Notas Preliminares Sobre A Música Xokleng

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Notas preliminares sobre a msica xokleng

Kaio Domingues Hoffmann (mestrando) Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (PPGAS) Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Tenho como objetivo, nesta apresentao, discorrer brevemente sobre minhas primeiras impresses acerca da msica Xokleng. Primeiras impresses porque esta comunicao parte de meu projeto de pesquisa para a dissertao de mestrado no Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Estive entre os xokleng em duas breves visitas no ms de fevereiro e abril. Tudo o que est afirmado aqui, portanto, carece de trabalho de campo por isso o preliminar presente no ttulo. As assertivas sobre a msica Xokleng, ainda um tanto arbitrrias e simplificadas, provm de uma pesquisa bibliogrfica sobre o grupo e destas minhas breves visitas.

Os xokleng
Os xokleng esto localizados, em sua maioria, na Terra Indgena Ibirama (TII), situada na regio do alto vale do Itaja, no estado de Santa Catarina (sul do Brasil). So em nmero aproximado de mil e quinhentas pessoas1, que se distribuem ao longo de catorze mil hectares de terras, divididas em sete aldeias e entrecortadas pelo rio Herclio (um dos formadores da bacia do rio Itaja-Au). Do ponto de vista lingstico, juntamente com os kaingang, fazem parte do ramo meridional da famlia J2. A palavra zug designa seres de grande importncia no universo xokleng. Seres que desempenham um papel fundamental na cosmologia nativa e na transmutao dos outros seres, narrada por histrias que fazem referncia ao tempo mtico, onde animais, plantas e pedras se comunicavam com os humanos. Seguindo o discurso nativo, tal
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De acordo com Dias-Scopel (2005: 79) que traz o censo realizado em 2003 pela Fundao Nacional de Sade (FUNASA). O ltimo censo realizado pela Fundao Nacional do ndio (FUNAI), em 1997, conta aproximadamente mil pessoas entre xokleng, kaingang, guarani, brancos, cafuzos e mestios (Wiik, 1998). 2 A famlia J faz parte do tronco Macro-J e possui lnguas distribudas, no Brasil, do Maranho ao Rio Grande do Sul (Rodrigues, 1999).

transmutao foi o que tornou possvel a boa sociabilidade, e, portanto a vida social. Mas as relaes com os zug so marcadas por ambiguidades: se, por um lado, eles carregam uma positividade (so necessrios para o bom funcionamento do cosmos), por outro, sempre preciso ter cautela e precauo, ser desconfiado, ao se travar relaes com eles, pois podem tambm trazer a desordem e o caos atravs de uma m sociabilidade (muito recorrente nestes seres). Existem diversas maneiras de amans-los; porm, nunca se sabe quando eles podem agir de maneira predatria. Seres poderosos, portanto, com a ambivalncia de terem participado na fundao da vida social e a ameaarem com freqncia: seres desejados e temidos ao mesmo tempo, com quem se quer trocar (sejam palavras, bens, pessoas ou substncias), mas de quem preciso desconfiar. Eis a traduo mais corrente de zug: homem branco, ou ainda, inimigo. Sugiro, ento, que o outro por excelncia do universo Xokleng a alteridade radical que ocupa o lugar deste outro para que possam se constituir corresponde ao mundo dos brancos (mas no s). As histrias acima referidas dizem respeito pacificao ocorrida no ano de 19143, que entendo, juntamente com Loch (2004), operar como princpio no grupo (por esta razo as contei como histrias que se referem ao tempo mtico, quando eles viviam no mato e seus antepassados falavam com os animais e as plantas)4. Desta forma, Loch (2004) aponta para a centralidade das categorias ndios do mato e ndios de fora (do mato) entre os xokleng: na percepo nativa as formas do passado so fundamentais para explicar as formas do presente, que se definem por contraste com a primeira (p. 31). Ou seja, os xokleng se percebem como ndios de
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Grosso modo, pacificao foi o nome dado pelo Servio de Proteo ao ndio (SPI) ao processo de confinao dos povos amerndios considerados ferozes e que atrapalhavam os projetos nacionais. No caso dos xokleng, tal processo estava ligado aos conflitos com os colonos europeus que vinham se instalando em Santa Catarina desde o sculo XIX. Note-se que era comum no sculo XIX e incio do XX o financiamento, por parte do estado, de bugreiros tropas paramilitares que tinham como objetivo a caa e o extermnio dos bugres (denominao pejorativa dada aos povos indgenas no sul do pas). Sobre a pacificao dos xokleng, ver principalmente Santos (1973). 4 J uma dificuldade se impe: aquela que diferencia mito e histria. No pretendo, agora, trazer a questo (muito menos tentar resolv-la). Para uma idia acerca do debate, ver Lvi-Strauss (1987 [1978]: 25-31), Hill (1988), Carneiro da Cunha (1986), Sahlins (1990 [1985]), dentre tantos outros. Interessante levar em considerao tambm a distino que Leach (1974) faz entre Crono (temporalidade irreversvel ligada ao tempo cronolgico [histrico]) e Cronos (mais ligada ordem do princpio, cclica e reversvel). A pacificao, evento histrico, parece ser tomada como princpio no caso xokleng, o que talvez aponte para uma dissoluo entre a dicotomia: o muro que em certa medida existe na nossa mente entre Mitologia e Histria pode provavelmente abrir fendas pelo estudo de Histrias concebidas no j como separadas da Mitologia, mas como uma continuao da mitologia (Lvi-Strauss, 1987[1978]: 31).

fora, construindo uma alteridade com os ndios do perodo pr-pacificao, do mato:


(...) h uma oposio entre os xokleng pr e ps-pacificao, que simboliza no somente a passagem no tempo, mas uma verdadeira mutao. Eles continuam, entretanto, dignatrios dessa cultura do mato e buscam se apropriar dela de diversos modos atravs de hbitos alimentares, medicinais, artsticos e (...) tambm arquitetnicos (Loch, 2004: 33)5.

Ou seja, a alteridade no construda s nas relaes com o mundo dos brancos, com os kaingang, com os guarani, com os cafuzos (todos residentes na TII), mas tambm com o passado (to presente): os xokleng hoje so civilizados (termo nativo geralmente utilizado em interaes com os zug) vestem roupas, vo aos cultos evanglicos, trabalham. Enfim, se percebem como diferentes daqueles ndios do tempo do mato (seus antepassados) (Loch, 2004). Em relao nominao do grupo, o termo Xokleng tem sido utilizado largamente na literatura etnolgica e utilizado tambm pelo prprio grupo. Tal autodesignao fruto de um dilogo com o mundo dos brancos (e, em particular, com a antropologia). Em diferentes momentos, vrios trabalhos apontam para designaes diferentes, ou mesmo para a falta de um termo para tal propsito (Santos, 1973: 30-1)6. Mais recentemente, algumas pesquisas trazem um novo termo, Lakln (aquele que mora/est debaixo do sol), que, dependendo do autor, ora designa o grupo (substituindo assim o termo Xokleng), ora a Terra Indgena (Dias-Scopel, 2005: 17-8)7. Parece-me que o termo o mesmo que o encontrado na proto-histria construda por Urban (1978) atravs de relatos orais nativos: Rakran, que se refere a uma das trs faces existentes at incio do sculo XX8. Enfim, o que desejo ressaltar destas notas nominalistas o carter histrico da formao de qualquer grupo: enquanto o nome parece delimitar e constranger, tentando
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interessante notar que j na dcada de 1960 a oposio parecia ter validade, conforme alguns relatos que se pode encontrar em Santos (1973: 216). 6 Dentre os muitos nomes atribudos pode-se citar: Xokleng (ou Shokleng [que tem por traduo aranha ou taipa de pedra]), Kaingang, Botocudo, Bugre, Aweikoma, dentre outros. Nas palavras de Hoerhan, pacificador e chefe do posto indgena at a dcada de 1950, a preocupao de nomear o grupo dos civilizados e no dos ndios (apud Santos, 1973: 31). 7 Vale notar que uma das escolas situadas na TII leva este nome. 8 As outras duas faces seriam a Ngrokthi-t-pry (localizada perto de Rio dos Pardos) e Angyidn (localizada na Serra do Tabuleiro; ao que se sabe, no chegou a entrar em contato permanente com o SPI, estando hoje, aparentemente, extinta [o aparentemente tem em mente a etnologia no nordeste brasileiro]). Sobre os Ngrokthi-t-pry (nome que parece tambm carregar uma denotao pejorativa lembremos que os informantes de Urban eram ancios Rakran), ver Pereira (1995).

passar uma idia de homogeneidade e totalidade, a histria mostra o carter contingente e transitrio do que chamamos frequentemente de sociedade (e seus correlatos como grupo, povo, etc.) e eventualmente de coletivos humanos. Por mais que isto seja lugar comum dentro da antropologia, no custa nada reafirmar o bvio (que de tanta obviedade que carrega muitas vezes omitido, qui at esquecido): tendemos a entender os povos indgenas como pequenos agregados fundados em laos biolgicos (no longo prazo, genealgicos), mas eles so conjuntos historicamente criados (Sez, 2008)9. Desta forma, Menezes Bastos (2001) chama de pr-kamayur os grupos de lngua Tupi que no sculo XVIII invadiram a regio dos formadores do rio Xingu, e que eram chamados de forma genrica pelos grupos j residentes (aruak e karib), de kamayla. De modo semelhante, Sez (2008) afirma que Yaminawa era a forma pela qual alguns grupos chamavam aqueles que viviam na floresta, que se articulavam mais por um conjunto de prticas xamnicas do que por relaes polticas, em comunidades constantemente cindidas e recombinadas (p. 33). Repare-se que nos dois casos (na verdade, em qualquer caso) a nominao do grupo (e a constituio mesmo) relacional10. Com os xokleng no diferente: Urban (1978), preocupado em construir a proto-histria xokleng lana como hiptese a existncia de dois grupos de perambulao (durante o sculo XIX e at incio do XX os xokleng eram nmades) que se encontravam uma vez por ano para as cerimnias de iniciao. Em decorrncia das baixas demogrficas (principalmente de mulheres) de um dos grupos e das relaes tensas entre eles, um deles acabou aniquilado, o outro tratando de incorporar as mulheres e crianas sobreviventes. Neste grupo, durante os primeiros contatos com os zug, no estado de Santa Catarina, percebia-se trs faces distintas, localizadas em
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Quanto a parte dos pequenos agregados bom ter em mente o artigo de Roosevelt (1992) que visa demonstrar, do ponto de vista arqueolgico, como a Amrica constitua um sistema comunicante que contava com grandes e povoados cacicados antes das invases europias. A idia de um sistema comunicante permanece, o tamanho sendo hoje talvez uma das grandes diferenas (que no se deve apenas quelas invases). Enfim, se vai de um modelo amerndio geralmente adjetivado como clastreano para uma idia de sistema comunicante global, muito enfatizado na obra de Menezes Bastos (ver, por exemplo, 1999 [1978] e 2001). 10 O que poderia desembocar na viso de etnicidade atribuda a Barth (1998[1969]): uma posio dentro de um jogo tnico interacional (ou seja, todos precisam dos outros jogadores para que possam definir e redefinir suas posies elas no existem a priori da interao). Para um olhar mais detalhado e crtico (principalmente na parte em que o conceito pode trazer o pressuposto de um ator racional que visa sempre um benefcio), ver Villar (2004). Enfim, entendo que tudo isto um ponto de partida e no de chegada, posto que idias semelhantes (o ponto de vista relacional) j eram presentes na antropologia antes de Barth penso em Evans-Pritchard (1993[1940]), por exemplo, mas no s.

regies diferentes. A questo : estas faces se percebiam como pertencentes a um mesmo coletivo? E aqueles dois grupos de perambulao? Urban (1978) agrupa todos eles sob a denominao xokleng (shokleng) termo que, na verdade, s veio a se tornar relevante mais tarde, nas interaes com os zug. Seria mais apropriado talvez, chamlos de pr-xokleng, ou nem assim, posto que o grupo que se encontra hoje na TII corresponde a uma das faces apenas, Rakran [Lakln], conforme o autor.

Msica Xokleng primeiras notas No que diz respeito msica Xokleng, existem alguns comentrios esparsos na etnologia. Henry (1964 [1941]), primeiro antroplogo que esteve entre o grupo nos anos de 1932 a 1934, a inclui no apndice de seu livro (p. 199-204): afirma que h pouca variao meldica e que sua letra geralmente construda por slabas sem sentido (meaningless) mas que existem na lngua xokleng (como se no ingls fizssemos uma msica utilizando apenas as slabas fly, me, to e assim por diante). O instrumento principal parece ser o chocalho, a melodia ficando por conta da voz (que geralmente canta sozinha). Ainda segundo o autor, tanto homens como mulheres conhecem as canes, os primeiros, porm, utilizando-as mais frequentemente em uma grande gama de atividades: no s nos ritos (funerrios, de cura, festas) como tambm no dia-a-dia, enquanto trabalham, ao amanhecer, ao entardecer e para impressionar uma parceira. Noto que Henry no se deteve mais nas canes por no possuir um gravador Little can be done with song analysis without phonographic recording (Henry, 1964: 204). No podendo registr-las, sua anlise para na formalizao da letra e nas interpretaes que o cantor dava a cada uma (interpretaes que Henry coloca sob suspeita, talvez por enfatizar demasiadamente o plano verbal da cano). Wiik (1998), que esteve entre os xokleng na dcada de 1990, comenta esta msica da qual Henry (1964) tratou brevemente, como mais uma das prticas que parecem, segundo o autor, estarem deixando de ser operantes: os nicos instrumentos musicais ainda confeccionados e utilizados so os chocalhos, usados para cantar canes rituais de contedo quase que totalmente desconhecido para os mesmos (Wiik, 1998: 9-10). Talvez exista algum tipo de continuidade entre as meaningless syllabes de Henry (1964) e este contedo desconhecido (que o autor parece limitar ao plano verbal/textual). Loch (2004: 26) tambm comenta uma espcie de 5

desconhecimento destas canes que muitos xokleng tem em casa (e que foram gravadas geralmente por um antroplogo). Mais interessante ainda atentar para as reflexes sobre a relao entre letra e msica na obra de Menezes Bastos nos contextos brasileiro (1996) e amerndio (1999[1978]) onde ao que tudo indica a primeira no detm o monoplio do sentido, sendo antes um pr-texto da cano (letra+msica), cujo som prenhe de semntica: o autor sempre lembra que uma cano pode ser assoviada e reconhecida enquanto tal (a letra sendo a dispensada). Aps a assertiva de Wiik (1998) que confunde o contedo da cano com sua letra, o autor enfatiza os cultos evanglicos como os rituais que mais mobilizam os nativos. Aqui, os hinos evanglicos se fazem presentes durante todo o ritual. Nos hinos, a presena das vozes, o violo, e s vezes o acordeom. Pequena confuso se evidencia ento: os chocalhos no so os nicos instrumentos musicais utilizados. Confuso incidental, sugiro: o culto, o violo e tudo o mais, no texto de Wiik, equacionado com o mundo dos brancos, portanto, no propriamente xokleng (que apenas se apropriam): propriamente mesmo, s o chocalho (aquele das canes esquecidas, desconhecidas, qui beirando algo que se tem chamado de extino). Estive na TII alguns poucos dias nos meses de fevereiro e abril11. Minha presena era constantemente indagada: quem sou e o que fazia ali; a resposta devendo ser curta e objetiva: (aspirante a) antroplogo querendo estudar msica, seja l o que tudo isso queira dizer (bendita polissemia). Quase que exclusivamente atravs do plano discursivo xokleng, trago um esboo do que parece apontar para uma classificao nativa sobre a msica. De incio, com estas brevssimas conversas que travei, consigo apenas afirmar que ela trabalha com uma diferenciao entre a msica dos antigos (do tempo do mato, pr-pacificao, s conhecida pelos mais velhos [j que os mais novos no se interessam, por isso, seguindo o discurso nativo, est em vias de desaparecer]), os hinos evanglicos, tocados e cantados principalmente nos cultos12 (a

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Entrei na TII aps apresentar, via e-mail, minha idia de pesquisa a alguns professores xokleng que trabalham em uma das escolas. Fui recebido, em ambas as visitas, na casa de Nanbl Gakran, professor na escola da aldeia Palmeirinha. Marco aqui que a minha breve ida a campo provavelmente esteve associada, entre os sujeitos com os quais conversei, tanto com a escola, quanto com a UFSC (velha conhecida dos xokleng). A impresso que tive foi que para os xokleng com quem mantive contato, estudar a msica estudar uma parte da cultura (aquela est dentro desta), que por sua vez se encontra mais digna e fiel nas pessoas mais velhas, os ancios. Cultura, aqui, so as coisas do tempo do mato. Loch (2004) faz comentrios semelhantes. 12 No sei precisar se eles so tocados exclusivamente ali.

maioria da populao evanglica), e a msica mesmo (predominantemente msica sertaneja, mas no s)13. Estas msicas parecem apontar para competncias distintas, as quais no me encontro apto ainda a descrever. Porm, me parece um pouco mais claro que a msica dos antigos est voltada para uma poltica simblica que tem no multiculturalismo seu discurso dirigente. Ou seja, ela se constri como um marcador diacrtico estratgico em disputas polticas (principalmente com os zug), sendo acionada em rituais especficos, como o dia do ndio e outras festas e rituais, que tem como objetivo as trocas com os zug. Enfim, esta msica arma; arma poderosa porque traz a originalidade do tempo do mato aquele do princpio, mtico. , contudo, muito diferente dos hinos. Estes parecem se definir por sua letra, que deve louvar a Deus. Prestando mais ateno ao plano musical (e no s textual a letra), percebi que os hinos se assemelham muito a outros gneros musicais, tendo destaque a predominncia da msica sertaneja (ouvi tambm alguns vaneires). Vale ressaltar, porm, que eles no so assim nomeados: no se trata de msica sertaneja (que participa da categoria msica mesmo), mas de hino (canes de louvor a Deus). O destaque nativo aqui est sobre o plano da letra. No que eles no vejam semelhana com a msica sertaneja ( pensvel naquele universo definir o hino como uma msica sertaneja com letra de adorao), mas a nfase primeira est na palavra, que nomeia o tipo de cano (hino ou msica mesmo). Com base nesta nfase, existe um grupo coral Xokleng, composto por homens e mulheres, que canta hinos na lngua nativa. Estes hinos so traduzidos do portugus para o xokleng por algum nativo bilnge14 e, com base em minha breve visita TII, no parecem ser muito recorrentes nos cultos, ficando mais restritos a outras festividades e rituais, como o dia do ndio ou seja, sua eficcia e competncia parece se aproximar daquela da msica dos antigos. O coral se utiliza de playbacks: um CD (se no me engano gravado ou comprado fora da TII) que possui faixas instrumentais, sobre as quais o coral canta no idioma. Tal procedimento (o uso de playbacks) comum tambm durante o culto, nas apresentaes solo: depois que o pastor l alguns trechos
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Noto que hino e msica no so a mesma coisa. Os hinos possuem letras exclusivamente voltadas para o louvor a Deus. Gibram (2008) encontrou diferenciao semelhante entre os kaingang e que parece ser comum ao universo das religies pentecostais. 14 Todos, com exceo de alguns ancios talvez, falam o portugus na TII. O nmero de falantes do xokleng tambm parece ser considervel (e , inclusive, ensinado nas escolas). Sobre a lngua xokleng, ver Gakran (2005) mesmo xokleng na casa de quem me hospedei em minhas idas TII.

da bblia, ora e canta junto com os fiis (acompanhado por algum instrumento, geralmente o violo, tocado por outro xokleng), d-se vez a estes solos. Vale destacar que durante o ritual a msica tem presena constante15. Como ltimo ponto deste breve comentrio, ressalto que existe uma interdio musical aos crentes: estes s devem ouvir e tocar hinos no sei se o interdito se estende tambm msica dos antigos, mas com certeza msica mesmo ele se aplica (at que ponto ele cumprido, e em que situaes e condies, no me possvel afirmar nada ainda). So estas, enfim, minhas primeiras impresses acerca da msica Xokleng (algumas talvez ainda um tanto arbitrrias nesta sistematizao preliminar aqui esboada). Destaco que neste projeto, que tem a msica como primeiro plano, no me restringirei a estudar uma das msicas (msica dos antigos, ou hinos, ou msica mesmo): entendo-as como integrantes de um sistema musical seguindo em outro plano, portanto, as pistas de Leach (1996[1954]) ao se recusar a entender uma sociedade como um lugar monoltico, entendendo-a antes como um sistema poltico comunicante e organizador das diferenas, colocado assim no plano dos modelos, sempre dinmicos. Ou seja, pensando-as como gneros musicais no sentido que Piedade (1997) e Menezes Bastos (1998) propuseram com base nos gneros de discurso de Bakhtin (2000[1979]): estes, acontecem sempre dentro de um cenrio de relaes, ou seja, no so isolados, mas sempre responsivos, dialgicos, e se caracterizam basicamente por adquirirem relativa estabilidade temtica, estilstica e composicional. Enfim, para entender x necessrio no se limitar a x, mas entend-lo como partcipe numa rede (ou seria num feixe?) de relaes que o constitui. Tratar da msica dos antigos exige, portanto, a referncia aos hinos, e por sua vez, msica mesmo. Todas elas estando ligadas ao mundo da artisticidade nativa, que coaduna a formatividade seja de uma casa, de um arco e flecha, de um chocalho ou de uma vestimenta. A artisticidade no existindo enquanto entidade emprica, mas imbricada nas mltiplas esferas da sociabilidade: nas relaes de parentesco, nos

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Gibram (2008: 46-8) tambm atentou para o culto como um ritual musical entre os kaingang. Ghiggi (2006) fala do culto entre os kaingang como caracterizado por muita msica, pregaes e oraes a Deus, podendo ser considerado por muitos como barulhento em contraponto s missas catlicas (p. 16). Gibram (2008) tambm comenta a sonoridade peculiar destes rituais: As pregaes, as lamentaes, so sempre feitas em tom bastante enrgico e sempre seguidas ou misturadas msica ritual - ou seja, aos hinos (p. 46).

conflitos, nas disputas, nos procedimentos de cura, nos rituais. Enfim, falar da msica falar sobre os xokleng16. O conceito de artisticidade empregado aqui vai alm daquele de arte, muito ligado concepo ocidental de belas artes. Tratando deste conceito, Menezes Bastos (2008) indica algumas senhas que apontam para este universo; passes de ingresso como beleza, monstruosidade, formatividade e eficcia so algumas destas senhas. Noto que aqui, ao invs de um estreitamento do conceito (comum sempre quando nos propusemos a definir algo restringir e marcar fronteiras), o autor afirma o quanto se pode ampliar sua abrangncia nesta percepo: artesanato, tcnica e a vida como um todo passa tambm a ter lugar no campo da artisticidade, caso comecemos a pens-la desta maneira (p. 154):

Por artisticidade entende-se aqui um estado geral de ser, que envolve o pensar, o sentir, o fazer, na busca abrangente da "beleza", esta compreendida para longe de suas formulaes ocidentais consuetudinrias, tipicamente academicistas to somente como passe de ingresso nos universos da arte (tanto quanto a "monstruosidade", a "prototipicidade", a "eficcia", a "formatividade" e outras senhas). (Menezes Bastos, 2007: 295).

Vale lembrar que tal amplitude permite pensar a artisticidade (ou musicalidade) de outros eventos que no so pensados como msica pelos nativos ou pelos zug, como, por exemplo, as lamentaes presentes nos cultos17. So estas, enfim, minhas primeiras consideraes sobre os xokleng e sua msica, onde os espaamentos e algumas incongruncias, bem como muitos possveis questionamentos (qui perguntas de pesquisa), aparecem, seno explicitamente, pelo menos nas entrelinhas.

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desta forma que compreendo o pressuposto holstico na antropologia, conforme Menezes Bastos (2004), que pensa a msica como congenitamente ligada corrente infinita de domnios da sociabilidade (p. 07). 17 Desta forma, tenho o trabalho de Basso (1985) e Seeger (1987) em mente.

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