2005 LADEIRA, MARIA ELISA CTI de Povos Agrafos A Cidadaos Analfabetos
2005 LADEIRA, MARIA ELISA CTI de Povos Agrafos A Cidadaos Analfabetos
2005 LADEIRA, MARIA ELISA CTI de Povos Agrafos A Cidadaos Analfabetos
Maria Elisa Ladeira Centro de Trabalho Indigenista CTI 2005 O ttulo deste texto , em si, uma provocao. Uma provocao aos que tem se envolvido com a formulao das polticas pblicas, no caso as polticas educacionais, e ns, antroplogos, lingistas e historiadores que temos subsidiado (ou legitimado), teoricamente alguns dos muitos de seus equvocos. Considerar os povos indgenas como povos grafos ou cidados analfabetos resulta de diferentes posies tericas em relao a necessidade da linguagem escrita pelos povos indgenas e que ser o objeto de anlise desta apresentao. O processo de alfabetizao deve ser iniciado na lngua portuguesa ou na lngua materna/indgena? Este debate, antigo, muito antigo, centrado apenas em uma perspectiva metodolgica, consumiu, durante dcadas, educadores, lingistas e antroplogos. Os argumentos apontados estavam voltados para o atendimento de uma demanda muito concreta que se impunha pelos (e para os) povos indgenas: o falar, ler e escrever em lngua portuguesa. O impasse terico nas propostas educacionais relativas aquisio da escrita pelos povos indgenas (e que determina a escolha da lngua, indgena ou portuguesa, na qual a alfabetizao deve ser efetivada), foi apagado das discusses e reflexes. Como um subtexto sempre latente, este impasse terico, que trata os povos indgenas como povos grafos ou cidados analfabetos, teve a sua discusso reduzida a uma questo apenas metodolgica em relao ao processo de alfabetizao2.
Este texto foi escrito para ser apresentado na IV Reunio de Antropologia do MERCOSUL (RAM), em Novembro de 2005. Uma das justificativa tcnicas de que a alfabetizao na lngua deve preceder a alfabetizao em portugus a de que o indivduo alfabetizado uma nica vez, e que o ler e escrever numa segunda lngua envolve somente uma transposio do cdigo aprendido. Portanto mais fcil e mais rpido ser alfabetizado em sua lngua materna ( Ladeira, 1981)
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Um parntese: tendo em conta que ler decodificar signos, quaisquer que sejam estes, poderamos pensar as vrias leituras possveis de um mesmo texto/contexto o que esvazia a concepo de leitores passivos. No existe passividade na leitura, tanto quanto na escritura: quem l/escreve o faz de uma determinada posio/lugar com seus olhos, olhar dado pelo lugar que ocupa no mundo, pela interao que estabelece com esse mundo, por sua histria de vida e pela relao social construda por um dado povo, no caso os povos indgenas, com este estrangeiro cuja lngua se fala e se escreve. A opo pela alfabetizao em portugus tem tido como subtexto o fornecer ferramentas para esta decodificao (leitura) e codificao (escrita), atendendo as exigncias dos ndios em se apropriarem desta lngua estrangeira justificada em seus discursos como um instrumento de controle da chamada sociedade dominante. Assim, (la) escritura aunque es ajena em uma lengua ajena sirve para ayudar em la lucha, evitar el engano, es vista como uma herramienta de protccion e de defensa. (Curieux, Tulio; 3) O momento em que esta ferramenta ser significada, ou seja, quando a leitura/escrita possa vir a ser algo significativo no interior da comunidade ou na prpria vida pessoal independe desta ao alfabetizadora. Pressupe que este tipo de domnio instrumental da escrita no acarreta, em si, uma mudana nos cdigos internos de comunicao e expresso deste povo. Apesar dos esforos dos educadores, continuam sendo povos grafos, quer dizer, apresentam mecanismos internos eficientes na comunicao e transmisso de conhecimentos em relao com a sociedade da lngua de adoo. A escrita/leitura em portugus apresenta ento um carter puramente utilitrio, e de alcance limitado: por isso so considerados (e se reproduzem culturalmente) como culturas grafas. neste contexto que emerge a concepo segundo a qual a lngua indgena continua sendo um sistema de conhecimento e categorizao cultural do mundo, onde a transmisso de conhecimentos, isto , a relao nica do indivduo com seu mundo cultural s possvel atravs da lngua do grupo (Ladeira, 2001;170) e da sua forma oral de transmisso. Neste caso o portugus (falado e escrito) empregado to somente como lngua de contato, na relao do grupo com a sociedade nacional e onde estes dois mundos se concebem como excludentes e onde ainda a estabilidade das relaes no interior do sistema lingstico decorrente da clara delimitao dos mbitos de uso da lngua. Podemos ver nisso uma estratgia poltica do grupo indgena na manuteno da lngua original, na medida em que criam neologismos e alteraes lingsticas em 2
funo da situao de contato, indicando um vigor lingstico surpreendente, se esta expresso, vigor lingstico, pode ser admitida (idem, ibd: 170). Pressupe tambm que estas sociedades so tanto produtos de uma histria, objeto dela, como seus sujeitos, porque capazes de construir estratgias de convivncia (ou sobrevivncia no sentido de resistncia e adaptao) que se inscrevem na continuidade de prticas sociais e representaes que so recriadas cotidianamente, seja como marcadores identitrios para fora, ou como marcadores diferenciais internos ao mundo pan-indgena mais genrico. A outra opo, aquela da alfabetizao se dar primeiramente na lngua materna, tem tido como subtexto o pressuposto que os povos indgenas apresenta uma falta, a ausncia do letramento, que precisa ser sanada. Considera que esta ausncia como que fragilizaria no s a manuteno e uso da lngua indgena mas o prprio povo em sua reproduo cultural. Para suprir tal ausncia, busca ento criar no seio da sociedade grafa o lugar da escrita, independentemente da inteno originria que concretamente leva os povos indgenas a buscar na escola o saber estrangeiro3. O que est por detrs desta concepo, portanto, que os povos grafos no passariam de cidados analfabetos. E com a presuno de que esta necessidade da escrita se faa mais rpida, independente da situao e contexto histrico de um determinado povo, impe a necessidade de uma escrita na lngua. Tal posio terica determina, equivocadamente penso, a escrita como o lugar/espao indispensvel para a manuteno da cultura de um povo, pelas seguintes razes: 1) exalta a lngua independentemente do povo que a fala e de sua situao de uso; 2) esquece que no existe lngua sem a atualizao concreta da fala; 3) que esta atualizao dada pelo contexto histrico e social daquela comunidade de falantes e 4) que como todo processo sociocultural, a lngua se altera/ alterada ao longo do tempo. Dado estes pressupostos iniciais, possvel delinear duas teorias que embasariam estas duas concepes sobre o lugar/papel da escrita nos povos indgenas. Uma, que concebe um continuum entre a oralidade e a escrita considerando-as como meios lingsticos essencialmente equivalentes para o desempenho de funes semelhantes. Outra, que estabelece um divisor entre a oralidade e a cultura escrita, embora reconhecendo a importncia interativa de ambas, permitindo que antigas funes sejam desempenhadas de maneira nova e que assim novas funes possam ser
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Escola, o principal dos lugares onde ns impomos como imprescindvel para poderem se apropriar desses estrangeiros, ns
propostas ou emergirem4. Entre estas duas concepes que as propostas educativas para os povos indgenas se aliceram, sendo que grande parte delas no problematizam o alcance de suas propostas. Para aquelas que concebem um continuum entre oralidade e escrita, h como uma naturalizao (uma evoluo latente) na passagem das sociedades grafas para o mundo letrado. E, assim, a questo se reduz a uma falsa eficincia, onde basta a elaborao de materiais didticos adaptados ao universo de interesses do povo em questo, de formao/letramento de professores indgenas, e principalmente da criao de uma grafia para a lngua indgena para que estes povos possam ter o mesmo estatuto que a sociedade nacional. Apesar do etnocentrismo subjacente, que v a escrita como a passagem para o esclarecimento e a modernidade j ter sido denunciado pelas mais diversas correntes tericas, as preocupaes de muitos pesquisadores com o possvel desaparecimento da diversidade lingstica existente no Brasil tm resultado em aes que encontram respaldo na postura continuista e parecem ter se esquecido da assero
etnocntrica mencionada. Bruna Franchetto 5, por exemplo, aponta alguns dos pontos principais da preocupao dos lingistas quanto a situao de comprometimento lingstico ou lnguas em perigo de extino: - nos quinhentos anos que se seguiram a chegada dos europeus, aproximadamente 85% das lnguas indgenas do Brasil foi perdido - tal dado seria agravado pelo fato de que as lnguas nativas que so faladas hoje no Brasil so ainda pouco conhecidas - o Brasil continua sendo um pas com a mais alta densidade lingstica (muitas lnguas diferentes em um mesmo territrio) e uma das mais baixas concentraes demogrficas por lngua ( muitas lnguas e poucos falantes). De fato, tais dados induzem o lingista a temer a perda do seu objeto de estudo em curto prazo e esta preocupao subsidia algumas propostas dos cursos de formao de professores indgenas. Estes cursos esto centrados no estudo da lngua indgena
Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: uma operao que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos contedos referenciais (Gnerre, M. pg8)
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(catalogao, organizao de verbetes/dicionrio), objetivando-a sob o argumento de que a sua documentao contribuiria para diminuir o risco de sua perda. 6 Nada contra que os lingistas se dediquem ao esforo de catalogao e conhecimento dessas lnguas. Este esforo , entre outros, fundamental para a compreenso de uma histria das lnguas, interpretando as grandes expanses humanas em dados, no s genticos, como lingsticos. S lembro que a diversidade lingstica decorrncia mais das mudanas produzidas no contato entre povos ao longo da histria da humanidade do que em funo de um pretendido isolamento destes povos. A histria das lnguas, como muitos j demonstraram, nada mais nada menos que a srie dos contatos/intercmbios entre povos. A questo que algumas propostas de educao escolar indgena tm considerado, apressadamente, as mudanas que ocorrem nas lnguas, suas inovaes, em ameaas ou comprometimento lingstico que afetaria o destino e a identidade dos povos indgenas, o que me parece deslocar equivocadamente o eixo da anlise. Bakthin ilustra e complementa o que estamos procurando apontar : a reflexo lingstica de carter formal sistemtico foi inevitavelmente coagida a adotar em relao s lnguas vivas uma posio conservadora e acadmica, isto , a tratar a lngua viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil em relao a todas as inovaes lingsticas. (Bakthin,1979: 89 apud Gnerre, op. cit: 16). O purismo acadmico de alguns lingistas engajados choca-se com a demanda explcita dos professores indgenas nos cursos mesmos de formao que oferecem. Dizem os alunos indgenas: Ns estamos envolvidos, na nossa volta [est] o mundo dos brancos. Tem muitos problemas e a gente sente que tem de aprender ( a lngua portuguesa) ( prof. Lucas Xavante); A gente trabalha a lngua indgena paralelamente a lngua portuguesa; no d para separar (prof. Ikpeng Korotomi).
indgenas; o que estou tentando apontar que o tipo de pesquisa antes referido, ainda que participativa, no basta para resolver o problema posto pelos lingistas do desaparecimento das lnguas indgenas porque justamente tal desaparecimento apenas uma petio de princpio.
Ns aprendemos o portugus porque internacional, em qualquer lugar que eu vou eu vou escutar essa lngua. Agora a lngua indgena varia de um lugar para outro. A minha lngua mesmo s na minha aldeia; Precisamos de professores (Xavante) bem formados para dar aula na lngua portuguesa ( prof. Lucas Xavante). Fica claro que os professores indgenas tm muita clareza que na relao de contato entre lnguas faladas cotidianamente que elas devem ser consideradas e pensadas e os cursos de lngua indgena presentes nos cursos de formao de professores deveriam considerar esta relao em suas propostas e estar atentos a este contexto. H como que uma reificao/objetivao da lngua como se esta fosse uma entidade em si, independente das estratgias indgenas de seus usos e do lugar que o indivduo faz dela no contexto da relao de contato. A lngua no , e que, portanto necessitaria ser urgentemente documentada antes de sua mudana, alterao ou contaminao; ela est, falada, est em uso e justamente este processo que precisa ser melhor conhecido (e reconhecido como fundamental) para que o lingista possa cumprir com seu papel histrico, alis apontado por Franchetto, de interlocutor privilegiado junto aos povos indgenas na reflexo e proposio consciente de suas polticas lingsticas . no contexto do contato com a sociedade nacional que a escrita na lngua portuguesa exigida pelos ndios, e aos quais tem-se respondido com a imposio de que, para dominar a lngua portuguesa escrita, precisam primeiro aprender a escrever na sua prpria lngua - argumento embasado no pressuposto terico, do qual compartilho, do continuum entre as formas da oralidade e da escrita. Pretendo agora realar alguns pontos em relao justificativa para a necessidade da escrita da lngua indgena que me parecem extremamente perigosos do ponto de vista poltico: 1- o da necessidade de que para um povo grafo perpetuar a sua lngua imprescindvel que ela seja grafada; e conseqentemente todo seu o patrimnio cultural escrita. 2- que a criao desta lngua indgena escrita deve partir de uma proposta elaborada pelo lingista (ainda que com a participao dos falantes est ameaado caso no seja guardado pela no
dessa lngua como informantes) para dar conta de um dilema posto etnocentricamente por ns, o comprometimento lingstico. 3- o de que, para diminuir o impacto desse comprometimento lingstico, a escrita a ser criada o ser tendo por parmetro fundamental a fonetizao mxima (quase que uma escrita lingstica s que com os caracteres do alfabeto latino) isto , a escrita dever ser transparente, em grau mximo, palavra falada, com isso se cr estar guardando ou reforando a lngua indgena falada por meio da sua escrita j que responderia sua voz; - o que , penso, um equvoco perigoso, posto que desvaloriza o que fundamental para a manuteno da lngua: justamente a sua oralidade, o seu uso em sua forma oral. 4- e, por ltimo, que essa transparncia pura da escrita e da fala (que qualifica como primordial para a primeira a correspondncia unvoca entre fonemas e grafemas) impe um limite fsico para essa lngua (fonetizada): os falantes que vivem geograficamente em um mesmo espao, em uma determinada terra indgena. Com tal postura, alguns lingistas reforam a imposio de fronteiras fictcias entre povos indgenas, j que cada diferena dialetal passa a se constituir em uma lngua diferente, fragmentando os povos indgenas em comunidades lingsticas, pequenas ilhas, que as tornar incomunicveis entre si. polticas oficiais procuram
Esta reduo do papel do lingista j vem sendo avaliada por outras vozes que a dos indgenas. Muller, discutindo o papel dos lingistas na formao de professores indgenas aponta que muitas das justificativas dadas por estes profissionais (lingistas) para o trabalho com as lnguas indgenas tm compromisso muito maior com a tradio da prpria disciplina do que com as necessidades dos professores indgenas e dos projetos que os contratam (1998;388) Grande parte dos lingistas costuma acreditar assim que sua assessoria aos projetos de formao de professores indgenas est em descrever as lnguas indgenas faladas por aqueles professores, e que essa descrio fundamental para as escolas indgenas.Dessa maneira referendam, ainda que inconscientemente, a incompreenso dos projetos oficiais realizados pelas Secretarias de Educao do que seja o especfico e diferenciado proposto pela legislao e imposto elas como o discurso politicamente 7
correto, colaborando na reduo deste axioma elaborao de materiais didticos na lngua. E, nesta justificativa, reiteram e propagam o equvoco de que para a lngua indgena se constituir como uma lngua escrita, esses passos (as descries lingsticas, as criaes de gramticas, dicionrios, etc.) so indispensveis. Esquecem que no foi este o caminho desenvolvido pelas lnguas europias. A Lngua Portuguesa funcionou como lngua escrita por mais de trezentos anos sem que instrumentos lingsticos de formalizao e normatizao intercedessem neste processo. Os primeiros documentos escritos em lngua portuguesa datam do final do sculo XII ao incio do sculo XIII sendo que a primeira gramtica data de 1536, quase na metade do sculo XVI. E mais, a normatizao ortogrfica da lngua escrita (o estabelecimento de que cada palavra s pode ser escrita de uma forma) um fato do sculo XIX, no s para o portugus mas para a maioria das lnguas europias. (Muller,1998;392) A histria da cultura escrita pode nos trazer possveis entendimentos para a equao oralidade-escrita. Havelock lembra que a inveno do alfabeto grego, instrumento da futura cultura escrita, a princpio funcionou como registro completo da cultura oral (1995;26). Tal como hoje se justifica a escrita enquanto possibilidade de registro das prticas culturais indgenas. Aponta tambm que para os egpcios e sumrios, fencios e hebreus, a escrita restringiu-se inicialmente, nas sociedades onde era praticada, s elites clericais ou comerciais que se davam ao trabalho de aprend-la. As atividades ligadas a justia, governo e vida cotidiana eram comandadas pela comunicao oral, como hoje ainda acontece em grande parte do mundo islmico e at mesmo da China.(op.cit;27,28). Esta situao encontra tambm um paralelo com a situao de uso atual da escrita por grande parte dos povos indgenas, que a utilizam, via de regra, apenas em suas transaes (em sentido amplo) com o mundo de fora; internamente na vida e na conduo poltica e cultural somente a linguagem oral preenche os requisitos formais, legais e de domnio. Mas qual tem sido o uso que os povos indgenas tem realmente dado escrita? Sabemos do discurso, dado por eles, da necessidade da escrita na lngua portuguesa para um domnio/controle das relaes com os brancos, mas, na prtica como esta escrita vem sendo apropriada internamente por essas sociedades? Apesar dos vrios trabalhos sobre educao indgena, sabemos ainda muito pouco sobre os usos da escrita e suas relaes com a oralidade entre os povos indgenas brasileiros. Em artigo anterior (2001) procurei refletir sobre o uso dado por um povo grafo, no caso os Timbira, palavra escrita. Retomo aqui alguns pontos que me parecem 8
fundamentais para contextualizar a discusso sobre a necessidade e o lugar da escrita,motivo dos projetos de escola/educao indgena. Os Timbira empregam a escrita para redigir em portugus pequenas cartas e bilhetes. Apesar da extrema presso e incentivo para uma produo de textos descritivos ou narrativos, na lngua portuguesa ou na lngua indgena, que viessem a provocar internamente uma demanda pela leitura, esse fato no se concretiza. No h uma produo literria que poderia vir a ser a funo da escrita na lngua indgena. Parecenos que o conservantismo lingstico Timbira que mantm suas formas artsticas orais (artsticas no sentido de diferir da fala diria empregada para o relacionamento com o mundo e o outro e que exige uma habilidade e uma autoconscincia da parte de quem produz), preenche um possvel vazio por onde poderia surgir uma literatura escrita. Estou me reportando, aqui, a Feldman (1995), que parte do pressuposto geral de que existe uma variedade de gneros orais comparveis dos nossos gneros escritos, e que em ambos os casos pode haver manifestaes artsticas, o que pressupe a separao entre texto e interpretao. Para este autor, enquanto qualquer cultura oral possuir sistemas de texto e interpretao, a escrita poder no lhe ser necessria. Essa nos parece uma linha sugestiva de investigao que poderia modificar a compreenso da inoperncia do sistema de escola implantado nas mais diferentes aldeias e da conseqente frustrao que acompanha o trabalho dos educadores que vem a escrita, etnocentricamente, como marca da modernidade e do esclarecimento.Ou seja, em sociedades onde as artes das tradies orais so vivas, as artes da escrita no encontram ambiente para se constiturem. Esta linha de pensamento problematiza tambm a concluso apontada por DAngelis em sua defesa da necessidade de uma lngua indgena escrita. Ele considera que a escrita de uma lngua indgena fundamental para o no desaparecimento da lngua em sua manifestao oral; justifica a escrita no pela transmisso dos conhecimentos, ou para a memria social de um povo, mas pela necessidade da lngua indgena ocupar este novo espao, o da escrita, competindo por este espao que caracterstico da lngua portuguesa. Prope que a questo central seria a da necessidade de se dotar a lngua indgena de leitores, e por conseqncia, a necessidade de formar escritores indgenas como forma de fortalec-la.Cito um trecho, A nica forma de se opor, concretamente, ao desaparecimento de uma lngua indgena fazer frente, deliberadamente, perda de espaos para a lngua portuguesa, garantindo (ou criando), para a lngua indgena, funes e usos sociais relevantes e 9
prestigiados. Desenvolver a escrita em lngua indgena uma das formas importantes e, possivelmente, das mais eficazes, para uma poltica de resistncia da lngua indgena s presses da lngua majoritria. E tambm um dos instrumentos mais eficazes de uma poltica lingstica de fortalecimento e modernizao da lngua indgena, indispensvel para sua sobrevivncia futura. Este talvez possa ser um dos futuros das lnguas indgenas ou qui se trate apenas de um wishful think; em todo o caso, somente o ser se validada politicamente pelos usurios de cada lngua e muito alm dos processos educativos que lhe so impostos pela sociedade dominante. Mas estaremos ento nos referindo no somente a uma possvel soluo para o comprometimento lingstico como uma tendncia subordinada de resistncia lingstica, mas a uma redefinio do lugar e da relao destes povos com a sua lngua originria. Insistindo novamente neste ponto, devemos considerar que as relaes de contato entre as lnguas ainda mais se supormos como verdadeiro que a lngua portuguesa avana de faca em punho sobre as lnguas indgenas construda socialmente pelo povo indgena em questo. Mas voltemos aos Timbira e o nico uso dado a palavra escrita, restrita aos pequenos bilhetes e cartas em lngua portuguesa, em quase sua totalidade solicitando ajuda para a realizao dos rituais. Contrariamente nossa expectativa de que as cartas estabelecem uma relao entre pessoas distantes espacialmente, para os Timbira elas so utilizadas para se dirigirem aos brancos, que esto prximos,ao alcance mesmo dos olhos e das mos, permitindo introduzir um elemento de distncia onde ela de fato inexistente. Quando essa distncia fsica real, as solicitaes aos brancos so resolvidas, sempre que possvel oralmente, pelo telefone (os Timbira so devotados usurios do telefone, gravadores, do rdio, e quando possvel dos sistemas de vdeo) . Pela voz estabelece-se a proximidade fsica e o conseqente reconhecimento do compromisso/vnculo social assumido anteriormente e, simultaneamente, a ausncia real permite uma privacidade na elaborao da resposta (postura correta no campo das regras e etiquetas Timbira). Esse mesmo mecanismo acionado quando os Timbira querem fazer solicitaes ou pedidos a algum prximo fisicamente. Nesse caso, o pedido feito por meio da escrita (cartas ou bilhetes) permitindo distanciamento, ausncia da voz, e o constrangimento da resposta, caso negativa, deixando para o destinatrio o poder de determinar momento da resposta e dando margem a que o pedido possa ser refeito em outra ocasio A palavra escrita utilizada assim no lugar da fala, quando a comunicao se d entre os interlocutores prximos, mas onde a distncia social deve 10
ser garantida pela distncia espacial introduzida pela escrita (bilhetes e cartas). Quando esses bilhetes no contemplam todo o pedido, eles servem como introdutrios
solicitao verbal dependendo da reao do destinatrio/interlocutor. A escrita utilizada como preldio da interao oral. Quando o autor no est presente e no tem um telefone ao alcance, os bilhetes e cartas chegam at o destinatrio por meio da figura do portador. Este, como um enunciador, projeta o eu/sujeito, no no interior do enunciado, mas no contexto da enunciao, marcando a exigncia da interao oral como condio da comunicao. Nesse sentido a pessoa do portador tanto quanto o contedo do bilhete condio para que a comunicao chegue a bom termo.O que est em jogo a tentativa de convencer, persuadir o destinatrio. E a pessoa do portador parte deste processo de persuaso. Por isso, a escolha do portador, por parte do autor/remetente, delicada e importante. Ele representa, por seus vnculos anteriores com o destinatrio, uma garantia da comunicao. Numa sociedade em que a retrica fundamental, a persuaso a base do discurso. A seduo possvel da palavra mantida quando da recorrncia escrita na presena formal do portador. A escrita assim encontra um lugar definido no contexto das relaes com o mundo dos brancos. Mas, paradoxalmente, o uso dado escrita no aquele esperado por muitos dos educadores indigenistas. Para estes, a importncia da alfabetizao estaria no proporcionar contatos institucionais junto Funai, ministrios, prefeituras etc. A escrita de fato algumas vezes utilizada nesse contexto, mas a sua apropriao pela comunidade se faz majoritariamente para cumprir demandas internas (festas) utilizando referncias da cultura oral, ou seja, a tradio da comunicao oral cerca e condiciona os usos do texto escrito. Parece que os povos grafos contemporneos, na situao de desigualdade que caracteriza as relaes entre povos indgenas e sociedade nacional, percebem com clareza que na nossa sociedade, com a qual so obrigados a conviver, a oralidade e a cultura escrita podem ser vistas como interligadas. A relao entre elas tem o carter de uma tenso mtua e criativa, na qual estes povos encontram referncias para definir as suas polticas lingsticas. Para ns, para que uma lngua continue viva, isto falada, necessrio que sejam incrementados os contextos de uso da lngua indgena em questo, ou seja, que sejam valorizados e multiplicados os momentos/espaos em que um
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determinado povo usa privilegiadamente a sua lngua7. Para isso o lingista e o antroplogo deveriam estar juntos, naquilo que o sociolingista delimita como seu campo de ao. Esta estratgia poltica est de acordo assim com a teoria do divisor apontada inicialmente, que afirma que a oralidade e a cultura escrita possuem formas distintas de .expresso e de reproduo, embora reconhecendo a importncia interativa de ambas, permitindo que antigas funes sejam desempenhadas de maneira nova (como o exemplo Timbira nos mostra) e que assim novas funes possam ser propostas ou emergirem.
II- Quero retomar agora a relao entre memria e linguagem, fundamental para se avaliar a funcionalidade social das formas orais de transmisso de conhecimentos (patrimnio cultural de um povo). Em povos onde a tradio s pode ser armazenada pela lngua, e para isso esta deve ser memorizada (e transmitida de gerao em gerao), os segredos desta memria oral no esto no comportamento da lngua usada na conversao, mas na lngua empregada para o armazenamento de informaes. Essa lngua deve ter dois
requisitos bsicos: tem sempre de ser rtmica e narrativa. Sua sintaxe, por outro lado, deve sempre descrever uma ao ou paixo e nunca princpios ou conceitos. (Havelock1995;.31). As artes das tradies orais tm como um dos seus objetivos na transmisso de conhecimentos a memorizao (armazenamento) destes. Um dos
objetivos tanto do pico na Grcia Clssica quanto do repertrio de cantos Timbira, o armazenamento de material ( informaes) na memria oral. E so imensos repositrios de informao cultural. Mas para isso h todo um conjunto de regras que governam a composio oral, como marcadores que conduzem a narrativa a medida que esta se desenvolve. Estas regras so fundamentais porque ficam armazenadas na memria do narrador, do cantador, do chamador, dos mestres que dominam estas artes para entrarem em ao sempre que necessrio. E, porque este corpus de conhecimento faz parte de um patrimnio social compartilhado com os demais membros da sociedade, estes marcadores esto armazenados na memria apenas como instrumentos de ajuda para facilitar a retrica. Por isso a importncia da memorizao nestas sociedades. E, por
Uma poltica pblica que estivesse preocupada com essa questo estaria muito alm do apoio a elaborao de matrias didticos escritos, estaria apoiando a realizao dos rituais, lcus privilegiado da expresso cultural plena.
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isso deve-se refletir quando a liturgia da escolaridade ( para empregar um termo de Ivan Illich) levada pelos programas de educao indgena valorizam a aprendizagem por meio da improvisao, da criatividade(em seu sentido mais literal) em descompasso total em relao aos mtodos tradicionais de aprendizagem que repousam na recitao, na cpia, na observao, na imitao, tcnicas fundamentais para a noo de memorizao. Inicialmente o alfabeto foi usado para registrar a linguagem oral.(Catach:1996;5) E,somente o alfabeto tornou possvel ler corretamente sem a necessidade da compreenso do que se est lendo. Por mais de 200 anos, a decodificao do registro alfabtico no pode ser executada apenas com o emprego dos olhos: leitura era sinnimo de recitao em voz alta ou murmurada. (Illich,1995;43). Embora ocasionalmente praticada, a leitura silenciosa permaneceu impossvel at o sculo VII: os espaos entre as palavras eram desconhecidos (idem;44) e este o mesmo procedimento de povos indgenas que ao construrem a sua grafia e ao escreverem no separam o texto em palavras, no marcam os sinais de pontuao. Estas informaes so desnecessrias porque ele conhece o texto, ele sabe falar e ao falar em voz alta o que est escrito ele o faz da maneira certa, inteligvel. Pela primeira vez na histria a criana conseguia ler. Aos poucos se percebeu que, se o alfabeto grego lhe fosse ensinado quando seu domnio oral da lngua ainda no era completo, os dois hbitos, o oral e o visual, poderiam ser ensinados concomitantemente, resultando no reconhecimento de valores acsticos desencadeados por formas visuais, o qual assim, tornava-se automtico (Havelock,1995;31). Talvez aqui tenhamos uma indicao do porque da insistncia dos ndios em que o aprendizado da lngua portuguesa (falar e escrever) se d concomitantemente e a sua viabilidade metodolgica, contrariamente aquela apregoada por alguns lingistas e pedagogos que buscam justificar a imposio da escrita na lngua indgena como condio necessria para a posterior alfabetizao em portugus exigida pelos ndios. Com este sistema de escrita os mecanismos da memria oral puderam, ento ser lentamente substitudos pela prosa documentada, pelas primeiras histrias. As exigncias da narrativa, a sintaxe ativa e os agentes vivos de todo discurso oral
preservado pela memria podiam ser postos de lado, substitudos por uma sintaxe reflexiva de definio, descrio e anlise. A palavra rtmica como armazenamento e veculo de informao lentamente foi se tornando obsoleta, perdeu sua relao funcional com a sociedade, mas muitos estudiosos afirmam que somente no sculo XX, pode-se 13
afirmar, a lgica da transferncia da memria para o documento foi plenamente realizada. (op.cit.32). . Mas pensar por meio da escrita - pois s assim se cria internamente, creio eu, a
necessidade da escrita - no seria tambm justificar a necessidade da inveno de um passado histrico para as sociedades indgenas? Como pensar sociedades cujo passado como referncia no faz sentido? O estado presente contnuo, criado pelo movimento eterno e constante da repetio. Repetio da repetio da repetio, num movimento infinito, cuja fissura da mudana anulada porque no tem referncia no passado. Sem dvida que a mudana existe, no sentido de que a repetio da repetio da repetio no recria o mesmo, mas uma outra coisa que ser repetida; nesse gesto de se buscar criar sempre o mesmo as mudanas simplesmente ocorrem, mas no so consideradas como objeto de uma reflexo, como algo que deva ser analisado criticamente. Na prtica da existncia cotidiana esto incorporadas no eterno presente. Tais mudanas so anuladas enquanto histria. Este distanciamento e a sua marcao entre tempos isto que entendemos como histria instaurado pela escrita, como j amplamente demonstrado h dcadas. A oralidade implica uma memria enquanto presena de si consigo mesma e enquanto durao a transmisso oral exige a presena do outro como interlocutor. Ela no aprisiona a durao (o tempo de) por meio da escrita. A transmisso dos conhecimentos atravs desta memria oral no permite distncias, a noo de tempo histrico, que a memria escrita instaura. A memria escrita cria a possibilidade do passado e coloca, por si s, a questo do futuro. Se pensa o tempo, se constri o tempo. No se pensa o futuro sem se criar o passado. Os programas de Educao Indgena, com suas bem intencionadas propostas metodolgicas, fazem parte programas acelerados de mudana, ao compartimentarem o tempo como que 3 estaes( passado, presente, futuro) Os nossos livros de Histria, de etnohistria, procuram refazer pela escrita esta trajetria, muitos sem estarem atentos a este dilema .Reificam, eternizam, desmitificam, em seu sentido mais concreto uma durao de tempo,desprendendo-o do movimento cclico, instaurando uma durao seqencial e linear do tempo, abrindo fissuras na forma tradicional dos povos agrfos de resistncia mudana. Ou em outras palavras de trabalharem com as mudanas que lhe so impostas. O campo da nossa reflexo tem se movimentado assim em uma dicotomia estanque, de um lado a reificao da permanncia de uma tradio imemorial, concebida 14
como o horizonte de resistncia destas sociedades ao nosso mundo e de outro a assimilao passiva de novos saberes e tcnicas, tendo como horizonte a sua aculturao este mundo novo. A histria assim prevista condena as sociedades indgenas a desaparecer paulatinamente ou as encerra em um primitivismo eterno. (Bocarra, 2001) Somente podemos escapar desse etnocentrismo que caracteriza nosso modo de enfocar as possibilidades de futuro desses povos, se pensarmos a histria,e as relaes de contato destes povos com a sociedade nacional a partir das estratgias polticas( e lingsticas) desenvolvidas por eles, na qual o dilema da escrita,dilema posto por ns, se refaz pelo uso e sentido que do ela em funo de uma redefinio da noo de fronteira; no mais concebida como um espao marcando um limite real entre mundo primitivo e mundo civilizado, mas como um campo social onde as prticas e representaes relativas a construo destes limites so estratgias constitutivas destes povos.
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