caracteres de inmeras cores pela pgina, raticando o postulado verbivocovisual da poesia concreta; a escritura em mosaico, que permite variadas chaves de leitura, de acordo com a ordem escolhida pelo leitor para decifrar a simulao da partitura musical (kakemono) em que o poema desenvolve-se, sendo que espao, tempo e palavra fundem-se e permutam-se, criando exploraes temticas denidas dentro de cada eventual chave de leitura. Alm disso, Blanco, resgata de forma revisional e atualizadora os processos de construo do poema Un Coup de Ds, incio da aplicao do conceito potico-ideogrmico de ESTRUTURA, (Campos et al. 1991: 23) conforme assinala a concisa denio de Augusto de Campos em texto dedicado a exegese do monumental poema-constelao mallarmeano. Assim, a pulso aberta de Blanco, operando em diversas frentes de signicao, constitui como ampliao da cosmoviso paziana delimitada no primeiro pargrafo de El Arco y la Lira.
Deixo de indicar a numerao da pgina j que o poema paziano as abole, talvez para aumentar a organicidade do espao em branco.
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Segue um excerto do poema: caes de tu cuerpo a tu sombra no all en mis ojos en un caer inmvil de cascada cielo e suelo se juntan caes de tu sombra a tu nombre intocable horizonte te precipitas en tus semejanzas yo soy tu lejana caes de tu nombre a tu cuerpo el ms all de la mirada en un presente que no acaba las imaginaciones de la arena caes en tu comienzo las disipadas fbulas del viento derramada en mi cuerpo yo soy la estela de tus erosiones t te repartes como el lenguaje espacio dios descuartizado () (Paz, 1997).
Nesses versos possvel vericar o carter da pluralidade semntica do texto. Pode-se ler o verso inteiro; pode-se ler somente a coluna escrita em preto, ou somente a escrita em vermelho, ou, ainda, repetir todas essas leituras debaixo para cima. Tmse, assim, seis maneiras diferentes de decodicar a mandala sgnica de Paz. Manuel Ulacia rmou importante estudo acerca deste poema:
En la escritura de Blanco como se ver ms tarde, inciden principalmente dos tradiciones literarias: la que inaugura Mallarm y el tantrismo de la India. Pero el poema tambin es el resultado de aquellas tradiciones que Paz fue incorporando o rearmando desde principios de la dcada de los sesenta, as como tambin de las que haba incorporado desde de sus inicios literarios. Esto se puede ser reejado claramente en muchas de las composiciones de sus obras de estos aos, tales como Salamandra, Ladera Este o Hacia el comienzo. En los poemas de esos volmenes estn presentes leyendas y mitos del Islam y hinduismo de la India, las lecciones que lo dio la poesa japonesa, el budismo, el Tao. El I Ching, la tradicin que inicia Mallarm y que pasa por Reverdy, Apollinaire, Tablada, Huidobro y e.e. cummings y llega a l a poesa concreta brasilea, as como tambin aquella otra que nace con el imaginism de Ezra Pound y los poemas sarcsticos y llenos de irona de Eliot. (Ulacia, 1999: 226)
Nessa citao ca visvel outra vez a abertura do imaginrio paziano e a tentativa de relacionar-se tanto com o ocidente quanto com o oriente. A modernidade de Octavio Paz tambm se concretiza pela forma que transita pelas culturas e assimila o que interessa dos movimentos literrios, no tendo uma viso dogmtica, porm uma abordagem principiolgica e dialtica, retirando o que h de mais importante de cada cultura e perodo literrio.
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Na seo de El Arco y la Lira, intitulada Los signos en rotacin, colacionado guisa de eplogo do volume, Paz explora um termo capital para sua poesia, muito presente em Blanco: o conceito de otredad:
La poesa no dice: yo soy tu; dice mi yo eres tu. La imagen potica es la otredad. El fennemo moderno de la incomunicacin no depende tanto de la pluralidad de sujetos cuanto de la desaparicin del t como elemento constitutivo de cada consciencia. (Paz, 1994: 253)
Surgimento do outro dentro do eu potico, imbricao das valncias das sensaes, quebra da couraa do ego. Na leitura da tradio moderna, pode-se identicar o Je est un autre rimbaudiano e o sentir tudo de todas as maneiras pessoano, dada a dico que comporta vrias vozes ou sujeitos poticos; em Blanco, notadamente, h a aplicao do conceito de otredad, residente na cpula verbal entre as vrias vozes (vrios outros) do poema. Todas essas tpicas indicadas sustentam a hiptese inicial de que a dialtica entre a seara crtica e potica paziana imanente e deriva de um projeto intencional de recorte da modernidade, como j indicado, executado pela leitura sincrnica da tradio, pela criao de conceitos como a tradio da ruptura e de otredad, bem como pelo hibridismo da enunciao ensastica. Relacionou-se, ainda que minimamente, o volume El Arco y la Lira com poemas pazianos, como se havia proposto, e, desta forma, passa-se s consideraes nais.
Concluso
Em Octavio Paz a modernidade surge como projeto potico e tambm como crtica deste projeto. Foi o prprio Paz que armou que modernidade conscincia. No entanto, o conceito de conscincia em Paz extremamente amplo. Trata-se do sincretismo entre o conhecimento da histria, da poltica, da sociedade, da arte, da lingstica etc. Da inter-relao entre esses segmentos culturais, em mudana e interpenetrao constante, complexa e, muitas vezes, paradoxal, que se depreende a fragilidade do prprio iderio do poeta moderno. O que resta evidente deste estudo a importncia da crtica para o desenvolvimento da obra paziana, tanto quanto a prpria poesia, j que o discurso crtico predominantemente potico, e a poesia quase sempre crtica. desse criticismo que os valores intrnsecos da Modernidade so minados, como o conceito de progresso e evoluo, do novo como categoria esttica positiva e a crena na razo como soluo das teorias poticas, entre outras tpicas, herdadas do Iluminismo, que so deslegitimadas no volume El Arco y la Lira, principalmente pelo cariz
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de superao cultural-evolutiva da tradio da ruptura, cuja articulao desestabiliza os estratos culturais fundados em premissas loscas conservadoras do Iluminismo, inaplicveis na sociedade cultural de meados do sculo XX. Tais tpicas j foram apontadas como superadas por muitos tericos da ps-modernidade. No se trata de discutir se esses tericos esto certos ou errados. Mas o que interessa para essa concluso notar que Paz, por intermdio de seu mtodo crtico, prenuncia a ausncia de referncia e de estabilidade terica denidora da Ps-modernidade5 ou simplesmente de um movimento literrio-cultural que j no pudesse validar o positivismo propulsor de todo o Iluminismo (essncia de muitos totalitarismos, como hoje sabido). O que h uma contnua ruptura dentro das teorias modernas, como uma imploso, do centro para fora, retirando-se dicotomias ingnuas e ideologemas ultrapassados. Especicamente, Paz efetua uma leitura relativista das vanguardas histricas, j se distanciando da necessidade de chocar e de estatuir o novo, como os modernismos programavam, preocupando-se muito mais em totalizar e misturar as culturas, no plano ideolgico, e borrar os gneros no plano discursivo. A dialtica a metodologia mais visvel encontrada para operar essa funo totalizadora. J para testar a noo dogmatizada do fenmeno literrio, Paz desmonta a diacronia aparente dos movimentos literrios em prol de uma modernidade que a todo tempo duvida de si mesma. Como constatado, Paz tem vrios pontos de contato com a axiologia de Modernidade referida por Leyla Perrone-Moiss, sendo possvel conrmar a dialtica imanente entre crtica e poesia como a grande fonte de seu projeto moderno, conforme a hiptese proposta deste estudo. Enm, Paz transforma seu mtodo construtivo em leitmotiv para atingir questes fundamentais da modernidade, enriquecendo sobremaneira tanto sua crtica quanto sua poesia.
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Paz no usava este termo, pois no acreditava em sua base conceitual: Llamarse postmoderno es una manera ms bien ingenua de decir que somos muy modernos (...) Llamarse postmoderno es seguir siendo prisionero del tiempo sucesivo, lineal y progresivo (Paz, 1994: 515).
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Resumo: Este estudo prope-se a indicar aspectos de Modernidade constantes do livro El Arco y La Lira, de Octavio Paz, sob a hiptese hermenutica de que h uma dialtica imanente entre as suas obras crtica e potica, elemento caracterizador da conscincia crtica da poesia moderna. Abstract: This paper proposes to indicate aspects of Modernity in Octavio Pazs El Arco y La Lira, following the hermeneutic hypothesis that there is an essential dialectic between his critical and poetical works, an element which is typical of the modern poetry criticism.
Descansa. O homem j se fez O escuro cego raivoso animal Que pretendias. Hilda Hilst
Palavras-chave: Poesia brasileira contempornea, Hilda Hilst, Bblia hebraica.1 Keywords: Contemporary Brazilian poetry, Hilda Hilst, Hebrew Bible.
No Gnesis, primeiro livro do Pentateuco, parte da Bblia hebraica, que se constitui como uma narrativa da criao do mundo e do ser humano, uma cosmogonia, assim como uma antropogonia, em diversos momentos, escuta-se a voz de Iahweh, que dialoga com os homens e com os anjos. Nestas passagens, observa-se de modo direto a ao da personagem, que, atravs da fala, como no teatro, constitui os seus caracteres. Aristteles j dizia, no que cou conhecido como a sua Arte potica, serem dois dos elementos fundamentais da tragdia o carter e as idias, de acordo com ele, causas naturais das aes (Aristteles, 2005: 25), aquilo que, necessariamente (ibid.: 25), distinguiria as pessoas. Por carter, o lsofo entendia ser aquilo segundo o qu dizemos terem tais ou tais qualidades as guras em ao (ibid.: 25). As idias, por sua vez, seriam os termos que [as personagens] empregam para argumentar ou para manifestar o que pensam (ibid.: 25). Aproveitando a lio de Aristteles, embora diante de outro objeto, de tradio diversa da que informava o pensador grego, ainda que complementar em termos da formao do pensamento ocidental, o que pretendo, aqui, em um primeiro momento, falar a respeito do carter de Iahweh, de suas qualidades, daquilo que o distinguiria, como um sujeito. Neste ponto, antecipo que farei uso de algumas idias de um crtico
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A epgrafe um curto poema de Amavisse (Hilst, 1992: 84), livro anterior a Sobre a tua grande face, que com ele guarda muitas semelhanas, sobretudo no ponto que aqui me interessa trabalhar.
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norte-americano, o polmico Harold Bloom, expostas na segunda parte de Jesus e Jav: os nomes divinos, tendo em vista o auxlio de sua erudio no que concerne personalidade do deus javista, segundo o autor, extremamente diferente daquele que gura nas narrativas sacerdotais, sendo estas duas, as fontes javistas e as sacerdotais, as principais referncias formadoras da Bblia hebraica. Partindo da leitura de duas passagens especcas do Gnesis, e das contribuies de Bloom, quero identicar traos da personalidade de Iahweh, para, em seguida, contrast-los com o que se v em alguns poemas de Sobre a tua grande face, de Hilda Hilst, poeta brasileira da segunda metade do sculo vinte, em cuja obra a gura de um deus presena constante. A perspectiva comparatista permitiria uma espcie de iluminao recproca dos termos contrastados, e, no caso, em especial, um esclarecimento a respeito de aspectos relevantes da potica da autora paulista. Na primeira parte do Gnesis, segundo a edio brasileira tradicional intitulada As origens do mundo e da humanidade, no fragmento de nmero trs, cuja fonte, ao que tudo indica, seria javista, relata-se o decantado episdio da queda, da expulso do homem do paraso. Em determinado momento, a personagem que aparece como Iahweh Deus, aquele que, nos termos do texto, teria modelado o homem com a argila do solo, diz, aparentemente encolerizado, dirigindo-se mulher: Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, / na dor dars luz lhos. / Teu desejo te impelir ao teu marido / e ele te dominar (Bblia, 1994: 35). Em seguida, Iahweh, ainda em um discurso modelado em versos, fala ao homem:
Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da rvore que eu te proibira comer, maldito o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirs todos os dias de tua vida. Ele produzir para ti espinhos e cardos, e comers a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comers teu po at que retornes ao solo pois dele foste tirado. Pois tu s p e ao p tornars. (Bblia, 1994: 35-36)
Partes complementares de um mesmo discurso, as passagens expem o primeiro castigo imposto por Iahweh aos homens, que cometem uma falta, um primeiro pecado. Ao comerem o fruto que lhes daria o conhecimento do bem e do mal, o que corresponderia a uma espcie de autonomia moral, o homem e a mulher quebram uma regra a
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que estavam sujeitos, transgredindo um preceito estabelecido pelo deus. Iahweh, uma gura que se mostra irascvel, no tolera o gesto, que se congura como um atentado sua soberania. Severamente, o deus amaldioa o solo e destina s suas criaturas uma vida de dores e sofrimentos. No muito adiante, na seqncia da narrativa, depois do episdio do dilvio, em que Iahweh se arrepende da criao do homem, aigi-se com isso Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e aigiu-se o seu corao (Bblia, 1994: 39) , e resolve extinguir a vida na terra Farei desaparecer da superfcie do solo os homens que criei e com os homens os animais, os rpteis e as aves do cu , porque me arrependo de os ter feito (ibid.: 39) , salvando, entretanto, No e seus descendentes, aparece a segunda passagem que me apetece destacar, tambm um fragmento javista, conhecido como o episdio da torre de Babel. Iahweh diz, ameaador, dirigindose aos anjos de sua corte, mas falando dos homens, dessa vez em prosa:
Eis que todos constituem um s povo e falam uma s lngua. Isso o comeo de suas iniciativas! Agora, nenhum desgnio ser irrealizvel para eles. Vinde! Desamos! Confundamos a sua linguagem para que no mais se entendam uns aos outros. (ibid.: 45)
De modo semelhante ao que acontece na narrativa da queda, a ao de Iahweh corresponde novamente a uma vontade de impedir que os homens ameacem o seu poder, conquistando, com suas prprias iniciativas, uma maior independncia, uma maior capacidade de agir livremente. Mais uma vez, tem-se a imposio de um castigo, uma pena. Iahweh, um deus que se aige com os homens, um deus arrependido e, por que no dizer, temeroso, volta a ser aquele que pune. Em Jesus e Jav: os nomes divinos, Harold Bloom, pensando acerca de uma psicologia pessoal de Iahweh, segundo ele, uma gura inalcanvel para a representao, arma se tratar de uma personagem enigmtica, mas, ao mesmo tempo, profundamente humana, dotada de inclinaes e atributos humanos. Na perspectiva de Bloom, Iahweh se desenha como uma gura bastante diferente daquela do deus da Bblia crist, que se ausenta da terra, fazendo de seu domiclio as cortes celestiais. Iahweh no seria um deus celestial, mas antes o mais humano dos deuses, cujo carter corresponderia ao de um guerreiro feroz, agressivo, combativo, ou mesmo, aproximadamente, ao de uma personagem de Shakespeare, como o Rei Lear, pai e monarca irascvel. Segundo o autor, Iahweh estaria sempre se ocultando e se revelando, alternando presena e ausncia, embora nunca se ausentasse por completo, mesmo em seu isolamento. Efetivamente, de acordo com Bloom, o prprio nome da entidade signicaria estar presente. Enigmtico, Iahweh no deixa que se conheam os seus passos, de modo que a pergunta que os homens se fazem sempre corresponda interrogao sobre se o deus agir. Trata-se de um sujeito imprevisvel, dono de uma mente labirntica, uma gura que confunde
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as expectativas dos homens, e cuja fria, muitas vezes, mostra-se sbita e arbitrria. Bloom abusa dos adjetivos para traar o perl do deus. Iahweh seria perverso, vingativo e mesmo homicida. Curioso, ciumento e irrequieto, o deus sofreria de um pathos, o da aio por seu isolamento, a residindo uma grande ambivalncia sua. Nos termos de Bloom, trata-se de um deus todo-poderoso, mas perptua e surpreendentemente aito. O autor de O cnone ocidental fala tambm, em um ponto relevante de sua anlise, do amor de Iahweh pelo povo escolhido, os hebreus. Segundo o crtico, diferentemente do que acontece com o deus cristo, Iahweh no seria capaz de experimentar um amor absoluto, mas apenas um sentimento condicional e revogvel. Por outro lado, a personagem estaria longe de ser um sujeito incompleto, como o homem freudiano, que precisa se apaixonar, para no se sufocar em um eu interior saturado (Bloom, 2006: 254). Em sentido diverso do que caracterizaria o deus cristo, Iahweh no teria criado por amor, assim como no seria um deus brando, mas um deus severo, que, exigindo um amor reverente e leal, seria capaz de experimentar apenas alguma ternura, a qual, no entanto, no minimiza a sua irascibilidade. Iahweh no seria um deus benevolente, reclamando sempre uma quantidade exagerada de amor, ainda que na forma de devoo e respeito, mas no sendo capaz de retribu-lo. Tem-se, enm, um deus sempre furioso com o homem, com uma fria apenas controlada, e um sujeito inconstante, no qual, nos termos de Bloom, decididamente, no se pode conar, embora seja preciso amar. Spinoza, citado pelo crtico norte-americano, quem teria dito que preciso aprender a amar a este deus sem jamais esperar que ele nos ame. Agora, veja-se o poema da poeta, prosadora e dramaturga Hilda Hilst, publicado em Sobre a tua grande face, livro de 1986, em que a voz lrica freqentemente se dirige quele que ela chama de Sem Nome:
Hoje te canto e depois no p que hei de ser Te cantarei de novo. E tantas vidas terei Quantas me dars para o meu outra vez amanhecer Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome, Sutilssimo amado, relincho do innito, e vivo Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem Teu pasto que o meu verso orvalhado de tintas E de um verde negro teu casco e os areais Onde me pisas fundo. Hoje te canto E depois emudeo se te alcano. E juntos Vamos tingir o espao. De luzes. De sangue. De escarlate. (Hilst, 1992: 108)
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Parte de uma srie maior de dez textos, no intitulados, que formam um todo, o poema e livro Sobre a tua grande face, a composio mostra o dilogo entre a voz lrica, pertencente a algum que canta, a uma poeta (dona de um corao de fmea (Hilst, 1992: 110), como se l em outra passagem), e um interlocutor, que se congura como um objeto do desejo, o Sem Nome. Logo no primeiro verso, tem-se a identicao do sujeito lrico com a idia de que o homem vem do p e a ele voltar, tal como Iahweh havia desejado, no Gnesis, quando da expulso do homem e da mulher do paraso. Em seguida, associa-se, no poema, o canto e a busca, como se o mvel do canto, a sua razo de ser, fosse o desejo de encontrar o outro, imaginado como um ser capaz de dar a vida, ou vidas, como se v entre o segundo e o terceiro verso. Na seqncia, no quarto verso, aparece uma armativa contundente, e, a princpio, ousada, tendo em vista que quem fala se encontra, evidentemente, em uma posio de inferioridade em relao ao seu interlocutor. Neste momento do texto, o sujeito lrico arma que o Sem Nome dele necessita, dele precisa para se alimentar, ou mesmo apenas para pis-lo. No caso, o Sem Nome parece ter dois tipos de fome. Uma seria aquela que se poderia saciar com o verso da poeta. Outra, a que se satisfaria somente de modo sdico, com o sofrimento dela. Entre os ltimos quatro versos, l-se uma frase, Hoje te canto e depois emudeo se te alcano, que remeteria possibilidade de alcanar o inalcanvel. Entretanto, note-se como o texto parece indicar que, se isto de fato acontecesse, restaria apenas um profundo silncio, a mudez, a ausncia do canto, do desejo, do impulso vital. O poema termina, signicativamente, com a imagem de uma batalha sangrenta, que se imagina ser a luta entre a voz lrica e o Sem Nome, intensa e fulgurante batalha de que emanam luzes e cores escarlates. Em outros poemas do mesmo livro, a relao conituosa entre o sujeito lrico e o Sem Nome continua sendo um motivo fundamental. Quanto a este aspecto, vale lembrar dois momentos diferentes da obra. Primeiro, a oitava composio do conjunto, em que a relao entre os dois interlocutores marcada por um sem m de batalhas, que consistem nas sucessivas tentativas, todas malogradas, da poeta em tocar o outro, em perceb-lo com alguma concretude: Porque trabalho sobre o teu rosto / De palha: construo o impossvel2. Depois, o ltimo texto do livro, em que, misturadas a seduo (Volta a minha prpria cara seduzida / Pelo teu duplo rosto: metade razes / Oquides e poo, metade o que no sei) e a luta (E volta o fervente langor / Os sais, o mal que
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Transcrevo o texto, na ntegra: Lavores, cordas e batalhas / O que me vem da alma. / Lavor / Porque trabalho sobre o teu rosto / De palha: construo o impossvel / Meu senhor. Cordas, porque te amarro / Com as turquesas informes do desejo. / E um sem m de batalhas / Porque prender a ti num corao de fmea / querer lavores: o quebradio constante / Porque tento com a palha / A nura perfeita de um semblante. / E o que deve fazer / Quem no se lembra mais do mais perfeito / E de si mesma s tem o humano gesto? (Hilst, 1992: 110).
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tem sido esta luta), aparece a imagem do terreno onde se d a batalha, uma arena crispada de punhais3. Na quinta composio do conjunto, o que se v , novamente, a ousadia da poeta. Manifestando-se como uma oponente diferenciada, ela lana ao seu contendor a pergunta:
Vem apenas de mim, Cara Escura Este desejo de te tocar o esprito Ou s tu, precisante de mim e de minha carne Que incendeias o espao e vens muleiro Montado em ouro e sabre, clavina, cintures Rebenque caricioso Sobre a minha anca viva? (...)4
O Sem Nome, agora, nomeado como Cara Escura, epteto que, como o primeiro, indica, sobretudo, a sua inacessibilidade. A interrogao deixa evidente a possibilidade de que esta entidade, embora inacessvel, seja tocada por uma falta, uma necessidade, idia que, notadamente, remete ao pathos que Bloom imagina ser prprio de Iahweh, aio de que ele sofreria por se encontrar em isolamento. No universo de Hilst, ao que parece, efetivamente, a necessidade do Sem Nome encontraria satisfao apenas no interior de uma batalha entre ele e o homem. Os signos que conguram o Cara Escura como um guerreiro so claros. Ele aquele que possui sabre, clavina, cintures e um rebenque. A relao entre as duas guras antagnicas, muitas vezes, aproxima-se de uma relao sadomasoquista, em que o deus o sdico, e o homem, o masoquista. Ainda no mesmo poema, a poeta aparece como algum cuja ao cotidiana seduzir o outro, mesmo que com facas (Que a cada dia preparo, no seduzir / Tua na simetria). Em contrapartida, o Sem Nome mantm-se, a um s tempo, obscuro e cintilante, como um sujeito que, embora possa experimentar alguma inquietude em relao ao outro, jamais o busca. Prevalece, aqui, algo prximo da dinmica de ausncia e presena,
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Transcrevo a primeira estrofe do poema, deixando a segunda para o encerramento do artigo: Escaldante, Obscuro. Escaldante teu sopro / Sobre o fosco fechado da garganta. / Palavras que pensei acantonadas / Ressurgem diante do toque novo: / Carrascais. Grgulas. Emergindo do luto / Vem vindo um lago de surpreendimento / Recriando musgo. Voltam as sedues. / Volta a minha prpria cara seduzida / Pelo teu duplo rosto: metade razes / Oquides e poo, metade o que no sei: / Eternidade. E volta o fervente langor / Os sais, o mal que tem sido esta luta / Na tua arena crispada de punhais (Hilst, 1992: 112).
Eis o resto do texto: Ou h de ser a fome dos teus brilhos / Que torna vadeante o meu esprito / E me faz esquecer que sou apenas vcio / Escureza de terra, latejante. // Vem de mim, Cara Escura, a ramagem de prpura / Com a qual me disfaro. As facas / Com os os sabendo tangerina, facas / Que a cada dia preparo, no seduzir / Tua na simetria. E vem de ti, Obscuro, / Toda cintilncia que jamais me busca (Hilst, 1992: 106).
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prpria de Iahweh, conforme o entende Harold Bloom, em que o estar presente pode no signicar uma presena como a esperada pelo homem, ou como a ardentemente desejada pelo sujeito lrico de Hilst. Vejam-se, por m, trechos da composio que abre Sobre a tua grande face, em que os imperativos traduzem de modo contundente um desao, ao mesmo tempo em que se espelha o que seria o desejo do Sem Nome: D-me pobreza e fealdade e medo / E desterro de todas as respostas / Que dariam luz / A meu eterno entendimento cego5. No texto, distingue-se, a partir da percepo da voz lrica, a perversa psicologia de seu interlocutor, de quem se procura, talvez inutilmente, despertar algum amor: (...) Apenas estreitez e fardo. / Talvez assim te encantes de to farta nudez. / Talvez assim me ames: desnudo at o osso / Igual a um morto. A se acreditar na semelhana entre o Sem Nome e Iahweh, entretanto, certo que no se pode ter f neste talvez, j que o deus dos hebreus, como diz Bloom, no um deus capaz de amar. Em Sobre a tua grande face, como tentei demonstrar, ainda que de forma sucinta, observam-se traos caracterizadores do Sem Nome que muito o aproximariam do deus dos hebreus, o Iahweh da Tanach, sobretudo em se aceitando as informaes de Bloom sobre a psicologia deste ltimo. Distanciado do universo de um deus que se sacrica pelo homem, um deus pai benevolente, o Sem Nome de Hilst no seria de maneira alguma, como diz o crtico norte-americano a respeito de Iahweh, um sujeito agradvel. Ambas as guras, a de Hilst e a da Tanach, compartilham um esprito belicoso, so agressivas, inacessveis e perversas. Bloom quem diz que se apegar somente a Iahweh arriscar um trauma perptuo. Em Sobre a tua grande face, de fato, o que parece acontecer com o sujeito lrico, com a voz feminina que fala nos poemas. Em se tratando de Hilst, repare-se, entretanto, que haveria algo de positivo neste trauma, uma vez que dele nasceria a poesia, fruto da exuberncia e excesso da poeta. O sujeito lrico de Hilst, como no ltimo poema do livro, embora seja carne e poeira, e perecvel, brilharia de um modo nico, afetando, apenas deste modo, aquele que no se pode alcanar. No caso deste universo potico, a poesia seria o que faz o poeta ser mais aos olhos do outro, o que o engrandece. O canto, enm, o espao em que algum desao pode ser lanado quela inacessvel e obscura alteridade:
A transcrio integral: Honra-me com teus nadas. / Traduz meu passo / De maneira que eu nunca me perceba. / Confunde estas linhas que te escrevo / Como se um brejeiro escoliasta / Resolvesse / Brincar a morte de seu prprio texto. / D-me pobreza e fealdade e medo. / E desterro de todas as respostas / Que dariam luz / A meu eterno entendimento cego. / D-me tristes joelhos. / Para que eu possa nclos num mnimo de terra / E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro. / D-me mudez. E andar desordenado. Nenhum co. / Tu sabes que amo os animais. / Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome / No desejo alvio. Apenas estreitez e fardo. / Talvez assim te encantes de to farta nudez. / Talvez assim me ames: desnudo at o osso / Igual a um morto (Hilst, 1992: 103).
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E destes versos, e da minha prpria exuberncia E excesso, h de car em ti o mais sombroso. Dirs: que instante de dor e intelecto Quando sonhei os poetas na Terra. Carne e poeira O perecvel, exsudando centelha. (Hilst, 1992: 112)
Bibliograa
ARISTTELES (2005). Arte potica. In Aristteles; Horcio; Longino. A potica clssica. 12 ed. So Paulo: Cultrix, 19-52. BLOOM, Harold (2006). Jesus e Jav: os nomes divinos. Rio de Janeiro: Objetiva. HILST, Hilda (1992). Amavisse. In Do desejo. Campinas: Pontes, 31-88. (1992). Sobre a tua grande face. In Do desejo. Campinas: Pontes, 101-112. Bblia de Jerusalm (1994). Gnesis. Nov. ed. rev. So Paulo: Paulus, 31-105.
Resumo: Neste pequeno artigo, tento aproximar a poesia de Hilda Hilst da Bblia hebraica, tendo como eixo de anlise, em uma perspectiva comparatista, a observao sobre duas guras: a do deus da Tanach e a de uma alteridade muito particular presente nos poemas de Hilst. Abstract: In this brief article, I try to juxtapose Hilda Hilsts poetry and the Hebrew Bible. In order to do that, from a comparative perspective, I concentrate on two gures: Tanachs god and a very singular character present in Hilsts poems.
Palavras-chave: Os teclados, Opus 78, melopotica, Teolinda Gerso, Manuel de Freitas.1 Keywords: Os teclados, Opus 78, melopoetics, Teolinda Gerso, Manuel de Freitas.
A narrativa Os teclados (1999), de Teolinda Gerso, e o poema Opus 78 (Beau Sjour, 2003), de Manuel de Freitas, aproximam-se na relao que estabelecem com a arte musical. J perceptveis nos prprios ttulos, as semelhanas se expandem nos aspectos relacionados ao contedo. Ambos os textos trazem a gura de uma jovem menina, apontamentos sobre sua infncia e uma intensa relao com a msica. Em Os teclados, Jlia, a personagem principal, vive na casa dos tios, Octvio e Isaura, juntamente com tio Eurico, que louco, e Armnia, a empregada. Em Opus 78, o tu, instaurado pela voz-lrica, uma personagem poemtica no nomeada, sugerindo um ser do sexo feminino e que mantm uma grande ligao com as avs. Esse tu tambm possui um ente na famlia que sofre de distrbios mentais (um primo autista), e uma criada tratada como amiga, Nomia. A msica, de certo modo, permeia a vida de ambas as personagens, mas como algo que transpassa as barreiras do som e alcana um nvel mais complexo, tornando-se parte inseparvel de suas vidas. O piano no , na vida de Jlia, somente um instrumento produtor de sons, mas uma via de acesso ao conhecimento e prpria liberdade, sendo o motivador de suas reexes mais profundas.
Com o apoio e colaborao da Professora Doutora Snia Helena de O. Raymundo Piteri, professora de Literatura Portuguesa na UNESP de So Jos do Rio Preto, So Paulo.
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NOs teclados (1999), como tambm em outros livros de Teolinda, manifesta-se uma ruptura com formas convencionais, libertando-se o texto dos grilhes da normatividade. A autora considera Os teclados uma narrativa, devido impossibilidade de enquadr-lo como conto ou romance. Esse o primeiro livro de Teolinda em que ela traz a msica, pelo menos de maneira direta, como um dos principais componentes. J a relao da poesia com a msica em Manuel Freitas, segundo Henrique Fialho2, faz-se presente em livros anteriores a Beau Sjour (2003). Tambm em Freitas detecta-se a transgresso de postulados coercitivos, vericando-se, de certa forma, a marginalidade. Faz parte, inclusive, de um movimento intitulado Poetas sem Qualidades, que apresenta um tom provocativo aos valores considerados nobres na poesia. No seu poema Opus 78 (Beau Sjour), Freitas utiliza-se de recursos provenientes da forma narrativa; mais um aspecto, portanto, a ser comparado com Os teclados. A proximidade viabilizada pela msica entre os dois textos que constituem o corpus deste trabalho vai bem alm do nvel temtico, podendo ser demarcada em um nvel estrutural. Em Os teclados e Opus 78 detectam-se alguns procedimentos que podem ser considerados ans aos da criao musical. Como bem lembrado por Solange Ribeiro de Oliveira (2002: 9), as aproximaes entre as artes sempre fascinaram os estudiosos do fenmeno esttico, e j nos textos de Horcio encontra-se uma predileo aos estudos voltados para as anidades entre elas, mais especicamente da literatura com outros tipos de expresses artsticas. Em nossos dias, segundo Oliveira, a longa tradio horaciana desgua em tendncias da literatura comparada que incentivam os recortes interdisciplinares. Nesta nossa anlise, interessa-nos, sobretudo, o estudo das relaes entre a literatura e a msica, conhecido tambm como melopotica. Vale destacar que o objetivo no fazer uma anlise msico-literria propriamente dita dos textos, com descries minuciosas dos objetos de anlise musical, mas aproxim-los no sentido de tomar a msica como ponto fundamental de ligao entre os dois, esteja ela vinculada estrutura ou ao sentido dos textos. Para Oliveira, a msica na literatura pode ser representada por vrios objetos de anlise, como, por exemplo, a msica de palavras, as recriaes literrias de efeitos musicais, a estruturao de textos literrios sugestiva de tcnicas de composio musical, como a utilizao deliberada ou intuitiva da forma sonata, do contraponto, do tema e variao e tambm as aluses e metforas musicais na obra, incluindo-se a a gura do msico. Diante dessas sugestes e xando-se agora nos textos de Teolinda Gerso e Manuel de Freitas, podemos considerar inicialmente os ttulos das obras: Os teclados fazem referncia tanto ao teclado de um computador quanto ao de um piano, e Opus 78 um ndice das publicaes de um compositor. Alm disso, o poema de Manuel de Freitas
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divide-se em quatro partes cujos ttulos se referem aos andamentos da msica: Molto moderato e cantabile, Andante, Menuetto e Allegretto. Tendo em vista a utilizao de termos prprios ao universo musical, importante tentarmos estabelecer uma conexo entre os andamentos e as estrofes que nomeiam. As relaes, neste caso, restringir-se-o ao plano dos sentidos, pois acreditamos que se tornaria invivel correlacionar o ritmo dos andamentos ao ritmo dos versos e estrofes do poema, uma vez que j armamos seu aspecto narrativo, fator que o isenta de rimas e mtrica regular, por exemplo. As denies dos andamentos, aqui, sero baseadas nos dicionrios de msica de Arthur Jacobs, e na enciclopdia italiana de msica Le Garzantine. A primeira parte do poema denominada Molto moderato e cantabile, e tem um carter memorativo, em que o eu-lrico lembra-se da infncia, dos primeiros contos de fada, da casa cor-de-rosa, das avs. Considerando que cantabile um ritmo expressivo e sentimental, poderamos de antemo relacion-lo s memrias, como se houvesse certo saudosismo por parte do eu. Porm, o fato de estar acompanhado pelo molto moderato (muito moderado) quebra a expectativa saudosista, pois como se servisse de indcio de que as memrias no so to passveis de saudade, o que pode ser sentido nos versos: E tu ali, / cavaleiro parado, vtima precoce / de sonho nenhum ou, anos mais tarde, / da runa. [...] (Freitas, 2003: 22). Levando em conta que o tempo da enunciao posterior a essa infncia, percebemos a conscincia do eu-lrico a respeito do que viria anos mais tarde, o que, de certo modo, justica o molto moderato, como um indcio de ponderao. A segunda parte, denominada Andante faz com que o leitor, ao l-la, remeta imediatamente ao Cavaleiro Andante da primeira parte. Afora isso, talvez possamos estabelecer uma relao com a passagem do tempo, que agora o presente, como se tivesse andado, transcorrido de uma parte a outra, saindo de uma instncia memorialista para chegar a um plano mais emprico, da realidade do eu-lrico. A terceira parte recebe o nome de Menuetto, que um termo proveniente de uma dana francesa de origem simples e rstica e, segundo Jacobs (1978), forma o terceiro andamento padro de uma sonata. Vale destacar que, no poema de Manuel de Freitas, justamente a terceira parte que recebe este nome, e tambm nesta parte que o termo sonata aparece. No queremos justicar a escolha do termo por meio de pequenas identicaes, mas, coincidentemente ou no, a dana francesa tem forma tripartite, com o acrscimo de uma coda, o que totaliza quatro partes, e, em Opus 78, o Menuetto a nica parte que tem quatro estrofes. A ltima parte do poema denominada Allegretto, que um andamento animado, um pouco menos que o allegro, no que diz respeito velocidade do ritmo, e no faz, necessariamente, referncia ao contedo expressivo. Tomando por base a falta de correlao entre o termo allegretto e sua indicao expressiva que interpretamos essa
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ltima parte, que naliza o texto com um tom de desesperana, quebrando, de certo modo, a expectativa do leitor. como se o aspecto progressivo do andamento no encontrasse correspondncia nos versos, que inclusive trazem embaralhados a voz do eu-lrico e uxos de conscincia. Com relao aos recursos estilsticos paralelos aos de uma partitura musical, o poema Opus 78 permite-nos analis-lo sob a luz da forma sonata. A sonata uma composio em trs ou quatro movimentos e, segundo Solange Ribeiro de Oliveira (2002: 132), consiste em uma introduo opcional, uma exposio de material bsico, um desenvolvimento desse material e uma recapitulao, e tem como principais caractersticas a presena de dois temas contrastantes na exposio, ou duas reas tonais conitantes. Esses seriam, segundo a autora, os conceitos bsicos que poderiam ser utilizados na estruturao de poemas e textos ccionais, bem como em ensaios crticos que pretendem tomar tal forma como ponto de apoio. Para os movimentos da sonata, a Wikipdia3 traz as seguintes denies: um primeiro movimento rpido, um segundo movimento lento, geralmente em forma de variaes, um terceiro movimento danante (um minuetto, por exemplo), e o movimento nal, de carter enrgico e conclusivo. Em Opus 78 identicamos facilmente dois temas de tonalidades distintas logo na primeira parte, que so o passado e o presente, e representam os tempos da infncia e da idade adulta, uma vez que o poema inteiro permeado de lembranas do outrora e de opinies do agora. Levando em conta uma conceituao de sonata envolvendo introduo, exposio, desenvolvimento e recapitulao, o poema, tambm dividido em quatro partes, ordena-se de modo que a introduo seja composta por toda a sua primeira parte, denominada Molto moderato e cantabile, em que h as rememoraes de uma infncia inslita, passada com as avs em tardes innitas, em que a msica e as pginas to baas do Cavaleiro Andante (Freitas, 2003: 22) parecem ter tomado o lugar dos brinquedos e dos jogos pueris. nessa parte, tambm, que os temas conitantes so apresentados, ou seja, os acontecimentos da infncia so inscritos com a viso do adulto. J a exposio compreende a primeira estrofe da segunda parte, Andante, em que o tempo do enunciado se liga ao tempo da enunciao. Nessa estrofe, a exposio parece adquirir um tom literal, com a conscincia do eu-lrico em relao ao que conta, ao que expe: um enredo banal (ibid.: 23). O desenvolvimento se inicia tambm na segunda parte, mais precisamente na segunda estrofe, com o regresso da criana, agora na idade adulta, sua aldeia, o que lhe causa muitas recordaes, sempre estimuladas pelo eu-lrico, como nos versos seguintes: [...] Do sto, lembras-te? via-se / a aldeia toda, muito antes de ser vila (ibid.: 24). Nesse sentido, a terceira parte, denominada Menuetto, alm de estabelecer uma relao direta com a sonata musical, que habitualmente traz este andamento como o terceiro movimento, tambm pode estar ligada ao desenvolvimento, uma vez que as lembranas iniciadas no nal da segunda parte
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ganham nfase na terceira, em que esse mesmo eu-lrico no s continua estimulando as recordaes dessa segunda pessoa (menina), mas tambm relembra fatos referentes a si prprio, o que nos induz a pensar que pode se tratar de uma mesma pessoa. Finalmente, a quarta e ltima parte do poema, denominada Allegretto corresponde chamada recapitulao da sonata, em que h a tentativa de recapitular e resolver as questes iniciais, mas com tonalidades diferentes, o que tambm parece acontecer no poema de Manuel de Freitas. O Cavaleiro Andante que aparece na exposio, assim como a msica, so retomados nessa ltima parte, mas de modo distinto, com uma perspectiva diferente da primeira, como podemos notar nas palavras do prprio eu-lrico: No esperes que te ajude o Cavaleiro / Andante ou menos ainda a msica. / Cresceste demasiado, o teu corpo / no cabe no teu corpo e o amor / (ah, o amor) ajuda mas no salva (ibid.: 25). importante ressaltar que a anlise do poema Opus 78 com aluses forma sonata apenas um modo de analisar o texto que no pretende de nenhuma maneira armar a inteno do autor no momento da construo, mas que julgamos ser pertinente pelo fato de o poema estar diretamente ligado ao universo musical. Um outro recurso estrutural muito utilizado na msica que podemos apontar nos dois textos o leitmotiv, que diz respeito a temas e motivos reiterados ao longo do discurso, na denio de Isabel Allegro de Magalhes (1995: 177). Mas a reiterao de temas e motivos no sempre feita em favor de apresent-los de um mesmo modo, o que, na opinio de Calvin Brown (apud Oliveira, 2002: 121), provocaria uma redundncia que, ao contrrio do que acontece na msica, seria desprazerosa ao leitor, e por isso, ento, que ocorrem as variaes. O conceito de variao bsico para a teoria musical, e pode ocorrer em qualquer elemento, como harmonia, andamento, linha meldica, etc. Oliveira lembra que o conceito tem sido amplamente utilizado tambm na anlise literria, tornando-se extremamente importante para a melopotica. Em Os teclados e Opus 78 percebemos principalmente variaes que dizem respeito ao sentido. Na narrativa de Gerso, para citarmos apenas alguns exemplos, h um momento em que a protagonista, Jlia, convidada a ir ao circo e se encanta com a apresentao da trapezista. A certa altura, o narrador diz:
Apeteceu-lhe tapar a cara e no ver, mas no conseguia despregar os olhos da mulher suspensa. Se deixassem de olhar ela caa, ocorreu-lhe. Era o olhar deles que a mantinha equilibrada l em cima [...]. E por isso ela, Jlia, no podia fechar os olhos, tinha de olhar at o m. Manteve os olhos abertos. (Gerso, 1999: 34)
Mais adiante, em um momento da narrativa em que Jlia j tinha sado da infncia, alcanando certa maturidade de pensamento, o narrador diz: No era o olhar do pblico que segurava a trapezista, h muito que sabia. [...] A vida e a morte dependiam do acordo entre ambos: da harmonia entre o corpo e a corda (ibid.: 66).
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Tambm podemos citar como exemplo, em outro momento do texto: Gostava de vaguear pelo bairro, ouvindo o que havia para ouvir claxons de carros, motores, vozes, barulhos de ocinas, pancadas mecnicas, chapas de metal zunindo, portas batendo, passos de pessoas na calada (ibid.: 15), e em um trecho mais frente: Mas no tinha vontade de tocar. Vagueou durante semanas pelas ruas, tocando apenas mentalmente [...]. Ouvindo os rudos da rua (vozes, claxons, motores de carros, bater de portas), ou descendo at ao rio e escutando a gua a bater no paredo (ibid.: 89). As variaes sobre um mesmo tema ou uma mesma situao tambm podem ser encontradas no poema de Manuel de Freitas, que apresenta uma nova forma de variao: o contraponto. Na msica, o contraponto signica que duas ou mais linhas meldicas soam simultaneamente. A sua transposio para a literatura, conforme Jean-Louis Cupers (apud Oliveira, 2002: 126), no contempla a simultaneidade sonora das vrias partes, mas sim o jogo temtico, ao mesmo tempo em que acompanha os jogos metafricos que comandam a decodicao do texto e sua articulao sinttica. Em Opus 78 h simultaneidade de dois tempos, o passado e o presente, em um mesmo tempo discursivo, por uma mesma voz que ora se refere a si prprio (eu), ora a uma suposta outra pessoa (tu), ou ainda a um coletivo (ns). Contando episdios da infncia, o eu-lrico deixa escapar opinies de sua personalidade adulta. Aqui se instaura, ento, um contraponto. Outros recursos relacionados msica so passveis de serem demarcados. Em Os teclados podemos destacar o tenuto e o staccato. O tenuto, indicao de que uma nota ou acorde devem ser prolongados por tempo indeterminado, detectado na narrativa de Teolinda pela sustentao de segmentos que so reiterados, como nos exemplos: [...] ela ia andando at onde, at onde? (Gerso, 1999: 31), ou [...] e a levavam para onde, para onde? (ibid.: 31), ou ainda: a lio parecia consistir sobretudo em deixla, em deix-la, em deix-la (ibid.: 49). J o staccato, que um mtodo de tocar uma nota de maneira rpida e destacada das demais, aparece na narrativa em segmentos semanticamente ligados entre si, mas que so colocados de forma separada, como em: [...] de onde vinham as escalas? Ningum as tinha inventado, estavam simplesmente l, desde sempre. Mas o que signicava desde sempre? E onde era l, quando se dizia que as escalas estavam l? E o ritmo, vinha de onde? Do corpo, talvez, do corao batendo (ibid.: 29). Alm da msica, o silncio tambm um elemento intenso capaz de ligar os dois textos. O silncio, alis, de maneira alguma pode ser visto como um espao de tempo nulo, mas sim como um espao de tempo suspenso e cheio de signicaes. No caso de Opus 78, o eu-lrico manifesta a existncia do aprendizado do silncio, que dene como o maior dos dons. Nesse caso, o silncio uma espcie de propiciador de reexes, um degrau indispensvel para o alcance da sabedoria. Em Os teclados, o silncio alcana uma amplitude ainda maior, que, alm de estabelecer uma parceria com Opus 78 ao manter a caracterstica de maior dos dons, tambm parece denir-se
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como o maior dos sons. O silncio, aqui, no falta de comunicao, vacuidade, , sobretudo, e como no poema, um estado de aprendizado. Jlia, a protagonista, opta pelo silncio, em detrimento s aulas de piano que tio Octvio insistia em lhe dar, pois no suportava que ele a manipulasse, lhe decidisse o destino, como no suportava que a interrompesse, dando pontaps na porta quando no gostava do que ouvia (no no no no no) nas raras ocasies em que ela tocava. No queria tocar (ibid.: 36). A personagem, ento, reclusa em seu silncio interior, decide produzir seu prprio teclado, do modo transcrito no trecho:
At que teve a idia de copiar o teclado, em papel vegetal, aproveitando uma sada mais prolongada dos tios. Reproduziu uma oitava sete vezes, decalcando-a do papel vegetal sobre cartolina branca, pintou os sustenidos com tinta da China, cortou a cartolina do tamanho exacto do verdadeiro teclado, estendeu-o sobre a secretria, abriu a partitura e tocou. Era quase um piano, concluiu correndo a escond-lo por detrs dos vestidos, dentro do guarda fato. Se conseguisse concentrar-se em absoluto, era quase um piano. Completamente a salvo, inacessvel a todos. (ibid.: 36-37)
ngela Salgueiro Marques (2001: 139), em um trabalho intitulado Os tons do silncio em Os teclados, frisa que tocar um piano feito de cartolina propicia a insero da msica no campo privilegiado do silncio, de um silncio que permite a realizao de um processo inventivo, original, em que o som puro no necessariamente tocado, mas apreendido e capturado. Em obras to envolvidas com o universo musical, a existncia do silncio torna-se um componente fundamental, uma vez que representa o outro lado da sonoridade das palavras. Sabemos que o som uma vibrao, uma rpida seqncia de impulses e repousos. Jos Miguel Wisnik (1989) lembra-nos que no h som sem pausa, e por ser presena e ausncia, est permeado de silncio. No som, h tantos ou mais silncios quanto sons, do mesmo modo que sempre h som dentro do silncio. (Wisnik, 1989: 15-16). E Jlia, a protagonista da narrativa de Gerso, na voz do narrador do texto, tambm opina sobre o silncio, que, para ela, fazia parte do processo de audio: E mesmo o silncio fazia parte de ouvir o silncio entre uma coisa e outra, a respirao ou a pausa, antes que outra coisa acontecesse (Gerso, 1999: 15). Outro elemento que julgamos procedente para que se possa estabelecer correlaes entre os dois textos o fato do poema ter um carter narrativo. Para alm de no haver rimas nem mtrica xa, o poema sugere ainda uma narrativa diluda em versos e estrofes, possuidora de aspectos comuns a todas as narrativas, como um narrador, personagens, marcaes temporais, mistura de vozes e at uxo de conscincia. O retorno da menina sua aldeia faz com que o eu-lrico/narrador exprima muitos comentrios reexivos, como se tivesse compartilhado com ela a mesma infncia, sugerindo serem a mesma pessoa, como j mencionado anteriormente. Nesse sentido, o texto tambm teria um aspecto autobiogrco, uma espcie de auto-relato,
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a que o prprio eu-lrico alude, dizendo tratar-se de um enredo banal. Tambm o uxo de conscincia aparece no poema, na ltima parte, estabelecendo uma quebra discursiva: no momento em que o tempo da enunciao o presente, h a interrupo marcada pelo travesso tpico do discurso direto, em que uma outra voz, diferenciada pelo modo itlico, parece assumir o turno, como uma rememorao de um tempo passado, uma espcie de nostalgia: Vem comigo partir estes pinhes, / sob o esboroado cor-de-rosa das paredes. / Os cavalos, acredita, no te faro mal (Freitas, 2003: 25). Da mesma forma que Opus 78 possui caractersticas narrativas, Os teclados nos proporcionam momentos especialmente poticos. Jlia, ao deparar-se com a experincia do amor, conversando com seu professor de matemtica, comea a divagar, e suas divagaes so intercaladas ao curso normal da narrativa, destacadas por parnteses:
(Ela caindo dos mundos, de esfera em esfera, presa por um p. Descendo vertiginosamente atravs dos planetas. Em cada um uma sereia olhando) [...] (Em cada planeta uma sereia olhando. Com o rosto dela prpria) [...] (As sereias cantavam em harmonia com o destino. Que era sempre o mais forte) [...] (Elas penteavam os longos cabelos, sentadas nos rochedos. As sereias. E cantavam.) (Gerso, 1999: 78-79)
Assim como os versos do poema apresentam um arranjo parecido ao de uma narrativa, esse trecho apresenta-nos caractersticas que so, em princpio, originrias da poesia, como a musicalidade das palavras e o prprio ritmo. A recorrncia de nasais nos gerndios (caindo, descendo, olhando) e nos verbos (cantavam, penteavam) imprime um tom de movimento, que se refere ao fato de a menina estar caindo de uma esfera a outra. como se esse movimento fosse lento, e ela estivesse observando tudo com muita calma e pacincia. No trecho: (Elas penteavam os longos cabelos, sentadas nos rochedos. As sereias. E cantavam (Gerso, 1999: 79), podemos observar a lentido ocasionada pelas pausas, que so representadas pela vrgula e pelos pontos nais. Notamos, portanto, que os dois textos tambm conuem no que diz respeito mistura de gneros e a no preocupao com o cumprimento de normas estruturais. Um outro ponto passvel de ser abordado a relao das personagens com a literatura. Em Os teclados, Jlia depara-se com uma entrevista de jornal, em que uma escritora coloca em pauta seu contato com um novo instrumento de escrita, o computador, que reduz a distncia entre o crebro e a mo. Essa relao com a literatura j est incutida no ttulo do texto, pois o plural representa tanto o teclado de um piano quanto o de um computador. As palavras da escritora tornam-se referncia para Jlia, inltrando-se em seus pensamentos, como uma msica que ressoa em seus ouvidos, conforme opinio de Maria Heloisa Martins Dias (1999). A partir da leitura da entrevista, a personagem passa, ento, a questionar-se em busca de autoconhecimento. J em Opus 78, o contato
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da personagem poemtica com a literatura d-se pela leitura, na infncia, do Cavaleiro Andante. Nesse caso, a literatura, tal como a msica, assume um papel importante na vida da personagem, da mesma forma que tambm assumem as duas avs vivas e irms, guras to importantes no poema. como se as duas representassem as irms msica e literatura: uma preferia a Sexta de Beethoven, a outra o absoluto silncio. Na narrativa de Gerso, por vrios momentos podemos sentir um tom metaccional, em que o texto parece falar de si prprio e de seu processo de elaborao, embora sempre de uma maneira velada. A referncia ao leitor no feita de maneira direta, mas sua presena pode ser identicada por meio de outros tipos de consumidores de arte, como o espectador de um nmero circense ou o ouvinte de uma msica instrumental. A msica um componente que tambm propicia a reexo sobre a literatura, como no trecho: As muitas vozes das coisas. Vozes de Bach, jogando umas com as outras, cruzando-se, convergindo, divergindo. Puro jogo, como o do mar e das ondas. Assim o mundo era feito (Gerso, 1999: 15). Notamos, aqui, que as vozes de Bach podem tambm referir-se diretamente s vozes da narrativa, o que conguraria um jogo da parte do narrador. Da mesma forma que a narrativa de Gerso pode levar-nos a uma dimenso metaccional, o poema de Freitas tambm pode ser visto por uma via, no caso, metapoemtica. A msica que se colava ao ardor das pginas (2003: 23), parece querer exprimir justamente o que Opus 78 , ou seja, um texto literrio enriquecido com msica, em diferentes manifestaes. como se estivesse a falar de si prprio, de suas pginas e versos permeados de msica. H outros indcios da metalinguagem no poema. No m da segunda parte, os versos: Agora, porm, s nos degraus do poema / podes procurar a vida, a morte inteira, / a msica to calada de quem foste (Freitas, 2003: 24) parecem fazer referncia no s ao tu do discurso, mas tambm a uma outra pessoa, o leitor, para que este se volte diretamente ao texto, no sentido de subir uma escada, escalar o poema para chegar ao patamar desejado. Alm disso, os vocbulos a vida, a morte inteira, a msica to calada, separados por vrgulas, estruturalmente sugerem os prprios degraus, como se performatizassem uma escada. O eu-lrico tambm estabelece uma bonita metfora que acentua o aspecto metapoemtico, que a de comparar a escrita dos versos ao bordado de uma almofada: Bordvamos, to longe de tudo, / as ores de uma almofada que perdi, ou, no meu caso / (e sem o saber ento), a dor intil destes versos (ibid.: 25). Notamos, portanto, que, cada qual sua maneira, os dois textos tambm podem ser aproximados em funo da presena da literatura como um elemento temtico, seja de uma forma direta ou com um pouco mais de sutileza. As aproximaes entre os dois textos permitiram-nos vericar que, tanto Opus 78 quanto Os teclados trazem elementos em comum, como as estruturas paralelas s de composies musicais, o silncio, a literatura, que conuem para a determinao
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do elemento de fundamental importncia para o estabelecimento do dilogo entre os textos, que a msica. como se ns, leitores, fssemos ora regentes, ora executores de peas que, de uma maneira muito intensa, nos instigam a toc-las.
Bibliograa
DIAS, Maria Helosa Martins (1999). escuta de uma nova linguagem. O escritor 13/14, 244-248. Enciclopedia Della Musica (1999). Le Garzantine. Milano: Garzanti FREITAS, Manuel de (2003). Beau Sjour. Lisboa: Assrio & Alvim. GERSO, Teolinda (1999). Os teclados. Lisboa: Dom Quixote. JACOBS, Arthur (1978). Dicionrio de msica. Traduo de Helder Rodrigues e Manuel J. Palmeira. Lisboa: Dom Quixote. MAGALHES, Isabel Allegro (1995). O sexo dos textos. Lisboa: Caminho. MARQUES, ngela Maria Salgueiro (2001). Os tons do silncio em Os teclados de Teolinda Gerso. Quadrant. Universit Paul Valry 18, 133-145. OLIVEIRA, Solange Ribeiro (2002). Literatura e msica: modulaes ps-coloniais. So Paulo: Perspectiva. WISNIK, Jos Miguel (1989). O som e o sentido. Uma outra histria das msicas. So Paulo: Companhia das Letras.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar comparativamente os textos Os teclados e Opus 78, dos escritores portugueses Teolinda Gerso e Manuel de Freitas, respectivamente. Observou-se que os textos estudados relacionam-se por conterem, sobretudo, aspectos ligados diretamente ao universo musical, seja no plano estrutural ou no plano dos sentidos. As aproximaes estabelecidas entre os dois textos analisaram elementos em comum, como a dimenso metalingstica, o silncio e a utilizao de procedimentos ans aos da criao musical, que evidenciaram dilogos que servem para legitimar a msica como elemento fundamental para a construo de ambos. Abstract: The present article presents a comparative analysis of the texts Os teclados and Opus 78, by the Portuguese authors Teolinda Gerso and Manuel de Freitas, respectively. The studied texts can be related as to aspects regarding directly the musical universe, both in the structure plan or in the sensorial plan. The established relations between the two texts have focused on the common elements, such as the metalinguistic dimension, the silence and the use of processes akin to the musical creation, which bear evidence of dialogues serving to posit music as a fundamental element for the construction of both.
Ai que prazer No cumprir um dever, Ter um livro pra ler E no o fazer! Ler maada. Estudar nada. O sol doira Sem literatura Fernando Pessoa
Palavras-chave: Bartleby, Enrique Vila-Matas, Maurice Blanchot, Fernando Pessoa, projetos, fragmentos, livro nenhum: papel de pensamento. Keywords: Bartleby, Enrique Vila-Matas, Maurice Blanchot, Fernando Pessoa, projects, fragments, null book: paper thought.
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pletas disso temos apenas projetos, rascunhos, notas ou fragmentos ; poderamos analisar a literatura pelo que se tentou escrever, revelando-nos, em larga medida, uma outra Histria da Literatura: a da impossibilidade da representao ou a do seu fracasso. Ou, ao invs da sua impossibilidade, a sua crise. Ou, ainda, a constatao de que uma vida apenas no d tempo. Neste ensaio, interessa menos pensar numa possvel impossibilidade da representao seu fracasso? , e sim examinar procedimentos de escrita em que pode a questo ser considerada: no escrever?, escrever o No?, escrever em fragmentos?, escrever para no escrever?. Para tanto, voltemos a Bartleby, mesmo sabendo que talvez fosse melhor no o fazer.
2. Um No inicial
Desta misteriosa personagem, sabemos pouqussimo:
(...) no existe material suciente para uma biograa integral e satisfatria desse homem. uma perda irreparvel para a literatura. Bartleby era uma dessas criaturas a respeito das quais nada se pode averiguar, exceto nas fontes diretas, e estas, no seu caso, eram muito poucas. (Melville, 2005:1)1
Sem passado e sem histria, acompanhamos Bartleby atravs da narrao em primeira pessoa de seu chefe, um homem de certa idade, que decidiu contrat-lo, j que o volume de trabalho aumentara quando assumira o cargo de Ocial de Registro Pblico. E, ele mesmo quem nos diz que:
No incio, Bartleby escrevia muito. Como se estivesse faminto por ter algo para copiar, parecia se empanturrar com os meus documentos. No havia pausa para a digesto. Trabalhava dia e noite, copiando luz natural e luz de velas. Eu teria cado empolgado com a sua dedicao, se ele trabalhasse com alegria. Mas escrevia em silncio, com apatia, mecanicamente. (ibid.:8)
Ou seja, Bartleby, desde o incio, j possua um carter dspar: mesmo trabalhando incessantemente alguma aluso mecanizao do trabalho pode ser lida nas entrelinhas no era com alegria que o fazia: ora, o funcionrio feliz, regozijado com o trabalho que realiza, no seria talvez um dos maiores sonhos da burguesia emergente? Modesto Carone escreve o posfcio desta edio e chama a nossa ateno justamente para isso: Bartleby um escravo naquele cenrio (ibid.: 44). Escravo num novo mundo que recm comeara a se estabelecer, um mundo das nanas, do
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Todas as citaes aqui reunidas, utilizadas nesta seco do trabalho, referem-se seguinte edio: Melville, 2005.
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lucro, dos pontos com hora de chegada e sada, das 8h trabalhadas, e, agouro de Melville ou no, Wall Street hoje smbolo do regime capitalista. A narrativa ganha flego quando, ao terceiro dia de trabalho, Bartleby pronuncia sua frase bombstica pela primeira vez. Desta forma, o conto concentra-se em torno das elucubraes do patro, cada vez mais abismado com o comportamento esdrxulo de seu funcionrio, aquilo que vi espantado, com meus prprios olhos, tudo o que sei a respeito de Bartleby (ibid.:1), que passa seu tempo atrs de um biombo verde, a contemplar um muro de concreto defronte a sua janela, uma parede cega; e que prefere, impreterivelmente, o No. A atitude impertinente da personagem, que arma e rearma, de forma categrica, sua recusa em realizar qualquer solicitao, o escrivo era vtima de um mal inato e incurvel (ibid.:18), tendo sempre a enftica sentena na ponta da lngua, suscita gradualmente uma sensao de revolta no patro e nos colegas, perturbando a ordem geral do ambiente de trabalho. O uxo da narrativa passa a ser marcado, ento, da sua metade para o m, pelo crescente desconforto que gerado na repetio descabida de Bartleby, nada irrita mais uma pessoa honesta do que a resistncia passiva (ibid.:12), conduzindo as demais personagens a um estado de tenso permanente, tremia ao pensar que o contato com o escrivo tivesse afetado seriamente meu estado mental (ibid.:20). O patro, que se interroga, num misto de compaixo crist e racionalismo assptico, comea a car realmente preocupado com os rumores que corriam a respeito de Bartleby, pois manter um funcionrio desobediente, sob sua tutela, poderia afet-lo prossionalmente:
No m, quei sabendo que no meu currculo prossional corriam comentrios espantosos sobre a criatura estranha que eu mantinha no meu escritrio. Isso me incomodou muito. (...) O que fazer? O que devo fazer? O que a minha conscincia diz que devo fazer com esse homem, ou melhor, fantasma? Tenho que me livrar dele; ele tem que ir embora. Mas como? (...) Prero deix-lo viver e morrer aqui, e depois empared-lo. (ibid.:28-9)
A soluo que lhe ocorre, um tanto sombria, remete-nos, de sbito, s narrativas de Poe, alm da sugesto de empared-lo, citao explcita ao conto O gato preto, outras aluses ao universo do escritor norte americano tambm podem ser observadas, por exemplo, quando se refere a Bartleby como fantasma. Dessa forma, a novela adquire um tom de narrativa fantstica, no longe dos relatos absurdos, largamente explorados no sc. XX, dos quais, sem dvida, Poe foi precursor. Extremamente moderno, Melville prenuncia vrios dos temas a serem explorados por Kafka ou mesmo Beckett. Esta novela poderia muito bem ter sido escrita por eles, tamanha similitude temtica observamos, seja pelo inusitado da situao
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narrada um escrivo que se recusa a escrever! , seja pelo que dela ca sugerido nas entrelinhas: o absurdo, o fantstico, a loucura; alm da narrativa se passar num ambiente burocrtico, tema kafkiano por excelncia. Talvez, essas semelhanas revelem uma certa tendncia da modernidade: a prevalncia de personagens menores um heri destitudo do seu carter de herosmo, representando, dessa maneira, qualquer indivduo comum que pe em xeque, atravs da sua resistncia passiva, as instncias de poder, uma ordem superior, regida pelo sistema capitalista. No toa, Bartleby, com a aura de mistrio que cerca seu carter inescrutvel e sua sentena enigmtica, tornou-se uma das mais famosas personagens da co moderna, atraindo para si a ateno de lsofos fundamentais do sc. XX:
Os estudos sobre Bartleby j eram numerosssimos no mbito anglo-saxo, mas foi o posfcio ao conto escrito por Gilles Deleuze em 1989, intitulado Bartleby ou a Frmula, que colocou em circulao losca internacional a personagem de Melville e sua frase. Deleuze observa: A frmula arrasadora elimina to impiedosamente o prefervel quanto qualquer no preferido. Ela abole o termo a que se refere, e que ela recusa, mas tambm o outro termo que ela parecia preservar, e que se torna impossvel. Depois de Deleuze, outros lsofos contemporneos se debruaram sobre Bartleby, como Giorgio Agamben (Bartleby o della Contingenza) e Jacques Derrida (em cursos e trechos de livros). Inicialmente interessado em Bartleby pelo tema do segredo, o ltimo Derrida enfatizava, no escriturrio, o tema da resistncia tica. Outros estudiosos assinalaram a anidade da atitude de Bartleby com a prpria desconstruo derridiana, pelo fato de esta evitar o dualismo do sim ou no. (Perrone-Moiss, 2005)
No entanto, no apenas lsofos dedicaram estudos sobre o carter ambguo da personagem de Melville, ccionistas tambm foram seduzidos pela sndrome de Bartleby.
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Enrique Vila-Matas, escritor catalo, tambm fascinado por Bartleby, ou, melhor dizendo, por Bartlebys, parte da premissa inicial dessa personagem, a da recusa, para construir seu romance-compndio, Bartleby e companhia: uma estranha antologia, misto de ensaio e co, onde so reunidos diversos escritores que, por razes distintas e variadas, decidiram parar de escrever. Escritores que, assim como o escrivo, prefeririam no o fazer, assumindo a atitude da desistncia. Os casos verdicos citados so vrios: Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger so autores de obras interrompidas; Mallarm tem seu ltimo projeto, Livro, inconcluso; Joseph Joubert, Arthur Cravan e Pepn Bello so escritores sem livros, dentre vrios outros, reais ou inventados, que renunciaram a continuar, a terminar ou mesmo a comear uma obra, alm de escritores que, como Kafka e Proust, escreveram sobre a diculdade de escrever. Scrates tambm consta no rol, pois, como sabido, no deixou obra escrita: Embora sempre se soubesse que ele tinha um carter delirante e alucinado, uma conspirao do silncio encarregou-se, durante sculos, de no destacar isso. que seria muito difcil assumir o fato de um dos pilares de nossa civilizao ter sido um excntrico desmedido (Vila-Matas, 2004: 20-1). Espcies de Bartlebys modernos, agrupados nesta listagem pessoal extremamente irnica, sob a gide do preferiria no o fazer, apontam uma possvel tendncia da atual literatura, a do No, ressaltando uma crise que se agravou na modernidade, a do Silncio:
Sem sombra de dvida, desde o romantismo a literatura sofre de um Mal que vem se agravando, cuja causa a percepo de seu possvel desaparecimento. O grande terico desse Mal da literatura, que est certamente na base do livro de Vila-Matas, foi Maurice Blanchot. H quase meio sculo, em Le Livre Venir (1959), Blanchot descreveu a crise vivida pelos escritores modernos, que, buscando a prpria essncia da literatura, tornam a obra impossvel. (Perrone-Moiss, 2005)
Se, em Le livre venir, Blanchot sugere o desaparecimento da literatura O va la littrature? Oui, question tonnante, mais le plus tonnant, cest que sil y a une rponse, elle est facile: la littrature va vers elle-mme, vers son essence qui est la disparition (Blanchot, 2003: 265) ; num livro anterior, Lespace littraire (1955), em que ele aborda a questo da obra impossvel, a obra como uma busca incessante, praticamente inacessvel, e lana uma possibilidade para entendermos essa dinmica da escritura: ao distinguir a obra do livro, Blanchot rearma o abismo que separa o gesto, movimento permanente do escritor o livro , do desejo sem m, por vezes nem mesmo visionado, tamanha a distncia metafsica existente entre o impossvel e o provvel o desejo de obra. A busca da obra, ou a manuteno do desejo de obra lcrivain ne sait jamais si loeuvre est faite. Ce quil a termin en un livre, il le recommence ou le dtruit en un autre (Blanchot, 2000: 14) ; seria
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o prprio movimento da literatura e se justicaria na beleza, um tanto obsessiva, que h na tentativa de se atingir a perfeio, sempre num horizonte distante, jamais perfeita. Dessa forma, a pergunta lanada por Blanchot e retomada aqui na epgrafe desta seco, pergunta-chave para adentrarmos nos Bartlebys de Vila-Matas, traz-nos a pensar sobre o universo dos escritores do No, escritores que foram, de alguma forma, atingidos pelo Mal do silncio, o Mal do nosso sculo. E, como cada caso um caso, deter-me-ei em um nico, muitos, Fernando Pessoa.
A problemtica da obra inalcanvel, innita, abordada em Blanchot ce que lcrivain a en vue cest loeuvre, et ce quil crit cest un livre (Blanchot, 2000: 16) , tambm uma questo central para o Baro que, impossibilitado de transpor-se arte literria superior a que pretendia, preferiu matar-se: o baro fez muito bem em ser conseqente com sua lucidez, fez muito bem em escrever sobre a impossibilidade de fazer uma arte superior e at, talvez dadas as circunstncias que envolvem seu caso , tenha feito bem em se matar (Vila-Matas, 2004: 95). Vila-Matas, atravs de seu narrador, alm do Baro, tambm cita Bernardo Soares, outro semi-heternimo de Pessoa. Apesar de Enrique no ter reetido muito sobre este ltimo, gostaria de despender mais tempo com ele, tanto pela complexidade que aporta, quanto pelo fascnio que exerce. Tambm, porque, como mais adiante trataremos do caso Caeiro, Bernardo Soares compe um contraponto interessante.
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A primeira pergunta a ser feita, se tivssemos uma, pelo que aqui venho tentar responder, talvez fosse: Fernando Pessoa, vrios, seria tambm, ele(s), uma espcie de Bartleby? Nesta, muitas podem ser depreendidas, pela complexidade inerente ao caso. Uma delas, outra, sem pestanejar, que resulta obviamente da primeira, surge logo em seguida: Mas como, tendo escrito tanto? Por hora, deixemos em suspenso, como espcie de pensamentos soltos aqueles que nos ocorrem quando lemos , estas perguntas-guias, que, invariavelmente, estaro nas entrelinhas destas notas-escrita. Espcie de dirio, extremamente angustiante, o Livro do desassossego, anteriormente atribudo a Vicente Guedes, assinado por Bernardo Soares ajudante de guarda livros da cidade de Lisboa , um livro-nenhum. Quem nos diz Zenith, ao organizar uma de suas verses impressas: Pessoa inventou o livro do desassossego, que nunca existiu, propriamente falando, e que nunca poder existir. O que temos aqui no um livro, mas a sua subverso e negao, o livro em potncia, o livro em plena runa, o livro-sonho, o livro-desespero, o anti-livro, alm de qualquer literatura (Zenith, 2003: 13). Em vida, Pessoa publicou apenas 12 textos de uma innidade, e trabalhou nesta obra durante o resto da vida, mas, quanto mais a preparava, mais inacabada cava. Inacabada e inacabvel. Sem enredo ou plano para cumprir, os seus horizontes foram alargando, os seus conns caram cada vez mais incertos, a sua existncia enquanto livro cada vez menos vivel como, alis, a existncia de Pessoa enquanto pessoa (Zenith, 2003: 14). Sempre por fazer, sempre se fazendo, o livro esteve sempre beirando a incerteza do Livro, no provisrio de qualquer escrita-esboo, no seu processo de Livro. No seu decorrer, recebeu vrios ttulos possveis: Eplogo na Sombra, Viagem nunca feita, Apoteose do absurdo, Litania da esperana, Idlio mgico etc; alm de apontamentos vrios que nunca chegaram a ser escritos. O Livro do Desassossego foi, antes de mais, vrios livros (e anal s um) de vrios autores (e anal um s), e a prpria palavra desassossego mudou de signicado com o decorrer do tempo (ibid.: 16). No que toda escrita guarda de provisrio, o Livro foi se constituindo de acmulos, um caderno de resqucios de vrios Pessoas, com toda a sua diversidade heteronmica:
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Alm dos textos simbolistas e diarsticos, Pessoa juntou especulaes loscas, credos estticos, observaes sociolgicas, apreciaes literrias, mximas e aforismos e s por pouco no entraram consideraes polticas [...]. O Livro do Desassossego, numa das suas vertentes, tornou-se um depsito para muitas escritas que no tinham outro paradeiro, uma arca menor (como caracterizou Teresa Rita Lopes) dentro da arca lendria onde Pessoa deixou milhares e milhares de originais. (ibid.: 19)
No entanto, nesse estgio transitrio e indenido, nessa desarrumao de livro, que o Livro adquire sua potncia j que lhe fora impossvel organizar um nico e coerente livro , o Livro se abre em muitos, vrios: fascinante saber que o Livro do desassossego, coerente com seu ttulo, ser para sempre uma obra em movimento e mutao, que sua forma verdadeira e denitiva ser sempre uma nostalgia, um anseio de unidade e coerncia como aquele indivduo Pessoa alentava, sabendo-o irrealizvel (Perrone-Moiss, 2001: 212). reconhecendo a imperfeio que devemos adentrar no Livro:
Por que escrevo esse livro? Porque o reconheo imperfeito. Calado seria a perfeio; escrito, imperfeioa-se; por isso o escrevo. E sobretudo porque defendo a inutilidade, o absurdo[...] eu escrevo este livro para mentir a mim prprio, para trair a minha prpria teoria. E a suprema glria disto tudo, meu amor, pensar que talvez isto no seja a verdade, nem eu o creia verdadeiro. (Pessoa, apud PerroneMoiss, 2001: 220)
As palavras de Blanchot parecem retornar em eco, com grande fora, quando lemos o fragmento acima transcrito. E, justamente, voltando a pensar em Blanchot, indago: O esforo do livro, no seu imperfeioamento, no constitui o Livro? No deveramos ns modicar nosso referencial de obra, ao invs de dizermos: obra fracassada, porque impossvel, innita; no poderamos pensar em obra-processo? Um outro estatuto de obra se nos revela doravante, acredito. Uma obra fragmentria sim, aos pedaos, porm menos obra?. Uma outra pergunta em suspenso. Pessoa Soares, tambm Bartleby, no por desistncia, mas por muito ter escrito sobre a impossibilidade quando se est beira, no risco, sempre mais difcil pode nos ajudar a pensar nisto:
Saber que ser m a obra que no se far nunca. Pior, porm, ser a que nunca se zer. Aquela que se faz, ao menos, ca feita. Ser pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso nico da minha vizinha aleijada. Essa planta a alegria dela, e tambm por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheo mau, pode dar uns momentos de distraco de pior a um ou outro esprito magoado ou triste. Tanto
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me basta, ou me no basta, mas serve de alguma maneira, e assim toda a vida. (Pessoa, 2003: 55-6)
Nesta escrita do risco, da borda, que beira um abismo, melhor do que no fazer fazer, menos ruim talvez, mesmo sabendo que o resultado no seja, mas uma distrao? assim como a vida. Da noo de processo, poderamos pensar em desleixo, mas no deve ser esse o termo. Em muitos dos fragmentos, o que temos um verdadeiro deleite de palavrar. Muitas vezes esmerado e cuidadoso, Pessoa realiza em prosa o potico, e esse prazer, sem sintaxe, no h emoo duradoura, passa a ser tamanho que pode muito bem substituir outras pulses: Gosto de dizer. Direi melhor, gosto do palavrar. As palavras so para mim corpos tocveis, sereias visveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real no tem pra mim interesse de qualquer espcie nem sequer mental ou sonho transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou escuta nos outros. Estremeo se dizem bem (Pessoa, apud Perrone-Moiss, 2001: 263). Outra questo trazida, no inacabado do livro, a do gnero. Mesmo que classiquemos o Livro do desassossego como dirio, porque acompanhou Pessoa por boa parte de sua vida, quando o semiheternimo aparecia, nos momentos de cansao e sonolncia2, melhor seria no tentar deni-lo em gnero algum, como o faz Leyla: O Livro do desassossego no pode ser encaixado em gnero nenhum, nem pode ser dito acabado ou inacabado, porque seu prprio projeto o da indenio, do fragmentrio e at do imperfeito ou mal feito (Perrone-Moiss, 2001: 220). Um livro sem gnero, pois, em fragmentos. Numa carta a Armando Cortes-Rodrigues datada de 19 de novembro de 1914, o jovem Pessoa diz: O meu estado de esprito obriga-me a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos. E, numa carta escrita um ms antes ao mesmo amigo, fala de uma depresso profunda e calma, que s lhe permitia escrever pequenas coisas e quebrados e desconexos pedaos do Livro do desassossego (Pessoa, apud Zenith, 2003: 13-4). Nestes fragmentos de uma autobiograa sem factos, em que a ausncia de um centro em torno do qual a narrativa seja construda, a falta de um centro, a relativizao de tudo (inclusive da prpria noo de relativo), o mundo todo reduzido a fragmentos que no fazem um verdadeiro todo, apenas texto sobre texto sobre texto sem nenhum signicado e quase sem nexo (Zenith, 2003: 13), cria, para ns leitores, um embarao: como ler o desassossego? O Livro do desassossego um texto que pode aniquilar quem dele se aproxime demais. Mais do que qualquer texto de Pessoa, este um texto de angstia, de depresso, de dilaceramento e de evanescncia. Qualquer leitor pode vericar que
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difcil suportar a leitura ininterrupta desse Livro, de tal forma ele nos contagia de sua negatividade insidiosa (Perrone-Moiss, 2001: 210). Como nos sugere Leyla, a nossa leitura tambm deve seguir em fragmentos, aos pedaos, qui ao acaso, percorrendo aleatoriamente as pginas abertas. Zenith tambm nos d uma deixa: Ler sempre fora da ordem: eis a ordem correta para ler esta coisa parecida com um livro (Zenith , 2003: 34). Bernardo, semiheternimo de Pessoa, muito prximo de lvaro, tambm pode ser acrescido no rol dos Bartlebys. No pela ausncia de palavra-escrita, mas pela dinmica que seu escriturar envolve: beirando o No fazer, na labuta angustiante do correr dos dias, pelo sim, pelo no na relativizao da linguagem , escrita.
Ao contrrio de Bernardo Soares, no encontramos em Caeiro a mesma manuteno da angustia cotidiana pelo exerccio da escrita. No h, em O guardador de rebanhos, essa conscincia da obra mal feita, irrealizada. Que tipo de Bartleby, se o fosse, seria Caeiro? Antes de pensarmos em alguns dos seus mecanismos de escrita, preciso que se repita o que j muito foi dito sobre: Caeiro mestre. Mestre de Ricardo, que critica seus versos livres, e mestre de lvaro, que o sada em lamento. Porm, na sua ars poetica se assim pudermos chamar, como uma espcie de legado losco, Com um leno branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a humanidade (XLVIII: 227)3; no h discpulos toda a paz da natureza sem gente (I: 203) para acompanh-lo nesta aprendizagem losca que nge no propor. Caeiro um mestre sem discpulos ao seu lado, um mestre que escreve para a posteridade, Sado todos os que me lerem/[...] Sado e desejo-lhes sol (Pessoa, 1976: 204). Com a simplicidade prosaica de seus versos, Por mim, escrevo a prosa de meus versos/ E co contente (XXVIII: 219), sua doutrina losca, Eu no tenho losoa: tenho sentidos (II: 205), vai sendo construda como se no houvesse doutrina nenhuma. Essa operao do ngimento, presente em todo o Pessoa, traz um maior grau de complexidade para o texto, mas deve ser entendida como um procedimento estilstico/retrico de Pessoa. Ricardo Reis quem nos adverte: Nestes poemas aparentemente to smplices, [...] hora a hora se encontra defronte de elementos cada vez mais complexos. (ibid.: 201). Nesta aparente simplicidade, somente o leitor que pacientemente, e com o esprito pronto, ler esta obra pode avaliar o que esta
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Todas as citaes aqui reunidas, utilizadas nesta seco do trabalho, referem-se seguinte edio: Pessoa, 1976.
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previso, esta coerncia intelectual (mais ainda do que sentimental, ou emotiva) tem de desconcertante (ibid.). Talvez seja na desconstruo de Caeiro, desdizendoo, que devamos ler Caeiro, desconando do que anuncia. Ora, e isso pode ser visto assim que abrimos o livro, que se chama O Guardador de rebanhos, pois, logo nos dois primeiros versos do primeiro poema, lemos: Eu nunca guardei rebanhos,/ Mas como se os guardasse. No seu livro, percebemos algumas linhas de direcionamento muito evidentes: poemas eminentemente pagos, em que explcita a relao com a natureza, nestes mesmos poemas, alguns discutem cones do cristianismo: Deus, Jesus Cristo, santos etc, luz do paganismo reconstrudo; poemas em que temos a experincia da desaprendizagem: desaprender a ver para vermos de novo, aqui, apesar de serem feitas aluses s sensaes, a viso sempre a mais privilegiada dos sentidos, e, em certo sentido, nestes poemas onde observamos mais claramente os seus preceitos loscos as coisas so simplesmente as coisas; e, por ltimo, poemas que desmisticam a persona potica ingnua de Caeiro, onde podemos ler aluses a outros poetas e onde percebemos a sua conscincia metapotica. Como vemos, a simplicidade tornase artifcio de escrita, mas os temas tratados so absolutamente complexos, uma complexidade disfarada de simples, um ngimento a mais. A potica de Caeiro est imbricada com a natureza, atravs dela que se d nosso aprendizado losco, uma aprendizagem de desaprender (XXIV: 217). Porm, para vermos a natureza preciso despir-nos, [...] (triste de ns que trazemos a alma vestida) (ibid.); para vermos claro, preciso atingirmos uma espcie de grau zero do pensamento Nada pensa nada (XXXIV: 222) , j que (Pensar estar doente dos olhos) (II: 205). Ver que as coisas so apenas coisas: O que ns vemos das cousas so as cousas./ Porque veramos ns uma cousa se houvesse outra?// [...] O essencial [grifo nosso] saber ver,/ Saber ver sem estar a pensar,/ saber ver quando se v,/ E nem pensar quando se v/ Nem ver quando se pensa (XXIV: 217). Neste mecanismo mental de vermos as coisas apenas como coisas, evitando Falar da alma das pedras, das ores, dos rios,, pois isto falar de si prprio e dos seus falsos pensamentos (XXVII: 219), Caeiro instaura um paradoxo: se a atividade potica consiste essencialmente neste trabalho de ver nas coisas outras coisas atravs de uma gura de retrica muito comum, a metfora , que poesia a sua, uma poesia apotica, um poesia sem associaes de sentido, em que uma coisa no remete automaticamente a outra? No me importo com as rimas. Raras vezes/ H duas rvores iguais, uma do lado da outra./ Penso e escrevo como as ores tm cor/ Mas com menos perfeio no meu modo de exprimir-me (XIV: 214). Nessa negao do discurso potico vigente, ele acaba por instaurar um outro, uma potica do uir, E a minha poesia natural como o levantar-se vento... (ibid.).
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No entanto, sua tentativa s vezes frustrada, porque precisa por em palavras seus ensinamentos: S a Natureza divina, e ela no divina... / Se falo dela como de um ente / que para falar preciso usar da linguagem dos homens / Que d personalidade s cousas,/ E impe nome s cousas. // Mas as cousas no tem nome nem personalidade:/ Existem, e o cu grande, a terra larga,/ E o nosso corao do tamanho de um punho fechado (XXVII: 218-9). Num certo sentido, poderamos pensar que, para ser coerente com a sua doutrina, a obra de Caeiro no deveria nem mesmo ter sido escrita, deveria ser um livro em branco4, para no ser preciso usar a linguagem dos homens. Porm, camos em mais um paradoxo: como transmitir sua mensagem losca? Escrever para Caeiro uma espcie de frustrao da escrita, uma vez que necessria para o seu m transmisso da sua mensagem losca , mas desnecessria para o uir, ao entrar em desacordo com o que transmite. Paradoxo no apenas no nvel das idias, mas tambm no nvel formal, pois, no seu texto, encontramos alguns deslizes poticos, em que essa associao de sentido metafrica pode ser observada, atribuindo sim sentidos poticos s coisas que no so apenas coisas. Por exemplo: O meu olhar ntido como um girassol (II: 204); O vento s fala do vento (X: 213); As primeiras verdes palavras que ela tem (XVII: 215); O meu olhar azul como o cu (XXIII: 217) etc. Desse modo, quando pensamos em seus versos escritos num papel do pensamento, pensamos que, no seu mecanismo de escrita, seus poemas se escrevem para no serem escritos, completamente paradoxal Caeiro, no estando, de forma alguma, em desacordo com os outros Pessoas. Caeiro uma espcie diferente de Bartleby? Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,/ Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,/ E l fora um grande silncio como um deus que dorme (XLIX: 228).
Bibliograa:
BLANCHOT, Maurice (2000 [1955]). Lespace littraire. Collection Folio Essais, 89. Paris: Gallimard. (2003 [1959]). Le livre venir. Collection Folio Essais, 48. Paris: Gallimard. CARONE, Modesto (2005 [1853]). Bartleby, o escrivo fantasma. In MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivo uma histria de Wall Street. Traduo de Irene Hirsch. So Paulo: Cosac Naify. MELVILLE, Herman (2005 [1853]). Bartleby, o escrivo uma histria de Wall Street. Traduo de Irene Hirsch. So Paulo: Cosac Naify. PERRONE-MOISS, Leyla (2001). Fernando Pessoa aqum do eu, alm do outro. 3 ed. rev. e ampl. So Paulo: Martins Fontes.
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Esta imagem do Livro em branco de Caeiro foi empregada pelo prof. Antnio Manuel Ferreira, em aulas suas, ministradas na ps-graduao da USP, como professor visitante.
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(2005, 13 de fevereiro). O mal de Bartleby. Folha de So Paulo, Mais!. PESSOA, Fernando (1976). Obra potica. Org., int. e notas Maria Aliete Galhoz. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar. (2003). O livro do desassossego. 2 ed. So Paulo: Cia. das Letras. POE, Edgar Allan (1998). O gato preto. In Histrias Extraordinrias de Allan Poe. Traduo de Clarice Lispector. 15 ed. Rio de Janeiro: Ediouro. VILA-MATAS, Enrique (2004). Bartleby e companhia. Traduo de Maria Carolina de Arajo e Josely Vianna Baptista. So Paulo: Cosac e Naify. ZENITH, Richard (2003). In: PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. 2 ed. So Paulo: Cia. das Letras. Resumo: Um pensamento esticado o que quer deter-se sobre o No para pensar diferentes dinmicas de escrita: a partir de Bartleby, do escritor Melville, um pressuposto, e citando Enrique Vila-Matas, como uma obsesso permanente, para ler Pessoa(s): Bernardo Soares e Alberto Caeiro, espcies de Bartleby. Nesse percurso, vrias possibilidades de pesquisa projetos, rascunhos, notas, fragmentos, pginas em branco, livro nenhum para tentarmos entender o papel de pensamento de Alberto Caeiro. Abstract: A stretched thought one wishing to linger on the No to think about different dynamics of writing: starting with Melvilles Bartleby, an assumption, and quoting Enrique Vila-Matas, like a permanent obsession, to read Pessoa(s): Bernardo Soares e Alberto Caeiro, as kinds of Bartleby. Along this path, many research possibilities projects, drafts, notes, fragments, blank pages, null book to try to understand the role of Alberto Caeiros thought paper.
Palavras-chave: Nikos Kazantzakis, Jos Miguel Silva, Ulisses, modernidade, heri. Keywords: Nikos Kazantzakis, Jos Miguel Silva, Ulysses, modernity, hero.
1. Imortalidade de Ulisses
O tema da viagem de Odisseu foi largamente retomado pela tradio literria aps a Odissia de Homero, seja para conrmar o ideal do heri nostlgico, que anseia o retorno ptria, seja para rearmar o mpeto do eterno navegador de mares, tendo sido desenvolvido por autores como Dante, Tennyson, Shakespeare, Giovanni Pascoli, Gabriele dAnnunzio, James Joyce, Haroldo de Campos e Nikos Kazantzakis, entre outros. Apesar de muitos autores se inspirarem no retorno de Odisseu como meta da navegao, forte a tradio que escolhe representar o heri como insatisfeito com a chegada ao lar almejado e desejoso de continuar a viagem. Odisseu uma gura que no se esgota e no se limita aos poemas homricos, sendo denido, genericamente, pela crtica contempornea como um discurso da civilizao ocidental. Para Piero Boitani, em A Sombra de Ulisses (2005), Ulisses um signo aberto ao futuro e localizado no limiar entre o antigo e o moderno. Deste modo, cada cultura o interpreta conforme seu prprio sistema de signos, atribuindo ao heri ora seu signicado mtico, ora os ideais e questes de seu tempo. Ele um personagem mtico e literrio que intrpretes, poetas e historiadores lem retrica e profeticamente como typos: sombra que se alonga, transformando-se, na imaginao ocidental (Boitani, 2005). Explica-se, portanto, a retomada constante da gura de Ulisses ao longo da histria, recebendo signicados distintos nas diversas pocas e culturas pelas quais foi representado.
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Essa abertura para o futuro constitutiva do heri Ulisses deve-se principalmente a um elemento da prpria Odissia de Homero: a previso de Tirsias no canto XI. Revelando a morte do heri na velhice de modo ambguo (a expresso grega ex halos pode signicar fora do mar ou vinda do mar), a interveno de Tirsias abre um vazio de mistrio que ser preenchido em pocas posteriores. A profecia do adivinho prolonga o futuro do poema e da prpria Odissia, mesmo aps o seu trmino. Segundo a previso do conhecido adivinho, aps o seu retorno taca, Odisseu deveria enfrentar uma enorme prova, longa e difcil, embarcando para uma ltima viagem, e levando consigo, nos ombros, um remo; deveria, em seguida, prosseguir seu trajeto at chegar a um pas cujos habitantes no conhecem nem a comida temperada com sal, nem o mar, nem os remos, que so para as naus as asas. Ele reconhecer o local por um sinal muito claro, porque a outro viajante, encontrando com ele, confundiria seu remo com um ventilabro, isto , uma larga p de madeira usada para espalhar as sementes (de trigo) ao vento. Ento Odisseu deveria praticar sacrifcios apropriados para aplacar denitivamente a ira de Poseidon; s ento a morte chegaria ex halos to serenamente que o encontrar consumido por esplendorosa velhice. A profecia, no entanto, no se concretiza em Homero, permitindo, assim, que os leitores da obra completem como lhes aprouver as vrias possibilidades assinaladas pelo vate sentenciador tambm do destino do rei dipo. Por essa previso, Odisseu torna-se uma gura de longa durao, aberta s diversas interpretaes, que intentam completar o anncio de Tirsias. Assim, alm de revelar a morte do heri pela expresso ambgua, o adivinho abre mais uma possibilidade para o futuro: sua viagem no terminaria com a chegada a taca, como ocorre em Homero, mas se prolongaria para alm do nstos. Desse modo, Odisseu torna-se o viajante por excelncia, ininterruptamente. A partir desse momento, e cada vez que empreende aquela viagem, ele signo. Cada cultura est livre para interpret-lo como tal no mbito de seu prprio sistema de signos, atribuindo-lhe uma dupla valncia, ora baseada nas caractersticas mticas do personagem, ora nos ideais, nas questes, nos horizontes loscos, ticos e polticos daquela civilizao. Histrica e mltipla torna-se sua representao, recebendo signicados diversos em cada cultura. Constitudo primeiramente como uma forma multiforme (polytropos), cheia de potencialidades, se para Homero Odisseu o paradigma do conhecimento do mundo e de si mesmo na dor, para o imprio romano o cone da experincia, da cincia e da sabedoria; mestre de retrica, engano, iluso e domnio para Sfocles e Shakespeare, tendo fundidas todas essas caractersticas em Dante. Mas se a primeira viagem do heri foi marcada pelo destino certeiro, o retorno ao lar, a ltima viagem de Odisseu no tem meta precisa, ao contrrio, segue em direo morte, ao nada, ao no-ser. O famoso e lendrio heri perde seu nome nesta viagem derradeira, pois a predio j estabelece que seu m est no thanatos ex halos.
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Nosso intuito neste artigo, porm, no dever se encerrar na representao da ltima viagem de Odisseu dada por diversos autores, principalmente na modernidade, mas, alm de deslindar o reencontro moderno de Odisseu com seus familiares na obra do autor Nikos Kazantzakis, pretendemos abarcar outra concretizao do mito realizada na ps-modernidade pelo poeta portugus Jos Miguel Silva. No a primeira vez que se prope um estudo comparativo entre poeta grego e poeta portugus. O ensasta e tradutor Jos Paulo Paes estabeleceu a comparao ao prefaciar a edio brasileira dos poemas de Kavs, associando-o a Fernando Pessoa. Alm da coincidncia de ambos terem vivido em colnias inglesas na infncia, do trabalho burocrata na vida adulta e do conhecimento pblico da poesia dos poetas somente aps a morte, o principal ponto de contato entre esses poetas, infelizmente, a observao de que tanto quanto o portugus de Pessoa, o neogrego de Kavs uma das lnguas-tmulo em que, por serem apenas das comunidades nacionais onde so faladas, cam quase sempre sepultas as obras nelas escritas, por primas que sejam (Paes, 1982). Talvez no seja possvel encontrar tantas coincidncias entre os poetas escolhidos para a presente anlise, tendo em vista a distncia temporal que os separa, porm basta-nos a coincidncia temtica e o paralelo da nacionalidade j traado anteriormente por Paes. Estamos lidando, pois, com poetas que tiveram pouca penetrao no cenrio internacional das letras, apesar da importncia que sustentam em seu pas de origem. Comearemos com Kazantzakis, poeta da modernidade, para ento alcanarmos a poca atual, momento em que Jos Miguel Silva ainda produz seus poemas.
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Integrante da chamada Gerao de 1905 na Grcia da qual participam tambm Angelos Sikelianos e Kostas Varnalis Kazantzakis constitui uma obra que se inicia por preocupaes nacionalistas. Ao lado de Sikelianos, realiza entre 1914 e 1915 uma peregrinao pelos espaos sagrados da Grcia, para tomar contato com a cultura e a histria de sua terra e de sua raa. Alm disso, participa ativamente da remodelao do idioma grego, defendendo a adoo do demtico como lngua ocial, em substituio da katharvousa, lngua j desgastada e utilizada somente nos bancos escolares. O nacionalismo de Kazantzakis, porm, seria derribado pela Primeira Guerra Mundial e pelo desastre da Anatlia, em 1922, quando tropas turcas invadiram a Esmirna exterminando civis e obrigando ao xodo cerca de dois milhes de gregos estabelecidos na sia Menor. O afastamento dos gregos dessa terra signicava a queda do mito helnico que remontava aos tempos pr-homricos e o m da Grande Idia, sonho de recuperar Constantinopla e parte do que foi o Imprio Bizantino. O declnio do sonho ocidental, sentido pela gerao de escritores de 1920, chegava ao territrio grego, sendo pressentido por Sikelianos e nomeado pelo ganhador do Prmio Nobel de 1963 Girgos Sefris (1901-1971) como mal da Grcia (romaikos kaims). Em Histria Mstica, de 1935, Sefris revela extremo desalento pela decadncia do presente e fascnio pelo passado glorioso da Grcia clssica, buscando nas runas de acrpoles e de esttuas mutiladas um modo de entender o presente e de conrmar a continuidade de uma tradio milenar, da qual seria herdeiro (PAES, 1986). A desiluso com a queda dos mitos gregos e a sensao generalizada de decadncia despertam em Kazantzakis o interesse pelas idias do comunismo em voga. Tal aproximao, porm, no se prolongaria por muito tempo, em razo de certa decepo com o Partido Comunista grego, que o levou a afastar-se completamente do ideal socialista. Ao renegar no apenas Marx, mas os outros autores que modelaram seu pensamento (Nietzsche e Buda), a obra de Kazantzakis assume o paradigma do niilismo losco. A partir de 1925, o autor isola-se em uma ilha grega para adotar Ulisses como seu prottipo de heri. Ao reescrever a grande epopia da tradio clssica, Kazantzakis procura tirar conseqncias do sentimento de decadncia histrica grega e ocidental e rever o sentido da cultura de seu pas na modernidade. Poema de dimenses admirveis 33.333 versos de 17 slabas poticas, em 24 cantos , a Odissia de Kazantzakis retoma o tema de Ulisses, tomando incio no canto XXII, verso 477, da Odissia de Homero, quando o heri acabara de exterminar os pretendentes de Penlope. A continuao dos feitos do heri lendrio, entretanto, reorienta o sentido do destino glorioso do heri clssico. Logo em seu primeiro encontro com a esposa, o lho e o pai, longe de sentir-se apaziguado pelo m das atribulaes do trajeto de retorno ao lar, o Ulisses kazantzakiano sente um profundo desencanto, e sua ilha to desejada torna-se a seus olhos estreita e asxiante. Decide, ento, partir novamente, com alguns poucos companheiros, sem rumo determinado. Se na primeira
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Odissia o tema a volta (nostos), na Odissia kazantzakiana h uma tentativa clara de superao da meta representada pela chegada taca. Como reavaliao moderna do heri de Homero, o heri de Kazantzakis mantm-se em marcha, ultrapassando suas prprias conquistas, visto que a chegada no manifesta nele o apaziguamento, e sim o desejo de ir alm. Nesta continuao, Ulisses descobre que a superao constituda pelo prprio caminho, e ento, lana-se novamente viagem. Deve-se mencionar que a primeira palavra nas epopias de Homero marca o motivo central de todo o poema; assim, na Odissia de Homero, andra (andra) anuncia que a proposio do canto est nos feitos do homem, o que se conrma na Odissia de Kazantzakis, poema iniciado com a conjuno san (san) que signica logo que, colocando a proposio do poema moderno em termos de uma continuao do paradigma do antecessor. Malgrado a deciso do heri de partir novamente, cortando desse modo os laos ntimos com a ptria, deve-se acentuar que Kazantzakis esforou-se por coletar o maior nmero de expresses e dialetos nos vilarejos da Grcia, para compor sua Odissia com a lngua da ptria, o demtico, considerada a lngua popular. Alm dessa preocupao com o aproveitamento das potencialidades de todos os dialetos e de suas foras criadoras, Kazantzakis explora a diversidade de adjetivos, no como simples adornos, mas como expresso completa de sua vasta emoo. por essa razo que o autor busca na multiplicidade dos eptetos atribudos a Ulisses (o-de-sete-almas, o-destruidorde-coraes, o-de-mltiplos-rostos) e a outros personagens a vazo plena e no encerrada dessas emoes e a expresso contraditria que o sujeito alberga. A recepo da obra no ambiente intelectual grego foi desconcertante e difcil, pois se tratava de algo demasiadamente novo e complexo. Entre os fatores que dicultaram a apreciao de Odissia, Vrasidas Karals (1994) destaca a importncia da obra como marco que rompe o silncio de sculos, revivendo na Grcia a forma pica, alm de reetir o intenso esforo de Kazantzakis por salvar do esquecimento o maior nmero de palavras dos dialetos de aldeias locais, o que contrariava os mais conservadores, dispostos a manter como lngua ocial a antiga katharvousa. Mas a recepo problemtica provm principalmente da manifesta oposio de Odissia com a legalidade esttica da poca, dividindo os intelectuais em posturas diferentes: o silncio, a burla e o ataque frontal. Acusado de anti-helnico e de compor um Ulisses brbaro e oriental, Kazantzakis responde com a concepo losca de relance cretense, pela qual considera Creta (sua terra natal) a sntese entre a Grcia e o Oriente, no sendo possvel a existncia de uma Grcia pura, destilada. Com essa viso da terra e em contemplao da vida e da morte, como oposies naturais, Kazantzakis compe sua Odissia. Miguel Castillo Didier (2002) sugere a possibilidade de que a base para o poema de Kazantzakis encontra-se na prpria A Divina Comdia de Dante Alighieri (canto XXVI do Inferno), em que Ulisses relata a Dante e Virglio sua ltima viagem. J idoso, o heri rene seus ltimos companheiros e parte em busca de conhecimentos e de novas terras,
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sendo, aps esse trajeto, levado morte pela fora de um tufo. W.B. Stanford (1968) e Pandelis Prevelakis (1961) corroboram tal suposio, lembrando que o autor grego foi leitor e tradutor de Dante. Levantam, inclusive, a hiptese de que o poema Ulysses (1833) de Alfred Tennyson tenha aguado ainda mais o interesse de Kazantzakis pela revisitao do heri clssico. No poema do autor ingls, Ulisses se impacienta em sua ilha e despreza sua raa; com o esprito sedento por conhecer a si mesmo e almejando novas experincias, toma novamente o largo com alguns companheiros. De modo semelhante ao Ulisses de Dante e de Tennyson, o heri de Kazantzakis abandona famlia e ptria, retomando a navegao e aportando em diversas terras, onde participa de revolues. Chegando s margens do rio Nilo, mantm-se em retiro asctico e vive todas as etapas da ascese, perfazendo um itinerrio de superao do heri. Esse ideal de superao pela ascese j havia sido elaborado pelo autor anteriormente na obra Ascese, de 1927: sua conscincia se eleva do Eu para a raa, a humanidade e a terra, em movimento de desapego e libertao, chegando a alcanar a viso de Deus, ainda no desmisticada nesta etapa do percurso, como uma chama que atravessa o Universo, julgando-se pronto para construir a cidade onde essa viso ser guardada. Em seguida, o heri volta ao para fundar sua Cidade Ideal, que entretanto destruda totalmente por um terremoto logo aps sua inaugurao. O asceta peregrino segue, ento, caminhando em direo ao sul da frica. Seu esprito vai se liberando de esperanas, desejos, iluses, alegrias e tristezas, perdendo a f na virtude, na justia e na prpria vida. Tendo Ulisses atingido a Plena Liberdade, tudo passa a ser sonho e o heri pe-se a brincar com sua vida e com seus dramas humanos (Fonseca, 1989). Tendo superado valores e dogmas, Ulisses entra em contato com personagens que simbolizam tendncias e possveis caminhos da humanidade: o prncipe Manayis, espcie de atormentado Hamlet; a prostituta Margar, que escolhe o caminho do amor; o Eremita, espcie de Fausto, insacivel sedento de conhecimentos; o Capito Uno, sombra de Dom Quixote; o Hedonista; o Homem Primitivo; o Pescador negro, que predica uma religio nova, que vir a ser o cristianismo. O encontro com esses espritos desperta em Ulisses a reavaliao e a superao das suas crenas, sem optar por nenhum dos caminhos apresentados por esses personagens. Ulisses segue navegando em direo ao extremo setentrional do oceano, chegando a terras geladas, onde colide com um iceberg e morre. Embora o heri de Kazantzakis seja construdo como prolongamento de caractersticas de uma gura lendria e conhecida, as alteraes imprimidas ao percurso original do heri colocam, evidentemente, a necessidade da compreenso da condio moderna do heri, liado s questes scias e literrias do seu contemporneo. Mais especicamente, embora inserido numa estrutura poemtica que retoma aspectos temticos e estilsticos da epopia clssica (diviso por cantos, regularidade mtrica), o heri de Kazantzakis deve ser visto em contraposio ao heri pico.
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Mas o grande elo da continuao e da modicao propostas pela Odissia moderna encontra-se exatamente na composio de Odisseu. Se por um lado, Kazantzakis prolonga os feitos do heri lendrio e recupera personagens da Grcia clssica, por outro integra o heri nos tempos modernos e lhe atribui caractersticas especcas das questes de sua prpria poca. deste modo que Odisseu ser levado a encontrar, alm das grandes guras do mundo homrico, homens, reais ou ctcios, que marcam a histria durante os sculos, entre eles Jesus, Buda, Hamlet, Dom Quixote. Como Odisseu est inserido na modernidade, sua constituio no poderia apartar-se das questes loscas que denem a poca, ressaltando o fato de que a obra kazantzakiana composta pela interao com outras reas do saber, como a prpria losoa e a religio, estando fundada principalmente no pensamento de Nietzsche, Bergson e no budismo. Desse modo, Odisseu se aproxima da concepo nietzscheana de super-homem, em constante superao de si mesmo e de conceitos e dogmas estabelecidos. Alm disso, o heri incorpora ainda o niilismo de Nietzsche e prossegue em sua nova trajetria sem crenas, seja em deuses, semi-deuses ou homens. Odisseu no se compromete, no se ata a nada, segue solitrio sua caminhada em combate incessante, desmascarando ideais e valores para super-los em seguida. Estando por acontecer ainda o reconhecimento entre Odisseu e a esposa e entre ele e o pai Laertes, j que a obra se inicia no canto XXII do texto homrico, certamente o autor atribui a essas passagens as modicaes a que se prope de antemo na construo de seu heri. O primeiro encontro de Penlope e Odisseu se d no canto I, verso 24, coincidindo de certo modo com o encontro primeiro dado por Homero, em que, ainda vestido miseravelmente, o viajante desperta estupefao e confuso na mulher, que permanece distante do marido, sem ainda reconhec-lo. Em Kazantzakis, o encontro se estende a um profundo desprezo entre os dois.
Penlope que, silenciosa e plida, no trono esperava, Se volta para ver e tremem seus joelhos de pavor: No este aquele que aguardei ano aps ano, oh Deus, com grande desejo, vejo um drago gigantesco que, semelhante a um homem, nossa casa pisa. Pressentiu o arqueiro-do-esprito o negro pavor Da pobre mulher e suave disse sua irritada entranha: Alma minha, esta que inclinada tanto tempo te espera para que se estendam seus cobertos joelhos e com ela mergulhes em lamento gozoso, a mulher que sonhaste enquanto lutavas com o plago, com os deuses e com a profunda voz de teu imortal esprito. Disse. Mas no estremeceu seu corao em seu impetuoso peito. Ainda exalava em suas narinas o sangue dos mortos;
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E todavia entre os corpos dos jovens v a sua mulher envolta. E enquanto a observava, seu olho turvava, rpido, irritado: Com sua espada a havia atravessado no calor da pelea!1 (I, 24-38)
No s o desprezo caracteriza o encontro, mas a desconana. Por toda a tradio, Penlope foi vista como smbolo da delidade conjugal, posta prova durante vinte anos de ausncia do marido e pelas solicitaes dos pretendentes. Porm, no poema moderno, Odisseu considera a esposa inel, pois a imagina envolta entre os corpos dos jovens mortos, tendo igualmente atravessado com a espada o corpo de Penlope no combate. Deste modo, o reencontro no marcado pelo contentamento, mas pela decepo que afeta a ambos. Odisseu surge diante da esposa como homem cruel e sem piedade; Penlope para o navegador eterno de mares uma pobre recompensa pelos anos de desterro. Deste modo, o reconhecimento, que na cultura clssica acontece por meio de uma relao familiar, seja uma recordao, uma marca, um conhecimento natural apenas s pessoas envolvidas, na Odissia de Kazantzakis tal reconhecimento revela que as pessoas, antes familiares, tornaram-se estranhas umas s outras. Todo o reconhecimento no texto moderno se estabelece por esse elemento de estranhamento e rejeio; a prova identicadora, como a cicatriz de Ulisses ou a descrio do leito nupcial, que tornariam o estrangeiro familiar, no ocorre na Odissia moderna, toda possibilidade de familiarizao derrubada, pois os vinte anos transcorridos causaram mudanas em todos os personagens, no mais se apresentando aos seus entes com a gura resguardada na memria. O nico contato fsico entre os esposos acontece logo aps, num sbito arrependimento de Penlope, o que contraria sua caracterstica de prudente cantada por Homero e pela tradio, lembrando que, antes de atirar-se nos braos do heri, a mulher lhe prope um teste de reconhecimento.
Reanima-se a rainha e, sem separar os lbios, Avana pelo umbral E abraa os joelhos de seu esposo; Mas ele, depressa, ordena s mulheres refugiarem-se no alto; E volta a cabea e a fortes brados a seu lho chama. (I, v. 125-129)
Tamanho desprezo do heri por sua esposa no se justica apenas pela desconana de sua indelidade, mas ca explcito em passagem do canto II o real signicado
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Esta e todas as citaes seguintes so fragmentos da Odissia de Kazantzakis, com traduo para o portugus a partir da verso espanhola feita por Miguel Castillo Didier.
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de Penlope para Odisseu. Em uma primeira reunio com o pai, o lho e a esposa no palcio, Odisseu d incio a uma longa narrativa sobre trs episdios ocorridos em sua navegao: os encontros com Calipso, Circe e Nauscaa. Retoma com profuso de detalhes o ato que o salvara anteriormente, quando se encontrava na ilha dos fecios. Do mesmo modo que o Odisseu homrico, este narra as diculdades que atrasaram o seu retorno ao lar, revelando que as trs guras femininas Calipso, Circe e Nauscaa representam a morte, pois cada uma tentou afast-lo de seu caminho e de sua condio natural. Calipso, por meio da divinizao, fez o heri esquecer sua humanidade, taca, a famlia; Circe, por seu lado, f-lo aproximar-se da bestializao, igualmente apagando de sua memria o intento do regresso casa; a ltima tentao da morte toma a gura de Nauscaa, representante do bem viver na esfera humana. neste momento que o prprio heri compreende o signicado de seu retorno e o que representa a sua famlia:
Volta-se e olha a sua mulher, divisa ao lho e ao pai, E estremeceu de sbito, suspirou e tocou seus lbios com a mo: Agora compreendia, tambm era a ptria rosto doce da morte. Como de fera apanhada na armadilha, seus olhos giram E se movem chamejantes, amarelos em suas profundas covas. Estreito como choupana de pastor, pobre lhe pareceu o palcio paterno, Uma dona de casa j murcha tambm esta mulherzinha, E o lho, como ancio octogenrio, tudo pesa com cuidado Para encontrar o honrado e o justo, o desonesto e o injusto, e treme Como se fosse acaso a vida sensata, e a chama fosse exata E tambm o esprito, o mais precioso bem do homem de mpeto-de-guia! Riu o atleta de-corao-combatente e estremeceu, E ento a doura da lareira e a ptria desejada E as doze deidades e a velha virtude no fogo honrado E o lho mesmo pareceram-lhe contrrios sua elevada raa. (II, 433-447)
Penlope , pois, a quarta gura feminina que o impede de avanar em sua marcha; como representante do elo familiar, a quem o heri deve honrar pelos laos do casamento, a esposa a morte que o afasta de sua natureza e que o prende ilha. A narrativa enunciada por Odisseu recebe ento a funo de splica ou convencimento para que o deixem partir, para que no se tornem o mesmo empecilho encontrado nas guras de Calipso, de Circe e de Nauscaa. A ptria e a famlia so o novo degrau que o heri deve superar, romper os laos que simbolizam a morte e a estagnao. O pranto de Penlope se inicia, tendo j compreendido as intenes do marido de retornar aos mares.
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Sem demonstrar compaixo pelos sentimentos da esposa, Odisseu no renuncia ao seu projeto de continuar a navegao e procura companheiros para a construo de um novo barco. Concomitantemente, Penlope orienta as escravas a cantarem para apagar o rumor do mar, persistindo deste modo nos feitos das guras femininas anteriores, que encontraram no esquecimento a forma de aprisionar o heri. Assim, se a recordao e o reconhecimento familiar no provocam a satisfao e o desejo de permanecer junto famlia, o esquecimento o artifcio utilizado para conter o mpeto da marcha; apenas pelo engano e pela ocultao da memria, Penlope poderia assegurar a re-unio familiar, desfeita com o incio da guerra de Tria. Nenhum canto de exorcismo, porm, ecaz para arrancar de Odisseu seu desejo de partir, novas expedies se elevam em sua alma; com anco trabalha na construo do barco e da praia no se afasta, contemplando a brisa, as ondas, as aves. Estreis so os esforos indiretos de Penlope, j que no recorre a artifcios prprios para demover o marido de seu intento. Aps anos no mar combatendo com deuses e demnios, Odisseu no est mais sujeito s contingncias, no se abate ou se curva a exortaes humanas. Tornado esprito rude, forte e sobre-humano, no se compadece da fraqueza de homens e deuses. A relao com o lho Telmaco, porm, se estabelece numa outra ordem, aproximando-se do tom carinhoso com que se dirige o heri clssico a seu lho. O primeiro encontro entre eles na epopia moderna ocorre ao trmino da luta contra os pretendentes, logo aps o banho e o no-reconhecimento entre os esposos. Odisseu grita pelo lho, que se apresenta nu ao pai e ainda exalando o vapor do banho. O pai se volta e o contempla com prazer e admirao.
Nunca perece quem engendra um lho, se volta o pai e o contempla, E altivas se ergueram suas entranhas errantes, golpeadaspelomar. Bem pareceu-lhe o pescoo, o peito, e os ombros, Bem geis suas articulaes de jovem, e suas grandes artrias Latejavam a or da pele prximo ao pescoo e profundas nos ps. Se regozija o pai ao observar com rpida mirada O bem plasmado corpo de seu lho: (...) Alta torre de tua estirpe, lho meu, meu lho nico, alerta teu ouvido; cria asas o povo e levanta a cabea; tomaram as armas os invlidos e se libertaram do jugo os escravos; subiu o lastro espuma e pretende ser guia. (I, 135-141/147-150)
O pai roga ao lho que participe da luta contra o povo que se organiza em rebelio para tomar o trono e abater o rei que retornara com uma multido de mortos atrs de si. Telmaco se recusa a lutar contra seu prprio povo, indisposto a marcar suas mos
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novamente com sangue. No texto moderno, Telmaco no um jovem imberbe, no limiar da adolescncia para a vida adulta, mas um homem sensato, maduro, ajuizado, que procura agir com justia e ponderao. Assim, ele procura convencer o pai a tomar a atitude piedosa diante do povo revoltoso.
se eu fosse rei, me sentaria sombra do pltano e como um pai escutaria as penas de meu povo, distribuindo com justia a liberdade e o po entre minhas gentes; agrada-me seguir desta maneira a meus velhos reis ancestrais. (I, 173-176)
Tal observao nos leva a uma importante losoa que percorre a obra de Kazantzakis: a necessidade de dar continuidade aos feitos dos antepassados, porm superando-os. Por esta concepo, h uma interdependncia entre as geraes de pais e lhos, os atos iniciados pelos progenitores devem ser prolongados e ultrapassados pelos lhos. A carne dos antepassados o adubo e o impulso necessrio para que o homem v alm de si mesmo e promova a fundao do super-homem, bem como o modo de resgatar os mortos do esquecimento e da dissoluo. A relao interdependente entre pai e lho, que base da losoa kazantzakiana, justica o interesse de Odisseu por Telmaco, certo de que o jovem dever continuar seus feitos e ultrapassar o pai. O lao nico que o Odisseu moderno mantm com sua vida pregressa Telmaco, lho de suas entranhas e de sua carne, que o seguir aps sua morte e o resgatar do limbo. Desse modo, Odisseu reconhece o lho como aquele que perpetuar suas aes. Porm, Telmaco revolta-se com a viso de seu pai, no encontrando na gura rude e sem piedade a conformao com seu prprio esprito comedido e sensato. A insaciabilidade e o vigor da juventude no se encontram no lho, mais afeioado ptria, famlia, ao povo. No se identicando com o carter niilista e de incessante superao do pai, Telmaco no sente por ele afeto natural, porm medo e estranhamento. Assim, a incongruncia de pensamentos e valores entre genitor e descendente consolida o no-reconhecimento na Odissia de Kazantzakis, igualmente no encontro de Odisseu com o lho, e ainda, prosseguindo na anlise, um desconhecimento por parte daquele que deveria dar novo vigor peregrinao rdua e mltipla do heri. Mais uma vez o estranhamento separa os parentes, desta feita, porm, de modo contraditrio, pois Ulisses v no lho o prolongamento e eternizao de sua vida na terra, mas Telmaco no pretende pisar as pegadas do pai e por meio delas ir mais longe.
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Cresce no rapaz a revolta pelo retorno de Ulisses, causador de mortes, rebelies populares e desordem no reino e deseja que o pai nunca tivesse regressado.
E o moo, tremendo, retrocede e reete: Este, como o coelho, Todo macho sufocar sobre a terra. Se pudesse, Deus meu, apanh-lo e crav-lo, atado pelas mos, Na proa de meu veleiro mais veloz, com toda fora, Para que zarpasse atrs do sol-que-no-retorna e no regressasse mais. Adivinhou de pronto o varo-de-mente-de-relmpago os pensamentos do lho E em seguida se povoou de nuvens seu sereno corao: Creio que demasiado pronto me consideras, lho, para que eu me marche; morre, amado, para amar-te; vive, para guardar-te inimizade. (I, 179-187)
Mas Ulisses no se enraivece e retoma o discurso sobre a necessidade de que o lho o ultrapasse, e de que consigam aplacar a revolta do povo para conservarem a estirpe. O tempo ainda no de paz, no possvel sentar sob o pltano e conviver justamente com o povo, mas de luta para manter o governo da ilha. Telmaco atende ao pai e empunha suas armas, mas diante da populao, Odisseu reete e decide se apiedar e abraar seu povo como um bom pastor. A revoluo controlada e os homens tornam-se mansos, obedecendo ao senhor que retornara. Mais tarde, sozinho, Telmaco assim reete sobre o pai:
(...) se meu destino me concedesse que nunca tivesses aparecido; E j que apareceste maldio! se outra onda viesse E longe te arrebataste, muito mais longe, e no retornasses mais! Fazes explodir as mentes e os nimos excitas dos homens bons, E j no se suporta o obreiro em sua ocina e o lavrador na terra; E o marido aldeo contempla sua parceira e no a quer; Viagens deseja e roar to somente Helenas imortais. (I, 1278-1284)
Certo de que o pai nunca deveria ter retornado, Telmaco comea a tramar uma emboscada contra Odisseu, enquanto o heri se dedica aos preparativos para a nova viagem e para o casamento do lho com Nauscaa. Envia um mensageiro ilha dos fecios, solicitando a mo da princesa para Telmaco. Odisseu apenas concretizar o intento da partida quando tiver assegurado a continuao de sua estirpe, deixando taca sob o governo de Telmaco e a descendncia garantida. Penlope pressente os planos do lho contra o pai, porm nada faz para impedir, concordando que o marido nunca mais tivesse tocado o solo da ptria. Em sua impossi-
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bilidade de segur-lo junto de si, faz-se cmplice das tramas de Telmaco, em desespero pela rejeio e desrespeito. A emboscada deveria ocorrer aps a festa de casamento, mas Ulisses fareja a traio e se dirige ao lho para conter sua revolta. Neste ltimo encontro entre pai e lho, Telmaco demonstra nalmente reconhecer o heri como seu pai.
Ei, lho de Penlope!, gritou e sua garganta sufocava; e o moo ento se detm e tremia o queixo. Deixa as armas e volta a tomar tua esposa; hora de subir ao leito nupcial e dormir juntos; no desejo que se manchem com sangue as coroas da boda. Juntou o mancebo com clera as sobrancelhas; seus joelhos se armaram: No quero j, escutas, sob tua sombra viver e vegetar. Alegrou-se o pai e tomou as mos do rapaz irritado: (...) Agora, no momento da negra separao grande alegria esta: Giraram e agitaram-se suas sobrancelhas, s tu minha prpria carne! Sem temor, com segurana, cravou o lho nos olhos do pai: Como ardem e riem e como no fundo de sua ris Um grande leo altivo acaricia a seu lhote! Se comoveram as entranhas do mancebo, pela primeira vez seu corao Palpitou diante deste homem e reconheceu ao progenitor, Mas conteve sua alegria e no estendeu a mo para toc-lo. Apoiou o pai a palma da mo nos alvos ombros: Avante, lho meu; separemo-nos; oportuno o instante; na aurora desatarei as velas, marcharei da ptria, e a ilha com seus rebanhos de ovelhas e seus homens te presenteio, coroa de pedras, coloque-a em tua cabeleira. Minha ltima palavra e vontade quero deixar ao lho E no sei pelo desterro o que poderia recomendar-te Se acaso venha tempo em que te sufoques nesta pennsula pedregosa E olhes as ondas ao longe e arda teu corao Ou que muito profundo enrazes na terra e no te movas mais. Mas, vergonha que agora eu pronuncie augrios ou que te deixe encargos; Deixa tua alma livre e o que possa ser que seja! (II, 1383-1390/1392-1411)
Deste modo se separam, Telmaco se dirige ao leito conjugal; Ulisses dorme sua ltima noite na ilha, silenciosamente, ao lado de Penlope. Antes de romper a manh, escapa pela janela, deixando a mulher em profundo desespero pelo abandono, e segue para a praia, onde corta o cordo umbilical da ptria e marcha pelos mares para no mais retornar.
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Tivemos a oportunidade de analisar o poema Finismundo do brasileiro Haroldo de Campos no artigo A transgresso ps-utpica de Ulisses, poema que igualmente segue a tradio da ltima viagem de Odisseu.
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Fernando Pessoa escreve Mensagem, na qual dedica um poema a Ulisses; Jos Miguel Silva escreve Ulisses j no mora aqui. Ambas as obras sinalizam a importncia do mito de Ulisses nas letras portuguesas, que, de um modo singular e particular, se fundamenta por outra representao do heri, diferentemente das tradies que se xaram no decorrer da histria, interpretando (e reatualizando) Ulisses como nostlgico navegador ou como insacivel de conhecimento. Na literatura portuguesa, Ulisses o fundador, o construtor de cidades e, desse modo, uma gura nacionalista, que faz parte da histria de Portugal.
Canta-me, Musa, o homem frtil em expedientes, que muito sofreu, Que destruiu a cidadela sagrada de Tria, Que viu as cidades de muitos homens e conheceu o seu esprito, Que padeceu, sobre as ondas, muitas dores no seu corao.3
A invocao Musa em Homero desnuda o esprito de Odisseu que ressoar na Odissia de Kazantzkis e que reete a viso portuguesa do heri: no s a engenhosidade mltipla revela seu carter, mas o expansionismo, que o leva a estranhas terras e o torna fundador mtico de mltiplas cidades (o que o liga, invariavelmente, tradio do insacivel de conhecimento, ainda que no se estenda sua ltima viagem profetizada por Tirsias), como por exemplo, e particularmente, a cidade de Lisboa4, chamada de Olisipone ou Ulixibona, uma derivao do nome do heri. Constri muralhas em Lisboa e um templo a Atena, em gratido sua proteo nos feitos de Tria e no retorno ptria. Se, porm, Odisseu conhecido como construtor, o oposto igualmente verdadeiro, como canta o poema de Homero. Odisseu edica muralhas em terras estrangeiras, mas destri as de Tria por sua astcia. Essa dupla caracterizao do heri pode ser reconhecida j em Cames:
Vs outro que do Tejo a terra pisa, Depois de ter to longo o mar arado, Onde muros perptuos edica, E templo a Palas, que em memria ca. Ulisses o que fez a santa casa Deusa, que lhe d lngua facunda, Que se l na sia Tria insigne abrasa, C na Europa Lisboa ingente funda.5
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Homero. Odissia, I, 1-4. Alm de Lisboa, h relatos de que Odisseu teria fundado uma cidade na Ibria (Odysseia) e na Germnia (Asberg). Lusadas, VIII.4.5-5.4
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Tanto a epopia de Cames quanto o poema Mensagem de Pessoa (Pereira, 1997) se dirigem a uma construo mtica e nacionalista de Portugal, poetas esses representativos da alma e das letras portuguesas. E se Ulisses faz parte dessa formao de Portugal, como a gura de mais longa durao do Ocidente, permanece na atualidade como matria do lirismo de Jos Miguel Silva. Ulisses j no mora aqui (2002) parte, evidentemente, das mltiplas tradies do mito ulisseano, estabelecendo desde o ttulo uma interlocuo com as diversas outras representaes realizadas na histria literria. A obra, constituda por uma reunio de poemas, congura a antiga trajetria narrativa, pela diviso em sesses que recebem subttulos referentes s famosas peripcias do heri em sua odissia. Desse modo, os poemas devem ser lidos e entendidos em conjunto, alinhavados em seqncia e obedecendo a sucesso dos episdios que se interpem, caractersticas essenciais do gnero narrativo. A presena do lirismo associado a elementos narrativos em Ulisses j no mora aqui possivelmente nos remete ao gnero pico, o que nos levaria a pensar em uma rearmao do nacionalismo. Porm, parece-nos ser possvel realizar uma anlise mais produtiva do que liar o autor ao ufanismo e tentativa de re-fundao de seu pas. O resgate de uma tradio por demais arraigada no imaginrio ocidental como a de Ulisses e sua odissia, ligada intimamente com questes particulares de um pas, reete um impulso de reimaginar os dados do passado, a herana cultural universal (e local), e reoper-los na instncia vital e problemtica do presente. O presente seria, desse modo, reavaliado a partir do olhar dirigido ao passado, como impulso vital para a renovao e a anlise crtica da situao atual, como se a distncia temporal, ao contrrio de separar as pocas pela diferena, aproximasse-as pela repetio e prolongamento das mesmas questes. Odisseu permanece sempre vivo nas civilizaes e serve de prottipo do reconhecimento de si mesmo e do mundo exatamente por sua caracterizao mltipla e por seu vasto conhecimento, encerrando em si todas as potencialidades humanas. O itinerrio traado por Jos Miguel Silva, apesar de se referir aos episdios da Odissia, no concorda com o de Homero, pois lhe d outra congurao. O poeta portugus abre sua obra com a sesso intitulada Ciclopes, o que nos remete imediatamente s questes sociais e culturais. O mundo civilizado e real, aos olhos de Homero, pertence aos homens que cultivam a terra e conhecem o trigo para fazer o po. A cultura do trigo um critrio absoluto para essa distino entre os homens civilizados e os selvagens (Vidal-Naquet, 2002). E Polifemo, o conhecido Ciclope, faz parte de um povo que no conhece nem a agricultura nem a vida em sociedade. Mas a sesso no se avulta com o ttulo Polifemo, o que seria uma individualizao dentre o seu povo, mas ao contrrio, marcando o sentido do coletivo, do social, encontramos o ttulo sugestivo Ciclopes. Ulisses j no mora aqui comea, portanto, com o exerccio de pensar a ontologia na vida social por meio de elementos negati-
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vos, que aoram no esquecimento do existencial. A vida em sociedade seria, pois, responsvel pelo apagamento do sujeito e impulsionadora da formatao (negativa) do indivduo. A beleza, ditirmbica iluso (Salo de Beleza 1. Impresso), almejada e perseguida com insistncia, mas tudo o que resta a quem vive o abandono das cidades a morte e a sua estpida carreta fnebre (Salo de Beleza 2. Impresso). E os cidados, pejorativamente urbanos, irrompem em sales comerciais, em feiras de livros, escondendo a destruio que rodeia a todos. Na h sada, todos rumam para o mesmo m, para o mergulho na morte. Neste cerco, viver uma questo/ de prorrogar o desalento, de iludir/ o infortnio (...); assim, o poeta inaugura a obra com a sesso da destruio, que o centro do inferno para o qual os homens se dirigem, embora enganem a conscincia com a mentira e a hipnose. O engano perdura na sesso Entre Cila e Cardbis (Carbdis em Homero). Surgem as muitas tentativas de esperana as quais o homem pode se agarrar para camuar a morte vindoura: a crena em Deus (Poema com aplogo moral); o amor, ligado ao seu revs (A minha musa) a incompatibilidade, o desencontro, a impossibilidade de amar e a conseqente solido ; a atividade de poeta e a sua inocuidade (Numa biblioteca); a ao correta v (Queixas de um utente). E toda a esperana, bem assinalado ca em todos os poemas, vem marcada pela duplicidade da no-esperana, do desalento, da inao diante da fatalidade de no salvar o mundo ou ser feliz. Resta seguir dormindo a civilizao, sem tentativas de evaso ou de recordao de tempos possveis, e navegar cegamente, ao acaso, tateando no imenso mar a idia do encontro de uma porta utuando o apoio contra a submerso, a abertura a outro plano de conscincia. No entanto, tal possibilidade de transcendncia simbolizada pela porta no se concretiza: o poeta bem encerra que a noite, a escurido da cegueira, nada ensina/ e tudo sem remdio, os cegos, pois, que tropeam uns nos outros, no encontram a porta. Mas ao chegar Ptria dos Lotfagos [e] Ilha de Circe, descobre-se outra possibilidade para encarar a destruio dos ciclopes (que nada tm de civilizados): o esquecimento, representado tradicionalmente por ambos os episdios protagonizados por Ulisses a folha de ltos que produz o esquecimento e a ao da deusa Circe em estimular as emoes instintivas no heri para afast-lo de sua ptria. Estamos, portanto, diante de um possvel remdio, contrariamente ao que arma o eu lrico no poema Trevas da sesso anterior. Mais uma vez, porm, o engano est presente, pois o esquecimento s se efetiva com o auxlio de artifcios: a festa como produtora de iluses, concentrando em um mesmo recinto pessoas que utilizam a mscara da alegria e da descontrao e que procuram alcanar certo xtase efmero para o esquecimento do antes e do depois (No pronto a vestir); o vinho, principal entorpecente e estimulante das potencialidades adormecidas, utilizado inclusive como ritual dionisaco para a divinizao do humano,
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em contraste com a fraqueza do homem e insipidez da vida na sobriedade (Colheita de 98); as mudanas, como esquecimento do passado, do que no deu certo, da rotina, das gastas e previsveis iluses (Por exemplo, mudar de casa); a prpria arte da palavra, com sua potencialidade anestsica de regular o curso da tristeza (Nocturno); a livraria em Segvia, que afasta da multido, que absorve pela leitura e afugenta a passagem do tempo, momento transubstancial do efmero para o atemporal (Passagem); o esquecimento de todo o torpor, de tudo que inebria, como a consumio do amor, ou melhor, da perda desse amor (Fala Circe); a liberdade de afastar-se da no-memria, do apagamento de si (Abandonando a Ilha de Circe). Mas se o eu-lrico vence mais uma etapa de seu percurso, o alento do esquecimento, alcana novamente o desalento, que se esconde atrs de uma pedra. Como Ulisses, o eu-lrico chega ao Hades, mas como o viajante que carrega um bilhete sem retorno, e ali encontra diversas almas mortas, que lhe vm contar sua histria, reconhecidamente como o heri de Homero: Elpenor, D. Feia, o Guarda-freio, o Cauteleiro. Mas o Hades no se localiza somente em um mundo subterrneo, distante da Terra, o eu-lrico o encontra na prpria vida, onde j no reconhece nenhum heri, pois esto todos mortos. No h mais combatentes desde a queda de Tria, no h deuses direcionando as aes e toda a poesia se tornou improfcua. Desse modo, o poeta estabelece uma diferenciao entre a poca urea da Grcia Clssica e a esterilidade e abandono da poca atual, contempornea ao poeta. Na Teoria do Romance (s/d), Georg Lukcs traa o paralelo entre a poca grandiosa da Grcia clssica (mundo homogneo) e a modernidade (mundo heterogneo), distinguindo no s os heris que se posicionam nas extremidades da linha do tempo, mas ainda os gneros pico e romanesco, caractersticos dessas pocas. O primeiro plo da oposio, o mundo homrico, corresponde infncia feliz da humanidade, em que as dualidades exterior e interior se armam mutuamente e representam a harmonia e a perfeio. No outro plo, no entanto, encontra-se a separao entre mundo exterior e mundo interior e a conseqente perda da harmonia. A idade da epopia plena de signicao, est em consonncia com a totalidade. Desse modo, o homem pico no se afasta da exterioridade e se reconhece incorporado ao equilbrio das foras sociais (famlia, ptria, amor). O heri da epopia, ao contrrio do indivduo isolado, age em conformidade com o destino coletivo e com a vontade dos deuses. O mundo heterogneo, entretanto, abandonado por Deus, o que tornaria os homens impotentes, no fosse a presena de uma mstica negativa, prxima do demonaco. Com a perda da homogeneidade e com a ausncia do divino, o homem conquista a reexo e a liberdade, descobrindo em si o poder criador e a individualidade como potncias, segundo Lukcs, para a superao das dualidades. O herosmo moderno advm, portanto, da prpria sobrevivncia numa constante situao de conito, pois sem a proteo dos deuses, o homem vive o percurso de sua vida em sua assustadora
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liberdade e perigo, em uma angustiante solido e abandono. Assim sendo, a busca do homem moderno pela totalidade perdida marcaria uma espcie de presena do esprito pico na modernidade, enquanto a fora necessria para sua sobrevivncia conguraria outra modalidade da heroicidade. Transparente a conscincia do abandono pelos deuses e do carter nmo da vida cotidiana em Ulisses j no mora aqui, sem exigncias que meream os feitos grandiosos do homem moderno, levando-o ao anonimato e consumio na coletividade. A angstia da vida moderna encontra-se nessa perda do nome e da fama e, em contrapartida, na aporia da individualizao caracterstica dessa poca; diferente da coletividade, o indivduo moderno no se distingue dos demais em suas aes, so todas elas comuns, genricas, opacas.6 Contrastar o homem destitudo de habilidades do presente com o heri multiardiloso que inaugura a literatura ocidental pode ter sido um modo de no s problematizar a crise7 que permeou as primeiras dcadas do sculo XX (o que no deixa de se conrmar nas dcadas posteriores), desencadeada pelo m da Primeira Guerra Mundial, revelando a fragilidade dos ideais humanistas e a conscincia do declnio histrico das culturas, mas de tambm estabelecer o conito de foras irreconciliveis e engendrar um espao de embate entre elas. Os ecos da desolao que atingiu os meios culturais se estendem ainda poca ps-utpica, pois se observa a necessidade de debate com o cnone e com o passado, mesmo que seja para reoper-lo no presente, de releitura do homem urbano debilitado e, conseqentemente, de anlise crtica e irnica dessa orfandade que se abate sobre a individualidade moderna. A literatura mais recente volta-se ao modernismo como herdeira natural, mas despende-lhe um olhar, muitas vezes, derrisrio em relao problemtica das foras dspares que se entrechocam no espao do texto literrio, como a zombar da atmosfera de crise que pairava no ar e se transubstanciava em escrita fragmentada e mltipla, em sua nsia por apanhar o todo e o nada que caracterizava a vida e o mundo. Em Jos Miguel Silva, no entanto, essa mesma problemtica analisada com o olhar pessimista, daquele que busca a ao de algum emblemtico e nada encontra, ao contrrio caminha pela mesma terra estril de T.S. Eliot. Deuses e heris esto todos mortos e no podem ser encontrados nem mesmo no Hades, deles nada mais se sabe pois o canto dos aedos decaiu em jornalismo; assim, se no h heris, como o
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O tema foi antes desenvolvido por James Joyce em Ulysses. Leopold Bloom um homem comum, sem qualquer trao que o eleve em sua categoria, porm um dia seu tem a enormidade de uma epopia e os eventos ocorridos tm o revestimento de grandes acontecimentos, ainda que supercialmente sejam parte da vida cotidiana e comum de todos os homens.
O discurso da crise que se atribui aos poetas modernos pode ser melhor avaliado como um discurso da prpria crtica, como um fenmeno da modernidade, no que fosse de fato um momento de crise.
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prprio ttulo da obra reitera, tampouco a literatura pode ser a salvao. Esta sesso de Ulisses j no mora aqui encerra o completo niilismo, em sua forma mais radical, pois no h via positiva de criao, como prope Nietzsche. O enfrentamento da morte e do apagamento realizado por meio de ameaas desesperadas (se torno a ver-te a menos de quinze passos/ dos meus eu juro que te mato), sem qualquer lgica, que denotam a impotncia humana e total submisso. Enm, a viagem termina e chegamos taca, onde Penlope espera. O porto-seguro do eu-lrico est circunscrito ao ambiente caseiro, ao encontro do amor e s pequenas coisas vividas no lar. Fica clara a concordncia do poeta com o m de Ulisses dado por Homero, reintegrando-o ao paraso perdido, nostlgica ptria, onde deixara os seus e a felicidade almejada. Protegido nesta taca, o eu-lrico distancia-se de toda a descrena e destruio encontradas em seu peregrinar, no mundo da convivncia coletiva. A reviravolta de cosmoviso ca marcada por seu retorno (o nstos), pelo alcance do tlos. Restabelecido ao seu lugar utpico, de origem, o espao da ptria e do corao, o eu-lrico lana em contraposio ao niilismo anterior: Qualquer homem um heri/ Pelo simples facto de morrer/ E os heris so os nossos mestres. O valor da heroicidade recuperado e transferido para os antepassados, sinalizando uma reconciliao com a morte e a reavaliao da ao herica: morrer mais difcil que viver. semelhana e diferena da obra de Kazantzakis concomitantemente, em Ulisses j no mora aqui, o eu-lrico se decepciona com a recompensa ao chegar em taca, a felicidade , em realidade, inferior ao que fora imaginado; no entanto, a felicidade, a consolao. Se em Jos Miguel Silva basta tal migalha, em Kazantzakis h sempre mais. A idade chega para ambos os Ulisses; cada qual realiza suas escolhas: morrer ousando longe de casa ou se contentar com a mnima alegria da vida breve. No poeta portugus, o Ulisses transformado em homem comum (o everyman de Joyce) troca a vida pelo po caseiro, pois o resto rudo, inferno de sobra. Assim, a modo de arremate, cada vez que se revisita o tema de Ulisses, novos conceitos e conguraes se acrescentam sua gura, pois os valores das respectivas pocas e culturas de sua representao so natural e forosamente inseridos no contexto primitivo, como avaliao e recriao perenes: aventura incessante do conhecimento e da criao.
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Resumo: Largamente retomado pela tradio literria, o tema da viagem de Ulisses em muitas de suas representaes conrma o ideal do heri nostlgico que se dirige ao lar em cumprimento de seu nstos, assim como, em outras, rearma o mpeto do eterno navegador de mares. Nikos Kazantzakis retoma o Ulisses lendrio, insatisfeito com o retorno ao lar, construindo a partir dele o seu prottipo de heri e dando forma, em plena modernidade, ao poema pico Odissia: uma continuao moderna (1938). A partir do canto XXII, verso 477 do poema de Homero, Ulisses levado a um novo itinerrio abandonando taca denitivamente. Embora se baseie em Homero, recuperando as personagens e a antiga estrutura pica, Kazantzakis no se afasta de seu tempo, compondo um novo Ulisses representante do mundo moderno, prximo das losoas de Nietzsche e Bergson, bem como do budismo. Como gura entre mundos, o Ulisses de Kazantzakis recupera as antigas delineaes de Homero e igualmente incorpora as questes da modernidade o niilismo, a desesperana, a multiplicidade. Contemporaneamente, Jos Miguel Silva encontra no mesmo tema da Odissia homrica a matria e a forma para compor Ulisses j no mora aqui. pelo confronto da semelhana temtica e das
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diferenas de composio entre as obras do poeta grego moderno e do poeta portugus que este artigo se constitui. Abstract: Always invoked by the literary tradition, the travel of Ulysses conrms, in some works, the ideal of the nostalgic hero bounded for home in order to achieve his nstos, and, in other works, it reafrms the impetus of the eternal sailor. In Nikos Kazantzkis text, the legendary Ulysses appears again but as a man that is dissatised with his return home. The author builds his character based on the rst Ulysses, shaping, during the Modern era, the epic poem Odyssey: a modern sequel (1938). From book XXII, line 477, in Homers poem, Ulysses is taken to a new itinerary abandoning Itaca denitively. Although Nikos Kazantzkis text is based upon Homers text, using similar characters and the same epic structure, Kazantzkis, as a man of the Modern era, composes the new Ulysses as the representative man of the modern world, close to Nietzsche and Bergsons philosophies, as well as to the Buddhism. As a character between worlds, Kazantzkis Ulysses, is, at the same time, a character that incorporates the matters of modernity nihilism, hopelessness, multiplicity. Contemporarily, Jos Miguel Silva nds in the theme of the Homeric Odyssey the material and the form to write Ulisses j no mora aqui. This article presents the confrontation of the thematic similarities and the differences of composition between the Greek modern poet and of the Portuguese poets work.
Recenses
Ldia Jorge (1946- ), escritora premiada, que entretanto acaba de lanar o livro de literatura para a infncia, O Grande Voo do Pardal, autora de romances como O Dia dos Prodgios (1980), O Cais das Merendas (1982), Notcia da Cidade Silvestre (1984) A Costa dos Murmrios (1988), A ltima Dona (1992), O Jardim sem Limites (1995) e O Vento Assobiando nas Gruas (2002), publicou em Maro deste ano o nono dos seus romances: Combateremos a Sombra. Combateremos a Sombra conta a histria de Osvaldo Santos, um psicanalista e professor, que se deixa embrenhar pela realidade peculiar das estrias que lhe so contadas no seu consultrio, do prdio Goldoni. De homem bem casado, que chega constantemente atrasado a compromissos familiares, sem grande ligao afectiva ao nico lho, do primeiro casamento, perde a mulher para o colega Navarra, de quem ele se destaca pela forma nanceira desprendida com que exerce psicanlise. A aco desenrola-se sobretudo no espao citadino de Lisboa. Numa temporalidade linear, assistimos s vivncias de Osvaldo Santos desde a noite da passagem do sculo at Primavera de 2001. So quatro meses de convulses na vida do psicanalista-professor: do divrcio com Maria Cristina Folgado paixo pela mulher misteriosa, mais nova do que ele, que se esconde no 3 andar do seu prdio, Rossiana; e de uma vida pacata descoberta de esquemas de trco e de inuncias. O protagonista visto pejorativamente pelos demais como um bom homem (Jorge, 2007: 60), inofensivo, que passa a homem divorciado, a viver reduzido ao seu consultrio e s vezes solido. Da sua postura de espectador/ouvinte, que consistia em assistir aos problemas dos outros (ibid.: 108), passa a ser ele actor de situaes que lhe traro problemas. Osvaldo Santos um mdico que no olha aos lucros, mas aos casos clnicos, aceitando pacientes economicamente insustentveis (ibid.: 67), pessoas incurveis, muitas vezes. Assim, v a anlise como um acto de rigor (ibid.: 155), uma tentativa de dividir uma substncia que nunca se divide (ibid.: 155) e o psicanalista como um
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decifrador de histrias (ibid.: 156), de vidas mentais. Destaque-se o caso do tipo preto que no v pessoas da sua cor (ibid.: 66), o que o leva a ter medo de entrar num autocarro se for um indivduo da sua raa a conduzi-lo, pois car com a ideia de que ningum conduz o autocarro. Mas o motivo desta ocluso selectiva (ibid.: 327) do jardineiro, Lzaro Catembe, ser explicada mais frente pela experincia dolorosa sofrida num autocarro em Luanda, em que o condutor, vtima da guerra civil, morto e lhe cai em cima, tendo o autocarro parado apenas quando embate num muro do Tribunal. Esta uma das poucas histrias de sucesso do protagonista para com os seus pacientes a que assistimos e que se deve ao facto de o psicanalista sair do seu gabinete para o campo de receio do paciente: f-lo enfrentar a realidade, acompanhando-o de autocarro. No querer este episdio dizer que em psicanlise preciso tambm agir? Atravs, por exemplo, deste jardineiro e de Maria London, o romance tenta, assim, desvendar algumas das estratgias da mente humana e a forma de ela lidar com o real. O protagonista comea a acreditar nos segredos que a paciente Maria London lhe conta no seu gabinete e que se prendem com negcios do seu pai, o arquitecto London Ribeiro e das pessoas com quem ele se relaciona. O psicanalista, qual detective, tenta descobrir realidades at a incalculveis e com consequncias srias. Daqui a relao entre o onrico e o fantasioso com a realidade, em que o real se disfara de onrico. O romance apresenta-se dividido em sete partes, cada uma entre cinco a sete captulos: Os dois smokings; A hora da bondade; A visita da noite; Cena Branca; Tudo o que voa; Combateremos a sombra; Processo de Primavera, a que se junta o ltimo captulo, inesperadamente intitulado Dedicatria. O ttulo, curto, ao colocar a nfase numa forma verbal de futuro e num substantivo, remete-nos para um presente projectado num futuro de esperana num combate. No presente vivenciado pelo psicanalista a sombra ganha. No entanto, a misso do combate passa para o narrador omnisciente que o leitor apenas pode deduzir quem possa ser: a jornalista, Marisa Octaviano, que no nal do romance se encontra com Osvaldo e se predispe para o ajudar a desvendar e expor as ilegalidades que ele lhe conta. A jornalista, que recolhe dados do passado e no-los vai revelando, recorrendo a verbos declarativos, tenta no se expor ao fazer recair a responsabilidade das narraes nas personagens, fontes da informao: Pelo menos foi isso que ela contou, no Vero seguinte (ibid.: 81). O ttulo da obra , pois, o ttulo da penltima parte do romance, em que se abordam temas como o da fragilidade da memria, apoiados por verbos como contar, dizer, na terceira pessoa do singular, do pretrito perfeito simples do indicativo ou no condicional. A sombra remete-nos para o mundo das trevas, do inalcanvel, dos domnios proibidos; logo como venc-la se ela tambm indissocivel da matria? A resposta a esta questo parece no ser aliciante: a sombra perseguir-nos- e a luta ser, pelo menos
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em parte, infrutfera. Assim, o protagonista, qual D. Quixote, chega a cair no ridculo pela inverosimilhana que adquirem as suas aces e pelo fracasso que se adivinha da sua luta desigual. , pois, Maria London que lhe d a chave para a sombra que procura combater: as viagens que ela e o seu pai fazem assiduamente em paquetes de luxo, que lhe revelam as relaes destes com o trco de droga. Droga que supostamente viajar metida nas molduras de pinturas comercializadas. O psicanalista comea por ver que os paquetes que a sua paciente refere existem de facto e vo passando pelo cais de Alcntara. A revelao d-se precisamente na parte Combateremos a sombra, em que a paciente lhe revela os nomes das pessoas e dos paquetes envolvidos no trco e a pergunta instala-se: Pois o que poderia fazer um psicanalista que de repente no tem alfabeto para ler o outro lado do mundo? (ibid.: 346). Quanto mais prximos vamos cando do nal do livro, mais nos aproximamos da ideia de uma Ma que aniquila os opositores e realiza outros trcos como o de armas, de pessoas, etc. A relao prossional de Osvaldo com Maria London e o seu envolvimento afectivo com Rossiana fazem-no ter contacto com o mundo da clandestinidade, conseguindo colocar a amada em segurana num convento de freiras nos arredores de Roma. Apesar dos esforos envidados pelo protagonista, tentando contactar com pessoas inuentes como um agente da Polcia Judiciria, jornalistas e escreve mesmo ao Presidente da Repblica, a pergunta ca no ar: Num sistema destes, quem toca nos intocveis? (ibid.: 381). O romance parece querer justicar a ideia de que A Histria parece ser a ltima instncia da Justia (ibi.: 383), critica a impunidade e irresponsabilidade de alguns representantes do Estado e desvenda, atravs do amigo Jun dAlmeida, a mentalidade da classe poltica e/ou inuente de uma forma arrepiante:
Ages [Osvaldo] como se fosses lho de um pelintra Esses que para se vingarem da vida escolhem a verdade e a igualdade, e outras balelas semelhantes para se entrincheirarem em lugar seguro e para da zurzirem o pessoal com uma falsa superioridade. A verdade? A honra? O que isso? Disfarces para se compensarem da ndoa por terem vindo da merda. Uns pulhas, uns empatas (ibid.: 394).
No ltimo captulo, a histria precipita-se e o trgico abate-se sobre o protagonista. Da estranha docilidade do arquitecto London Ribeiro para com a lha, passamos ao falecimento do mdico, encontrado morto no apartamento em que se escondia a sua amante quando estava no prdio Goldoni. Depressa se depreende o mais fcil: crime passional. Mas no deixa de ser irnico (e metafrico) o local onde as balas o atingiram: um homem que ensinava a escutar as vidas dos outros, a ser silenciado com uma bala no ouvido, e a seus ps, seis pedras? (ibid.: 477).
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Ana Fausta, a secretria, ganha estatuto de condente medida que vamos chegando ao nal da histria. Porm, em certa medida, contribui inconscientemente, ao no entregar a agenda de Osvaldo, que revelaria os passos e encontros do psicanalista Polcia, para que a tese de suicdio do seu patro acabe por tomar relevo e ajudar a simplicidade a cair sobre o caso de Osvaldo (ibid.: 469). No nal, o desfecho com um captulo intitulado Dedicatria causa estranhamento. Depois, percebe-se que a dedicatria ao psicanalista pela sua coragem e que os seus actos no caram no esquecimento, pois h um narrador que se interessa pela sua histria, recolhe testemunhos e tudo indica que Maria London, a paciente que desencadeou o interesse do mdico pela realidade que desconhecia, deixar de pactuar com o seu pai, de aceitar ser usada por ele e o denunciar ao narrador. O romance, sem ser poltico, marcado por um forte cunho ideolgico, destacando a indenio de um pas que assiste em silncio e/ou compactua com ilegalidades de personalidades pblicas. Dos factos referidos no romance, h um em particular que coloca historicamente a escrita: a queda da ponte de Entre-os-Rios. Esta escolha do maior acidente rodovirio de sempre em Portugal no parece ser ingnua e remete-nos para os riscos de atitudes inconscientes das entidades que regulam o pas. A nota mais do que positiva para o romance vai para o desfecho em aberto e inquietante, pela insistncia na temtica da impunidade dos poderosos, em que o real se sobrepe ao onrico. O ttulo do romance transforma-se de armao em interrogao: combateremos a sombra? Tambm a linguagem escorreita, pela sobriedade e pela elegncia, sobressai neste romance, premiando os leitores que possam j estar cansados da co em que a criatividade se sobrepe s regras lingusticas. , sem dvida, um romance universal pela temtica que aborda: a complexidade da alma e da mente do ser humano; a luta contra a mesquinhez, a manipulao, a corrupo e a impunidade. Porm, no podemos deixar de referir a lentido que a narrativa assume, privilegiando-se a descrio interior e a descrio de factos que reectem a normalidade do quotidiano. Este aspecto compreende-se pela tentativa da construo da narrativa como processo (demorado) de psicanlise.
Depois de Urgente a Vida1 (Editora Record, 2004), Alcione Arajo (1950 ), escritor brasileiro, lanou entretanto o segundo livro de crnicas, Escritos na gua. Mantm-se o nmero de crnicas (65) neste livro, algumas ilustradas, escritas para o jornal Estado de Minas ou para as revistas Argumento e Democracia. A Apresentao que abre o livro, escrita pelo autor, uma espcie de arte da crnica e caracteriza bem o que este gnero na actualidade, na era da Internet, como escrita, como lida e os matizes pelos quais constituda. Como o escritor escreve na Apresentao, as suas crnicas so o resultado da seleco de factos que lhe acontecem durante a semana, recuperados pela memria. Para alm disso, a escrita das crnicas tambm o resultado de constries, como a necessidade de enviar o texto todas as semanas at s 18h de sexta-feira e no poder ultrapassar as 55 linhas de escrita. O cronista v-se assim como
uma espcie de arteso, seu trabalho que tem tamanho, data e hora de entrega , sempre responde a uma deciso, embora que melhor quando nasce tambm de uma necessidade. Sua limitao o curto tempo para elaborar o texto que parece encolher medida que cresce o tempo como cronista , o que o empurra para a improvisao, cando, de um momento para o outro, a merc do imprevisvel, que pode arrast-lo da mais inspirada iluminao banalidade, ou mesmo negligncia (Arajo, 2006: 5-6).
Este livro de crnicas , pois, um fragmento de vivncias do autor, do que o circunda, estabelecendo uma relao de afecto com o leitor, que aumentou neste volume em relao a Urgente a Vida, levando-o a armar: minhas crnicas so todas verdadeiras, apesar da boutade que arma ser toda co um fato real apenas alguns ainda no tiveram oportunidade de acontecer (ibid.: 7).
De que zemos referncia no artigo O quotidiano brasileiro na crnica contempornea: Joo Ubaldo Ribeiro e Alcione Arajo, forma breve 3 (2005) 321-334.
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A razo do ttulo do livro, que tambm o ttulo de uma das ltimas crnicas, explica-a o autor ao concluir a Apresentao: Escritos na gua tenta ilustrar a efemeridade da crnica. Se a crnica pode ser efmera, por um lado, a compilao em livro liberta-a, em parte, desse destino, por outro lado, as experincias e as reexes que desencadeia no leitor transcendem o efmero. A temtica de Escritos na gua variada. Os episdios que o autor vai descrevendo mostram reexes sobre a vida, sobre a arte, sobre a leitura, sobre a condio humana; uma resposta mensagem de um leitor que lhe pede conselho; o descaso pela educao no seu pas; a descrio das suas viagens (no pas, a Portugal, a Moscovo); a crtica burocracia; a importncia da amizade; a imagem da mulher; a descrio dos conhecidos do autor ou de desconhecidos que observa na rua; o isolamento; o medo; a esperana; as vrias vertentes da arte (msica, literatura); as conversas quotidianas que ouve por stios em que passa; a importncia do olhar; as insondveis razes do amor, etc. Alcione Arajo tambm cita vrios autores como Carlos Drummond de Andrade e fala do seu afecto por Fernando Sabino. Percebemos, igualmente, humor em algumas crnicas. o caso da crnica Dona Alcione em que o cronista fala das ambiguidades de sexo que o seu nome provoca, passando muitas vezes por mulher, quando as pessoas tm apenas em considerao o nome. ainda o exemplo de humor Ligaes perigosas, em que se ilustra a distoro de uma mensagem oral ao ser reproduzida de interlocutor em interlocutor. O autor aparece mais despido neste segundo livro de crnicas, em relao ao primeiro. Partilha com o leitor reexes pessoais, descreve como passa datas signicativas como o Natal e a passagem de ano, por exemplo. Destaque-se as crnicas em que fala da sua vinda a Portugal (Dirio da corte, da I IV). Nestas crnicas, seguimos pelos olhos do autor por cidades como Coimbra, Lisboa e Porto. A viso positiva e elogiosa, numa comunho que o cronista exprime entre frica- Brasil-Europa, muito devido ao elo da Lngua Portuguesa. So vrias as reexes loscas que o autor vai fazendo ao longo dos textos, como: viver ter dvidas (ibid.: 20); Hoje ser gentil muito perigoso (ibid.: 52); Obra completa rene as criaes do mesmo autor; obra de vrios autores jamais se completa (ibid.: 69); o amor transcendental oresce livre na atmosfera rarefeita e misteriosa dos nossos recnditos (ibid.: 75); Como a poesia, o olhar diz o indizvel e dispensa o verso (ibid.: 199). De facto, os objectivos enunciados na Apresentao, pelo escritor, parecem ter sido atingidos em Escritos na gua. As crnicas revelam-se fonte de prazer, de emoo, distrao e sobretudo vislumbre de reexo para o leitor.
PIRES, Isabel Cristina (2007). Deserto Pintado. Col. O Campo da Palavra. Lisboa: Editorial Caminho.
A imensido e a beleza de certas paisagens o oceano, o deserto, uma metrpole moderna, por exemplo so perturbadoras e, de certo modo, impiedosas. Nesses lugares, o ser humano pressente a sua pequenez perante a magnitude da terra e do tempo. Essa revelao ou o esmaga ou, pelo contrrio, suscita o desejo de comungar com a totalidade da natureza. Alguns escritores maiores experimentaram o impacto da paisagem como se de uma epifania se tratasse, e zeram dela matria literria. Foi o caso de Herman Melville diante do imenso Oceano Pacco; de Walt Whitman ao contemplar Nova Iorque, fervilhante de vida; de Eugnio de Andrade de visita s runas da antiguidade clssica, que sustentam a civilizao ocidental. Similarmente, a romancista e poetisa Isabel Cristina Pires percorreu, h alguns anos, o Deserto Pintado, no Arizona, uma rea com mais de vinte e trs mil acres, que se estende desde o Grand Canyon at Floresta Petricada. A, a autora encontrou-se com o gnio do lugar e transportou para a escrita as suas impresses no romance O Nome do Poeta (2003), a histria de uma mulher portuguesa ao desencontro com o outro e ao reencontro consigo, num esmiuado exerccio de introspeco. Nessa obra, a aridez da paisagem ecoava no apenas as vozes, mas tambm o silncio e o vazio que sobram quando uma relao de amor se desvanece. Agora, no seu quinto livro de poemas, Deserto Pintado, Pires revisita literariamente as regies do sudoeste norte-americano, mas tambm certos locais de frica e da Europa, com particular nfase para Portugal. Nesta obra, a autora transforma o espao geogrco em paisagens emocionais e reexivas diversicadas. Algumas reas, amplas e desertas, obrigam o sujeito potico a confrontar-se consigo mesmo: Fao-me vento e dobro as rvores / nocturnas da oresta; no meio do grito, alcano o pavor de ser s eu (Pires, 2007: 56). Outros lugares inspiram o desejo de eternidade: Tenho no sangue o veneno do Arizona, / onde a terra mais do que a terra e o ar mais do que o ar. / Onde o espao no cabe no olhar / e o cu turquesa encobre o mundo. assim / que quero a morte: com este silncio na garganta (ibid.: 26). Por m, todo
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o Deserto Pintado revela a necessidade humana de absoluto: Eu no sabia o que era cu, o que era ar. / Desconhecia as montanhas, nada entendia / da terra abrindo os braos. / Nada sabia do espao necessrio / para estar viva (ibid.: 24). Pelo contrrio, os espaos urbanos surgidos na quarta e ltima seco da obra, O Reino da Cidade so percebidos como lugares de asxia, desencontro e mesmo angstia: Para l das esquinas em cimento / vem a morte respirar no nosso ombro / e o universo desliza porque no / acreditamos, sempre espera / que a alma nos habite (ibid.: 87). Na linha dos poetas Alberto Caeiro, Miguel Torga, Sophia Andresen, Eugnio de Andrade ou Casimiro de Brito, existe em Pires uma sintonia perfeita entre o ser humano e a paisagem. Em certos passos de Deserto Pintado, o sujeito potico metamorfoseou-se num elemento do lugar, como uma planta: Sinto o abrao mineral dos montes / que me envolve o corpo e me faz planta (ibid.: 59), ou a ventania: Hei-de danar no baile onde uivam vozes / e transformar-me em vento (ibid.: 22). No poema inicial deste livro, a harmonia entre a mulher e a terra atinge mesmo a dissoluo daquela nesta: Eu no sabia o que era o rosa / at me dissolver no Arizona / e car perdida para sempre / no violeta lquido da tarde (ibid.: 15). O rosa mencionado nos versos que citei bem como outras cores quentes, ponticando o prpura, o laranja, o dourado e o amarelo recorrem em Deserto Pintado para descrever as paisagens do Arizona. No oposto, a cidade emerge desenhada em tons mais frios, como o cinzento, e a escurido omnipresente e contagiosa: As cores tm um sorriso de mscara macabra (ibid.: 80). Neste contexto, assinalo que Pires uma artista plstica ciente da osmose possvel entre a palavra e a pintura ou no fosse a actividade de escrita tambm um modo de olhar. Em suma, Deserto Pintado o conjunto de poemas mais conseguido de Isabel Cristina Pires: coeso, mas imprevisvel; reexivo, sem tombar no hermetismo; menos nostlgico do que esperanado numa reconciliao elementar entre os humanos e a terra que cruelmente habitamos neste incio de milnio. Tal como o sujeito potico que confessa Saio da terra amada e l deixei / a sombra (ibid.: 27), tambm o leitor fecha este livro com a sensao de que os versos se prolongam na paisagem que existe fora e dentro de cada um de ns.
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Rita Chaves, Carmen Secco e Tania Macdo, org. (2006). Brasil/frica: como se o mar fosse mentira. So Paulo: Editora da Universidade Paulista (Unesp). Luanda: Edies Ch de Caxinde.
No Brasil colnia muitas lnguas indgenas eram faladas, ao lado do idioma portugus, mas quantas lnguas africanas foram igualmente faladas? um mistrio que continua a desaar os pesquisadores, pois, a rigor, nada ainda se sabe, no s porque faltam documentos lingsticos como os papis ociais relativos ao trco que repousam especialmente no Arquivo Histrico Ultramarino, de Lisboa, acrescentam pouco nesse assunto. At porque havia uma preocupao daqueles que comandavam as rotas do trco em confundir as origens dos diversos grupos africanos que eram encaminhados ao Brasil. Desvendar esse mistrio e, ao mesmo tempo, destruir os muitos equvocos que se foram acumulando na historiograa recente tem sido a preocupao de Yeda Pessoa de Castro, doutora em Lnguas Africanas, a nica em sua especialidade no Brasil, professora na Universidade do Estado da Bahia, que j lecionou em universidades da Nigria e do Caribe, e autora de um livro que j se tornou um clssico na matria, Falares africanos na Bahia: um vocabulrio afro-brasileiro (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001). Parte desse livro vem, agora, reproduzida como um ensaio autnomo em BrasilAfrica: como se o mar fosse mentira, de Rita Chaves, Carmen Secco e Tania Macdo (organizadoras). Nesse ensaio, Redescobrindo as lnguas africanas, a autora observa que, antes de tudo, est na hora de se admitir que o africano adquiriu o portugus como segunda lngua no Brasil e foi o principal responsvel pela difuso da lngua portuguesa em territrio brasileiro. E, mais importante, fundamental identicar quais foram esses africanos e em que medida contriburam para solidicar a vitria da unidade da lngua portuguesa no Brasil por meio das diferenas que afastaram o portugus do Brasil do portugus de Portugal. E aqui Yeda Pessoa de Castro avana contra um equvoco histrico que se tem perpetuado em livros e at num lme de Cac Diegues da dcada de 1980: o de atribuir aos moradores do quilombo de Palmares, destrudo ao nal do sculo XVII na capitania
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de Pernambuco por aventureiros paulistas, a fala ioruba, numa poca em que no h registro de seus falantes no Brasil. Para a estudiosa, teriam sido bantos as lnguas faladas em Palmares. O que mais intriga, porm, como lembra Yeda Pessoa de Castro, que, se o Brasil possui a maior populao de descendncia negra fora do continente africano, por que no existe hoje um crioulo brasileiro como segunda lngua ou como lngua nacional, semelhante s que emergiram em outras ex-colnias americanas, como o Curaao, ou mesmo em Cabo Verde? Uma hiptese que a autora aventa a proximidade do sistema lingstico das lnguas banto e kwa com o portugus brasileiro, o que teria permitido a continuidade do tipo prosdico de base voclica do portugus arcaico na modalidade brasileira, afastando-o, portanto, da pronncia atual, muito consonantal, do portugus europeu. Em outras palavras: o portugus do Brasil, diz a autora, naquilo em que ele se afastou, na fonologia, do portugus de Portugal , a priori, o resultado de um compromisso entre duas foras dinamicamente opostas e complementares, ou seja, por um lado uma imantao dos sistemas fnicos africanos em direo ao sistema do portugus e, em sentido inverso, um movimento do portugus em direo aos sistemas fnicos africanos, sobre uma matriz indgena preexistente e mais localizada no Brasil. Outro ensaio que se destaca no livro o de Marcelo Bittencourt, As relaes Angola-Brasil: referncias e contatos, em que o autor, doutor em Histria pela Universidade Federal Fluminense e professor de Histria da frica na mesma instituio, deixa de lado o trco de escravos, to estudado nos ltimos tempos o que no signica que no haja mais o que estudar; pelo contrrio , para apontar outros momentos na Histria em que se estabeleceram contatos ou referncias entre essas duas margens do Atlntico. Uma dessas conexes Bittencourt aponta para o discurso luso-tropicalista do antroplogo pernambucano Gilberto Freyre, utilizado pelo salazarismo para desestabilizar a movimentao de pequenos grupos urbanos com pretenses anticoloniais, especialmente em Angola. Diz o ensasta que, em ns da dcada de 1940, em Angola, com o crescimento da produo de caf, surgiram muitas oportunidades de crescimento, que seriam aproveitadas por colonos brancos, oriundos da metrpole, de baixa escolaridade, o que numa pretensa poltica multirracial defendida pelo salazarismo aproximaria as possibilidades entre brancos, negros e mestios. Em 1950, diz o autor, quase a metade dos brancos em Angola nunca freqentara a escola e menos de 17% tinham ido alm da quarta classe, mas, mesmo assim, as oportunidades de trabalho teimavam em no aparecer para negros e mestios, impedindo o nascimento de uma burguesia negra ou mestia, ou seja, apressando a derrocada do colonialismo que se daria na dcada de 1970. Entre os novos caminhos da histria comum entre os dois pases, o ensasta ressalta o atual boom na produo de trabalhos acadmicos sobre temas africanos no
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rita chaves, carmen secco e tania macdo, org. (2006). brasil/frica: como se o mar fosse mentira
Brasil, com a abertura de disciplinas ligadas temtica africana nos departamentos de Histria e Cincias Sociais, alm da descoberta do Brasil como alternativa acadmica por muitos estudantes africanos, especialmente angolanos. Este articulista, por exemplo, orienta atualmente um trabalho de concluso de curso na rea de Jornalismo do Centro Universitrio Monte Serrat (Unimonte), de Santos-SP, em que as alunas Vera Oscar, Carolina Ferreira e Elys Santiago procuram fazer um levantamento da insero de jornalistas negras nos meios de comunicao do Estado de So Paulo, o que, ao que se saiba, uma pesquisa indita. No ensaio Histria, estrutura social de privilgios e aes armativas no Brasil, Edson Borges, mestre em Antropologia pela Universidade de So Paulo e professor do Instituto de Humanidades da Universidade Cndido Mendes, do Rio de Janeiro, defende medidas mais incisivas educacionais, sade, econmicas, distributivas, polticas, jurdicas e sociais que possam produzir resultados a curto e mdio prazo, beneciando a sociedade como um todo, em vez da importao de modelos de aes armativas de contextos histricos diferentes como os Estados Unidos e frica do Sul, j que a mestiagem tornou praticamente impossvel qualquer tentativa de classicao racial. O autor destaca a iniciativa em 2003 do governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva de tornar obrigatria nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, ociais e particulares, o ensino sobre Histria e Cultura Afro-Brasileira, cujo contedo programtico inclui o estudo da Histria da frica e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional. Em resumo, Brasil/frica: como se o mar fosse mentira rene ainda, na primeira parte, dois textos curtos do embaixador Alberto da Costa e Silva e do compositor Martinho da Vila sobre a memria musical e a presena africana na msica brasileira. Na segunda parte, encontram-se os artigos de carter ensastico, dos quais destacamos aqui trs, em que estudiosos de vrias reas oferecem novos pontos de vista para o dilogo Brasil-Africa. Na terceira parte, a literatura surge de forma mais direta, com os poetas que tm na cultura africana a referncia para os seus trabalhos. Todos esses trabalhos mostram que vivemos, portanto, um momento de amplas possibilidades de intercmbio entre o Brasil e os pases africanos de expresso portuguesa e no apenas comerciais , como exemplo este prprio livro, um lanamento conjunto da Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e das Edies Ch de Caxinde, de Luanda, com o apoio da Odebrecht Angola, Lda., ramo angolano de uma empresa brasileira presente h largos anos na frica.
Adelto Gonalves
Camilo Pessanha (2006). Clepsidra e outros Poemas. Prefcio e xao do texto por Daniel Pires, e ilustraes de Rui Campos Matos. Lisboa: Livros Horizonte.
1. Depois de lanar, em 2005, A imagem e o verbo: fotobiograa de Camilo Pessanha (Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau e Instituto Portugus do Oriente, 299 pgs.), o pesquisador literrio Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, de Setbal, acaba de colocar ao alcance do leitor Clepsidra e outros poemas, tambm de Camilo Pessanha. No se trata, porm, de s mais uma edio de Clepsidra, livro de poemas tantas vezes reeditado depois de seu lanamento em 1920, mas de uma edio especial em papel couch, com um prefcio altamente esclarecedor de Daniel Pires, responsvel tambm pela xao do texto, acompanhado por belas ilustraes a cores do artista Rui Campos Matos. Alm das 30 composies da Clepsidra de 1920, que, de alguma forma, Pessanha avalizou, Pires juntou mais 26, que haviam sido excludas pelo prprio poeta por consider-las de menor valia, que eventualmente lhe traziam reminiscncias familiares traumticas, podendo, neste caso, estar, por exemplo, o paradigmtico Branco e Vermelho, ou por no se enquadrarem na dinmica daquela obra, caso concreto de San Gabriel e de Porque o melhor enm, como se l no prefcio. Para tanto, Pires preferiu colocar os poemas que no constam da primeira edio de Clepsidra (Lisboa: Lusitnia, 1920) por ordem cronolgica de composio ou, na impossibilidade desta, de publicao. Neste particular, diz o estudioso, foi fulcral a consulta da edio crtica do professor Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estabeleceu o texto e fez introduo crtica, notas e comentrios para Clepsidra poemas de Camilo Pessanha (Campinas: Unicamp, 1994; Lisboa, Relgio dgua, 1995), obra que Pires considera, com justa razo, fonte obrigatria dos exegetas da obra lapidar do autor de Inscrio. 2. No h como descobrir a poesia de Camilo Pessanha sem analisar a obra do poeta como reexo de sua vida e do contexto histrico em que viveu, como recomenda Massaud Moiss em Literatura: Mundo e Forma (So Paulo: Cultrix, 1982: .26), ao lembrar que a tnica recai sempre sobre o texto, mas se amplia o campo de perquirio quando se conhece as relaes com o meio exterior em que foi gerado.
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Em seu prefcio, Pires observa que a permanente falta de sade ajuda a compreender as razes por que Camilo Pessanha assina uma obra que se caracteriza por sua brevidade e por no ter sido planejada com rigor, gradualmente disseminada pela ao de amigos e admiradores. E que majoritariamente pertence aos seus verdes anos, de sua poca de estudante em Coimbra. Apesar disso, no h como deixar de reconhecer o fascnio que a arte potica de Pessanha exerceu sobre os poetas portugueses de seu tempo, especialmente aqueles ligados ao Modernismo. Um fascnio que se transformou logo em paixo sem reservas alimentada pelo mito do poeta distante, com o seu vcio pelo pio, a sua solido, o seu gnio, perdido na longnqua Macau. A vida de Camilo Pessanha foi sempre marcada por sua pouca adaptao ao meio social. Nascido de uma aventura de um estudante de Direito, aparentemente, o poeta nunca se conformou com a situao de ver a sua me sempre na condio de criada da casa de seu pai, um juiz que chegou alta hierarquia do Supremo Tribunal de Lisboa. E essa dor da infncia ele levou para poemas em que deixa claro o seu amor extremoso pela me. Mas isso no o impediu de repetir a atitude do pai quando, j instalado em Macau como professor de ensino secundrio, manteve uma relao de concubinato com uma chinesa, de quem teve um lho. Mais tarde, com a morte da amante, continuou a relao de concubinato com a lha da primeira mulher com outro homem. Atitude semelhante teve o lho de Camilo Pessanha que, ao manter uma relao com uma senhora portuguesa, gerou uma lha, Maria Rosa. Segundo essa neta do poeta, seu pai no se casou com sua me a pedido do prprio Pessanha nora porque ele no prestava, como se pode ler numa entrevista feita por Mrio Viegas com Celina Maria Veiga de Oliveira, investigadora da vida do poeta, e publicada no Jornal de Letras, Artes e Idias 422, de 7 a 13 de agosto de 1990. 3. Essa rpida digresso serve para mostrar um pouco da personalidade conituosa do poeta que, nascido em 1867, em Coimbra, cedo tirou o curso de Direito e, logo, em 1894, partiu para um exlio voluntrio em Macau, a minscula colnia portuguesa do Oriente que ele chamava de o cho antiptico do exlio. Ali viveu 30 anos exercendo as atividades de professor, advogado e juiz, com breves retornos a Portugal para tratamento de sade. Ali foi redator de dois jornais progressistas, publicando artigos de opinio e poemas. Dedicou-se tambm ao estudo metdico da lngua e da cultura snica. Retornou a Portugal em 1905, em condies de sade precrias, e, em 1908, teve de se submeter a uma operao para extirpar um tumor no Hospital do Carmo, do Porto. Recuperado, pde conviver em intensas tertlias nos cafs de Lisboa com Fernando Pessoa, Carlos Amaro e outros intelectuais, como assinala Daniel Pires no prefcio desta edio de Clepsidra.
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Seu regresso a Macau deu-se a 15 de janeiro de 1909, para reassumir o cargo de conservador do Registro Predial e lecionar no liceu local. Dessa poca, tambm a sua participao numa loja manica, onde chegou a venervel. De 1909 a 1915, diz Pires, Pessanha cultivou pouco a poesia. E, quando o fez, foi para traduzir as famosas Oito Elegias Chinesas, poemas da dinastia Ming, que foram publicadas em 1914 no jornal macaense O Progresso. A 15 de setembro de 1915, Pessanha partiu pela ltima vez de Macau para Portugal, retomando, ento, a vida bomia pelos cafs de Lisboa, como assinala Pires no prefcio. Dessa poca o convvio intenso que teve com a escritora Ana de Castro Osrio, recmviva. Como se sabe, a paixo nunca correspondida por Ana de Castro Osrio teria sido a origem de seu exlio voluntrio em Macau. Jamais, porm, Pessanha deixou de manter relaes de amizade e correspondncia com Ana, por cuja editora, a Lusitnia, saiu Clepsidra em 1920, seis anos antes de sua morte, por empenho tambm de Joo de Castro Osrio, lho da escritora. Personalidade estranha e apaixonada, gura esqulida, de sade frgil e longas barbas negras, o extico Pessanha tornou-se conhecido pela maneira apocalptica como declamava seus poemas nos cafs da Baixa lisboeta, durante as suas estadas em Portugal. Alma dividida, sonhava com Portugal quando estava na colnia e com Macau quando estava em Lisboa. 4. Quem l Clepsidra descobre logo que Camilo Pessanha no um poeta de idias, mas de imagens. Como poeta abstrato por excelncia, cerebral, essencialmente intelectual, tem a obsesso pela musicalidade do verso, o que o coloca entre os maiores representantes do Simbolismo portugus. Anal, um dos principais objetos do Simbolismo insinuar coisas, em vez de formul-las ostensivamente, procurando produzir, com a poesia, efeitos semelhantes aos da msica, na denio do crtico norte-americano Edmund Wilson em O castelo de Axel (So Paulo: Cultrix, 1985: 22) E Pessanha faz exatamente isso: lana mo das imagens como se estas fossem dotadas de um valor abstrato, como o de notas e acordes musicais. o que se v nos poemas de Clepsidra. Esses recursos sonoros homofonias por meio de rimas, assonncias, aliteraes etc so recursos tradicionais da poesia metricada que, com o Simbolismo, adquiriram renovada importncia e sofreram um processo de intensicao, em virtude da busca de efeitos sinestsicos e de efeitos musicais, como diz Antonio Candido em O estudo analtico do poema (So Paulo: Terceira Leitura, FFLCH/USP, 1987: 64). o que poder comprovar quem tiver a sorte de ter em mos um exemplar desta edio feita com tanto esmero e capricho. Adelto Gonalves
Xos Manuel Snchez Rei (2007). A Lngua Galega no Cancioneiro de Prez Ballesteros. Ames: Edicins Laiovento.
A partir dos nais do sculo XVIII e com maior incidncia no sculo XIX, na sequncia dos ideais romnticos que consideram o povo como o portador da essncia nacional, procuram-se por toda a Europa os textos recitados de memria pelo vulgo que comprovem a especicidade de cada raa e que as permitam distinguir entre si. Fruto desses ideais so, portanto, as primeiras recolhas da literatura tradicional/popular (de acordo com as diversas propostas classicatrias disponveis que no pretendemos discutir) que se zeram aqum e alm Pirenus. Na Pennsula Ibrica, chama a ateno o caso da Galiza, regio para a qual a adeso ao movimento romntico representa muito mais do que o incio das recolhas e das edies do esplio de textos transmitidos oralmente de gerao em gerao ao longo de sculos. At praticamente actualidade, o galego foi a nica lngua no minoritria do espao ibrico que no possua uma norma grca atravs da qual os intelectuais pudessem veicular as suas ideias. Por conseguinte, o sculo XIX uma etapa fundamental para a (re)armao da cultura galega: na senda dos ideais romnticos ocorre o perodo hoje conhecido como o ressurgimento e do-se os primeiros intentos de criao de uma norma ortogrca. Nesta sequncia, o Cancionero Popular Gallego de Prez Ballesteros, prefaciado por Telo Braga, um marco no s para os estudos da literatura tradicional como tambm para os estudos sobre o estado da lngua galega durante o sculo XIX sobretudo por oferecer um vasto conjunto de notas lingusticas aos textos. O estudo da obra de Prez Ballesteros que suscita estas linhas encontra-se dividido em trs grandes captulos. No primeiro captulo, Snchez Rei apresenta uma aturada resenha dos trabalhos de compilao da lrica tradicional galega desde o sculo XVIII at actualidade, expe os diferentes posicionamentos tericos dos intelectuais galegos do ressurgimento em relao lngua e criao literria em galego, contextualiza a obra do autor do Cancionero, analisa a sua estrutura interna e destaca o especial papel da mulher na transmisso dos textos tradicionais na Galiza. O captulo dois oferece uma
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anlise minuciosa das singularidades lingusticas encontradas nos textos editados na obra de Prez Ballesteros que caracterizam o estado da lngua galega durante o sculo XIX. Neste captulo, cotejam-se sobretudo os nomes prprios (topnimos e antropnimos) galegos e forneos; as questes relativas exo nominal, em particular as alteraes de gnero da classe nome por inuncia do castelhano; os pronomes pessoais tonos e tnicos e a sua especicidade; o verbo e os problemas especcos das alternncias voclicas caractersticas das diversas regies da Galiza; os advrbios de lugar e as preposies e, por m, examina-se a dicotomia do lxico galego/castelhano presente nos textos, terminando o captulo com uma preciosa edio das notas lingusticas de traduo para o castelhano feitas por Prez Ballesteros aos textos que edita no seu Cancionero Popular Gallego. O ltimo captulo , quando comparado com os anteriores, uma brevssima sntese reiterativa da importncia da obra de Prez Ballesteros tanto para o tempo em que foi dada estampa como para a actualidade: marxe da sa losofa lingstica, da sa orientacin ortogrca ou ainda do modelo de lingua que semella sufraxiar, no se pode negar o valor documental que pose o cancioneiro, valor anda hoxe aproveitbel no proceso de normalizacin en que nos achamos inmersos (Snchez Rei, 2006: 416). Da leitura da obra de Snchez Rei, um leitor menos informado sobre o actual mapa dialectal do galego ou que desconhea algumas das questes referentes ao perodo do ressurgimento e problemtica da xao de uma norma grca para o galego pode car um pouco baralhado com os saltos temporais de paralelo entre o estado da lngua no sculo XIX e na actualidade. No obstante, a obra merece um destaque especial porquanto, para alm do estudo minucioso das notas lingusticas de Prez Ballesteros que com as devidas ressalvas constituem un excelente testemuo da oralidade da poca e, en especial, aquela da actual provincia coruesa (Snchez Rei, 2006: 46), fornece um excelente aparato bibliogrco de estudos acerca da histria da evoluo e da xao da norma grca do galego desde o sculo XIX at ao presente, acerca dos diferentes posicionamentos tericos dos intelectuais face normativizao da lngua, acerca do mapa dialectal da Galiza e acerca da morfologia da lngua galega, entre outros. Deste modo, a obra de Snchez Rei corresponde a mais um, nunca excessivo, passo para o estudo da lngua galega.