O Tempo e o Sujeito em A Ordem Natural Das Coisas, de António Lobo Antunes
O Tempo e o Sujeito em A Ordem Natural Das Coisas, de António Lobo Antunes
O Tempo e o Sujeito em A Ordem Natural Das Coisas, de António Lobo Antunes
O TEMPO E O SUJEITO em
A Ordem Natural das Coisas
de António Lobo Antunes
Universidade do Porto
1998
1
Para a realização deste trabalho foi fundamental o contributo de algumas pessoas a
quem gostaria de expressar o meu agradecimento. Agradeço:
à Sónia, que passou dois anos a caminhar para os Correios, ou: a amiga de sempre;
2
1.1. A verdade da ficção.......13 4.3 Acto narrativo e autognose
1.2 Marcas idiossincráticas do .................................................103
discurso de A Ordem Natural das 4.3 Um romance da vida real
Coisas........................................16 .................................................113
1.3 Entre a narrativa de 1ª 4.4 Figuração disfórica do EU
pessoa e a narrativa \“épica\....19 .................................................105
1.4 Traçar dois percursos de Capítulo 1. Dois níveis
análise.......................................28 enunciativos, dois tipos de ficção
2.1. Fenómeno geral da deixis ...................................................13
...................................................33 Capítulo 2. Transposição e
2.2 Mostração do ausente....36 deixis indicial fictiva.................33
2.3 Dois modos enunciativos40 Capítulo 4. Em busca de uma
2.4 Deixis \“am phantasma\.41 identidade..................................99
2.5 Carácter atípico do Conclusão............................116
segundo caso de mostração \“am Introdução...............................4
Phantasma\................................42
2.6 Operacionalização.........49
3.1 Uma textura discursiva
particular...................................53
3.2 Contiguidade de planos
temporais...................................58
3.2.1 Os lexemas verbais......61
3.2.1. Os articuladores.........58
3.2.2 -Ausência de instruções
de transposição.........................63
3.3 Simultaneidade de planos
temporais...................................65
3.3.1 Dois sistemas de
deícticos co-activados...............67
3.3.2 Marcos de referência
ambivalentes..............................69
3.3.4 Discurso indirecto livre
...................................................71
3.3.5 Comentar os próprios
efeitos discursivos.....................73
3.4. Algumas considerações
sobre o aspecto verbal...............76
3.4.1 Aspecto\...........................
uma categoria primordial..................................79
3.5 Operacionalização.........86
4.1. Cognição e criação na
linguagem..................................99
4.2 Falar do passado..........101
3
Introdução
São já passados alguns anos desde que pela primeira vez tive oportunidade de me
língua ao encontro de uma actuação humana antecedente ao agir, pela palavra, sobre o outro.
paralelamente, produz uma conjuntura de realidade com os recursos enunciativos que lhe são
dados a explorar.
análise textual. E foi um romance que ecoou na minha memória de leitora comum ao
confrontar-me com a constatação do poder figurativo e criativo que o acto de fala encerra. É
4
ele A Ordem Natural das Coisas de António Lobo Antunes. Cumpre-se agora o desejo que na
realismo das existências desfiguradas, cruamente esboçadas em cada monólogo, mas também
diante da autenticidade das modalidades enunciativas activadas. Cada locutor, cujo discurso
não, se impõe e concorre com o presente. Este caótico arrumar de parcelas vivenciais é-nos
familiar quando nos colocamos na posição dos locutores- personagens, ou seja, sujeitos
personalidade. Mas acabamos também por integrar no quadro dos registos discursivos comuns
situarem-se simultaneamente quer no espaço e tempo da sua enunciação actual, quer num
espaço e tempo ausentes, mas mostrados como presentes e, por isso, disponíveis no elenco
análise deste trabalho que se irá dividir entre a abordagem dos recursos da língua activados na
5
linguístico de uma qualquer língua natural, um qualquer locutor poder desenraizar-se, a si e ao
seu interlocutor, da situação em que se fala e transportar-se para um espaço ausente é factor
essencial para uma percepção cabal do funcionamento do sistema verbal. Por outro lado, a
perspectivação dos tempos verbais como marcas distintivas de dois modos de referência,
permitiu efectuar o deslize frutífero do estudo do sistema deíctico para a instituição de uma
funcionar neste estudo que me proponho levar a cabo. Acresce o intuito de que a análise
textual venha por seu turno acarretar uma problematização pertinente e frutífera ao nível
teórico.
referência a temas satélites que o escoram, a saber, a índole do discurso ficcional e a função
Porquê a opção por um texto literário em detrimento das mais variadas manifestações
interrogação, deverei fazer eco da questão oposta: porque não um texto literário?
É longo o rol de autores, quer da área dos estudos linguísticos, quer da área dos
estudos literário, que sublinham o óbvio: antes da palavra ser literária ela é, em primeiro
lugar, língua. Destaco aqueles que pela lucidez das suas observações, me deixaram
6
Weinrich (1964) dimensiona a linguística textual no quadro da intersecção entre
Coseriu (1977), ao reconhecer a linguagem poética como a linguagem, frisa que todas
Então “Los textos literarios deben valer como modelos para la linguistica del texto, puesto
G. Reyes, na sua obra Polifonía Textual (1984), concebe a literatura enquanto acto de
interaccionais: “os actos naturais”. Sob esta perspectiva, o texto literário é o “resultado de un
acto de lenguaje que asume todas las perplejidades del uso del lenguaje como instrumento de
conocimiento, expresión, juego, poder ( sobre la realidad, sobre los otros) (...)” 4 O discurso
literário é, por excelência, o uso frutífero da linguagem: “Como cita, el lenguaje literario es
Exemplo de uma teorizadora da literatura que assume o posto de uma estudiosa dos
linguagem é K. Hamburger. Em Logik der Dichtung (1957) a autora faz funcionar essa
conjugação inadiável entre linguística e literatura. “ (...) the «mode of being» of literature is a
part of the general system of both the realm of consciousness and language (...)”6
Um dos estudiosos que ignorou de modo exemplar essa fronteira artificial entre
aquilo que é literatura e o que não é literatura foi K. Bühler. Na sua obra Sprachtheorie
(1934), (já distanciada no tempo mas fulcral para quem estuda o funcionamento da
7
independentemente do contexto institucional e retórico em que o acto de mostração se
inscreve.
literária só vem denunciar o seu ainda vigente apartamento. Esta confluência de vozes é
sintoma de um fosso traçado durante décadas por duas posições extremas: de um lado, a
atitude prescritivista que ditava a hegemonia do discurso escrito, cujos modelos eram os
textos literários (a prová-lo estão as citações de obras literárias que pululam nas gramáticas e
dicionários mais conceituados ); do outro lado, o exagero oposto, de raízes estruturalistas, que
por reservar à linguística a língua dita corrente tolhem a possibilidade de explorar a plenitude
Por outro lado, importa ter a noção clara de que a abordagem linguística deve visar
precisamente a singularidade do texto literário enquanto tal e não a sua desfiguração que o
opção por um texto literário como ponto de partida para um trabalho em linguística, passo a
pelo facto de, apesar de congregados na mesma orientação temática, participarem com pesos
8
próprio sujeito que o pensa e enuncia. Vejamos o modo como a articulação entre capítulos se
irá efectuar.
do discurso ficcional, literário ou não literário, sendo que para tal, recorrerei brevemente a
ficção quer os referentes / objectos designados pelo acto enunciativo fictivo, quer a própria
do discurso ficcional de A Ordem Natural das Coisas nos princípios gerais da teoria da
ficcionalização:
captados a configurarem a sua vida pretérita através da transposição fictiva das coordenadas
enunciativas; do outro, o nível da configuração exógena ou comunicação literária que tem por
agentes uma voz enunciadora e o leitor. A explicitação destes dois níveis parece-me funcional
porque abre duas dimensões de análise distintas: a primeira, que toma o discurso dos
locutores como matéria de dissecação; a segunda, que procurará alcançar uma interpretação
9
do discurso do romance. É, naturalmente, no primeiro nível mencionado que situarei o grosso
desta dissertação.
O percurso a traçar até atingir esse fim deverá compor-se das seguintes etapas:
que designarei justificadamente por deixis indicial fictiva, poder-se-á fundamentar quer na
teorização do próprio autor, quer no seu carácter a-narrativo, como também no papel que
análise do discurso activado nos moldes da deixis indicial fictiva. São eles o reconhecimento
de que este discurso faz emergir um sujeito enunciador em atitude de locução tensa e a
referenciam uma imobilidade temporal, porque remetem para uma temporalidade inactual.
10
— mundos possíveis que emergem de um efeito de atemporalidade decorrente da
deíctico.
expressões evocativas, na medida em que elas dão conta desse fenómeno de transposição
fictiva que se impõe ao locutor quase involuntariamente. Não dispensarei a focagem, ainda
descrição deste capítulo. A tónica será colocada na opção discursiva de activar, num mesmo
indicador instrucional dará entrada a uma primeira chamada de atenção para a idiossincrasia
fundamentais que irão ser desdobrados em vários exercícios de análise textual, destinados ao
O segundo momento intercala a exposição de uma base teórica que, ainda que breve,
modalidade e textualidade.
11
Depois da análise das estratégias enunciativas potenciadoras dos efeitos de recriação
quarto capítulo.
de retoma de isotopias.
monólogos.
Por outro lado, o tópico relativo à hegemonia das formas permansivas que marca as
revivem quadros simultâneos, são protagonistas de uma vivência tão intemporal como a
própria morte.
12
Capítulo 1. Dois níveis enunciativos, dois tipos de ficção
a consideração desta ciência como não podendo deixar de albergar, no seio da problemática da
fenómeno que, activado tacitamente aquando da leitura de qualquer conto ou da recepção oral
ficcional. Talvez este “paradoxo da ficção narrativa”8 muito provavelmente tenha contribuído
para que um estranho pudor tornasse a linguística incólume à produção literária. Tratava-se de
ultrapassar uma perplexidade: as afirmações que são feitas no texto de ficção são, como todas
as afirmações, dadas como verdadeiras; no entanto, o leitor ou ouvinte sabe que elas não
13
correspondem a nada efectivamente, que não têm existência no mundo real; ainda assim, o
receptor, não ingénuo, não é dominado pelo sentimento de estar a ser enganado. Apenas o
leitor quixotesco é que não sabe que assiste a actos de fala, sujeitos enunciadores, eventos,
espaços e tempos que nunca existiram. O receptor aceita que se diga o falso. Este estado de
coisas é óbvio, mas nem por isso, e nem sempre, compreendido na sua essencialidade.
“ It is after all an odd, peculiar, and amazing fact about human language that it allows the
identifiquem como tal, onde residem as virtualidades de um texto deste cariz que nos dá
acesso a um mundo ficcional assim que iniciamos a leitura? O que é que potencia, de modo
automático e sem que o leitor tome plena consciência disso, a realização deste “acto de fé”10
em que o mundo ficcional passa por ser tomado como verdadeiro, mesmo quando o texto
discurso de ficção?
Aquando da leitura de A Ordem Natural das Coisas, e apenas enquanto ela está em
curso, acreditamos nos eventos e pessoas que surgem configuradas no universo do romance,
que emerge como mundo autónomo, dotado de uma realidade paralela. A ficção é real
enquanto dura. Mais do que fazer-nos mergulhar num universo paralelo, o discurso ficcional
condescendente em face da vocação de Artur para profeta, por exemplo. Tanto damos por
existente, dentro do universo do romance, o mineiro visionário (L3)11 que fura a alcatifa da
sala de uma casita na Quinta do Jacinto, como Solange, a negra invocada por aquele, dos
tempos de Joanesburgo, como ainda o evento, igualmente relatado por L3: como pássaros,
14
mineiro e ex-pide voam tranquilamente sobre a tarde de Alcântara. É de ressalvar, no entanto,
A ficção é um fenómeno fascinante, é certo, mas bastante corrente para poder ser
tomado como um mistério inefável. A dificuldade de tocar a sua essência está no facto de o
material de que se constitui a ficção e a literatura ser a linguagem. Os nossos actos de discurso
determinada actualização. As palavras num texto ficcional mantêm o mesmo sentido que têm
o leitor teria de aprender, de cada vez que iniciasse a leitura de um novo romance, novas
regras linguísticas para apreender a mensagem. Por outro lado, estamos longe da consideração
Searle aponta como objectivo principal para levar a cabo esta busca a consideração
compartilhadas com o leitor, que estipulam o facto de a enunciação ficcional se libertar das
de mentir. Tais actos enunciativos são eventos reais; o que não é real é o seu enquadramento
no mundo das enunciações sérias: “ The author pretends to perform illocutionary acts by way
of actually uttering ( writing ) sentences. In the terminology of Speech Acts, the illocutionary
característica textual que determine este ou aquele discurso como discurso de ficção,
ficcional como uma não enunciação. Na ficção não poderemos descortinar a fórmula “ eu
15
enuncio algo” e, consequentemente, todo o dispositivo deíctico ( no qual a autora destaca os
de uma terceira pessoa pode ser representada. Aqui radica, para Hamburger, a convenção
primordial.
para um contexto ausente que tem de ser explicitado e representado pelo e no enunciado. Tal
então um enunciador que não enuncia, mas como que cita actos de discurso que têm lugar
num contexto reconstituível pela imaginação, sendo que este processo se enquadra em
contexto imaginário para uma comunicação ausente cuja autenticidade é válida noutro plano
menos estas propostas confluem para o esclarecimento da razão pela qual a verdade da ficção
só pode ter adequação interna : ela está no seu estatuto enunciativo . Veremos de seguida o
16
O mundo de ficção, a partir do momento em que está convencionado como tal,
irreais no mundo não ficcional são reais no universo de ficção, então também as
A ficção não é graduável, mas absoluta. A partir do momento em que não detectamos
ficção que se pode colar à realidade ou que a despreza do modo mais audaz. Nunca saímos do
ao nível objectual, mas também ao nível enunciativo, não tolhe a incursão do leitor no mundo
ficcional. Pelo contrário, é preciso que o leitor tome o mundo com que se depara, através da
leitura, como ficcional para que esse mundo o possa cativar: “ Es la conciencia de la ficción lo
Damos conta, em primeiro lugar, que cada personagem fala de si e do seu passado,
móbil, diria, gratuitamente. As locuções não surgem encabeçadas por nenhuma data ou local,
17
Na continuidade desta constatação, verificamos também que o discurso de ficção faz-
raciocínios quebrados:
que estão em cena as personagens Jorge, Maria Antónia, e Julieta. Aqueles, por debilidade
física e psicológia, esta última por uma incapacidade de expressão verbal correcta, tornam-se
locutores apenas ao nível formal, pelo recurso à 1ª pessoa16, mas epistemologicamente, tais
enunciações não lhes poderão ser atribuídas. Isto porque entre o discurso que é formalmente
produzido pela sua voz e as condições mentais que vão sendo descritas ao longo desse
nos conduz à hipótese de estes personagens falarem através de uma voz que não lhes pertence.
estilística que perpassa todas as enunciações. Não perscrutamos qualquer variação diafásica
ou diastrática, tal como seria de esperar quando viramos a página e deixamos de ouvir um
militar nos calabouços da Pide e, dando entrada num novo capítulo, passamos a escutar uma
É impossível não observar que os locutores aparecem, por vezes, dotados de uma
supervisão que extravasa o foco interno ao universo descrito, o único a que naturalmente
poderiam ter acesso: L5 alcança duas situações a ocorrerem ao mesmo tempo em espaços
diferentes :
18
“(...) o do bócio aplicou um primeiro chuto na cadeira e um segundo que me rasgou a virilha,
a posição da lâmpada alterou-se a mesa voou ao meu encontro e retrocedeu e em lugar de
dor senti uma paz estranha ao mesmo tempo que a minha irmã Anita, no patamar, perguntava
Às três Luis Filipe, podemos vir incomodar-te às três, e o Director-Geral respondia Às três,
sim...”(p. 140, 141).
O mesmo locutor relata a sua própria morte e configura-a como um evento passado,
o que anula o carácter de realidade deste locutor e da sua locução. L6, por seu turno, sem
instrução prévia, introduz no seu discurso fragmentos das falas de outra personagem:
“(...) e nessa noite o Senhor Esteves foi ao teu quarto sem acender a luz, cochichando Não
tenhas medo, garota, não tenhas medo que não te faço mal
e estendeu-se sobre mim a tossir...”(p.205)
“ (...) como se o do cigarro se estendesse ao seu lado a soprar-lhe no ouvido a sua urgência,
como se o do cigarro, de joelhos nas raízes e nas folhas, desabotoasse as calças para ela
medir, com os seus próprios dedos, o meu desejo de ti, meu amor (...) (p.116)
São casos de opções enunciativas / ficcionais como os que acima foram descritos e
exemplificados que costumam ser abrigados no seio da arte ( no sentido clássico do termo) de
ainda, no campo das marcas estilísticas do autor. Em todo o caso, estes procedimentos rumam
em direcção a uma ou várias intenções comunicativas que têm como pólos do circuito uma
19
Retomo, com mais detença, a teorização de Hamburger, a que já fiz referência. Não
pessoa, que designa por narrativa “épica”. Enquanto que o discurso não literário é o discurso
do pensamento e da comunicação, em que um sujeito versa sobre um objecto num dado tempo
próprio um mundo no qual a vida humana toma lugar. Neste âmbito, não há efectivamente uso
de linguagem, ela não constitui um meio para cumprir qualquer função descritiva ou
expressiva. Uma obra literária não emprega a linguagem. Aí, a experiência configurada não se
constitui pela linguagem mas de linguagem. Mediante esta opção, a autora apura os critérios
da linguagem criativa em comparação com a linguagem não criativa, do ponto de vista da sua
trabalho.
caracterização negativa:
e consequentemente
20
— a linguagem não denuncia um propósito comunicacional, pelo menos em sentido
estrito.
produtor do discurso com que nos deparamos. Se efectivamente não é detectável um sujeito
por uma enunciação que tenha tido assento num tempo e num lugar. A distância entre o ponto
no tempo em que os eventos narrados tiveram lugar e o momento no qual eles se tornam
do discurso de ficção. O conceito de “narrador” enquanto pessoa de papel que relata pessoas,
realidade fundamental: o produto que é o mundo de ficção não deriva de uma pessoa, ainda
que possa ser concebida como ficcional, mas de um acto criador representacional formativo.
Se concebermos a existência de um narrador, então dizemos que ele fala acerca de pessoas e
coisas. Porém, o mundo narrado só existe em virtude da narração. E o narrador, quando existe,
ou seja, na narrativa de 1ª pessoa, nunca se assume como criador do que relata, mas mais
como encenador de um mundo que passa por ser pré-existente ao relato. Ao mundo narrado
preside uma função narrativa que, no curso do relato, vai criando aquilo que pretende
personagens da narrativa épica são representadas não como objectos de enunciação, mas
21
“aqui” e “agora” fictivos da personagem, e não do “então” de um suposto enunciador
ou leitor;
mentais ou afectivos;
relativamente à realidade empírica quer dizer que o mundo que aí é narrado não existe
independentemente do acto de narração. Este mundo deverá aparecer como realidade ainda
que remeta para um estado de coisas de feição bastante irreal. Ora, esta forma de realidade
não poderá ser objecto de um relato; pelo contrário, ela é criada pelo relato. Conceber o acto
narrativo como uma função através da qual pessoas, coisas, eventos são criados é a pedra de
toque para o esclarecimento da narrativa épica. “ Between the narrating and the narrated there
exists not a subject-object relation, i. e., a statement structure, but rather a functional
correspondence.”17
coordenam-se num projecto de formação modelar da narrativa. Nesta altura a narração estrita
narrativa.
pressuposto para a área da linguagem criativa resulta nisto: o sujeito que diz “eu”, no romance
22
para si próprio e para o mundo circundante faz existir o locutor, o interlocutor e as
existência não falha. O locutor e o interlocutor, se o houver, fazem-se existir pelo acto de auto
realidade ou de realidade paralela, mas, pelo contrário, quer passar por ser real, fingir-se
genuina. E este factor está simplesmente sustentado pelo facto de aqui ocorrer a forma de uma
experiência, não podendo libertar-se dele e, logicamente, os verbos finitos conservam a sua
Deste modo, a narrativa de 1ª pessoa simula sempre, em maior ou menor grau, uma
estrutura geral das enunciações que constituem a obra é uma estrutura relacional sujeito-
Julgo ser esta uma constatação simples, ainda que insuficiente. Isto porque
comprometem uma classificação tão cómoda como esta é. De tal modo que deixamos de saber
23
delinear a fronteira entre a noção de narrador e o conceito de função narrativa, entre uma
“(..) calado apenas, calado, envelhecido, inerte, tão inerte que nem se dá conta do comboio
de Cascais que pula por cima dos jardinzecos da Quinta do Jacinto e lhe cruza o corpo,
levando, na fieira de janelas das carruagens, a mudez sem sonhos de que é feito.” (p.78)
“....e intrigava-me que não houvesse bolhinhas de ar desprendendo-se da tua boca...”( p.199)
“ ... e imaginei que se tirasse o casaco e desabotoasse a camisa um par de asinhas se lhe
começaria a agitar nas omoplatas e ele subiria tarde fora, a caminho das nuvens, erguendo-
se a custo como um avião de museu.”(p.250)
24
Os momentos em que mais fortemente é evidenciado o facto de o sujeito narrador
recriar situações e episódios de um passado mais ou menos longínquo, donde resulta uma
ficcionalização do eu-passado e das personagens envolvidas num determinado quadro,
correspondem às passagens em que ocorre a associação de dois sistemas de coordenadas: o
sistema do “eu-origem” fictivo de 1º pessoa , ou do “eu-passado” e o sistema relativo ao “eu-
narrador, responsável pelo discurso. Afinal, estamos muito próximos de um procedimento de
ficcionalização já aqui apresentado19: a co-ocorrência dos deícticos do sistema da ficção, do “
hoje”, “ontem”, “amanhã”, “aqui” e “agora” das figuras fictivas com os tempos do passado.
Assim:
“... e vestiram-me um bibe e estou acocorada num degrau a ver as galinhas que debicam no
que devia ter sido uma horta...”(p.274)
“... A Anita e a Teresinha miravam-me, a raposa soluçava de fome na gaiola farejando o tacho
vazio e agora tínhamos vinte anos e o nosso pai, doente, rodeado de vaporizadores que o
impregnavam de um odor de eucalipto, exigia da cama Ninguém pode saber de
nada...”(p.150)
“agora” com o Imperfeito exige o seguinte comentário: estes excertos e outros semelhantes
não podem ser apresentados como conducentes à conclusão relativa à atemporalidade dos
tempos verbais, já que, para todos os efeitos, esta é uma narração de 1ª pessoa; interessa antes
configurar um “eu-origem” textual como um “eu” real, mas, pelo contrário, fazem emergir do
são inaptos a remeter para um “eu” de uma enunciação de realidade fingida. Em inúmeros
25
O que é ainda mais espantoso é a ficcionalização dos próprios “eu-tu” actuais, da
“(...) sem contar o amigo escritor e eu a observarmos isto, cada qual com o seu refrigerante e
o seu pires de tremoços, num restaurante ao pé da Faculdade de Medicina” (p.25”)
O eixo subjectivo do acto de fala é conduzido para fora do próprio acto de fala. O
mimética das coordenadas enunciativas, já que ele próprio apresenta sinais de mundo
transposto. Desta vez, a sobrevisão do locutor é mais alargada e eleva-se acima do próprio
acto de enunciação. O locutor distancia-se enquanto sujeito que diz “EU”, do “EU” narrado /
descrito, daqui resultando a sua objectualização. Não há desfasamento temporal entre o “EU”
que diz e o “EU” que é dito. Quando este caso se verifica, o discurso parece radicar em
É nestas alturas, ainda que breves, que a noção de narrador se torna indiferenciável
da de função narrativa.
pessoa passa a ser uma das personagens desse mundo arquitectado mediante nexos lógicos ou
afectivos. Por seu turno, a 1ª pessoa encontra-se cristalizada no passado e distinta do eu-
enunciador que pertence à vida actual em curso — este, sim, criação do fingimento, tal qual o
passada que, momentaneamente, relega para segundo plano o sujeito de enunciação e o seu
26
Todos os procedimentos até aqui descritos cabem dentro de uma margem de
admitindo que aquele modo de representação do discurso das personagens não decorre de uma
fictionalizes the persons, just as in the genuine epic fiction.”20 O narrador deixa de ter
A autora insiste, porém, na distinção entre fingimento e ficção, já que ela está
pelo menos na sua aplicação a este romance. Se posso constatar que estou em face de uma
narrativa de 1ª pessoa, também posso facilmente demonstrar que o universo descrito é fruto da
personagens (L5 e L10) derrotarem a sua debilidade física e psicológica para discorrerem
sobre o seu mundo actual e passado, bem como os últimos momentos da sua vida e o próprio
momento da sua morte — trazem à superfície um acto enunciativo primordial que manieta
todas estas vozes e que, enfim, as faz existir. A pluralidade de vozes reduz-se a um
27
do acto narrativo que é levado a cabo. Só que esse acto narrativo não é efectivamente da sua
responsabilidade.
Hamburger — tem por móbil a ostentação da fragilidade da sua polarização. De facto não é
antepõe-se um outro plano onde se opera a sua produção e que é parcialmente correspondente,
É possível agora apurar dois níveis enunciativos: de um lado, o nível dos locutores e
consolida o circuito comunicativo entre uma voz enunciadora ( não assimilável ao autor, não
assimilável a L10) e o leitor virtual, entidades que, mesmo quando não evocadas
explicitamente, são implicadas pelo texto pelo simples facto de ele existir. Esta voz
enunciadora, que pode activar as diversas formas de representação ficcional, recorre apenas a
28
O primeiro nível patenteia o plano da configuração de mundos pelos locutores—
personagens, i.e., das diversas representações das suas existências actuais ou pretéritas; o
locutores: a história é que se compõe dos locutores, por um lado, e das pessoas, eventos e
paisagens por eles invocadas, por outro. Sem dúvida que neste romance está em causa o
realidade: a solidão de dez indivíduos que se procuram a si próprios num tempo que os anula.
Opto pelo termo voz narrativa ou voz enunciadora. A tendência para a ontificação
do acto narrativo não é óbvia mas é inevitável neste romance: ao avançarmos na leitura de
cada capítulo, conseguimos abstrair uma entidade única, um co-produtor de todas as vozes
dos dez locutores, um omni-locutor responsável por uma supra-enunciação que não está
narrativa fala pela boca das personagens, transfigura-se e reproduz o discurso destas na sua
Mas não nos iludamos: também esta voz, que já no final do romance assume um rosto, o de
29
véritable, renvoie au “présent” virtuel de l'écriture, qui renvoie le plus souvent à celui,
ficcionnel cette foi, de la pseudo-énonciation d'un narrateur — laquelle à son tour, revoie aux
fictionnels eux aussi (...)”23 esclarece bem a distinção entre os dois níveis de enunciação.
um signo complexo e elaborado — a obra literária — que é captado pelo leitor juntamente
captado esta voz por detrás dos actos ilocutórios simulados é que o leitor fecha o círculo do
enuncição das personagens — o factor primordial da ficção. É a partir deste momento que
neutralizamos a nossa descrença. O ser efectuada esta detecção é sinal de que o leitor se
apropriou já das convenções que lhe permitem a entrada no mundo de ficção. Só quando o
leitor consegue dar conta do “ serious speech act”25 que está a ser comunicado através do
complexo de convenções activadas no romance, é que podemos dizer que está a ser activado o
Importa vincar que a dissociação destes dois níveis apresenta apenas um carácter
elaborada por Hamburger é o facto de aí se considerar que aquilo que é assertado não pertence
30
ao campo de experiência de nenhum indivíduo e, como tal, esse discurso não apresenta um
Eu-origem. Poder-se-á afirmar que se trata de um discurso com uma malha de referências a-
deícticas. Se assim é, posso alargar a instância produtora do discurso àquilo que designei por
“voz narrativa”, entidade demiúrgica que delineia estratégias narrativas visando determinadas
intenções comunicativas. Por outro lado, a insistência levada a cabo por Hamburguer na
decorre o assentimento de que os sujeitos enunciadores são reais, o seu tempo e lugar são
reais, os conteúdos das locuções são reais ( porque, devido à própria estrutura essencial da
de fazer comungar o relato autobiográfico do conjunto dos textos literários. À luz do que já
ficou dito, ao questionarmo-nos sobre a índole desta realidade, facilmente somos levados à
seguinte conclusão: o sujeito enunciador é real no âmbito de uma realidade paralela que é a
ficção literária. Realidade calculada internamente à obra, onde tudo está a acontecer no
momento em que a lemos, o mesmo momento em que os eventos estão a ser relatados.
nível explicitado, encontramos dez locutores cujos actos enunciativos originam mundos
alternativos sempre que ocorre uma transposição dos marcos de referência deíctica para a
esfera do ausente26. Vemos então que aos dois níveis enunciativos é possível fazer
amplo ( literária ou não), ou seja, toda a representação discursiva que careça de pré-
falante. Esta dissociação já foi aliás preconizada por F. I. Fonseca: «Uso o termo fictivo para
31
referir, marcando uma distinção em relação a ficcional, este sentido mais amplo que implica
todo o tipo de projecção das coordenadas enunciativas quer essa projecção se associe ou não à
este primeiro nível enunciativo que Hamburger não consegue conjugar a noção de narrativa
épica ou narrativa ficcional com a teoria da deslocação de Bühler28: “Even in the novel set in
Rome, «here» does not mean that Mohammed, i. e., author and reader29, mentally transposes
himself to the location where the hero is, nor does «there» mean that he remains in his place
and performs some kind of telefocussing; rather, «there» is nothing other than «here» referred
to the fictive figure, the fictive I-Origo of the person in the novel.”30 A ideia de movimento
não entre autor e leitor, já que estes se integram num enquadramento comunicacional
específico.
numa larga componente deste trabalho ao examinar o papel do tempo e do aspecto verbal no
Natural das Coisas, do que deste ou daquele fenómeno n'A Ordem Natural das Coisas.
32
Capítulo 2. Transposição e deixis indicial fictiva
Não é prudente avançar com um estudo que, como já tive oportunidade de anunciar,
dedica um espaço central ao discurso fictivo sem me deter na descrição do fenómeno geral da
a que já aludi no capítulo anterior, aguardam completação a nível teórico e prestam-se, na sua
dos demonstrativos.
33
Sabemos que a raíz etimológica do vocábulo “deixis” remete para a noção de
mostração, ostensão, indicação ou indigitação, sendo que da tradução do vocábulo grego para
se é certo que, em termos restritos, o deíctico subsume um acto de mostração corporal num
apontar verbal, a referida noção de função deíctica deverá albergar igualmente a vocação do
deíctico para a referenciação de uma malha alargada de pessoas, objectos, factos, espaços,
tempos, processos e actividades cuja significação só pode ser calculada a partir de uma
indigitação primordial: a de um sujeito que ao designar-se por EU, aponta para si próprio num
remete para a própria enunciação e abre o mapa de todas as coordenadas enunciativas. Daí
que a deixis pessoal possa ser apresentada como génese da deixis temporal, espacial ou
alertar para o carácter sui generis da categoria dos pronomes, evidencia que “ Il ne sert de rien
de définir ces termes [ aujourd'hui, hier, demain, dans trois jours ] et les démonstratifs en
général par la deixis, comme on le fait, si l'on n'ajoute pas que la deixis est contemporaine de
l'instance de discours qui porte l'indicateur de personne; de cette référence le démonstratif tire
son caractère chaque fois unique et particulier, qui est l'unité de l'instance de discours à
laquelle il se réfère.”32 tendo antes observado que a realidade assumida pelos deícticos não é
Interpreter un énoncé c'est y lire une description de son énonciation. Autrement dit, le sens
d'un énoncé est une certaine image de son énonciation.”33 Lyons, por sua vez, apela para a
34
impossibilidade de desenraizar a referência dos deícticos das “particular utterance-tokens”34,
e o TU. É que o EU não pode ser concebido a não ser por contraste com o TU. O sujeito
ente criado pela reciprocidade de dois elementos numa realidade dialéctica, interactiva que é o
linguistique tu “».35
35
É muito curioso determo-nos a este propósito nas páginas do filósofo alemão Martin
Buber36, segundo o qual “EU-TU” é uma palavra básica dupla com a qual, entre outras, o
Homem baliza o mundo. Tal palavra institui a sua própria referência ao ser pronunciada.
Quando eu pronuncio EU, o outro elemento da palavra par (TU) é também dito
imediatamente. Assim: “The basic word I-YOU can only be spoken with one's whole being.
(...) Being I and saying I are the same. Saying I and saying one of the two basic words [ I-
YOU, I-IT] are the same.” Buber, sem nomear nunca o processo de produção discursiva, toca
fácil perceber que os interlocutores não partem de um vazio conceptual ou experiencial , por
mais díspare e assimétrica que seja a sua posição interactiva. A co-actividade discursiva
seu carácter auto-reflexivo original, pois passa a radicar em coordenadas que não são as suas,
instaurada ao ser dita. Ambas ausentes, portanto. A reflexidade passa a ser indirecta, já que
uma referência ausente é calculada por intermédio da radicação primordial nas coordenadas
do acto enunciativo actual, e é objecto de uma marcação textual que, como tal, nunca é alheia
36
É do uso transposto do dispositivo deíctico que Bühler 38 dá conta, aquando do
apuramento dos três modos de indicação espacial: “ demonstratio ad oculos”, anáfora e deixis
modo.
esse marco está desfasado da situação de enunciação actual, efectiva. O locutor, segundo uma
radicação na evidência real compartilhada e a incursão dos dois numa evidência mental, num
termo “em fantasma”, não causará estranheza, se tivermos presente o seu significado
primeiro, ou seja, imagem ou espaço imaginário formulado pela mente, não percepcionada
campo mostrativo ausente, sendo que o locutor usa os mesmos deícticos como se os objectos
fazem de conta que os objectos que de facto lhes são apresentados aos olhos do espírito, são
objectos apresentados aos olhos corporais, como habitualmente. Estamos em face de uma
transportados para um mundo sem ancoragem directa na situação real: o mundo da recordação
ou o mundo possível.
37
Transposição: palavra essencial, pois. Em primeiro lugar, porque diz respeito ao
próprio processo de entrada num espaço ausente, conceptual: o locutor transpõe-se para aí e
leva consigo a sua imagem táctil, corporal, presente; invoca a imagem táctil, corporal,
prestam a nova ancoragem. Por outro lado, o termo evidencia a dimensão espacial que
O espaço, que desde sempre sustenta materialmente a ilusão de que o homem é capaz
actual. Bühler associa livremente o processo de mostração “am Phantasma” a uma situação
em que alguém guia outro alguém no ausente. O sujeito reconstitui ou cria, explicitando-as no
perceptivo mental que se quer comum, onde radica um sistema subjectivo de orientação que,
por esse meio, sendo ausente se tornou entretanto presente ( no sentido adjectival do termo).
de mostração “am Phantasma” que cobrem todas as técnicas discursivas / narrativas, mesmo
movimento é levado a cabo pelo quadro de referências ausente que invade o espaço
38
2º:” Maomé vai à montanha”: o locutor transfere-se para um quadro representado
apontar para o ausente sem nunca abandonar o seu marco de referência espacio-
temporal.
respeito à figuração da posição de objectos móveis numa sala vazia, por exemplo, quer à
ressonância de uma voz familiar no nosso íntimo, ele está acantonado à esfera das
textual.
Já o mesmo não se passa com o segundo e terceiro casos. Bühler sublinha o seu uso
discursivo enquanto técnicas narrativas. É bem certo que une estes dois tipos de mostração
“am Phantasma” o facto de, como já tive oportunidade de referir, pressuporem a transposição
protagonismo, ainda que não intencionalmente ( como julgo crer), desde o início do capítulo
deste seu tipo particular enquanto movimento de incursão do locutor e do alocutário num
mismos demonstrativos45, para que vea y oiga lo que hay allí que ver y oír.(...) El que es
guiado en fantasma no puede seguir con la mirada la flecha de um braço con el índice
extendido por el hablante, para encontrar allí el algo; no puede utilizar la cualidad espacial de
39
origen del sonido vocal para hallar el lugar de un hablante que dice aquí; tampoco oye en el
lenguaje escrito el carácter de la voz de un hablante ausente, que dice yo. Y sin embargo le
lado, o ambiente comum e mediato que envolve locutor e alocutário; do outro, tudo o que está
enunciado é o intervalo de tempo da enunciação a partir do qual é possível fazer derivar uma
marca textual, novo eixo de referências temporais anafóricas — facto protagonizado pelos
locução: uma produção discursiva que apresenta radicação imediata na enunciação e uma
outra cuja referenciação pode apenas ser calculada em relação àquela — “discurso” e
terceira pessoa, no mundo das acções já acabadas e concebidas como passadas, não apresenta
carácter opositivo relativamente à primeira e segunda pessoas, como acontece ao ser activado
40
autoconstrói-se: “ (...) personne ne parle ici; les événements semblent se raconter eux-
responsável pelo relato; eles são, sim, componentes da construção de uma experiência de vida
descrevê-los como indícios instrucionais obstinados das duas atitudes de locução48: uma
atitude tensa, a do comentário, exercício da acção humana, onde os sujeitos intervenientes não
epistémicos; uma outra atitude distensa, onde as palavras são inócuas, pois radicam num
ambiente estranho ao locutor e alocutário, meros espectadores de um drama que não lhes diz
respeito. Quer o tempo, quer o espaço, quer os sujeitos desse quadro estão em nítida ruptura
que está sujeito desde o momento em que produz uma intervenção discursiva comentativa,
possibilidade essa oferecida pela evocação narrativa, que Fernanda Irene Fonseca sublinha a
41
próprio contexto referencial. Então narrar é o modo enunciativo no qual e pelo qual
a uma comparação estreita entre a deixis espacial e a deixis temporal: “ La palabra aislada
ahora indica, como el aqui, su mismo valor de posición, quando se la pronuncia (....) Y lo
mismo que el aqui, también el ahora en fantasma puede ser trasladado a qualquier situación
esquecendo que se trata de um termo equivalente, na sua formação, a “metáfora”— ela pode
transposição para o “não-agora”, para o “não-eu” e para o “ não- assim”. Transposições por
conceito de deixis “am Phantasma” designando essa forma de deixis como deixis fictiva ou
geral, da ficção.”51
42
Todavia, a redimensionação da deixis “am Phantasma”, ao ser designada por “deixis
uma configuração que lança mão dos deícticos do sistema inactual — lá, então, nessa altura e
mostração ad oculos e os que potenciam e produzem uma mostração típica da narração poderá
Mas essa equivalência não se verifica plenamente. O apontar para uma evidência
constituir uma mera variante estilística ou simples artifício narrativo em relação ao terceiro
caso, à revelia do que afirma Weinrich (“Si le narrateur confère de la tension à son récit, c'est
par compensation (...) en disposant des signaux stilistiques de manière à provoquer la tension,
il “captive” son lecteur, il l'oblige à une attitude réceptive qui contrebalance en partie la
détente de l'attitude initiale. Outre le choix du sujet, il a recours alors aux signes syntaxiques
du commentaire, et avant tout aux temps commentatifs (...). Il raconte comme s'il
locutor invoca uma experiência de que fez, poderia fazer ou poderá fazer parte, incluindo-se a
sistema actual.
segundo caso de deixis a designação deixis indicial fictiva. Esta miscigenação terminológica
43
decorre da índole mista do próprio conceito: indicial, porque, em termos formais, o
dispositivo deíctico coincide totalmente com a deixis de mostração “ad oculos”; fictiva,
À incursão num espaço e tempo que não existem no momento em que se fala —
porque pertencem ao já vivido ou porque não existiram nunca — preside a efectiva radicação
espacial, inclui, nessa amplificação a coordenada EU que passa a ser transferida para o “não
EU”, correspondente, supostamente, a uma terceira pessoa. Ora esta transferência contradiz a
própria essência da tipologia da referenciação transposta que aqui descrevo, a saber, a relativa
ao acto transpositivo que recorre aos deícticos do subsistema actual: ela apaga o próprio
momento em que a transposição se efectua e mediante o qual podemos constatar que o sujeito
enunciativo é, então, como vemos, a omnipresença da primeira pessoa, que percorre quer um,
quer outro plano enunciativo, fenómeno banido por Benveniste do âmbito da “história” e
aludi. Ei-los:
Se, por um lado a enunciação que patenteia o segundo caso de deixis “am
Phantasma”:
44
— não evidencia intersubjectividade, sendo que o percurso discursivo é da inteira
responsabilidade do locutor;
teatrum mundi” representado; como tal, não é totalmente líquido podermos falar
subsistema inactual;
— este Presente não corre como uma flecha, não é transitório, não parte do indivíduo
primeiro lugar, há que referir que a deixis indicial fictiva estala a temporalidade da nossa
experiência vivencial, da ordem das coisas, abalroa a estrutura do tempo gramatical. Por outro
lado, esta submodalidade de mostração simula o mundo comentado e recria-o: o locutor pode
mimetismo” no que toca à focagem das associações entre deixis do plano actual e deixis do
plano inactual ou fictiva. Segundo Fernanda Irene Fonseca: “(...) deixis temporal fictiva: trata-
temporal, então.”54 Podemos encontrar este mesmo tópico quando a autora explicita a noção
medida em que não deixam de pressupor uma referência às coordenadas zero da enunciação
45
Ora, considero que este segundo tipo de deixis “am Phantasma” se funda também na
reactivação dos mesmos sinais deícticos e não só na imitação das relações estabelecidas entre
O que acontece num enunciado em que vigore a deixis idicial fictiva é que não é
nível das relações entre um e outro subsistema deíctico, mas também no sentido de cópia fiel
Por esta ordem de ideias, parece problemático associar a deixis indicial fictiva à
Phantasma”, avança com concretizações associadas à literatura infantil de tradição oral, bem
como ao cinema moderno e, de uma maneira geral, ao “país de los cuentos”. Considero
comentário: para o relato de um conto infantil / popular o locutor apresenta perante o seu
auditório primeiramente o móbil que o leva a proceder a tal relato; a “narratio” da “dispositio”
facto ocorre numa crónica de jornal ou noticiário televisivo, bem à semelhança dos nossos
46
discursos quotidianos. Neste sentido, o alocutário assiste e participa do próprio fenómeno de
Aliás é precisamente este estado de coisas que o autor inicialmente expõe: o locutor orienta o
Depararmo-nos com um discurso que não faz este convite é situarmo-nos ao nível da
instituição literária, forçosamente, e isso não é tocar no essencial do problema que aqui
invoco56. Neste caso, a deixis do discurso literário vai apontar para o espaço institucional da
literatura, que se impõe enquanto circuito fechado, apagada que está a ramificação
discurso fictivo / narrativo é um EU textual, mas no plano da deixis indicial fictiva ele é
textual e instância discursiva, o mesmo podendo acontecer para o TU. Só esta acumulação de
enunciativas, imitativas de uma situação enunciativa original. É o caso do locutor que tende a
recordar ou imaginar factos tal como se os estivesse a viver no momento em que os descreve,
fenómeno recorrente no discurso literário e no discurso não literário. Até que ponto é lícito
incluir este discurso na esfera da narração, tendo em conta o que já ficou exposto?
47
aleatórias, fundada na arquitectura global da acção onde agentes, circunstâncias, causas e
discursiva efectuada nos moldes da deixis indicial fictiva? Recorrendo aos deícticos do
susbsistema inactual, o locutor distancia-se, faz um cálculo e organiza o mundo a que assiste
por sua própria representação. Mas como poderá levar a cabo esta tarefa o locutor que, pelo
discurso, se coloca, e entretanto está outra vez, dentro da cena evocada? Como já referi
acima, a deixis indicial fictiva potencia um efeito de mimetismo directo das coordenadas
accional. Logo, o acto narrativo acomoda-se mal a essa incursão no mundo ausente efectuada
referenciação deste tipo não podemos observar uma genuína libertação do constrangimento
possível perguntar “Em que tempo estás?”, ou, mais estranhamente, “Quando estás?”, visto
Ele mostra-se a si e ao seu alocutário a viver tais acontecimentos. O locutor só poderá fazer
uma evocação se for detentor de uma impressão deixada no seu espírito que aí permaneça
incólume. A deixis indicial fictiva substitui a impressão das coisas passadas por uma vivência
actual — ou igual à actual — de tal modo que essas coisas passadas passam a existir pelo
discurso, mas é como se sempre tivessem existido, em concomitância com o plano actual.
Deste modo, a deixis indicial fictiva não possibilita uma disposição configurante da existência
48
capaz de dar resposta às perplexidades impostas pelo tempo ao homem: bem pelo contrário,
intensifica-as.
É com base nesta fundamentação que me permito concluir que a deixis indicial
enunciação narrativo. A sua idiossincrasia, que penso ter ficado provada, eleva o discurso,
de modo de enunciação misto, pois ele vive da fusão dos dois modos enunciativos.
2.6. Operacionalização
É chegado o momento de começarmos por olhar para o que, neste âmbito, ocorre na
arquitectura global discursiva activada pelos locutores / personagens, integrados que estamos
evocativos disseminados ao longo dos grandes monólogos destes locutores assumem formatos
A representação / recriação de quadros ausentes pode ser feita nos moldes “puros” da
deixis indicial fictiva:
“... é Abril e estou a inclinar-me para ti na pastelaria onde te encontrei pela primeira vez, com
duas colegas todas risinhos e cochichos, a mastigarem pastilhas elásticas diante de batidos
de morango, e perguntei se não te importavas que me acomodasse à tua mesa com o chá de
limão dos constipados.” (p.21)
49
textual, num instante que se sobrepõe a T0, fenómeno potenciado pelo recurso ao Presente
“é”, “estou”.
Presente de uma enunciação actual original, mas não os seus efeitos semânticos. Sabemos que
no momento tido como ponto de referência original, do discurso não transposto, este tempo
verbal não referencia o instante transitório, mas antes um intervalo de tempo com uma
margem de validade mais ou menos alargada, sempre limitada, oponível aos tempos do
uma duração não confrontada com nenhum constrangimento: o quadro é retido na memória
desejo de evocação. Para tal, este Presente assim activado perde as suas funções semântico-
Presente:
“... entraram-me as rolas do mundo pelo quarto dentro, não cinco, nem sete, nem dez, dúzias
e dúzias de rolas pelo quarto dentro, abri a porta, senhor, e só ouvia arrulhos, tanta
passarada que nem com a cama dava, asas, bicos, olhos, caudas em leque, patas, penas
que subiam e abaixavam sem que ninguém as soprasse, pensei em fugir, abandonar a mala,
a escova de dentes, a roupa, dar uma volta à chave, descambar por ali abaixo a caminho da
rua e só parar no terreiro do Paço, frente aos cacilheiros, mas uma voz de mulher chamou-
me pelo nome do meio das aves e era ela, amigo escritor, a Lucília sorrindo-me do colchão
coberto de poeira e de ovos pintalgados, o chulo preto fora a Cabo Verde ao funeral da mãe,
e ei-la sozinha, quem diria, sem ter de dar ao útero na noite da Avenida, sozinha, pá,
tranquila, sem apanhar bofetões, sem descomposturas, sem gritos, a beber o seu alcoolzinho
de drogaria, a Lucília, o sonho deste teu criado, a pequena ideal, espojada nos meus lençóis
a oferecer-me a garrafinha, e mais rolas no peitoril, e mais rolas nos algerozes, e mais rolas
no quarto, rolas brancas, azuis, cinzentas, rolas diferentes das rolas da Praça da Alegria,
rolas passeando-se no soalho, no tampo da única cadeira, da única mesa, rolas sobre o
peito, sobre os rosto, sobre o sorriso, sobre as coxas da mulata, rolas a dar com um pau,
50
amigo escritor, chamando-me para a almofada em que todas as auroras agonizo crucificado
pela colite, rolas e a Lucília, rapaz, à minha espera, a fazer-me sinais com a garrafinha, a
deitar-me a língua de fora, a desarrumar-me em caretas, a troçar-me com ternura, a Lucília,
safa do preto, ao meu alcance, a conversar comigo, a desafiar-me, a descer-me o polegar até
ao cinto, até à braguilha, a Lucília a descalçar-me, a desabotoar-me a camisa, a desapertar-
me a fivela, a beijar-me, a puxar-me contra ela, a pedir-me.
Chega aqui Portas (...)” (p.69,70)
inventariado por Bühler: “Maomé e a montanha ficam cada um em seu lugar” — facto
frente à Faculdade de Medicina e transitam para o quarto de L2. Este transporte é denunciado,
em primeira análise, pela indigitação em “ ali abaixo a caminho da rua” e “ ei-la sozinha”.
51
“(...) amaldiçoando a história que conto (...)”
Mas que história é possível apurar? Que concatenação temporal-causal resulta desta
constante radicação em coordenadas enunciativas transpostas, concorrentes com as
coordenadas actuais? E quais os seus actores?
Tentarei trazer algumas respostas a estas questões no curso dos capítulos posteriores
deste trabalho.
52
Capítulo 3. Do domínio do tempo à construção de mundos
estudo, podemo-nos surpreender em face da dispersão temática que evidenciam, gerada pela
desconcertante atitude dos locutores: eles evocam quadros, imagens, cenas de alcance
53
anafórica é alheia a um esquema discursivo harmonioso e a detecção de isotopias é um
processo sinuoso.
parece não obedecer a nenhum trajecto semântico-ideológico pertinente. O leitor faz esforços
enunciação espargidos em várias direcções temporais. O aparente despropósito com que eles
se impõem à mente dos locutores desencoraja, à partida, a tarefa de procurar, ao nível local do
justapor-se aleatoriamente. Este fenómeno tem como reflexos ao nível da superfície textual, a
psíquicos.
efectivamente.
“(...) a memória tem os seus mecanismos próprios, o seu ritmo, as suas leis, os seus
caprichos (...)” (p.33).
subjacente à opção por esta textura discursiva. O ritmo discursivo irregular arrasta consigo a
54
À excepção de L4, L9 e L10, todos os locutores têm ou elegem um interlocutor
formal ou real.
está apenas fisicamente presente. Na verdade, àquele está-lhe vedada qualquer hipótese de
monólogo:
“(...) logo que adormeces e uma brancura de olmo com pássaros nos atravessa o quarto,
arengo sem que troces, converso pairando sobre ti (...)”(p.12)
definitivamente ausentes.
interlocutor:
“(...) repare, não se mexa, repare aquele ali de casaco às riscas a conversar com um velho
parece mesmo o seu fulano, não, mais atrás, junto à porta dos lavabos, o nariz, a boca, o
formato do queixo, acertei? Tem razão, desculpe, este é loiro (...)” (p.29)
55
e do eco da enunciação do interlocutor na locução de L2:
“...Quando foi isso, pergunta-me você?”; “ Quem, o gaiato? A sério que é o gaiato que lhe
interessa? (p.34).
Todavia, esta especificidade é superficial e não chega a ser suficiente para isolar, na
sua essência, esta locução das demais: se por um lado se escapa ao formato de solilóquio, que
encontramos nas outras locuções, por outro, vemos na verdade que ela patenteia também uma
índole monologal. L2 tem por objectivo extorquir algum dinheiro ao seu interlocutor. Neste
sentido, descreve o seu mundo actual, a degradação, solidão e pobreza extremas; esboça
mundos paralelos [ “Nunca se imaginou nu, a cheirar a formol, deitado de barriga para cima numa
tina de mármore à espera que lhe rebentem as costelas com uma tesoira enorme?” (p.25)], exprime
a hostilidade que a cidade excerce sobre ele. O seu projecto discursivo é traçado fora de
(pelo que ficamos a saber através dos sinais linguísticos ou extralinguísticos, reflectidos na
ilocucional que se pretende comum, sob pena, não tanto de deixar de ter interlocutor, mas, em
à personagem sobre quem o alocutário pretende obter informações, móbil primeiro desta
Será então lícito concluir, com base na constatação do predomínio destes discursos
56
semântica? Será que não experimentamos qualquer sentimento de unidade ao longo da
afinal, perpassa todas as locuções e que chega a ser explicitada em alguns momentos:
“ (...) a questão é que preciso tanto de um pretexto para poder chorar, para encostar a minha
angústia ao pescoço dela e chorar (...)” (p.35);
“(...) e eu, cansado de não ter ninguém a quem contar tudo isto, cansado do sol e ansioso por
desabafar (...)” (p.114)
profundo abandono, de uma imensa exaustão de uma vida desconstruída, da fuga à inelutável
crueldade da realidade.
desgarrados que ora radicam na rememoração, ora no projecto, ora no factual, ora no
uma evolução temática construída de cenas estáticas que cronologica, mas não textualmente,
se alinham.
novecentos e trinta e tal” em Marvila; Posto da Pide em Damão; Póvoa do Varzim; Hotel da
Ericeira em mil novecentos e cinquenta; Revolução de Abril. Ainda que interrompida por
corresponder — desordem semântica. Diria que o contexto isotópico de cada locução é lato,
57
isto é, sob cada quadro temporal, albergam-se comentários e reflexões tematicamente
desenformados para reconhecermos afinidades, ainda que ténues, com a sequência narrativa,
já que encontramos uma sucessão temporal mínima, ou com a estrutura monológica, pela
referenciais que todas as elocuções patenteiam, desçamos, agora com o pormenor necessário,
longo do discurso.
3.2.1. Os articuladores
58
A recorrência a unidades morfemáticas responsáveis por uma conexidade linear de
retomas do presente de enunciação. Mais do que isso, elas naturalizam o deslize de uma para
terminológica cobre as duas dimensões de coesão onde estas unidades actuam: por um lado,
albergados na noção de história; por outro, cobrem fossos entre universos temporais,
“(...) no dia seguinte estávamos nós numa sala com uma mesa em cima de um estrado e
bancos como no cinema desmontável em Esposende, onde o filme e o mar se confundiam
(...)”(105)
“(...) em acusações que não entendo hoje como não entendi nesse domingo (...)”(p.157)
“(...) a Teresinha interrompeu o crochet para fitar-me, e eu era outra vez criança e pasmava
para as dioptrias que lhe transformavam os olhos em insectos rodeados de patas de
pestanas.”(p150)
“(...) e adormeci embalado pelas horas dos relógios, a sonhar com os militares (...) tal como
aqui em Alcântara (...) sonho com a festa do nosso casamento (...)”(p.44)
“(...) do mesmo modo que hoje a tua doença, Iolanda, me surpreende (...) também na época
da minha infância (...) os meus pais constituíam um absoluto mistério para mim (...)”(p.45)
59
“(...) a mudez do quarto assusta-me de receios que compreendo mal, semelhantes ao medo
com que escutei o médico de Mafra (...) (p19)
presente enunciativo, para uma esfera temporal paralela, fenómeno abrangido pela
seja, o regresso à situação enunciativa actual (“a montanha vem a Maomé”). Reconhecemos,
passado:
“(...) e a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite (...)”(p12) ;”(...) e a
infância surge diante de mim, indiferente à tua zanga, nessa manhã de Alcântara (...)”.
“Tudo isto se passou há muito tempo, porque tudo se passou há muito tempo, mesmo o que
acaba de acontecer agora.”(273)
Mas o ponto de referência temporal pode ser derivado de um momento de que se fala
“(...) era domingo como o domingo em que enterrámos o nosso pai (...)”(p.150).
actual de locução. É, por sua vez, nesse mundo ausente que ocorre nova transposição, com
60
oposição entre o sistema actual e o sistema inactual, auxiliada pela não rara omissão do
intervalo de tempo entre a situação em que se fala e a situação de que se fala. Daqui resulta a
instauração de um curso temporal contínuo que apaga hiatos temporais, um deslize perfeito do
plano actual para o pano inactual / ausente. Paralelos, “o que foi” e “ o que é” estabelecem
universos temporais ocorressem numa sucessão imediata, como se a ordem textual seguisse o
“...e as minhas tias, que tricotavam naperons em cadeirões estalados pelo uso, iluminadas
pelo fio de luz que atravessava as cortinas, ergueram-se à uma, enxotando com as agulhas o
bicho que embateu num pêndulo despertando uma saraivada de carrilhões e de soluços de
cucos, e por fim, Iolanda, quando espirravas pela terceira vez, a puxar lenços de papel da
carteira, lá assomou uma ampolazinha verde a navegar na rotunda...” (p.60,61)
articulador neste contexto frustra essa expectativa, já que, em vez de instruir no sentido de um
abrigo de uma relação temporal-causal, que efectivamente não se verifica. Esta prática leva
61
Igualmente responsáveis pela marcação das operações de transposição de planos
temporais são os lexemas verbais e expressões de cariz evocativo. Deste paradigma interessa
analisar a semântica de alguns verbos pelo enfoque interpretativo que potenciam. Os verbos
temporalmente afastados:
“(...) regressando, Iolanda, à casa onde vivi antes de conhecer a família da minha mãe
(...)”(p.13)
“(...) regressei de imediato aos domingos de há vinte e cinco anos (...)” (p.118)
desta série, apenas nos pode levar a concluir acerca da sua ambiguidade funcional, no sentido
de que quer o valor de movimento temporal, quer o de retoma temática terem plausibilidade
interpretativa, já o mesmo não pode ser dito a respeito dos verbos presentes nos segmentos
dos exemplos que àquele se seguem. Aqui, o movimento retrospectivo implicado no conteúdo
segundo uma concepção linear do tempo, o passado situa-se atrás do espaço em que está o
desse espaço / instante. O mesmo pode ser dito a respeito do lexema RECUAR em sequências
como:
“(...) tenho sono, repeti, vou dormir um bocadinho, não me despertem, e recuei anos e anos e
a criada abria as persianas (...)”(p.163).
62
Mais uma oportunidade para sublinhar a pertinência da teorização de K. Bühler 60. O
“(...) a casa onde morei antes da família da minha mãe surge da noite (...)”(p12)
“( ...) e a infância surge diante de mim, indiferente à tua zanga, nessa manhã de Alcântara
(...)”(p.60)
“(...) o passado surge-me tão claro que não necessito de fechar os olhos para ver de novo o
senhor Fernando descendo as escadas (...)” (p.68)
simples vírgula ou ponto final no limiar de enunciados díspares no que diz respeito à sua
referência temporal.
purifica-se:
“(...) mimosas brotavam dos penedos e nos chalés flutuavam as candeias dos habitantes de
outrora, até que uma camioneta de carreira arrebanhava os veraneantes que seguiam a
chocalhar para Lisboa, à medida que as vagas engoliam a praia, o céu se cerrava em nuvens
de tempestade com arestas de gaivotas gritando pelas rochas, as copas das árvores
libertavam cardumes de pintarrochos dementes, e a minha madrinha, indiferente à
tempestade, pegava nas agulhas de crochet e sonhava com americanas extravagantes,
vestidas de sandálias e panamá como para uma expedição aos trópicos.
Um comboio abriu a noite perpendicular aos candeeiros da Avenida de Ceuta...”(p.15)
A transição do plano temporal inactual para o plano actual do discurso faz-se sem
qualquer demarcador de tal mudança. Tendo em conta o que preconiza Weinrich (“un signe
63
linguistique est en principe valable jusqu'à la fin du texte”61) esta actuação discursiva poder-
se-ia justificar pelo facto de a explicitação das coordenadas dos dois planos deixar de ser
pertinente já que elas foram, a seu tempo, explicitadas e encontram-se em vigência até serem
fenómeno pode agudizar-se quando há dois planos temporais cuja alternância é expressa pelo
Terceiro.
Aliás, nesta última elocução, o revezar contínuo entre planos temporais é servido
“(...) apenas o desejo de um papel mais importante na máquina do Estado, apesar de tudo
estamos em mil novecentos e cinquenta, pá, temos ou não temos uma palavrinha neste País,
meu brigadeiro (...)”(136)
“(...) que nos tentava explicar que o meu mal é a artrite, rapazes, farto-me de consultar
doutores e nada (...)”
“(...) enquanto o do bigode, de palma no meu ombro primeiro e em torno do meu pescoço
depois, me fala ao ouvido acerca da necessidade de defender a Pátria, ouviste, de defender
os portugueses, ouviste (...)” (p.31)
“(...) e como na semana anterior um outro socialista com quem eu conversava há três dias,
impedindo-o de dormir, se atirou por embirração da janela, desterrando-me para a Ericeira
incumbido de espiar o albino sem lhe tocar com um dedo que mártires temos nós de sobra
(...)” (p.34)
Desde já, há que referir que a activação do discurso directo não deve ser
primeiramente tida em conta como um relato de um enunciado; antes disso, ela dá conta de
64
uma situação de enunciação. Deste modo, evoca-se uma situação de enunciação passada
processo de citação. Posto isto, é de evidenciar , mais uma vez, a supressão de qualquer
“(...) o Tejo que nos aparece em todos os postigos, que nos baloiça a cama, durante o sono,
com o seu vai-vem de berço, o Tejo e as suas luzes nocturnas que me magoavam os olhos
quando, acompanhando o do bigodinho com mais dois ou três colegas, saía a prender
comunistas (...) arrombando portas, cambulhando até um colchão às escuras (...) revistando-
lhe o quarto (...)”
“(...) domingo nas Portas de Santo Antão, contrabandistas prostitutas, palhaços, trapezistas, e
o empregado da capelista e eu e descermos, em busca de brometos, para o palácio da
Mocidade Portuguesa (...)” (p.159)
engendrado na instantânea e contínua mudança do que está para vir para o que já passou ( o
“presentes -passados”, activados pela memória, torna-se tão intensa que estes dois tempos
chegam, em alguns momentos, a fundir-se. Esta vivência a dois tempos é a grande conquista
65
do Homem que ocorre aquando da acção linguística, designadamente, da actualização do
significação global são componentes das manipulações semânticas, autorizadas pelo discursos
“(...) repare, não se mexa, repare, aquele ali de casaco às riscas a conversar com um velho
parece mesmo o seu fulano (...)”(p.29)
“(...) assim estamos agora, o amigo escritor e eu, de pálpebra decepcionada nos bilhares de
Marvila (...)”(p.30)
“(...) que porcaria, tem razão, eu a comer a banana e o tipo raspando mucosas sem
consideração nenhuma e a fitar-me de longe (...) “(p.30)
transporta-se a ele e ao seu interlocutor para um universo passado. Convida o seu ouvinte a
deixar-se conduzir por campos mostrativos ausentes, os quais observa, para os quais aponta,
nos quais se reconhece, já que o seu acto enunciativo está radicado num “agora” e num “eu”
desdobrados. O acto de indigitação que efectua (“aquele ali”) consolida uma realidade
existência e actualidade não pode ser já posta em causa. Mais do que acto de transposição
deíctica, a interrogação “(...) será da nicotina, será do nevoeiro a quinhentos metros de nós?
Agora-Assim passa a ser dupla. Esta referência cumulativa do dispositivo deíctico ocorre
abundantemente:
66
“(...) já não é o grande Fausto Júnior quem conversa com o do bigode, ora repare, sou eu
(...)”
implica, como deixei antever, o esbatimento da coordenada origo, mas antes a sobreposição
actual:
“(...) atente-lhe no bigode à Clark Gable, que agora se percebe perfeitamente da terceira
mesa, foi quem me levou a trabalhar para a Polícia Política uns meses após a guerra,
falecera meu tio há pouco (...) “(p.30)
A acção de “levar a trabalhar para a polícia política” não pode ser primeiramente
momento em que falo contigo, amigo escritor”, “neste ponto da nossa conversação”. Não é
“neste instante desta cena para a qual nos transpusemos”. O marco de referência “há pouco” é,
este sim, cabalmente transposto no sentido em que se apresenta como autónomo em relação
67
No referido capítulo, a metáfora da omnipresença espacio-temporal comenta e
explora o fenómeno de alienação da situação enunciativa actual por parte dos interactantes
que ocorre por excelência no modo de enunciação narrativo. Mas o fenómeno de actualização
“(...) e fui suficientemente imbecil para acreditar naquilo, acreditar no sorriso da esposa,
acreditar na filha, e agora o soldado varava a escrivaninha do meu avô à coronhada.” (p.139)
do Indicativo e projecta o mundo assim configurado para fora do tempo ou para um tempo
do uso do Imperfeito não dependem do seu valor temporal, segundo uma interpretação
analógica, mas do facto de este tempo verbal representar a reprodução do próprio marco
original de referência deíctica, o que faz com que o seu uso matize o enunciado de valor
também de mostração de uma evidência mental compartilhada, ela torna, por este facto,
68
possível referir realidades que existem a partir do momento em que são referidas. Deste
modo, aquando da interpretação de enunciados como o primeiro desta série que citei, a
particular da linguagem, que percorre quer os discursos lúdicos quer o discurso romanesco,
em que falo; “agora”, no momento da cena para a qual me transpus”;” agora”, a partir do
momento em que este mundo assim representado passa a ter a consistência do mundo real.
Se restringirmos, numa primeira fase, esta proposta à vertente temporal desta sintaxe
particular, detectamos uma operação temporal heterogénea, porque faz mover consigo o
espaço.
origo, daqui resultando a invenção de mundos de evasão, ele também está no cerne da ficção
que afecta o próprio acto enunciativo. Afinal, vemos gerada uma “enunciação possível”,
primordial e integradora daquela outra que se atém à formulação da realidade pela projecção
activação particular do sistema deíctico, essa fusão de dois tempos, então é porque é possível
enunciados afins ao que apresento em segundo lugar desta série, em que o valor modal do
relato dos antecedentes que conduziram à prisão de L5. Os tempos verbais e demais deícticos
“(...) sempre pensei que as coisas pudessem correr mal mas não tão depressa, mas não
daquela forma. Ainda não ultrapassáramos as reuniões preparatórias (...)”
acções pretéritas ocorrem. Ora, é plausível considerar que esses monólogos interiores,
enunciação actual que se finge exógena ao discurso — “Estou Aqui há séculos (...)”.
injuntivo:
“(...) devia ter desconfiado logo, devia ter comunicado aos camaradas (...)”(p.138)
Posso interpretar: “foi o que eu pensei naquele momento”; “é o que eu estou a pensar
temporais. Se assim é, então o passado situa-se numa eternidade imóvel, passível a todo o
porque, pelos mesmos mecanismos linguísticos, ele será sempre presente mesmo quando já
70
3.3.4. Discurso indirecto livre
eventos ou descrição de quadros, sendo que, como vimos, a sua actualização corresponde a
discurso indirecto livre com que nos deparamos. As conclusões que pretendo tirar ao abordar
esta matéria levam-me a contornar a polemicidade que a envolve. Procurar saber se este tipo
se, pelo contrário, abarca largamente a mostração de falas; se se aproxima mais do discurso
para o relato e quais as fronteiras que estabelece com outras formas ambíguas de citação do
Fundamento a minha análise nas propostas teóricas avançadas por G. Reyes, porque o seu
obtidas64. A sintaxe surpreendente que solidariza “lá” e “então” com “aqui” e “agora” é o sinal
criaturas esvoaçando por aí, e os maridos a gritarem-lhes, desesperados, Anda cá Alice (...) “(p.27)], é
universos vivenciais.
71
Como já tive oportunidade de referir65, poderemos considerar, sem forçar a realidade
textual a adaptar-se às ilações pretendidas, que cada instância discursiva, relativa a cada
um mundo pretérito, futuro ou paralelo à actualidade da locução. Creio não deturpar o estatuto
polifonia em que aquela modalidade discursiva assenta. Não é esta, de todo, a interpretação
que lhe dá K. Hamburger ao colocar o discurso indirecto livre ao lado dos verbos de “inner
action” no quadro dos recursos enunciativos reservados à narrativa de terceira pessoa. Porém,
o que nos discursos em análise podemos observar é igualmente essa contaminação de vozes
coincidentes.
faz com que o discurso directo (assinalado pela maiusculação) e o discurso indirecto (cujos
orações deste pequeno trecho assimilam-se à modalidade de relato de acções, sem considerar
repetida por contágio com a modalidade de discurso directo com que se entrecruza,
desvelamos a suposta enunciação original — “sim, tenho mais trinta e um anos...” — para
72
logo se impor o deíctico correspondente à locução englobante do discurso citado — “tu”. De
seguida, estranhamos a omissão da conjunção, já que ela tinha acabado de ser activada — “
mas (que) o emprego de Estado...” — e concluíamos que, afinal, é o discurso directo que vai
imperar, não fora o Condicional, tempo ramificado. Num segmento tão breve, a fusão de
Mas a polifonia, gerida nestes moldes, pode fazer entrar em cena dois locutores-
“Assine aqui
que o julgamento do meu irmão, acusado de furar a cidade, era amanhã (...) “(p.104)
de parágrafo, único sinal delator da vigência de discurso indirecto livre, é o deíctico temporal
marca o pólo do relato, o advérbio assinala o pólo do discurso da personagem. Sem esse
da oração: é plausível admitir que o “dictum” seja pertença do polícia à paisana e não de L4.
actual e inactual.
73
É possível levar mais longe a noção de simultaneidade ou homogeneidade temporal.
Todas as acções / estados de coisas percepcionados pelos locutores parecem flutuar no tempo,
comunicativa / expressiva que motiva a exploração dos recusos enunciativos descritos surge
“(...) ao mesmo tempo na cantina de Joanesburgo, ainda jovem (...) e na Quinta do Jacinto
enervado com a presença do rio (...) (p.119)
“(...) voltado para a janela e depois da janela para os esgotos e os comboios de Cascais (...)
voltado para a janela, cercado de mineiros pretos (...) (p.119)
“(...) acossado pela voz do meu pai Que mal fiz eu a Deus para ter um filho tão estúpido,
senhora? (...) a voz do meu pai que escarnecia, há quarenta anos, de mim (...) (p.155)
“(...) o que vieste aqui fazer, Fernando?, interessou.-se o filho da costureira acabado de sair
do Sótão da Calçado do Tojal, a ajustar o cinto (...)”(p.189)
curso. A submodalidade de referenciação fictiva “am Phantasma” que designei por deixis
verbos:
“(...) a questão é que preciso tanto de um pretexto para poder chorar, para encostar a minha
angústia ao pescoço dela e chorar para me ausentar do Forte de Caxias, do ganir dos
ferrolhos e dos passos dos soldados do outro lado da porta, ausentar-me, amigo escritor, dos
tempo da revolução, das pessoas a esbofetearem-me (...)
envolve, à revelia da sua vontade, que o prende como uma segunda contingência deíctica. Não
de disjunção.
“(...) e através de sobrepostas, refrangentes, densas camadas de tempo desses vinte e cinco
anos vi o espírita que a picareta assustava, agarrar no copo (...) “(118)
“...e mesmo hoje oiço os sinos quando me lembro disto, mesmo hoje vejo a minha prima que
não casou por a parirem corcunda, a tapar-me a cabeça com um véu...”(p.127)
“(...) se farejo as minhas palmas sinto o perfume, se fecho os olhos o seu ombro amolece
contra o meu, era estudante de farmácia, namorava um aspirante e queria casar comigo
(...)”(p.143)
contínuos, assimiláveis a estados. A constelação das formas verbais referidas é a chave mestra
suspensão temporal. Ora, sob este efeito, as acções são captadas enquanto fenómenos
temporal corresponde a não perder de vista conexões aspectuais, modais e estilísticas, bem
como opções enunciativas. O estudo das formas verbais vem ilustrar a polivalência dos signos
quando activados no acto de fala. Não é de esquecer que a este misto de marcas enunciativas,
bloco monolítico inanalisável e a abordagem empírica não se pode escudar nela para justificar
multifuncionalidade é, sem dúvida, a do aspecto verbal. Os estudos que versam sobre o tema
ou fazem eco uns dos outros ou parecem, por vezes, que não se ocupam do mesmo objecto. A
intervalo temporal, o aspecto detém-se com a indicação relativa ao ponto em que está o
localização temporal.
como uma categoria objectiva, sendo que o carácter do processo verbal é dado pelas
estrutura dos eventos que está reflectida no semantema das unidades lexicais. Esta é a vertente
76
lexical do aspecto. Mas o aspecto, nas línguas românicas, não é exclusivamente de índole
de que é o olhar do locutor que pode considerar o estado de coisas de dois modos: como
uma parte realizada e outra por realizar, já que é focalizado por dentro do seu curso. É a
expressão gramatical do aspecto que aqui está em causa. Inevitavelmente este aspecto, que
consideração o que se passa durante uma parte ou todo o intervalo de tempo ocupado pelo
processo está dependente do ponto de referência por ele assumido: visto ou não à distância do
momento da locução.
múltiplas distinções aspectuais das quais é possível destacar: a quantidade (atendendo ao grau
de duração interna do processo), o número (dando conta de uma acção única ou repetida), os
culminância.
resultado e visão (parcializável ou global). Como já deixei antever, o aspecto reparte a sua
expressão pelo léxico, pelos paradigmas flexionais e pelas perífrases. A determinação da cor
aspectual dos enunciados não pode ignorar o tempo gramatical e a co-ocorrência com outros
tempos verbais, a expressão adverbial, tipos de argumentos dos verbos e tipo de situação em
questão. Falo, neste âmbito, da tripartição dos estados de coisas em Processos, Eventos e
Estados. A situação representada como um Processo é dissecada nas suas diversas fases que se
77
sucedem no tempo. O Evento pressupõe igualmente dinamismo mas o foco é colocado na
transitoriedade de uma condição que termina para dar lugar a outra oposta. Já o Estado diz
respeito a uma configuração que faz com que encontremos sempre a mesma situação em
Do que fica dito quero sublinhar dois pontos essenciais para a análise que me
Em primeiro lugar, há que deixar claro que apesar de o aspecto poder ser expresso
verbo que se vedetiza enquanto núcleo sintáctico do enunciado e no que toca à sua
constituição semântica.
Em segundo lugar, é fulcral explicitar duas oposições aspectuais basilares, uma das
quais apenas referida acima, sobretudo depois da constatação da diversidade que tange esta
processo — princípio, meio e fim — são consideradas unitariamente; é a acção pura e simples
que se apresenta focalizada no seu termo, descurando o enunciado uma referência explícita à
constituição interna do processo. Este fenómeno só pode ser fruto de uma distanciação entre o
visualizar internamente no curso do seu desenrolar; exige que se faça uma abstracção
relativamente ao seu final e locutor e interlocutor situam-se num dos momentos do percurso
estado de coisas relatado. Esta oposição traz consequências para o valor de verdade das
imperfectiva, respectivamente.
78
Dependendo da largura ou estreiteza do compósito passado — futuro inerente à
situação, assim é possível obter o aspecto momentâneo, em função do qual a situação coincide
com um ponto, sem a consideração de intervalo temporal ou o aspecto durativo, em que a fase
temporal superior a zero. Nesta oposição é, portanto, o tempo interno do evento que é levado
em linha de conta. Cabe aqui a expressão da acção que se repete ou a descrição de um estado.
O aspecto durativo alberga a duração mensurável, em que o curso temporal é apreciado na sua
l'aspect que l'on comprend le mieux le temps, qui présuppose toujours et inclut l'aspect.”68
“L'aspect est une forme qui, dans le système même du verbe, dénote une opposition
transcendant toutes les autres oppositions du système et capable ainsi de s'intégrer à chacun
três acepções a ter em conta: tempo enquanto categoria da realidade; tempo enquanto
da flexão verbal. Percebemos que o que é designado por tempo gramatical deverá abarcar as
duas últimas dimensões descritas se pensarmos que não cabe ao tempo linguístico a faculdade
79
relativamente a outros, em articulação com um ponto de referência que tem de ser dado
of extreme importance to keep in mind that when we “tell time” we are, in fact, not talking
about time at all. We are talking about events.»70, sendo o evento primordial o acto de fala,
índole eles forem, e a sua expressão apenas pode ser concebida em termos relativos. Já o
sabemos: o tempo ostenta uma função deíctica. Ele permite fixar o momento de um dado
processo em função de um ponto sobre o eixo temporal a partir do qual o processo é visto
(origem), do lugar do processo no tempo (“visée”) e do ponto através do qual o espírito fixa
esse lugar (referência), segundo Martin.71 Mediante estes três pontos é possível determinar a
locutor e portanto é anterior ao acto de fala; se ele é tido como inacabado, então é porque se
impõe como simultâneo ao acto de fala ou a outro evento que sirva de ponto de referência.
Insisto: só estão dois vectores em jogo: distanciamento ou não distanciamento dos objectos
observation of events, and the past, the present, and the future, as just defined, are not to be
identified with time. They are, rather, disguises for concepts wich the grammarian associates
with aspect. Thus an event wich is simultaneous with the act of speaking ( the act of reporting
the event ) is said to be imperfect. An event wich is anterior to the act of speaking is,
obviously, perfected.”73 Aliás estas considerações estão em sintonia com o postulado de base
avançado por Pottier no estudo do sistema verbal: o verbo só tem três modos de existência: a
80
focalizado no seu resultado ( “produzido” )74. Excluindo o primeiro, pela sua neutralidade,
temporal passado — presente. Basta-nos atender a estes dois tempos, pois não desconhecemos
a primazia dos usos modais do futuro sobre os temporais, sendo que a narração futural é
enformada nos tempos do passado e que o Presente é o tempo substituto do futuro próximo.
“ L'aspect reprend tous ses droits et devient plus que jamais décisif dans le choix des
formes verbales (...)”75. Esta asserção surge plenamente confirmada se reflectirmos no que se
passa no âmbito dos planos actual e inactual. Já tive oportunidade de o referir: o Presente e o
Imperfeito são os únicos tempos em função dos quais é possível relativizar tempos de
mérito de inaugurar uma actualidade concorrente com a do acto enunciativo. Este é o tempo
verbal sobre o qual mais se tem escrito devido à polivalência de que se reveste. Qual a
explicação possível para este protagonismo nos nossos actos de fala correntes? “ L'imparfait
est le temps qui a été le plus exploité dans se sens. Il doit cette situation privilégiée à la
souplesse de son aspect, qui, excluant à la fois le perfectif et l'accompli, souligne ce que le
evento e o intervalo de tempo ocupado pela enunciação. Este marco é constantemente volúvel
de Presente não serve muitas vezes a expressão da coincidência rigorosa entre a origem,
referência e “visée”. Para tal, nos nossos actos de fala correntes, recorremos ao presente
perifrástico, composto pelo verbo auxiliar “estar”, preposição “a” e Infinitivo. Daí os
múltiplos valores temporais, aspectuais e estilísticos que o Presente chama a si e que vão
81
desde o Presente actual ao Presente omnitemporal. “The extended present needs to be
and which can readily be shifted from the «present moment» to « the present century.” 77
Interessa-me focar neste passo o Presente tido como centro axial de uma actualidade, ou
gerador de outra, integrado no relato de eventos que o locutor tem em frente dos olhos ( da
cara ou da mente). Este tempo, assim concebido, reflecte a experiência imediata da duração
vivida, a transição ininterrupta do que ainda não é para o que já não é. A duração é
indique um final fixo, sendo que o seu valor perfectivo surge neutralizado. O evento expresso
pelo verbo perfectivo no Presente sofre uma dilatação, no sentido em que é a fase medial da
finge vivido. O Imperfeito exprime igualmente a simultaneidade com outro evento. Porém,
este outro evento já não é o acto de fala gerador do discurso que activa este tempo verbal. Em
Imperfeito como o tempo que representa o processo em pleno desenvolvimento. Este tempo
ocupado pelo facto relatado. O virtuosismo do Imperfeito encerra-se num paradoxo único: a
desenvolvimento. É este o fundamento para que o Imperfeito seja o tempo de uma origo
fictiva. É o valor aspectual de Imperfectivo que suporta o acto de “recréer dans le passé
présente une action ouverte, dont le terme, loin de retenir l'attention, se perd dans une
82
pénombre que l'on se refuse de pénétrer.”80 O Imperfeito, em concorrência com o Presente, é
ininterrupta de futuro em passado. Oferece, deste modo, uma experiência viva da duração,
aspecto no que toca à radicação do Pretérito Perfeito no eixo do plano actual. O processo
desenvolvimento interno, tomado por uma visão totalizante, indiferente às diversas fases de
que se compõe. Assimilável a um ponto, a acção neste tempo verbal demarca, na linha
temporal, um antes e um depois. Daí a afinidade desta acção assim configurada com a própria
noção de evento: situação dinâmica do ponto de vista da perfectividade que toma lugar
nestes moldes, e figurando numa oração independente, só pode ser calculado em função do
arrasta consigo uma justificação, a meu ver, convincente dos valores modais / fictivos e
ideia de afastamento temporal81: quanto mais o evento se encontra afastado do presente, mais
83
ele surge afectado no seu grau de factualidade. Potencial, hipotético, irreal estabelecem
relação com os seus graus de distanciamento temporal a partir do momento presente, sendo
que, para nos situarmos no mundo real ou no mundo imaginado, há que atender ao contexto
sintáctico ou lexical. De acordo com esta proposta explicativa, o Imperfeito, enquanto tempo
pretérito, exprime a contrafactualidade, pois aquilo que aconteceu já não tem força
existencial.
Ora, sabemos que o valor modal do Imperfeito assenta no facto de este ser um
“presente no passado”, ou seja, o tempo que assinala a reprodução, no plano ausente, do ponto
limitar o processo, não pode abarcar a sua conclusão. Esta indefinição de fronteiras das
situações relatadas, que redunda numa continuidade à qual voluntariamente não se quer pôr
cobro, determina usos modais. A evocação fictiva projectada para fora da esfera da realidade
hipotético e a motivação para que assim seja encontra-se no seu aspecto Imperfectivo.
repercute-se na esfera da modalidade. Se, como já evidenciei, o Pretérito Perfeito está ligado à
noção de evento, é fácil concluir a respeito do que neste tempo verbal há de negação do
um cunho de realidade ao estado de coisas enunciado pela via do seu aspecto pontual /
perfectivo.
No que toca à dimensão textual do uso dos tempos verbais, a valorização da função
do aspecto não deve igualmente ser contornada. A activação dos tempos verbais é motivada
84
casos temos como premissa de base a ideia de que as funções dos morfemas verbais devem
ser norteados pela orientação e índole do discurso e não puramente pela significação
gramatical que contemplam no sistema. Neste contexto, Imperfeito e Pretérito Perfeito são
discurso é deslocado para a frente devido à visão progressiva do tempo oferecida pelo
sequências temporais. Por seu turno, os elementos dos bastidores não estão ordenados no
tempo, são indiferentes ao eixo temporal. Ainda que se trate de situações dinâmicas, a sua
verbais segundo exigências textuais: “Malgré son aveuglement devant les structures
narratives, la théorie de l'aspect a donc, par hasard, touché juste: le temps de l'arrière-plan
prend en charge le duratif, l'imperfectif, etc., celui du premier plan le ponctuel, le perfectif,
coisas vigente. Por seu turno, esse dado novo, que faz avançar o eixo da temporalidade, é
expresso no Pretérito Perfeito, já que este tempo visualiza o processo no que ele tem de
unitário, global. As afinidades que este tempo apresenta com a noção de evento fazem com
que seja o tempo da mudança, capaz de marcar o eixo da temporalidade pela expressão da
transitoriedade. O aspecto Pontual / Perfectivo faz com que este tempo exprima um incidente
capaz de romper com a continuidade que se estende por um intervalo de tempo alargado ou
85
ilimitado. O evento assim expresso tem inevitavelmente de adquirir relevo na textura
discursiva.
Como tentei comprovar, é lícito defender que o aspecto, essa categoria difusa e
daqui, que o aspecto potencie dimensões modais no discurso. Fundamenta ainda a articulação
3.5. Operacionalização
relação de solidariedade que estabelece com outros tempos verbais, advérbios e articuladores
discursivos.
“(...) e assim que o meu sobrinho me visitou, estava eu a lembrar-me do norte de África diante
do televisor desligado, pedi-lhe que me explicasse a doença que tinha, enquanto árabes
discutiam na rua, a minha irmã mais nova não nascera ainda, o meu pai, de cabelo preto, lia
o jornal na poltrona, e a minha infância se desenrolava diante de mim como se estivesse a
ocorrer naquele segundo.” (p.285)
Vejamos, então.
temporalmente os estados de coisas descritos é dado por uma acção colocada no passado e
temporal.
segmento textual constituído pelas duas últimas orações do excerto. Este segmento, de
que aqui surgem comentados. De notar que a relação que une os dois planos temporais
potenciada pelo Imperfeito não é de identidade ( tal fenómeno está a cargo da deixis “am
Phantasma”, como a seu tempo foi demostrado), mas analógica. Isso mesmo é manifestado
87
A estrutura transicional Imperfeito – Pretérito Perfeito correspondente à articulação
entre plano de fundo e primeiro plano discursivos, é executada na conjugação entre parcelas
da reconstituição e compreensão dos eventos que aparecem em relevo por acção do Pretérito
tomarmos este tempo verbal como agente activo na interpretação do conteúdo logico-
como tal, sequencializadas, são apresentadas emergindo de entre acções continuativas, como
quadro referencial sentido como passado, também é certo que este tempo verbal, por mérito
do seu aspecto não acabado, proporciona, por si só, a ilusão da localização do ponto de vista
máximo de tensão inerente, ou seja, o locutor comunica que há uma parte do processo que já
está acabada e outra que ainda está por acabar. Esta duração que o Imperfeito perpetua é
88
“(...) o do segundo esquerdo que mariscava comigo na cervejaria e me passava
informaçõezinhas grátis, desatou-me aos insultos e aos pontapés nas canelas que mesmo
hoje trago aqui as cicatrizes; desenhavam-se foices e martelos nas paredes, farrapos de
cartazes desprendiam-se dos muros, operários de punho fechado berravam Abaixo a ditadura
Viva o socialismo, e eu pensei Estou frito (...)” (p.24)
O uso de carácter panorâmico que neste passo se faz do Imperfeito autoriza uma
Este resultado é corroborado pelo aspecto lexical dos verbos DESENHAR e BERRAR.
directo: o plural aponta para a expressão de uma acção iterativa. Em “berravam” verificamos
o mesmo valor iterativo tendo em conta a dimensão pragmática do discurso directo que esse
discurso relatado; é aqui que esse fenómeno de reactualização de uma situação ausente
sobressai particularmente, pois aquilo que é redutível a um intervalo temporal mínimo acaba
por ter duração interna considerável, porque se simula uma visão interna à ocorrência do
evento.
temporais realiza-se obliquamente, no sentido em que ela está fundada no pressuposto de que,
alheamento das coordenadas do acto de discurso nunca se pode dar na realidade. O acto de
transposição fictiva das coordenadas enunciativas levado a cabo pelo locutor é um acto
89
complexo, já que, ao evocar um tempo ausente, faz com que esse seu discurso evocativo não
“ Provavelmente agora que ninguém morava na pensão, dezenas de táxis vinham de Sintra
de faróis acesos no desalinho dos pinheiros para entornarem no hotel grupos de americanas
centenárias que tiritavam, nos vestidos decotados, sob uma temperatura polar. Os quartos
inundavam-se de malas e baús, um lodo fétido pulsava nos bidés, bengalas tropeçavam, para
baixo e para cima, nas escadas saltavam fechos num guinchozinho de óxido, alguém
consertara a caldeira da cave que trabalhava num torpor duodenal, marteladas enérgicas
destruíam o piso superior, e o corvo, a quem o ruído incomodava, grasnava palavrões
náuticos nos ladrilhos da cozinha.(...)” (p.20)
rivalidade entre Imperfeito – Presente é inerente aos dois tempo verbais. O Imperfeito, inapto
a marcar um ponto de referência num eixo temporal ( sendo capaz de representar, por
esgotamento ) representa um presente que é excluído do plano actual e, por esta ordem de
ideias, é um presente noutro tempo e lugar. O deíctico “ agora” situa o estado de coisas
imaginado numa actualidade paralela à do acto de fala. Na segunda frase, o dictum sofre uma
autonomiza-se; incapaz de acusar uma ancoragem temporal, parece prescindir dela. Assinala
momento presente.
Infinitivo.
“ (...) do mesmo modo que hoje a tua doença, Iolanda, me surpreende (...) também na época
da minha infância, na Ericeira primeiro e na Calçada do Tojal depois, os meus pais
constituiam um absoluto mistério para mim (...) a Dona Maria Teresa revirava em silêncio os
olhos de lagosta, a Dona Anita ralava-se com a minha magreza e oferecia-me bolachas que
sabiam a cré, o meu tio, o senhor Fernando, piscava o olho à damas (...) Aflige-me que tu,
90
nascida em Moçambique no ano da revolução, não possas entender a época da minha
juventude em que os homens vestiam, ao domingo de manhã, a farda da legião portuguesa e
marchavam pelas ruas de Lisboa (...) os cafés a transbordarem de uniformes que gritavam
canções guerreiras (...) e eu a perguntar à minha tia O que é feito dos meus pais?(...)”
( p.46/47)
O excerto acima citado é divisível em dois momentos, cujos limites iniciais são
época da minha juventude”) e distinguíveis pelas diferentes funções que o Imperfeito neles
mesmo não é possível afirmar relativamente ao primeiro momento. Não se trata aqui de
esboçar um cenário, mas tornar contínuas e infinitas acções caracterizadoras das personagens
apresentadas. Simula-se que estas acções avulsas são captadas no instante em que tomam
função de um eixo temporal. Todos eles permanecem idênticos para cada um dos pontos
definidos sobre um qualquer possível eixo temporal; todos eles são assimiláveis a dados
significação que é possível apurar da neutralização do aspecto pontual / não durativo dos
lexemas REVIRAR, OFERECER, PISCAR levada a cabo pelo Imperfeito, pela acção do seu
aspecto Imperfectivo.
referenciados pelo Imperfeito parecem prolongar-se segundo uma extensibilidade sem limites
progressivo, à qual se omitiu o verbo auxiliar ESTAR no Presente, apresenta o seu fundamento
integrado numa perspectivação global dos discursos do romance. Ler “ a perguntar “ como “
91
a mesma perífrase com o verbo auxiliar conjugado no Imperfeito ou Pretérito Perfeito
Porém, o que encontramos no romance são sequências relativamente longas, tendo este tipo
que esta perífrase lacunar no Presente se segue a um articulador diegético temporal, delator,
Porém, a função presentificadora que atribuo nesta análise a esta fórmula verbal não
é, nem podia ser, exclusiva e originalmente gerada neste contexto. Reconhecer este Infinito
que é designado por Infinitivo de Narração: “Il présente en effet, par rapport au présent de
estilística a que se refere Imbs encontra um lugar muito próximo da modalidade referencial
Ainda que outras leituras deste uso do Infinitivo não sejam solidárias com a
fenómeno, que se prende com a ambiguidade temporal que este Infinitivo sempre patenteia, e
que assume relevo quando a marcação do processo no eixo do tempo, dada pelo verbo auxiliar
da perífrase da forma progressiva, é negligenciada. Porém, esta visão mais globalizante, e por
isso mais consensual, deste recurso enunciativo inverte a abordagem deste e de outros
actualização referenciada por este uso do Infinitivo, é o Infinitivo, dada a sua flexibilidade,
que vai radicar a sua referência temporal no Imperfeito, estabelecendo com este tempo verbal
temporal ocupado pelos eventos descritos só pode definitivamente ocupar um lugar no tempo:
no passado.
92
Em todo o caso, seguindo quer a leitura eminentemente deíctica, quer a visão
fórmula verbal chamar a si a expressão mais pura da referência temporal cumulativa. A sua
dessincronizadas.
Infinitivo presentifica um instante que deixa imediatamente de ser ausente, ao passo que, o
temos do universo romanesco. De notar a opção pela frase nominal “ eu na loja do meu pai”
que, de modo ambivalente, denota quer um estado que se distende no tempo sem fronteiras,
excerto imediatamente anterior a este, reconhecemos que o mesmo Infinitivo serve agora uma
visão sequencial dos acontecimentos. Sequencial, mas não evolutiva, paradoxalmente. Através
do conteúdo semântico dos verbos que compõem a descrição do quadro visualizado pelo
93
locutor, é apurável uma ordenação temporal linear – “ a desarmarem”;” a amontoarem”; “ a
acções não presentes, faz com elas sejam percepcionadas como infinitamente actualizáveis,
aqui o Infinitivo maximamente ostenta: “eu a ver (naquela altura); “eu a ver (agora, na minha
representação mental dos factos)”. A sequencialidade dos eventos é dada nos moldes de um
“Não há dúvida, emalucaram, entraram pela cerveja adentro e emalucaram como o meu pai
emalucou depois de um jantar de lulas no aniversário da minha madrasta, terminava o arroz e
nisto imobilizou-se, ergueu os membros acima da cabeça e afirmou Pronto, sou uma acácia
(...) e o meu pai, a criar raízes na toalha, a lançar ramos na direcção da lâmpada do tecto, a
tombar pólen do cabelo, o mau pai a pedir que lhe abríssemos a janela por lhe fazer falta a
brisazinha da tarde (...)”(p.130)
O mesmo fenómeno ocorre quando o locutor esboça uma realidade possível. Tal como
“ De tempos a tempos, quando me sinto mais cansado, mais tenso, mais esvaziado de força
e de energia, quando o dinheiro do meu ordenado não chega para as despesas da casa e
meto vales no balcão da contabilidade, acontece-me pensar fazer a mala e sumir-me, sem
que ninguém o note, da Quinta do Jacinto, para recomeçar a vida (...) recomeçar a vida em
94
Campo de Ourique, em Campolide, em Alvalade, na Portela, arrastando-me por cafés que
não conheço, a jantar em cervejarias de que não sei o menu, a responder aos anúncios de
casamento do jornal e a encontrar-me, com um cravo na mão, com senhoras tão solitárias
como eu, a fim de unirmos o nosso desconsolo, depois do Registo Civil, em camas cujas
tábuas protestam ao menor suspiro, acordando as pancadas de Molière da indignação dos
vizinhos que servem de prelúdio aos beijos da velhice.” (p.78/80)
idealizada, relativamente extensa, dada progressivamente com mais pormenor, de tal modo
mostra conhecer bem uma realidade que apenas é experimentada à medida que é dita. Esta
aspecto durativo / Imperfectivo não tolhe totalmente o tom de realidade que afecta o discurso,
porque o formato discursivo faz com que uma situação tansposta para lugar nenhum e
atemporal passe por ser actual e, deste modo, de uma consistência idêntica à da realidade em
curso de experimentação.
forma verbal. Assim sendo, esta forma nominal está ao serviço, neste contexto, da expressão
“(...) como poderia eu viver com uma senhora de sessenta anos em Alvalade, com uma
senhora de sessenta anos na Portela, com uma viúva tão desejosa de me agradar, tão
sempre a perguntar-me
O que queres queriducho?
tão sempre ciumenta, tão sempre a comprar-me roupa, tão sempre a
concordar comigo (...)” (p.87)
95
Este quadro hipotético é esboçado segundo movimentos incessantemente repetidos
que o fazem comungar da mesma inércia que caracteriza qualquer segmento textual descrito
Condicional, que instrui o leitor quanto a uma nova incursão num mundo paralelo, ser capaz
de criar uma imagem virtual que adquire a forma de uma quadro dado como já experienciado,
traços aspectuais e deícticos. Estas duas formas verbais são perfeitamente solidárias na
“Sonho com a festa do nosso casamento num salão repleto das tuas colegas de liceu, cada
qual soprando uma pastilha elástica cor-de-rosa, enquanto o campeão de Karaté bate
palmadas nos amigos e a tua família, a uma canto, se aglutina, num cacho
conformado.”(p.44)
A instrução de que damos entrada num espaço ficcional irreal é dada explicitamente
Imediatamente o Presente é captado no seu emprego não temporal, não deíctico: o seu
infinitamente estreito entre o passado e o fututro, o Presente adquire uma dimensão pictórica.
localização temporal. Neste contexto, o Presente traz ao enunciado uma coloração factual,
ainda que desmentido pelo verbo “sonhar”, à custa da reprodução em nenhures do Presente
estreito, válido apenas para o momento actual no qual está situado o locutor. O simulado valor
actual do Presente decorre da tipologia textual a que pertence este segmento discursivo: a
descrição de um quadro.
A descrição faz-se agora sobre uma imagem material. O momento presente expresso
Assim expressas, as acções são apresentadas como inacabadas; mas a sua duração foi
medial. O tempo não marcha. O Infinitivo é, como constatamos, afeito a representar quadros
imagética é o pronome pessoal adjunto adverbial “comigo”, denotando uma figura que se cola
97
a um pano de fundo. Como auxiliar na expressão da identificação de uma imagem mental com
uma imagem material está o Particípio Passado, activado num verbo estativo.
relativamente à própria noção de verbo, que implica sempre um estado de coisas em tensão,
“(...) passe-me a dica, amigo escritor, que na minha infância não foi, o que topo lá é Odemira,
extensões de praia, Agosto, a minha mãe a coxear para o estendal, entre as piteiras, com um
cesto de roupa no braço, e as ondas , pá, as ondas, a reverberação das ondas no cobalto do
céu, a mãe reflectida ao contrário nas nuvens a pendurar ceroilas, a minha irmã no carrinho,
o meu pai emoldurado no aparador (...) (p.27/28)
que o estado de coisas seja apresentado na sua duração interminável. É o mesmo Particípio
Passado que encontramos na referência que a seguir se faz de uma imagem fotográfica.
A tríade das formas nominais do verbo vem arquitectar uma construção do tempo
vivido indiferenciável do tempo vivo do acto de fala. Gerúndio e Particípio Passado são
formas satélites, referenciam apenas um tempo virtual, já que a informação temporal que
proposição finita. Alheias são também à oposição plano actual – plano inactual. De onde
deriva a percepção de que estas duas formas patentes nos enunciados dos locutores deste
aqui integrando uma forma verbal flexionada, afirma-se enquanto forma autónoma, pois
enunciação.
É pelo acto enunciativo que cada locutor experimenta a apoteose de conceber todas
98
Capítulo 4. Em busca de uma identidade
Como corolário do percurso traçado por esta exposição, é hora de nos questionarmos
acerca da necessidade que impele os locutores deste romance a proferirem monólogos onde o
passado se intercala com a visão fantástica, traçando um mapa de temporalidade, umas vezes
nítido, outras vezes esbatido. Apercebemo-nos, ao virar de cada página, da urgência imperiosa
que têm estes indivíduos em falar gratuitamente, conversar com ninguém sobre eventos
pretéritos que se acumulam a despropósito ou inventar realidades que, por vezes, de tão
Antes de procurar dar uma resposta a esta questão que, afinal, vai ao encontro da
linha secante que percorre esta obra de Lobo Antunes — ou seja, a exibição do acto dramático
99
de dez indivíduos em busca de si próprios — é produtivo explanar os pressupostos
isolamento. É em conformidade com esta constatação, ditada do senso comum, que melhor
encontra perante si próprio. A necessidade mais básica que o acto de falar cumpre é objectivar
Esta seria o instrumento oferecido ao Homem para exteriorizar conteúdos cognitivos pré-
Esta forma mais perfeita de apreensão da realidade, que ascende a ser considerada
reside no facto de o acto de referência não corresponder a uma etiquetagem da realidade, mas
antes a uma forma de a modelar. Pouco poderíamos fazer se dizer correspondesse apenas a
plenamente a sua necessidade de delimitar e actuar sobre o mundo porque é capaz de activar
100
O acto de referência — transposto ou não — é sempre uma operação cognitiva no
TU. A partir daqui a mesma oposição é activada relativamente aos objectos inscritos nas
caracterizar, criar e estabelecer relações entre objectos. Para além disso, integrando o núcleo
integralmente o geral no individual que temos fundada não só a expressão, mas a construção
enunciação, alicerça essa operação fundamental de apreensão da realidade que é abarcar numa
realidade. O acto referencial primordial é pois aquele que faz existir o sujeito falante. Falar é
saber-se existir.
( ou tomado como inalterável, ainda que produto de uma construção). Então dizer EU é
referenciar aquele que fala e pressupõe a dimensão temporal de que o sujeito falante se
101
constitui. A assunção do indivíduo perante si mesmo e perante os outros passa pela produção
Esta constatação básica conduz-nos à consideração de que nomear não pode ser
apenas dar consistência real a objectos no momento do acto comunicativo, mas fazê-lo existir
na nossa memória. Esta radicação dos eventos no nosso reservatório de experiências passa
reflexiva. O homem é feito de experiência temporal, sendo que, num processo de autognose
com isso, perceber-se a si próprio. “(...) l'identité personnelle qui ne peut précisement
s'articuler que dans la dimension temporelle de l'existence humaine (...) c'est á l'échelle d'une
vie entière que le soi cherche son identité (...)”89.É traçando um mapa pessoal de
temporalidade que o indivíduo se reconforta na sua certeza de existir com integridade. “The
past is integral to our sense of identity”90, já que “(...) the sureness of «I was» is a necessary
component of the sureness of «I am».”91 A acomodação a uma história traçada pelo percurso
identify with our own past gives existence meaning, purpuse, and value”92. “ Self-
consciousness involves at least the capaciy to think in terms of the story of one's past life.” 93.
valores, convicções e afectos é pautada pela busca de um sentido global da existência. Para se
102
4.3. Acto narrativo e autognose
abordagem, por mínima que seja, dos problemas atinentes à representação do tempo e do
sujeito. Isto porque o decurso desta explanação impõe que sejam então apuradas as estruturas
explorando os recursos da língua, que dá de si mesmo, e por conseguinte do seu passado, uma
através da qual o indivíduo historiza, ainda que anarquicamente, e edifica a sua personalidade.
Não há outro meio de acesso ao sonho e ao inconsciente a não ser pela palavra: a palavra
narrativa. Num outro momento Benveniste conclui: “La langue fournit l'instrument d'un
ilusões, mas válido exactamente por esse motivo, vem consolidar a avaliação do acto
narrativo como tendo um papel fundamental no processo de autognose por aquilo que tem de
103
A vertente reflexiva do acto de contar é uma especificidade de uma operação
sua obra Temps et Récit é designado por “mimesis II”, vemos explanado abundantemente este
Sob este ponto de vista, a intriga recebe primeiramente uma descrição formal:
construção semântica simples, representa uma acção acabada, equilibrada mediante três
pontos estruturais — antes do clímax, clímax e depois do clímax — de fácil apreensão, onde
isto dizer que ela não faz par com outras ocorrências por enquadrar-se numa ordem serial,
mas porque constitui um elo na urdidura complexa onde agentes, objectivos, meios,
texto narrativo. A narração avança quando está sujeita a um esquema de causalidade. Narrar
é, pois, ordenar acontecimentos em função de uma estrutura significativa, tendo como fim
104
configuration à cet art de la composition qui fait médiation entre concordance et
discordance.”96
dependa a identidade do sujeito que a relata. Ele assume-se como indivíduo ontológica e
modo congruente. Se o sujeito não visualizar a sua vida enquanto uma totalidade singular, isso
é sinal de insucesso. O seu percurso vivencial está incompleto e deficiente. Este facto conduz
heterogeneidade”97 de dimensão temporal - mas também nos fins para que naturalmente tende.
A imitação da vida nos moldes da narração faz emergir uma existência eufórica na qual o
sujeito se possa rever. Assim é, de facto, já que contar é dar existência a “mundos possíveis
alternativa mais compreensível ou então mais desejável”98. É esta a finalidade ética que toda
a narrativa persegue.
105
Foram passadas em revista, com a brevidade exigida pelos objectivos que aqui me
dados a conhecer por este romance de Lobo Antunes. De recordar que continuo a situar a
dez locutores que sobem a cena em cada capítulo, ou seja, no nível da “expérience fictive du
temps, telle qu'ele est faite par les personnages eux-même fictifs du récit” 99, e que designei no
locutor deriva uma forma complexa, porque está aí vigente o grau máximo da presentificação
de cenas vividas. Este facto faz com que a imagem do mundo se componha de sobreposição
assumidamente irreais ou com validade de realidade, processo que conflui para o mesmo
eventos pretéritos e divagar livremente por reflexões de ordenação aleatória, é meio eficaz de
“ A minha vida, com as suas ansiedades e os seus mistérios por elucidar, com a ausência dos
meus pais durante a minha infância, o vizinho ilusionista, o sótão onde ecoavam passos,
cessou de ser um enigma para mim desde que te encontrei...” (p.67)
106
Este marco temporal, “desde que te encontrei”, corresponde ao momento a partir do
qual L1 teve um pretexto para proferir os seus discursos isolados na solidão da noite.
É L3 que relata a despedida da sua esposa num asilo em Moçambique, facto que
nunca se deu; ou L9 que ouve passos de criança (o filho que lhe tiraram?) que não está
presente; ou ainda L7 que se desola com a transformação em milhafre do seu parceiro; enfim,
todos os locutores são impelidos, como que numa espécie de patologia, a situarem-se em
“... e imaginei que se tirasse o casaco e desabotoasse a camisa um par de asinhas se lhe
começaria a agitar nas omoplatas e ele subiria tarde fora, a caminho das nuvens, erguendo-
se a custo como um avião de museu.”(p.250)
“... escutava os defuntos flutuando, com seus trajes de casamento e as suas flores
tristíssimas, muito acima de mim, quase juntinho ao sol...”(p.91)
próprio tempo o tema central nessa actividade de autognose protagonizada por todos os
tempo, presumo que nada se alterou desde então: Alcântara, por exemplo, durará mil anos como a
vejo agora, às três da manhã no meu relógio de pulso...”(p.19)) os locutores socorrem-se dos
procurando certificar-se de que eles próprios percorreram já uma extensão temporal, para
quase sempre a amálgama de tempos, sendo que o passado interage com o presente. Por outro
universo pessoal em que o curso temporal se desenvolve a custo e, como tal, é de medição
deficitária.
de anulação do locutor:
“... e isto durante horas, não sei ao certo quantas porque me tiraram o relógio e a lâmpada do
tecto eternizava o tempo...” (p.140)
“Fosse a que horas fosse parecia-me, segundo os mostradores contraditórios, que vivíamos
em simultâneo em todos os momentos do dia...”(p.277)
num sótão. L9 percepciona uma realidade atemporal. Captamos o tempo pela marcação e
ordenação de eventos ou acções nas quais participamos como agentes ou pacientes ou aos
quais assistimos. A ausência deste dinamismo básico de qualquer existência, mesmo a mais
“ Mas isso, como o resto, também se passou há muito tempo num ano ou num mês ou num
minuto da minha vida que não consigo determinar ao certo, onde o antes e o depois
possuem idêntica textura que me exclui.” (p.275)
108
Banida a hipótese de estabelecer uma situação dialógica, o discurso de L9 representa
O futuro está vedado, o presente não tem consistência. É o passado que emerge do
“Um feriado qualquer, há meses, tomei no Arco do Cego, diante de um cinema fechado, de
plateia a desfazer-se atrás da grade de ferro, um autocarro para a minha infância...(p.39)
“... e um dia chego ao espelho e observo a minha cara e vivo do passado como de uma
reforma e tenho pena de mim...”(p.261)
nostalgia. A inércia do presente não tem sequer como contrapolo a dinâmica do passado:
“(...) e eu no banco traseiro, indiferente, porque nunca gostei de Moçambique, nunca gostei
de tanto preto, de tanto calor, de tanta chuva...”(p.95)
ser revisitado pela palavra. Este alheamento pode ser explicado pelo facto de ele ser
“(... ) Os retratos dos militares nos tremós fitando-me de pingalim e esporas (...)”(p.42).
“Que mal fiz eu a Deus para ter um filho tão estúpido, senhores?
A mesma voz que me perseguia (...) a voz do meu pai que escarnecia, há quarenta anos, de
mim...”(p.155)
passado é tão irrisório e miserável, não se distinguindo do presente: a mesma rotina, a mesma
109
Se reconhecermos sem hesitação a acção autoreflexiva levada a cabo por cada
locutor, já não podemos tirar conclusões tão cabais no que diz respeito à tipologia discursiva
“(... ) passa a noite acordado a contar-me histórias idiotas nas orelhas (...)”(p.243)
Para além deste facto, as nossas expectativas de leitores / ouvintes / falantes vão no
sentido de, reconhecido esse processo de autognose, nos acomodarmos ao molde textual da
narração, através do qual o sujeito falante pode configurar e conceptualizar o seu percurso
que permitem que se diga o tempo em simultâneo e da omissão de hiatos temporais. Neste
nominais do verbo.101
que a estrutura transicional Pretérito Perfeito — Imperfeito tomam lugar, assim como a
explicitação das coordenadas enunciativas em que radica o discurso transposto. Daqui decorre
a ilação de que estamos em face de relato de eventos. Mas poderão ser estes eventos
considerados como episódios, isto é, enquanto elos de coesão de um todo significativo que é a
intriga? É verdade que apesar da desordem em que surgem à superfície textual, eventos e
estados são ordenáveis quer através da datação, quer através de outras informações temporais
110
substitutivas. Um exemplo deste trabalho de organização de objectos invocados foi já
procurarmos na sua junção qualquer nexo de causalidade. A ligação entre estes eventos não
respeita o eixo temporal - causal, alicerçado nos três momentos estruturais da “ossatura
narrativa”, ou seja, princípio, meio e fim. Não há qualquer força de pertinência que faça
intriga.
Para além deste factor, os segmentos discursivos enformados nos moldes da deixis
indicial fictiva vêm igualmente despistar a tentativa de acomodação destas locuções ao modo
discursivo da narração.
O discurso que reporta os eventos no passado indica que aquele que o profere os vê
como acabados e consegue dar conta do seu sentido. Ora, se em virtude da mostração
transposta de um passado que, pelo acto invocativo, está de novo presente diante dos olhos,
esse mundo pretérito não pode ser objecto de configuração; nem sequer matéria de reflexão
acaba sem fim e inicia-se sem começo. Os blocos discursivos ligam-se entre si sem formarem
uma história inteira e completa, antes sublinham a heterogeneidade dos eventos, múltiplos e
dispersos. Neste contexto, esboça-se necessariamente uma forma discursiva aberta, sempre
disposta a acolher qualquer acidente que arbitrariamente se venha juntar aos demais.
111
A conclusão impõe-se: estes discursos não se acomodam a uma tipologia textual pré-
estabelecida. Deparamo-nos com invocações sem intriga, com rememorações sem narração.
“(...) Conheces alguma história que não seja idiota, Iolanda? (...)
já que na minha opinião as histórias são tão tolas quanto a vida” (p.234)
A singularidade dos discursos proferidos por cada locutor não esbate, no entanto, a
finalidade que estes perseguem, ou seja, recriar, compreender e possuir o seu próprio passado.
Neste sentido, não é descabido afirmar que aspiram a atingirem uma configuração cabal que
lhes devolva o sentido que toda a existência deve ter. Só que, paradoxalmente, esta
no cerne da gestão de uma configuração narrativa está também ausente destas invocações
presentificadoras. Tanto o modo como são activados os recursos da língua, como o próprio
Mas não nos iludamos: se estes locutores são assemelháveis a pequenos deuses é
porque, como crononautas, se deslocam livremente de uns para outros quadros temporais,
Homem perdido. Ao admitir que, pela fala, o indivíduo excede as suas limitações, reconheço
igualmente que, neste romance, esse processo não é eufórico. Experienciar um estado de
ucronia é, neste contexto, asfixiante e confrangedor. Por um lado, a própria viagem no tempo
homóloga da estagnação e, enfim, da própria morte. A eternidade é o tempo que não tem um
curso, que não avança nem se esgota. A eternidade contradiz o tempo; é a negação do tempo
que é o tempo sem homem, o tempo não deíctico.”103 Dizer EU, “aqui”, “agora” corresponde a
dizer o instante irrepetível, e pela sua índole, infinito. O contrário corresponde à redução do
“Compreendi (...) que não há rolas, que não há Lucília, que não há a Residencial da Praça da
Alegria, que não há o chulo preto, que não houve o meu passado, nem Damão, nem a casa
de Odivelas, que não houve eu (...) mas suspensos numa espécie de limbo, a conversar de
nada (...)” (p.58)
É chegada a altura de podermos fechar o mundo dos locutores tal qual eles o
enformaram, para vermos, brevemente, o que se passa agora no universo que os absorve como
A este nível poderá surgir a questão acerca de qual a história oferecida por esta obra.
um sentido lato do termo, compõe-se dos discursos das personagens e das relações que entre
elas se estabelecem. Ela corresponde à revelação de dez existências de dez locutores que,
seguindo um encadeamento procissional, vêm a cena mediante a gestão de uma voz narrativa
oculta que as conjuga, como se de uma reportagem da alma se tratasse. “Ecce Homo, parece
dizer cada poema”; as palavras são de Eugénio de Andrade.104 Posso apropriar-me delas: Eis o
Homem, parece dizer cada capítulo. Eis dez indivíduos na tentativa lograda de configurar a
suas existências. Advém daqui a máxima ilusão da realidade: o leitor toma apenas contacto
comentário de L2:
“... perguntei a mim próprio o que leva a interessar-se a si, um escritor, um homem que vende
romances, que aparece na televisão, que tem o nome nas revistas, por um badameco como
aquele a morar num prediozito da Rua Oito (...) que livro numa história destas pode dar se
tristezas é o que mais há na cidade (...)” (p.54,55).
até ao seu limite e passa a assemelhar-se a “une sorte d'oratorio donné à lire.”105
A obra cumpre a sua finalidade comunicativa, mas também estética, ao ostentar dez
somos testemunhas do esforço levado a cabo pelos personagens de darem sentido à sua vida
realidade incoerente, que nem sequer ascende a ser trágica. É a mostração assim crua desta
A Ordem Natural das Coisas: não a ordem de vida que os personagens idealizariam,
emoldurariam numa existência consequente, mas a ordem que é imposta pela própria natureza
115
Conclusão
efeitos desta actuação verbal levaram-me a atravessar áreas extensas, detendo-me nos
aspectos que necessariamente escoraram o projecto que me propus cumprir. Passo a enumerá-
romanesca. Seja qual for o foco de tratamento deste romance, ele terá de se cruzar, pelo
menos, com estes aspectos, que não cobrem de modo algum todas as abordagens, mas que
que são activados, foi validada quer para o nível da comunicação exógena ao romance, quer
para o nível da expressão endógena. A detenção particular nesta questão revelou-se frutífera,
pois permitiu, logo desde o início deste trabalho, erradicar a mínima tendência de perspectivar
as elocuções dos personagens como discursos do mesmo teor dos nossos actos de fala
narrador de primeira pessoa”, permitiram-me chegar à detecção de uma fusão destes dois
conceitos aquando da dissecação das elocuções constitutivas deste romance de Lobo Antunes
segmentados para análise. Afinal, foi o reconhecimento desta fusão, que é real, que está à
superfície do texto e é experienciável pelo leitor em todas as páginas desta obra, que me
permitiu sedimentar bases sólidas para partir para o apuramento dos dois níveis enunciativos
acima invocados. Por sua vez, o início do trajecto traçado com estes dois percursos conduziu-
todo o discurso patenteia assim que potencia a transposição do locutor e do alocutário para um
mundo ausente.
relata eventos passados com a tensão do discurso accional e que funde uma primeira pessoa-
teor e amplitude dos efeitos da mostração “am Phantasma”. Procurar saber cabalmente que
Os locutores não contam nenhuma história, não organizam um mundo metafórico de modo
117
Foi esta constatação que o levantamento dos gestores discursivos activados nas dez
elocuções constitutivas do romance veio decompor. Para além disso, estes elementos
denunciam uma construção cognitiva do tempo feita com base numa simultaneidade geral de
planos experienciais.
do ponto de vista interno à sua ocorrência: foram pontos de chegada que impulsionaram a
pude ver confirmado, nas teorizações sobre as quais tive oportunidade de me debruçar, aquilo
do discurso evocativo.
conflito, foi solidária com a análise linguística levada a cabo. Contorná-la, seria servir-me do
corpus trabalhado, ignorando o macrosigno que o texto literário constitui. Neste quadro,
com o relato de experiências confusas, sem forma, heterogéneas e, por isso, quase reais. Os
locutores não idealizam o passado, nem o envolvem numa aura saudosista. O presente dilata-
indivíduo.
importante e o mais básico que o Homem é capaz de levar a cabo: colocar-se em frente de si
Ordem Natural das Coisas foi sempre apresentado ao público leitor como romance co-
referente a Tratado das Paixões da Alma e A Morte de Carlos Gardel, podemos perspectivar
118
mais amplamente o facto de que subjacente às temáticas recorrentes nestes três romances — a
Lisboa marginal, o paroxismo, a morte — está essa revelação desse mecanismo complexo e
Dizer a tristeza de uma gente, traída pela arbitrariedade da vida, derrotada pela
doença e enredada na sua própria loucura, é usar, manipular e criar mecanismos expressivos
potenciados pelo sistema da língua. A arte literária corresponde afinal a este procedimento
linguístico. O estilo do autor e a técnica romanesca assentam numa particular activação dos
119
Notas
120
1
Veremos como, naturalmente, o alcance desta exploração radica no âmbito dos estudos linguísicos, ignorando fronteiras
artificiais entre a linguística e a literatura.
2
Apesar de não se ter debruçado sobre a temática das relações entre linguística e literatura, Culioli reconheceu que “Il est
certain qu'il n'existe pas de communauté sans production littéraire, orale, écrite, mythique, sous la forme de contes, etc. et il
serait insensé de ne pas en tenir compte (...) la linguistique ne peut que la ramener à sa problèmatique." CULIOLI, 1976,
p.23
3
COSERIU, 1977, p.204
4
REYES, 1984, p.19
5
REYES, 1984, p.38
6
HAMBURGER, (1957) 1992, p. 16
7
COSERIU, 1977, p.202
8
MARTIN, (1983) 1992, p.275
9
SEARLE, 1977, p.66
10
VUILLAUME, 1993, p. 56
11
Em face da despersonalização que afecta os locutores deste romance, a ponto de a neutralidade de carácter impor a supressão do nome
próprio de alguns deles, solucionei o problema da designação destas figuras através do recurso a uma fórmula indicadora da sua ordem de
entrada na cena discursiva:
L1, filho de Julieta; interloc.: Iolanda
L2, Ex-Pide; interloc.: " amigo escritor"
L3, Pai de Iolanda; interloc.: Iolanda
L4, Tia de Iolanda ( sem interloc.)
L5, Jorge, tio de L1, irmão de Julieta; interloc.: Margarida
L6, Fernando, tio de L1, irmão de Julieta; interloc.: Conceição
L7, Iolanda; interloc: Ana ( só no cap.3)
L8, Colega de Iolanda; interloc: Iolanda
L9 Julieta ( sem interlocutor)
L10 Maria Antónia ( sem interlocutor)
12
SEARLE, 1979, p.68
13
HAMBURGER, (1957) 1993
14
REYES, 1984
15
REYES, 1984, p.18
16
E, por isso, continuarei a designá-los por L5, L10 e L9, respectivamente.
17
HAMBURGER, (1957) 1993, p.136
18
O sublinhado é meu.
19
Cf. Alargamento interpretativo dado a este fenómeno da miscigenação de sistemas deícticos, na terceira parte deste
trabalho.
20
HAMBURGER, 1993 p.325
21
Cf. noção de "autor-citador" em REYES, 1984, p. 69
22
REYES, 1984, p. 14
23
PICARD, 1989, p.85
24
COSERIU, 1977, p.207
25
SEARLE, 1979, p.74
26
Veremos como é aqui que se encontra a pedra angular da minha argumentação.
27
FONSECA, 1994, p.96
28
Teorização descrita mais adiante nos seus pontos essenciais. Cf. p.38 - 42
29
O sublinhado é meu.
30
HAMBURGER, (1957) 1993, p.129
31
CARVALHO, 1967, pp. 661-669
32
BENVENISTE, 1966, p. 253
33
DUCROT, 1980, p.30
34
LYONS,1977, p. 636
35
BENVENISTE, 1966, pp. 252- 253
36
BUBER, 1970, pp.53-54
37
Se assim não fosse, situar-nos-íamos unicamente no nível simbólico, seguindo a teoria do "duplo campo" de Bühler, onde
os signos conceptuais radicam a sua precisão significativa.
38
BÜHLER, (1934) 1979, pp. 124-158
39
BÜHLER, (1934) 1979, p.141
40
POTTIER, 1980, p.31
41
WEINRICH (1964) 1973, p. 107
42
" Pero por muy diversamente que puedan proceder estos narradores refinados, me atrevo a afirmar (...) que puede reducirse
esquematicamente a los tres casos (...)". BÜHLER (1934)1979, p.153
43
" actual"/ "inactual" foi a terminologia avançada por Pottier e Coseriu para o sistema verbal: POTTIER, 1972, p.98;
COSERIU, 1974, p.94
44
BÜHLER ( 1934) 1979, pp. 139-158
45
O sublinhado é meu.
46
BÜHLER ( 1934) 1979, p.143; o sublinhado é meu
47
BENVENISTE, 1966, p.241
48
WEINRICH, 1964, p.20 et passim.
49
BÜHLER(1934) 1979, p. 150
50
FONSECA, 1992, p.146
51
FONSECA, 1992, p.155
52
WEINRICH (1964) 1973, p.35
53
HAMBURGER (1957) 1973, pp. 311, 337 et passim.
54
FONSECA, 1992, p.200
55
FONSECA, 1992, p.185
56
No capítulo 1 pude destrinçar o plano da ficcionalização literária do plano da ficção lato sensu e apresentar as minhas
opções de análise. Cf. pp.20-21
57
DUBOIS, apud PICCARD, 1989, p. 31
58
ADAM, 1990, p.96: adopto esta designação em detrimento de "superestrutura" por julgar válida a justificação com que
avança o autor para pôr em vigência a sua opção terminológica.
59
O termo é de Weinrich que o activa na referenciação de valores elevados de recorrência. WEINRICH, (1964) 1973, p.17
60
Cf. Cap. 2, pp. 38-42
61
WEINRICH, 1989, p.15
62
FRAISSE, 1957, p. 105
63
FONSECA, 1992, p.203
64
REYES, 1984, pp. 230-279
65
Cf.capítulo 1 p.27
66
Cf. capítulo 2, p.46
67
Aproprio-me da exploração a que F. I. Fonseca procede da expressão bartheana "efeito de real". Cf. 1992, pp.219-222
68
IMBS, 1968, p.22
69
GUILLAUME, 1929, p.109
70
BULL, 1971, p.7
71
MARTIN, 1971, p.49
72
COSERIU, 1978, p.19,20
73
BULL, 1971. p.13
74
POTTIER, 1977, p.180
75
IMBS, 1968,p.92
76
IMBS, 1968, p.106
77
BULL,1971. p.14
78
Para além dos usos atemporais do Imperfeito, a intuição do falante institui este tempo enquanto um tempo passado.
79
MARTIN, 1971, p.71
80
MARTIN, 1971, p.83
81
IMBS, 1968, p.98
82
LABOV, apud REINHART, 1986, p.48
83
WEINRICH, 1989, p.146
84
MARTIN, (1983) 1992, pp. 282-290 et passim
85
Cf. pp.60-63
86
IMBS, 1968, p.156
Ver também CUNHA e CINTRA, 1986, p.483
87
Cf p.38
88
BARTHES, (1985) 1987, p.38
89
RICOEUR, 1990, p.138,139
90
LOWENTHAL, 1985, p.41
91
WYATT apud LOWENTHAL, 1985, p. 41
92
LOWENTHAL, 1985 , p.41
93
CAMPBELL, 1995 , p.1
94
BENVENISTE, 1966, pp.75-87
95
BENVENISTE, 1966, p.78
96
RICOEUR, 1990, p.168
97
" C'est cette synthèse de l'hétérogène qui rapproche le récit de la métaphore." RICOEUR, 1983, p.11
98
LOPES, 1986, p.23
99
RICOEUR, 1984, p.113
100
Cf p. 30
101
Cf. ponto 3.4., Cap.3
102
Cf p.59
103
FONSECA, 1992, p.168
104
ANDRADE, 1980, p.298
105
RICOEUR, 1984, p.146