As Mulheres Do Meu Pa S
As Mulheres Do Meu Pa S
As Mulheres Do Meu Pa S
LAMAS, Maria, As mulheres do meu pas, Lisboa, Caminho, Setembro de 2002. A primeira publicao foi concluda a 15 de Abril de 1950. 2 Seminrio realizado pela UMAR - Unio de Mulheres Alternativa e Resposta, em Lisboa, a 5 e 6 de Dezembro de 1998, no auditrio do Montepio Geral. 3 Maria Antnia Fiadeiro Mestre em Estudos sobre as Mulheres e defendeu na Universidade Aberta a tese de Mestrado: Maria Lamas (1893-1983), uma jornalista. Tentativa e tentao biogrfica. 4 Maria Jos Cunha Lamas Caeiro Metello de Seixas 5 Organizao de mulheres fundada em 1914. Segundo Anne Cova, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas constitui-se como seco portuguesa do International Council of Women, fundado em 1888, em Washington (COVA, Anne, PINTO, Antnio Costa, "O Salazarismo e as mulheres, uma abordagem comparativa, in Penlope, n 17, 1997, pp. 71-94). Maria Lamas tinha assumido a presidncia desta organizao em 1945.
dado que o Estado confiava Obra das Mes6 o encargo de educar e orientar as mulheres. "A esta afronta, feita cidad, respondeu a jornalista: iria verificar e depois informaria"7. Neste contexto, Maria Lamas inicia, em 1947, a aventura de que resultaram belas pginas de escrita e de fotografias. Das mulheres camponesas de Castro Laboreiro, das serras do Barroso, da Gralheira, do Caramulo, com os seus trajes, os seus rostos marcados pelas agruras de um trabalho pesado e pela falta de condies de vida. "Um cubculo de madeira tosca, onde cabe justa o leito que pais e filhos utilizam em comum, luxo de que poucos dispem. Como luxo so os lenis e a mais rudimentar higiene.... No se pode chamar lar a semelhantes casebres" (LAMAS, p.15). com este pormenor e realismo que a autora fala da vida das raparigas condenadas s serranias, dos maridos que esto fora, dos muitos filhos, das doenas e da falta de remdios, das mes que, resignadas, falam "dos anjinhos que vo para o cu" como a melhor sorte que lhes estaria reservada. O livro fala-nos da vida das mulheres de Lamas de Mouro, Cubalho, Cardielos, Parede do Monte, Cortegaa, Gavieira, Merufe, Vrzea, Soajo, Lindoso. No s da sua resistncia, mas da sua combatividade. "As mulheres esto sempre frente de todos os protestos, desde que pressintam a ameaa de um agravamento nas condies j to precrias do seu viver. Elas sabem quanto lhes custa o granjeio do seu po. E exprimem-se nesses casos com uma firmeza, um desassombro que as transfigura" (LAMAS, p. 26). Nesta grande reportagem sobre a vida das mulheres, Maria Lamas no esquece os ambientes, as paisagens, os dizeres, as quadras soltas, as canes e fala do encanto dessas mulheres quando so jovens, risonhas, comunicativas. Mas, como afirma, depois do casamento: "caem geralmente no desmazelo e perdem toda a frescura, to depressa que mesmo antes de se lhes ter esgotado a seiva da mocidade, j elas prprias se consideram velhas. Mesmo que o marido as no maltrate, a vida encarrega-se de as
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Obra das Mes pela Educao Nacional - OMEN, criada pelo Estado Novo em 1936. Ver obra de Irene Pimentel, Organizaes Femininas no Estado Novo, Circulo de Leitores, 2000. 7 Prefcio de Maria Jos Cunha Lamas Caeiro, op.cit. p. XIX.
maltratar" (LAMAS, p. 126). Os percursos percorridos pela autora no se confinam s terras do interior do pas. Ela observa a vida das salineiras de Aveiro com os seus chapus de abas largas para facilitar o transporte das canastras de sal cabea. Trabalho pesado, como o das carreteiras de leite, o das mulheres que trabalham na seca do bacalhau ou ainda as que trabalham na construo de estradas. No Alentejo, Maria Lamas fotografou as ceifeiras nos arrozais da Marateca e de guas de Moura, e fala das doenas contradas pelas mulheres que neles trabalhavam, das suas expresses fatigadas. Do nascer ao pr do sol, assim o seu tempo de trabalho. E fala-nos tambm de outras ceifeiras, as do trigo, em searas imensas, curvadas sob um sol escaldante. "Trabalham jorna ou empreitada, com um ganho sempre muito inferior ao do homem - em geral 2/3 do que ele recebe" (LAMAS, p. 235). Mas de outros trabalhos se ocupam tambm as alentejanas: "da apanha da azeitona, do limpar das terras ou sargaar; andar pedra nos terrenos que ainda no foram alqueivados,...; apanhar bolota; colher o gro e o tremoo;... enformar e desenformar os tijolos e a telha na indstria de barros" (LAMAS, p. 243). Mantm sempre as casas muito caiadas e limpas. As mulheres do Alentejo so tambm mais comunicativas do que os homens. "Tm um forte sentido de independncia em relao ao trabalho, preferindo uma existncia incerta, com grandes privaes, vida de servir, seja nos montes, seja nas vilas e nas cidades" (LAMAS, p. 247). Quanto s algarvias, Maria Lamas fala da sua vivacidade, do seu conversar desembaraado. So aguerridas. Juntam-se todas, falam e protestam. "So por vezes maliciosas nas suas observaes. No fundo, porm, quando se referem sua luta e sofrimento, revelam-se iguais a todas as outras mulheres cuja vida se passa em canseiras e dores" (LAMAS, p. 265). E so assim as mulheres de Quarteira, de Alcoutim, da serra do Caldeiro e de muitos outros lugares algarvios onde a autora tambm ouviu falar de "mouras encantadas", de lendas e romances que as mulheres sabiam de cor e alimentavam o imaginrio da gente algarvia. No so esquecidas as mulheres do Ribatejo nas suas fainas, nas vinhas e nas zonas ribeirinhas; as mulheres madeirenses, horas e horas curvadas sobre os bordados para ganhar cinco escudos dirios e as que
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trabalhavam na plantao das bananeiras, da semilha, do milho e do feijo em desfiladeiros de fazer cortar a respirao. Dos Aores, Maria Lamas regista a sua beleza natural, diferente de ilha para ilha. "A par de tanta beleza, por vezes de expresso trgica, a mulher do campo vive obscuramente alheia agitao do mundo" (LAMAS, p. 309). Dedicam-se colheita do ch e do tabaco e s vrias indstrias caseiras: tecem linho, fazem chapus de palha de milho, flores de penas e escamas, cestos de vime,..."Em contraste com esta tendncia para o aproveitamento de tudo quanto possa transformar-se em objecto belo ou til - coisas que habitualmente se deitam fora, como penas e escamas - nota-se uma grande ignorncia, sendo muito elevada a percentagem de mulheres analfabetas e com uma mentalidade atrazada, apesar de serem, quase todas muito vivas e espertas. Em supersties absurdas, igualam as mais supersticiosas camponesas do continente. Da mesma maneira aceitam, sem reaco, a supremacia do marido, em todas as coisas, mesmo da vida familiar, no tomando qualquer resoluo, ainda a mais simples, sem autorizao dele" (LAMAS, p.311). Das operrias tambm nos fala Maria Lamas. Das que trabalham nos txteis em Guimares, Vila Nova de Famalico e em Gouveia, das que produzem chocolates em Viana do Castelo ou artigos de perfumaria em Braga. E ainda das trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova - britam o carvo, transportam-no cabea e empurram enormes e pesadas vagonetas, como se v numa magnfica foto da autora (p. 375). As mulheres tambm trabalham na indstria de filigranas no Porto e em Gondomar, nas fbricas de faianas, como em Aveiro, na prensagem dos azulejos, na retocagem de sanitrios ou na pintura decorativa das loias. No Algarve, assim como noutros locais do pas, so operrias conserveiras e corticeiras. E que outras profisses assumem as mulheres nesta primeira metade do sculo XX? "Uma classe numerosssima a das costureiras que trabalham desde as fbricas de cintas aos depsitos de fardamentos... Ficam nas oficinas curvadas sobre a costura, durante as oito horas que a lei determina" (LAMAS, p. 382). Tambm h as empregadas domsticas e so muitas as que vm das aldeias para as cidades dedicar-se a uma profisso mal paga e nada valorizada. E ainda as mulheres que so "guardas de linha"
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nas passagens dos comboios. E as que carregam bagagens nas estaes ferrovirias, quase sempre pobremente vestidas e descalas. H tambm as vendedeiras de peixe, as lavadeiras de rio, as que descarregam areia nos cais. Fruto de um maior grau de escolarizao, surgem as professoras, as empregadas de escritrio, as enfermeiras, as telefonistas, as analistas. De todas elas nos fala Maria Lamas. Das mulheres que trabalham em casa a cuidar da famlia, das chamadas "domsticas", Maria Lamas faz lembrar as contradies inerentes a essa funo. Muito antes de Betty Friedan, em 1963, no seu livro A Mstica da Mulher, ter desmontado a pretensa realizao das mulheres "donas de casa"8, Maria Lamas referia-se, em 1948, s mulheres que trabalhavam em casa, da seguinte forma. "De duas uma: ou a mulher aceita resignadamente as circunstncias da sua vida e cai numa espcie de marasmo espiritual e mental, movendo-se apenas entre as graves preocupaes do oramento caseiro, as compras, as limpezas, o arranjo das roupas, as refeies que preciso ter prontas a horas certas, as doenas dos filhos e as mil pequenas coisas, sempre iguais e sempre enervantes, que lhe enchem o dia, ou no consegue anular as suas aspiraes, e vai sentindo crescer em si uma revolta que s dificilmente chega a dominar e que a entristece, transformando-lhe a vida num autntico suplcio" (LAMAS, p. 447). Percorrer as 471 pginas desta obra faz-nos esquecer o tempo. Envolve-nos uma onda de deslumbramento e uma interrogao: Como foi possvel? Como foi possvel, naquela poca, uma to vasta investigao, precursora, sem dvida, dos Estudos sobre as Mulheres, como afirma Maria Antnia Fiadeiro?9 Como foi possvel que, durante mais de 50 anos, esta obra s muito raramente fizesse parte dos manuais de estudo dos jornalistas, das feministas e estivesse ausente das nossas bibliotecas? Maria Lamas revela-se, nesta obra, uma notvel jornalista, uma mulher com uma enorme capacidade de trabalho e com uma particular sensibilidade
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FRIEDAN, Betty, La Mstica de la feminidad, Ed. Jcar, Madrid, 1974. FIADEIRO, Maria Antnia, Maria Lamas (1893-1983), comprovadamente jornalista. Tacitamente feminista, in Actas do Seminrio sobre o Movimento Feminista em Portugal, UMAR, 1998.
feminista, capaz de captar, nos seus nfimos pormenores, os quotidianos das mulheres do seu pas. Num dos prefcios a esta edio, uma outra sua neta, Maria Leonor Machado de Sousa, insurge-se contra a adjectivao de feminista dada sua av. Com o devido respeito pela posio assumida, no posso deixar de considerar como feminista uma mulher que tinha plena conscincia da situao de submisso das mulheres portuguesas, da sua falta de direitos, da ignorncia em que viviam e da solidariedade que as suas vidas lhe mereciam. a prpria Maria Lamas que, na introduo ao seu livro, afirma: "No olhar iluminado das jovens vi o mesmo sonho dos meus dezasseis anos; na expresso sem vio daquelas em que o ardor de viver se vai apagando, melanclico, adivinhava eu o drama de uma vida fracassada, estril. E em quase todas, mesmo nas vulgarmente felizes, pressentia, sem o saber definir, um desencantamento latente, uma razo de queixa contra qualquer coisa de que no teriam ainda conscincia, mas que marcava, inexorvelmente o seu destino". Para declarar mais adiante: "J no duvidava: os meus problemas eram os problemas de todas as mulheres, embora alguns revestissem, para cada uma, aspectos diferentes" (LAMAS, p.5). Terminaria com uma frase de Maria Antnia Fiadeiro, extrada do seu texto j citado, "Maria Lamas foi comprovadamente uma jornalista profissional, uma das primeiras do sculo XX, e tacitamente feminista no sentido em que a luta pelos direitos das mulheres era encarada como uma inevitabilidade social do olhar feminino, a prioridade programtica da histria feita por mulheres e no como um acrescento (apndice) da histria humana ou uma consequncia directa e automtica das evolues e das revolues polticas".