HH - Siddhartha
HH - Siddhartha
HH - Siddhartha
Eermanut,
I[ase
( -".-'
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.ilIIERVA DE BOLSOT
Publ,icados:
Hernzann Eesse
(Esgotab)
I - Mad.a.rne Bovary, Gusta,vo Flfurt 2-O Infetno dos Hontens Vilos, Guido de Verona
3-O Crime do Padre Mouret, Eallio Tnlz 4 - Vie.tname - A Chacint de Mttar, John Sack 5/6-Pan Alm da Morte, Jdh! Glsworthy - Drdcula, Bra,m Sto(er de Cspdes Proib4o, Alba - Caderno das Camlias, Alexandre Dumas @ilho) 9 A Dama 10 Mfuirno Gorki -Voragem, ||-Um Sociolista Insocidyel, BerDrd Shaw l2-Um Homem Sd, Roger Vallad 13 -O Exlio, Peanl Buck 14-O Espio que Saiu do Frio, Jobn [-e Carr
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(Esgotado)
(Esgolado)
Siddhartha
20/2119
15/16-0 Tio Goriot, Honor de Balzac 17 Joaquim t.agaeirc -Vivas da Vh,os,lvan Turguemiev 18 Primero Amor,
Ftankensteht, Mary Sheltey Dirio de uma Criada de Quarto, Octave Mirbeau 22-Certos de Capri, Mrio Solda 23- A Virgem de 18 Qul@tes, frtigr'ti 24-Os Inf ortmios da Vittude, Marqus de Sade 25 - Santudrio, Wi,Uiam Fau,knqr 26- Aldeia das guias, cudes de Amorim 27-ACasa e o Mutdo, Rabidratrath Tagore (vol. I), Fdor Dostoiewsld 28/29 e -Cnme Castigo 30/31-Crime e Castigo (vol. II), Fdor Dostoiewski
32- O Camq.ra.da,
33
Cesare Favese
-Citq.es 34- A Atl ntid.a, Pier Bnoit 35 Siddhartha, Herann }IessP' (2.'
Editoral Mhrcrua
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t\ts31
EDIFORIAL MINER.VA
Fudrdr .d 1927, p6 lod nodrlruc. nr Lut Sorllrro, 3l-3 l20O LISBO, Porrurl
Ttulo do orbd
SIDDH'RTH'
NDICE.
PRIMEIRA PARTE
O fiho do
1974
brnane
2.'
dib:
Setembro
1982
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33 45
Gautama
Trdu'o dc F.n.rdr Ptnto nodrttr..
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Entre o povo
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Sarnsara"
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Iunto do rio
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Comrto . lmtr.!.o:
barqueiro
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O filho
Editdil Mh.r
Coop. dc
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MIMCR^FICA,
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C'ovilda ... ... ...
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t35
145
(-
PRIMEIR PRTE
Nl penumbra da casa, ao sol da beira-rio, junto dos barcoe, e sombra do bosque arnarelado e da fi gueira, cresceu Siddhara, o belo filho do brmane, com o seu amigo Govinda. O sol bronzeo,u-lhe os ombros esbeltos, na .margem do rio, enquanto fazia as a'blues sagradas, nos sacrifoios sagrados. Perpassavamhe sombras pelos ohos nos necrios no mangal, enquanto a ,me cantava, e dunante as lies do seu pai, com os homens eruditos. Havia rnuito que Siddhartha participava nas conversas dos homens eruditos, tnavava ddbates com Govinda e -com ele praticava a arte da contenplao e da meditao. J sabia pronunciar Oz silenciosamente - essa palavra das .palavras diz-la interiormente com -, a inspirao do ar e expirar depois com toda a sua alrna, cmn a luz do eaprito puro a il,uminarlhe a tronte. J sabi,a reconhecer Atman nos abismos do seu ser, indesirutvel, uno com o (Jniverso.
seu
Havia felicidade no corao do seu pai, poqu o filho era intelinte e sequioso de conhecimento.
rll
Alegravao v-lo crescer para ser um homem sbio, um sacerdote, um prncipe entre os Brmanes. Havia orgrllho no seio da sua me, quando o via andar, sentar-se e levantar-se: Siddhartha, forte, trelo, de membros flexveis, saudando.a com toda a graciosidad,:. O amor palpitava no corao das jovens filhas dos Brmanes quando Siddhartha passava pelas ruas da cidade, con a sua fronte alta, os seus olhos de rei e a sua figura esbelta. Govinda, o seu amigo, o filho do brman:, amava-o rnais que ningum. Amava os olhos a voz mpida de Siddhartha; amava o su modo de andar e a graciosidade absoluta dos seus movimentos; amava tudo quanto Siddhrtha dizia e fazia, e, sobretudo, amava a sua inteigncia, os seus belos e ardentes pnsamentos, a sua vontade forte e a sua grande vocao. Govinda sabia que o amigo no viria a ser um brmane vulgar, um indolente funcionrio encarregado dos sacrifcios, um negociante avaro de dizeres mgicos, um orador vaidoso e sem valor, um sacerdote perverso e manhoso ou, apenas,
uma boa e estpida ovelha entre um grande rebanho. No. E ele, Govinda, no queria tornar-se nenhuma dessas coisas, no queria ser um brmane como dez mil outros da sua espcie. Queria seguir Siddh^artha,
Era por isso que todos arnavam Siddhartha. Ele encanta\,'a e tornava toda a gente feliz. Mas Siddhartha no er feliz. Caminhando ao longo dos rseos carreiros do figueiral, sentado en
contempliao sombra azulada do bosque, lavando os membrf,s no barho dirio de expiao, ofe'ecendo sacrifcios nas profundidades do strnbreado mangial
com bsouta graciosidad,e de maneiras, arndo por todos, uma alegria pa.ra todos, no obstante tudo isso ainda no havia alegria no su corao. Do rio, das cintilantes estrelas da noite e dos raios escal' dantes do sol dosprendiam-se e invadiam-no sonhos e pensamentos agitados. Inladiarn-no sonhos e um desassossego de alma qu se erguiam do fumo dos sacrifcios, emanavam dos versos do Rig-Veda, nessurnavam dos ensinamentos dos velhos br,manes,
adorado,
magnfico.
E se ele alguma
vez
se
tornasse deus, se penetrasse na Radincia Absoluta, ento Govinda queria acompanhlo como seu arnigo, seu companheiro, seu servo, seu porta-lana, sua sombra.
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Siddhartha comeara a sentir dentro de si as sementes do descontentamento. Comeara sentir que o anor do seu pai e da sua m, e tambm o amor dLo seu anigo Govinda, no o fariam senpr f,eliz, no lhe dariam paz, no o satisfariam e lhe bastaniam. Comea.ra a suspeitar que o su respitvel pai e os seus outros professores, qs sbiod brrnanes, j tinham tnanderido par el o grosso e o melhor da sua sabedoria, j tinham despejado a soma total dos seus conhecimentos no vaso sfrego de os receber que ele era-e o vaso no estava cheio, a sra alma no estava em patz, o seu corao no stava seeno. As ablues sabiam bem, mas
II
eram gua, no purificavam dos pecados, no aliviavam o corao deprimido. Os sacrifcios e as splicas aos deuses erram exoedentes, rnas seriam tudo? Dariam os sacrifcios felicidade? E os deuses? Fora realmente Prajapati que criara o mundo? No fora Atman que o criara sozinho? No eram os deuses formas criadas como ele e as outras pessoas, mortais, transitrias? Estaria portanto bem, seria acrtado, seria um ge,sto sensato e digno, oferecer sacrifcios aos deuses? A quem rnais se deveria of,eeoer sacrifcios, a quem mais se deveria honrar, seno a Ele, a Atman, o nico? E onde se encontrava ,tman, onde residia, onde batia o Seu .corao eterno, ss no dentro do Eu, no,rris secrto, no eterno que cada pessoa trazia dentro de si mesma? Mas onde estava esse Eu,,esse mais seoreto? No era carne e osso, no era pensmento nem conscincia. Isso era o que os hoens sbios pensalram. Onde se encontrava, erto? Avanar na direco do Eu, na direco de Atman haveria outrre carnrinho que valesse a pcn procuriar? Ningurn mostratu o caminho, ningum o conhecia-nem o su pai, nem os professores, nem as can&s sagradas. Os Brmanes e os seus livnos sagr',ados sabiam tr.ldo, tudo; tinham penetrado em tudo-na criao do mundo; na origem da fa.la, da comida, da inalao
e da exalao; na harmoni,a dros sentidos, e nos actos
Muitos versos dos livroe sagrados, e sobretudo os Upanishads do Sama-Veda, falavam dessa coisa mis seorta. Est escrito: uA tua alma o mundo inteiro.) Diz q'ue quando um homem dorrne, penetra no seu mais ntimo e vive em Atrrr-.an. Havia uma sageza maravilhosa nesses versos; todo o conhecimento dos sbios se continha neles, numa linguagern de encantar, ura como mel colhido .pelas abelhas, No, no se podia ignorar facil'mente essa tremenda quantidade de conhecirnrento, reunida e preseada lxrr sucessivas geraes d,- sbios brmanes. Mas onde estavam os brmanes, os sacerdotes, os bios, bern-sucedidos no apenas no facto de ,possui,rern csse conhecimento profundssimo, mas tambm em experimento, m sentilo? Onde estavam os iniciados que, alcanando Atman no sono, o podiam reter despertos, na vida, em toda a parte, na fala c na aco? Sidd,hartha conhecia muitos ilustres santo, enrbrmanes, e acima de todos eles o pai dito, digno da rnais alta considerao. O pai era digno de admirao, os seus modos era/In sernos e nobres, levava uma boa vida, as suals palvras eran sensatas, na sua cabea existiam nobres e belos pensarentos mas, mesno ele que sabia tanto, vivia cn beatitude, estava m paz? No seu'ia tambm dos que procuravam o caminho, um insacivel? No ia constantsmente s fontes sagradas da salbed,oria, corn uma sede insacilel, aos sacrificios, aos livros, s dissertaes dos Brmanes ? Porqu,s precisava ele, o inocente, de se lavar dos pecados e de se rpurificar de rovo, todos os dias? Sigrificaria isso que
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ll
dos deuses. Sabiarn um nmero tremendo de coisas mas vaeria a pena - ignoravam a coisa saberem todas ressas coisas se importante, a nica coisa importante?
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l)
Atman no estava, afinal, dentro dee? Que a fonte no se encontrava dentro do seu prprio corao? Deve-se encontrar a fonte dentro do Eu, deve-se possu-la. Tudo o mais procurar um desvio, etro. Eram stes os pensamentos de Siddhartha, era esta a sua sede, a sua mgoa. Repetia muitas vezes a si ,rnesmo as palavras de um dos Chandogya-Upanishads: oEm verdade, o nome de Bra.me Satya. Efectivamente, aquele que o sabe penetra todos os dias no mundo divino." Parecialhe frquentemnte )erto, esse m'undo divino, rnas nunca o alcanara completamente, nunca saciara a derradeira se.de. E entre os homens sbios qu,e conhecia e cuj os ensina,rnentos apreciava, no havia um que tivesse alcanado inteinamente o mundo divino, um nico que tivesse saciado por competo a sed etrna. Govinda disse Siddlhartha ao seu amigo -, Govinda, vem comigo para a figueira-d,e-be,ngala. Vamos praticar meditao. Dirigiram-se para a figueira-de-bengala e sentaram-se, a vinte passos um .do outro. Enqunto.se sentava, pronto para pronunciar o Oz, Siddhartha recitou suavgmente:
Om o arco, a setd a olm, Brame o alw da seta
Quando terminou o tmpo habitual destinado prtica da meditao, Govinda levantou-se. Entardecia, eram horas de efchrar as ablues vcspertinas. Chamou Siddhartha pelo nome; ele no respondeu. Siddhartha estava absorto, de olhos fixos, como que presos numa meta distante, e @m a pont da lingua a rr-se um pouco,entre os dentes. Dir-se-ia que no respirava. Continuou assim, perdido crn meditao, pemsando Om, ccxrr a sua alma oomo a scta apontada a Brame.
Uma vez, passaram pela cidad,e de Siddhartha rtlguns samanas. Ascetas errantes, eram trs ho,
rcns magros e consumidos, nem velhos nem novos, tlc ombros sujos de p e a sangrar, praticamrte rrus, requeimados plo sol, solitrios, estranhos e lrostis-chacais escazelados no mundo dos ho rrcns. Em redor deles pairava uma atmosfera de serena paixo, de dedicao devastadora, de inexor rivcl abnegao. noite, depois da hora de conternplao, Siddhartha disse a Govinda: Amanh de maah, meu amigo, Siddhartha tunta-se aos samanas. Tornar.se- um sa!utna. Govinda empaideceu ao ouvir tais palavras e leu tlu:iso no rosto determinado do amigo, u'ma dreciso tiro firme e irredutvel como a seta disparada pelo rr r co. Bastou-lhe um olhar a esse rosto para compro;nder que tudo comava, que Siddhartha ia selirrir o seu prprio caminh. O szu destino comeava rr dcsenrolar.se, e com o destino de Siddhartha o
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Ao qual
se aponta limtemente.
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dee, Govincla. Ficou to plido como uma casca de
I
rb
banana seca. Siddhartha, o teu pai permiti-lo? -Oh, Si.ddhartha olhouo como se tivesse acabado de aoordar. Rpido como o remrpago, leu na alma de Govinda, compre:ndeu a sua alsiedade e a sua resignao. No despcrdiaremos palavras, Govinda - murm'urou, docemente. Arnanh, ao nascer do dia, iniciarei a vida dos Samanas. No discutamos mais o
assunto.
Siddhartha entrou na sala onde o pai estava sentado numa esteira de entrecasca. Aproximou-se e pan:u, de p, atrs do pai, espera que ele desse
pela sua presena. tu, Siddhartha? perguntou o brmane. -s Diz o q ur-' tens a dizer. Corn sua licena, pai, vi,m dizerlhe que desejo deixar a sua casa amanh e juntar-rne aos ascetas. Desejo tornar-me urn samaa. Espe,ro que o pai no se oponha. 0 brmane fi,cou calado durante tanto tenpo que as estrelas passram atravs da pequerna ja.nela e o seu desenho mudou antes de o silncio do aposento se quebrar, finalrnrente. O filho permaneceu sie'ncioso e imve, de braos cruzdos. O pai, silencioso e imvcl, continuou sentado na esteira. E as estrelas iam passando, no ou. Por fim, o pai disse: No fica bem aos Brmanes pncferi,rem palavras violentas e colricas, mas h desagrado no meu
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olao. No gostaria de te cruvir fazer seme,hante lrt tlido segunda vez. () brrnane levantou-se devagar. Siddhartha perrrirrcc/:u silencioso e de braos cruzados. - Porque esperas? -.perguntou.lhe o pai. que espero. - Sabe o O pai saiu do aposento, desonten&, e estendeu-se I lll cima. ( umo passasse uma hora sem que conseguisse rlolmir, o brmane evantou-se, andou de um lado l)rra o outro e depois saiu de casa. Olhou pela janelirrha da sala e viu Siddhartha de p e de braos ( rlrzados, invel. O seu vesturio branco emitia rrrrr brilho frlrco. Voltou para a cama, com o corao pr, r'turbado. Como passasse outra hora e o brmane contifluasse scrn conciliar o sono, levantou-se no\r'amente, andou rlc um lado para o outro, saiu de oasa e reparou que r, l-ua nasc:r?. Espreitou pela janelinha., Siddhartha r'.ontinuava imvel e de braos cruzados, com o luar rr brilharlhe nas canelas nuas. Com o corao pertrrlbado, o pai voltou para a cama. Levantou-se de novo passada uma hora e, passarlas duas horas, olhou pela janelinha e viu Siddhartlra imve envolto em luar, imvel luz das estrelas, imve na escurido. Voltou silenciosamente, lrora aps hora, e hora aps h ra o viu de p, imvcl. O seu corao encheu-se d-- clera, de ansie, rlade, de rnedo, de rngoa. E na utima hora da noite, antes de nascer o dia, voltot.r de novo, entrou no aposento, e viu o jovern rlc p. PareceuJhe alto e desconhecido.
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(tu, Siddhartha? - Que o que tespero. Sabe - Continuars a de p, espera, at ser dia, tarde, note?
esperas espera. - Cansar-tc-s, de - Cansar.m,:-ei. Siddhartha. - Adorrnecers, Siddhartha. - No adormecerei. - Morrers, Siddhartha. - Morrerei. - Preferias morrer a obedeoer pai? - Siddhartha obedeceu sempre ao teu pai. ao - Queres dizer que aba,ndonars oseu pojecto? teu - Siddhartha far o que o pai lhe disser, . - primeira luz do dia entrou na sala. O brmane A
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Continuarei
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foi ter com a me, fazer o que r'c lhe mandara. Quando, ao nascer do dia e com as pcrnas dorrrrentes, saiu lentamente da cidade ainda adormerida, rrrna sombra encolhida emergiu da ltima cabana e juntou-se ao peregrilo, Era Govinda. - Vieste - disse Siddhartha, e sorriu. Vim respond,eu Govinda.
rrou a cabea ao pai e
notou que os joelhos de Siddhara tremiam lelne mente, ffras no viu o mnimo tremor no seu rosto. Os seus olhos, olhavam para muito longe. Ento o pai compreendeu que Siddhartha no poderia oontinuar em casa com ele, pois j o deixara. O pai tocou no ombro do fitrho. para a floresta e torna-te sarnaaa -Vd Se encontrares bem-aventurana na - disseJhe. foresta, volta-e ensina-ma. Se encontrares desiluso, regressa e voltaremos a oferecer sacrifcios aos deuses, juntos. Agora vai beijar a tua me e dizerlhe que partes. Quanto a mim, egou a.hora de ir ao rio fazer a primeira abluo. Tinou a mo do ombro do filho e saiu. Siddhartha cambaleou, quando tentou andar. Dominou-se, incli18 19
Oorn
Somnrs
Ao anoitecer desse dia alcanaram os samanas e ofereceram-lhes a sua companhia e submisso. Foram aceites. Siddhartha deu as roupas a urn brmane pobre qu encont,ou na estrada e ficou aponas com a tanga e a capa oor de terra sem pespontos. S cornia trma vez por dia e nutca cozinhava os alimentos. J,ejuou catorze dias. Jejuou vinte e oito dias. A carne desapareceu das suas pernas e das suas faoes. Nos seus olhos dilatados reflectiam-se estranhos sonhos. As
unhas cresceram, nos seus dedos magros, e no qnreixo despontou-lhe uma barba seca e hirsuta. 0 seu olhar gelava quando encontrav mulhenes; os seus lbios arrepanhavam-se de desprezo quando passava por uma cidade cle gente bem vestida. Vu otrnerciartes negociando, prncipes indo para a caa, giente enlutada chorando os seus mortos, prostitutas ofereoendo-se, mdicos cuidando de doentes, sacerdo,tes decidindo o dia aproprado para semar, amantes amando.se, mes ninando os filhos - mas nada Ihe par+ ceu digno de um olhar que fosse, era tlrdo mentira, tresandava tudo a mentira. A felicidade e a beleza
rl,
2I
mais no eran do que iluses dos sentidos, cstava tudo con'denado a apodrecer. O mundo tinha um gosto amargo. A vida era dor. Siddhartha ,tinha um nico objectivo: despejar-se, fiar vazio de sede, des.ejo, sonhos, prazer e mgoa. Deixar o Eu morrer. No ser mais Eu, oorecer a paz de um corao vazio, conhecer o pensamento puro. Era esse o seu objectivo. Quando o Eu estivesse completamente vencido e morto, quando todas as paixes e todos os desejos estivessem silenciados, ento desprtaria o mais ntimo do Ser que j no Eu, o grande segredo! Silenciosame,nte, Siddhartha parava sob os ardentes rairos do sol, cheio de dor e de sede, parava at n,o sentir mais dor 'nem sede. Silenciosamente, parava delbaixo de chuva, com a gua a escorrer-lhe do cabelo para os ombros enregelados e da para os quadris e para as pernas enregeladas. O asceta ficava assim at deixar de sentir os ombros e as pernas enregeladas, at os seus membros emmdecere'm, ficarem serenos. Silenciosamente, acocorava-se entre espinhos. O sangue escorrialhe da pele a arder, formavan-s: lceras, e Siddhartha permanecia rgido, imvel, at no esoorrer mais sangue, at a pele deixar de lhe ander e picar. Siddhartha sntava-se erecto e aprendia a poupar o flego, a respirar pouco, a @nter a respirao. Enquanto inaava, aprendia a acalmar o bater do seu corao, a reduzir as suas pancadas, at se torarem poucas, at quase no existirern. Ensinado pelo mais veho dos samairas, praticou a au ongao e a meditao, de aoordo com as
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regras sarnanas. Uma gara voava sobrc o bosque cle bambu e Siddhartha recolhia-se na sua alma, voava sobre florestas e montanhas, tornava-se urma gara, comia peixes, sntia a fome das garas, usava a linguagem das garas, morria a morte das garas' Um acal norto jazia na margeln areno'sa, e a alma de Siddhartha i'nsinuava-se no seu cadver, Siddhartha tornava-se um chacal mo'rto, iazia na margsn, irrchava, fedia, apodrecia, era desm'embrado por hienas, espicaado por abutres, tornavase esqueleto, tornav3-se p, misrrava-se com atmosfera' E a alma de Siddhartha regressava, morria, corrompia-se, transformava-se ern p, conecia o caminho atormstado do ciclo da vida. Espereva clom nova sede, como um caador num abismo onde o ciclo da vida termina, onde h um fim par:a as causas, onde comea a eternidade indolor. Matava os sentidos, matava a memria, saia do seu Eu de 'mil formas diferentes. Era anirnal, carcaa, pedra, madeira e gua, mas reacordava todas as vezes. O Sol ou a I-ua brilhalnam, ele era de novo Eu, regressava ao ciclo da vida, tina sede, dominava a sede, e voltava a ter sed,e. Siddhartha aprendeu muito oom os Sarnarnas' aprendeu muitas rnaneiras de perder o Eu' Pero caminho da autonegao atravs da doa:, "...t do sofrimento voluntrio e do domnio da atravs dor, atravs da fome, da sede e da fadiga' Percorreu o caminho da autonegao atravs da rneditao, e expulsando todas as imagens do esprito' Aprendeu a viajar por estes e otrtros caminhos. Perdeu o Eu
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r.
I
n)il vczes e durante dias a fio vagueou num estado dc lo ser. Mas embora os caminhos o afastassem do Eu, no firn sempne a ele o reconduziam. Embora Siddhartha fugisse mil vezes do Eu, fosse nada, fosse animal e pedra, o regresso el,a inevitvel, era inevitvel a hora en que se reencontrava de novo ao sol ao luar, sombra ou chuva, e era de novo Eu e Siddhartha, e de novo sentia o tormento do pesado cico da vida. A seu lado vivia Govinda, a sua sombra, que percorria o mesmo caminho e tentava os mesmos empreendimentos. Raramente conveq:savarn uqn com o outro, arn do que os seus servios e prticas to,r'navam necessrio. s vezes atravessavam juntos aldeias, a fim de esmolarem comida para eles e para os seus mestres. perguntou Siddharte parece, Govinda? - Queincio de uma dessas expedies. Achas tha, no que avanmos alguma coisa? Acanrnos -o nosso objectivo? E Govinda respondeu: Aprcndcm-os e ainda estamos a aprender. Tornar-te's um grande samara, Siddhartha. Aprendes todos os exerccios rapidamonte e os samanas velhos louvam-t com frequncia. Um dia, sers um hornem santo, siddhartha. No me parece, m,3u amigo. At agora, o que aprendi .om os Samanas poderi,a to aprendido mais depressa e mais facilmente em qualquer estalagem de um bainrto de prostitutas, entre os carregadores e os jogadores de dados.
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Brincas, Siddhartha. Como poderias lor irl)r'crra conter a respirao e a scr irtst'tt svel fome e dor entre esses desgraados? E Siddhartha redarguiu suavemsrte, como se falasse sozinho: a meditao? Que o abandono do -Que corpo? Que jejuar? Que contr a respirao?
dido a meditar,
brio. Mas que eu, s consigo um breve alvio atravs dos meus exerccios e das minhas meditaes, e que me
Siddhartha,
No sei, nunca
fui um
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encontro to onge da sabedoria e da salvao como uma criana no tero materno, isso sei, Govinda' Noutra ocasio, qua,ndo saiu da floresta com Govinda a fim de esmolar comida para os seus irmos e meslres, Siddhartha comou a falar e perguntou: Ento, Crovinda, seguimos pelo caminho certo? Estamos a adquirir saber? Aproximamonos da salvao? Ou andaremos em crculos, ns <1uc ponsvamos escapar do crsulo ? rcspondcu-lho Aprendemos m;uito, Siddhartha - muito mais' E ainda temos de aprender Govinda. No andamos em circulos; subimos. O caminho uma espiral e ns j subimos mruitos degraus' idade calcuas ter o nosso samana mais - Quenosso resPeitvel mestre? idoso, o
sessenta anos.
Creio que
de
procuram, entr tantos devotados vida interior, entre tantos homens santos, nenrum econtrass o caminho certo? Mas Siddbartha respondeu-lhe, numa voz to cheia de mgoa como de zom,baria, num voz suave, um pouco triste e um pouco brincalhona: Em breve, C'ovinda, o teu amigo abando,nar ocaminho dos Samanas, ao longo do qual viajou cortigo tanto tempo. Padeo de sede, Govinda, e neste ,longo caminho salna,na a minha sede no diminuiu. Se.rnpre tive sede de saber, sernpre tive muitas perguntas a fazer. Ano aps ano interroguei os Brmanes, ano aps ano interroguei os sagrados Vedas. Quem sabe, Govinda, se no teria sido igualmente bom, igual'mente inteligent e sagrado, se houvera intexrogado o rinoceronte cru o chimpanz? Precisei de muito ternlro, e ainda precisarei de mais
para apronder o seguinte: que no apre.nde,rnos nada. Acredito que existe na essncia de tudo algo a que no podomos chamar saber. Existe apenas, meu amigo, um conhecimento um conhecirnento que es,t em toda a parte, que Atman, que est em mim, em ti e em todas as criaturas, e eu comeo a acreditar que esse crynhecirnento no tsrn pior ini'rnigo do que o homem sabedor, do que a sabedoria. Ao ouvir tais palavras, Govinda imobilizou-se no caminho, levantou as mos e'pedi r: Siddhartha, no angusties o teu amigo com csse falar. Em verdade, as tuas palavras perturbam-me. Pensa que significado teriar as nossas preces sagradas, a venerabilidade dos Brmanes e a santidade dos Samanas se, colno dizes, no hou27
c-omentou Siddhartha.
Tem sessenta anos e no alcanou o Nitwana Ter setenta nos, c oitota anos, e tu e eu tornar-nos-emos to velhos como ele, e faremos exerccios, e jejuaremos, e meditarcmos, mas no alcanaremos o Nirvana. Norn elc, nom ns' Govinda, creio que entre todos os Samanas lalvez nen um alcance o Nirvana. Encontra.mos consolaes, aprendomos truques com os quais nos iludimos a ns prprios, mas o essencial - o cami'nho - , isso no encontramos. pediu Go digas palavras to terrveis -NoComo poderia ser possvel que-entre lantos vinda hornens sbios, ertre tantos brrnanes, entre tantos samanas austeros e meritrios, entre tntos que
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santo na Terra, que seria precoso e sagrado? Go,vinda [urmurou, para consigo, um versculo de um dos Upanishads:
Aquele cujo puro esprito rcllexivo mergulha em Atman Conhece uma beatitude ittexprimvel pr palavras.
Quando um pas assolado pela pcstc e surge o boato de que h um homem, um homem strio, um
-L
_t
Siddhartha ficou calado, a reflectir longamente nas palawas proferidas por Govinda. uSim,, pensou, de cabea baixa, nque resta de tudo quanto nos parece santo? Que resta? Que sobrevive?, E abanou a cabea. Uma vez, viviam os dois jovens haa cerca de trs anos com os Sa.manas, cujas prticas compar' tilhavam, ouviram urn boato, urna notcia, nascida de muitas fontes. Aparecera algum chamado Gautna, o Sbio, o Buda. Vencera ern si mesrno os desgostos do mundo e imobiizara o ciclo do renascimento. Andava pelo pas a pregar, cercado por dis cpulos, sem ter quaisquer bens, som casa nem esposa, usando a capa anarela dos ascetas, mas de fronte erguida. Era um santo, brmanes e principes olrvavamrse diante dele e tornavam-se sous discpulos. Essa notcia, esse boato, essa histria, ouvia-se e contava-se aqui e ali, em'toda a parte. Os Brmanes falavam do caso nas cidades; os Samanas, na floresta. O nome de Gautama, o Buda, chegava conlinuarnete aos ouvidos dos jovens, referido por quem dizia bem ou mal dele, o'louvava ou o desdenhava.
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homem erudito, cujas palavras e cujo hli,to so suficientes para curar os padecentes, e o boato se propaga atravs do pas e todos falam dele, muitos acreditam e muitos duvidaqn, mas tarnbm h muitos que se pem imediatamentc a caminl-o, procura do sbio, do benfeitor. Assim acontecia com aquele boato, com aquela feliz notcia do Gautama Buda, o sbio da famlia dos Sakyas. Possua muita sabedoria, diziam os crentes; lembrava-se das suas vidas anteriores, acanara o Nirvana e nunca mais regressaria ao ciclo, nunca mais mergulharia na agitada corrente das formas. Contavam-s a sgu respeito rnui'las coisas maravilhosas e incrveis: opsrara miagres, vencera o demnio, falara com os deuses. No entanto, os seus inimigos e os descrentes diziam que o Gautama era rlm mentiroso e u'm indolente, que passava os seus dias a viver regaladamente, desdenhava os sacrifcios, era inculto e no conhccia prticas nem mortificaes da carne. Os boatos acerca do Buda pareciam interessantes, havia magia nessas noticias. O mundo estava doente, a vida era difcil e ali parecia haver uma nova esperana, parecia haver uma mensagem reconfortante, suave, cheia de belas promessas. Por toda a parte ( orriam boatos acerca do Buda. Jovens de toda a ndia escutavam e sentiam um anelo e uma espelrna. Entre os filhos dos Brrnanes, nas sidades ,' nas aldeias, todos os peregrinos e desconhecidos ,rram bem recebidos se traziam notcias dele, do
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"t_
Sbio, do Sakya-Muni
Sakyas.
de cada vez, cada pouco pre'nhe de esperana e de dvida. No falavam. muito a tal respeito, pois o samana mais velho no gostava do boato. Ouvira dizer que esse aegado Buda fora anteriormente um asceta, vivera nas florestas e regressara depois vida f4ustosa e aos prazeres do mundo, e por isso no delenclia a causa do Gautama. Siddhartha-disse, um dia, Govinda ao amigo-, - estive na adeia e um brmane convidou-me a hoje entrar em sua casa, onde estava o filho de um brmane de Magadha. Este vira o Buda com os seus prprios olhos e ouvira-o pregar. Confesso que fiquei cheio de vontade de o conhecer e pensei: nQuem dera que Siddhartha e eu vejamos o dia em que possamos escutar os ensinamentos dos bios do Perfeito." Meu amigo, no vamos tambm ouvir os ensinamentos dos lbios do Buda? Sempre pensei que Govinda ficaria com os Samanas, acreditei sernpre que o seu objectivo fosse ter sessenta, setenta anos, e continuar a praticar as artes e os exerccios que os Samanas ensinam, Mas que mal conhecia Govinda! Que mal conhecia o que existe no seu co,rao! Agora, meu querido amigo, desejas enveredar por novo caminho e ouvir os ensinamentos do Buda. Tens prazer em troar de mim, mas eu no me importo, Siddhartha. No sentes tambem uma nsia, um desejo de ouvir os szus ensinamentos? E no
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I I I
me disseste uma vez que no percorrerias o caminho clos Samanas durante muito mais tempo? Siddhartha riu-se e a sua voz exprimiu uma sombra de mgoa e uma sombra de zombaria, quando redarguiu: Falaste bem, Govinda, recordaste bem, mas - recordar tambm o resto que te disse: que me tleves tornei cptico em questes de ensinamentos e saber t' tenho pouca f nas palavras que chegam at ns vindas dos lbios de mestres. Mas, seja, meu amigo, ('stou disposto a ouvir essa nova doutrina, emibora crria, no meu corao, que j provrmos o melhor Ir rrto dea- Alegra-me que concordes. Mas, expica-me, c'omo .: possvel que a doutrina do Gautama nos tenha rcvclado os seus melhores frutos antes mesmo de o tcrmos ouvido ? .-- Saboreemos este fruto e aguardernos outros, ( irrvirrla. Este fruto, pelo qual j estamos em dvida p,uir (()rl o Gautama, reside no facto de ele nos ter irl;rstatlo dos Samanas. Se h outros e melhores I r rr l,s, s o saberemos se esperarmos com pacincia. No rrcsmo dia, Siddhartha informou o samana trrrrs itloso da sua deciso de o deixar. Falou-lhe r orrr rr collcsia e a modstia convenientes a jovens l rrlrrrros. Mas o velho irritou-se por ambos os rapa/r.! rlll!'rc'cn deix-o e ergueu a voz e ralhou-hes vlrrllrrIrrrrtsnte,
(iovirrcla ficou perturbado, mas Siddhartha enr u,lrr (,s rbios ao ouvido do amigo e segredou-he: gora vou mostrar ao velho que aprendi alltrrrrr,r coisit cclm ele.
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proximou-se do samana, de espirito muito atento. Fitou os olhos do velho e dominou-o com o seu olhar, hipnotizou.o, emudeceu-o, conquistou a sua vontade, ordenouhe silenciosamente que fzesse o que ele, Siddhartha, desejava. O velho ficou calado, de olhos vtreos, vontade inerte, braos pendentes impotente sob a fonma do esprito de Siddhartha. Os pensamentos deste venceram os do samana, que teve de azer o que eles lhe ordenavam. Por isso, o velho inclinou diversas vezes a cabea, dem a sua b&to e tartamudeou urn desejo de boa viagern. Os joverrs agradeceramhe ta desejo, retriburam-lhe a incli nao de cabea e partiram. No caminho, Govinda disse: No imaginava que tivesses aprendido tanto com os Samanas, Siddhartha. difcil, muito difcil, hirpnotizar um samana velho. Tenho a certeza de que se tivesses ficado csm eles no tardarias a aprender a caminhar sobre a gua. tenho nenhum desejo de caminhar sobre -No redargui'u Siddhartha. Os velhos samaa gua nas que se contentem com tais artes.
Gautanna
Ne cidade
conheciam
-O
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Jetavana, no jardirn de Anathapindika. Podeis 1 passar a noite, peregrinos, pois h espao bastante para as muitas pessoas qJe vm escutar os seus
ensinamentos.
Govinda rejubilou e exclamou, feliz: Ah, ento chegmos ao nosso objectivo e a nossa viagern est no fim! Mas dizei-nos, me de peregrinos, conheceis o Buda? Viste-lo com os vossos pr prios olhos? o Sbio muitas vezes. Quantos dias o vi j -Vi as ruas, silenciosamente, na sua capa amapercorrer rela, estender em silncio a sua esaudela das esmolas s portas das casas e regressar com ela cheia! Govinda escutava'o, encantado, e desejaria fazer muitas mais perguntas e ouvir muitas rnais coisas, mas Siddhartha recordoulhe que eram horas de partir. Agradeceram rnulher e 'partiram' Quase no era necessrio pe'rguntar o canrinho, pois ntrm+ rosos peregrinos e monges, devotos do Gautama, dirigiam-se tambm para Jetavana. Ouando chegaram, noite, virarn chegar cntinuamente mais gente. Ouvia.se um mua'rnrio de vozes, pedindo e bt.ndo abrigo. Os dois samanas, habituados vida na floresta, encontraram abrigo sem difiouldade e l se deixaram ficar ate de manh. Ao nascer do Sol, zurpreendeu-os o grande nmero de crentes e ouriosos que tinhan ai passado a noite. Moges vestidos de arnarelo percorriam os carreiros do magnfico bosqTre' Aqui e ali' sentavam-se debaixo das rvores, absortos em meditao ou empenhados em conversas de natureza espiritual' Os iaidins sombreados pareciam uma cidade, um
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imenso cortio 'fervilhante de abelhas. A maioria dos monges partiu com a sua escudela das es,rnoas, a fim de arranjarem comida ,para a sua refeio do meio-dia, a nica que inge,r.iam em todo o dia. At o prprio Buda ia esmolar, de manh. Siddhartha viu-o e reconheceu-o imediatamente, cono se um clerLrs lho apontasse. Viu-o sair sere_ !imente com a sua escudela das esrnolas, homem clcspretcnsioso de capa amarea.
Siddhartha, baixinho,
Go-
ltttilam-no e c.rbservaram-no. ( ) tsuda seguia calmamente o seu caminho, perrlirlo cm pensamentos. O seu semblant" ,"a"aro rro r'\l)rirnia felicidade nem tristeza. parecia sorrir \ll;rv{.n('nlc para consigo, com um sorriso secreto, .,r'rrclhante ao de uma criana saudvel, enquanto r,rrrrirrhava lranquio, sereno. Usava a ca4ta e camitrlrrvir exaotamente como os outros .monges, nas o nlr r'()sto e cs,seus passos, os seus tranquilos olhos l',rrros, u sua tranquila mo pendente e cada dedo rf,r .rlr rno, falavam de paz, falavarnde integridade, riri' l)r'()curavam nada, no imitavam nada, reflectiam rrr,r \(.t ('ticade contnua, uma luz imarcescvel, u.ma
Irr
Govinda olou atentmente pra o monge de arnar,lo, que nada distinguia das centenas de outros r(rges, e tambm o reconheceu. Sim, era ee. Se-
/ r vu ltcrvel. lr .rssirn Gautama entrou na cidade para obter r'., ll,las, c os dois salmanas reconhecerarn-no
r
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apenas
prios lbios
Siddhartha no respondzu; no sentia grande curiosidade ercerca dos ensinamentos, no pensava que lhe ensinassem algo de novo. Ouvira, assim como Govinda, a substnsia dos ensinamentos bdicos, ainda que apenas atravs de notcias en segunda e terceira mo. Mas olhou atntamente para a cabea de Gautama, Para os seus ombros' para os seus ps, pana a sua mo pendente e imvel'
pareceuJhe que em todas as articulaese de todos os dedos da sua mo havia saber. Falavam, respiravam, irradiavam verdade. Aquele thomem, aquele Buda, era deveras um ho,mem santo at s pontas dos dedos. Jamais Siddhartha apreciara tanto um homem, jamais amara tanto um homem. Seguiram ambos o Buda cidade e regnessaram em sllncio. Naquele dia, tencionavam abster-se de comer. Viram Gautama regressar e cormer a sua refeio no meio do crculo dos sous discpulos-o que comeu nc-r satisfaria um pssaro-, e viram-no retirar para a sombra de uma mangueira. Mas ao entardecer, quando o calon diminuiu e no acampam3ntD todos estavam atentos e reunidos, ouviram o Bu'da pregar. Ouvirarn a sua voz, que tambm era perfeita, serena, cheia de paz. Gautama falou do sofrimeto, da origem do sofrimento, do moclo de se libertarem do soJrimento. A vida cra dor e o mundo estava cheio de sofrimeno, rnas o caminho para a libertao do sofrimento fora encontradoe
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--
disse Govinda.
Havia salvao para os que seguissem o caminho do Buda. O Sbio falou em voz suave mas firme, ensinou os quatro pontos principais, ensinou o Caminho ctuplo e, pacientemente, respeitou o mtodo habitual de ensinar, com exemplos e repeties. Clara e serena, a sua voz chegava aos ouvidos dos que o escutavam como uma luz, como trrna estrela
no cu. j era noite mtos Quando o Buda acabou - e pediramJhe , que os lrcregrinos aproximaram-se rceitasse na comunidade. O Buda aceitou-os e disse-lhes: "Ouvistes bem os ensinamentos. Juntai-vos, pois, a ns e caminhai sm beatiard, pondo fim ao
sofrimento., Govinda, o tmido Govinda, avanou e disse: Desejo igualmente prestr o .meu preito fide- ao Sbio e aos seus ensinamentos. dePediu liclade l)irra ser aceite na comunidade, e foi atendido. ssim que o Buda se retirou, para passar a noite, (rryinda virou-se para Siddhartha e disse-lhe, veenrcrtcmente:
No tenho o direito de te censurar, Siddhartha. ambos o Sbio, ouvimos ambos os seus crrsinamentos. Govinda o'uviu-os e aceitou-os, mas Itt, rncu querido amgo? No trilhars tambm o r irrrrirrho da 'savao? Adiars, continuars espera? o <.r,uvir as palavras de Govinda, Siddhartha p,rn.ccu despertar, como se dormisse. Fito,u demor,rrlrrrncnte o rosto do amigo e depois falouJhe em voz rnuito suave e sem qualquer zombaria:
I
j.scutmos -
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Govinda, rneu amigo, deste o passo, escolheste o teu caminho. Foste sempro meu amigo, Govinda, andaste senrpre um passo atrs de mim. Perguntei-me muitas vezes: uGovinda dar, alguma vez, um passo sem nirn, por sua prpria iniciativa?D Agora s um homem e escdlheste o teu caminho. Que possas seguiJo at ao fim, meu amigo, que
tava os ensinamentos do B,uda, que deficirrcia lhes encontrara, mas Siddharfrha esqvava-se sempre: Tranquiliza-te, Govinda. Os ensinamentos do Sbio so muito bons. Como poderia eu encontrarhes uma deficincia? De manhzinha cedo, um dos partidrios do Buda, um dos seus monges mais velhos, percorreu o jardim a cha'mar todos os novos d,iscpulos, qu tinham jurado fidelidade aos ensinamentos, a fim de lhes vestir o manto amarelo e informJos dos primeiros dweres da sua ordem. Govinda abrao'u o amigo da sua juventude, envergou o manto de monge e partiu. Siddhartha vagueou pelo bosque, bsorto em profundos pensamentos. Encontrou Gautama, o Sbio, e como, ao saud-o respeitosamente, lhe visse a exrresso to cheia de bondade e paz, encheu-se de coragem e pediuJhe autorizao para lhe falar. Silenciosamente, o Sbio acenoru com a cabea, dandelhe petmisso. Ontem tive o prazer de our os teus maravilhosos ensinamentos, Sbio. Vim de longe com o meu amigo para te ouvir, e agora o meu amigo ficar contigo, j,urou-te fidelidade. Eu, porrn, reatarei a minha peregrinao. desejares redargr.riu o Buda, delicadamente.
possas encontrar a slvao! Govinda, que no compreendeu rru:ito bem, insistiu, irnpaciente: querido podes diz que - Fala, meu seno amigo,fidelidadeno Buda! jurar fazer outra coisa ao Siddhartha colocou a mo no ombro do arnigo. Escutaste a minha bno, Govinda. Repito-a, - possas seguir o teu caminlo ate ao fim, que Que possas encontrar a salvao! Govinda compreendeu, ento, que o amigo o ia deixar e comeou a chorar. gritou. Siddhara! Siddhar,a fdlou.lhe bondosamente: No te esqueas, Govinda, que pertences agora - homens santos do Buda. Renunciaste a casa e a aos famlia, renunciaste a origem e a propriedade, renunciaste tua prpria vontade, renunciaste amizade. essa a doutrina pregada, essa a vontade do Sbio. Foi isso que tu desejaste. Atnanh, Govinda, deixar-te-si. Os amigos passearam, demoradamente pela floresta. Estiveram deitados muito tempo, mas no conseguiram dorrnir. Govinda insistiu repetidamente com o amigo para que lhe dissesse porque no acei38
-Como
gr.riu Siddhartha
prosseTalvez eu fale de modo muito ousado mas no desejo deixar o Sbio - , sem lhe comunicar sinceramente os meus pensanentos. O Sbio ouvir-me- um pouco mais?
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a cabea, si.lenciosa-
Numa coisa, acima de 'tudo, admirei os teus ensinamentos Sbio. tudo absolutamente claro e provado. Mostras o rnundo como uma cadeia completa, inint3rupta, uma cadeia eterna, unida entre si por causa e efeito. Nunca tal foi apresentado to clara'rnente, nunca foi to irrefutavelmente demonstrado. Estou certo de que o corao de todos os Brmanes bater mais depressa quando virem o mundo atravs dos teus ensinamentos, ,um mundo completamentc coerente, sem uma falha, lmpido como cristal, sem depender do acaso nern dos deuses. Se be.m ou mau, se a vida em si dor ou prazer, se incerto, talvez no tenha inportncia; mas a unidade do mundo, a coerncia de todos os acontecimcntos, o abranger do grande e do pequeno da mesma nascente, da mesma lei de causa, de tornar-se e morrer-isso ressalta clara'rnente dos teus exaltados ensinamentos, Ser Perfeito. Mas, de acordo com os teus ensinamentos, essa unidade e consequncia lgica de todas as coisas quebra-se num ponto. Atra'/s de uma pequena fenda, introduz-se .no mundo da unidade algo estranho, algo novo, algo que no estava l ant3s e no pode ser demonstrado c provado: a tua doutrina de subir acima do mundo, de salvao. Atravs dessa pequena fenda, porem, a eterna e simples lei do mundo falha de novo. Perdoa ter levantado esta objeco. Gautama escutara-o silenciosamente, imvel. Por fim falou, na sua voz bondosa, cortQs e clara:
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Escutaste bem os ensinamentos, filho de br' teres pensado to profundamente neles. Encontraste uma falha. Pensa bem ncla, de novo. Dexa-me advertir-te, a ti que tens sede de saber, contra a noite das opinies e o conflito das palavras. As opinies no significam nada; podem ser belas ou feias, inteligentes ou idiotas, qual' quer as pode aceitar ou rejeitar. Mas os ensinamen' tos que escrrtaste no so a minha opinio e o seu objectivo no explicar o mundo queles que tm sede de saber. O seu objectivo completamente diferente; o seu objectivo a libertao do sofrimento. isso que Gautama ensina, e nada rnais. te zangues comigo, Sbio-pediu o -No No te falei como te falei para discutir jovem. contigo acerca de palavras. Tens razo ao dizer que as opinies pouco significam, mas permite que acrescente mais uma coisa. Nem por um rnomento duvidei de ti, nsm por um momento duvidei 'que fosses c Buda, que tivesses alcanado o mais alto objectivo, que tantos milhares de brmanes e filhos de br' manss se esforam por alcanar. Conseguiste-o com a tua procura, a teu 'modo, atravs da meditao, do saber e do escarecimento. No aprendeste nada atravs de ensinamentos, e por isso eu penso, Sbio, que ningum encontra a salvao atravs deles. A ningum, Sbio, poders comunicar, Por plavras ensinamentos, o que te aconteceu na hora do teu esdlarecimento. Os ensinamentos do Buda iluminado abrangem muito, ensinam muito-como viver virtuosarnente, como evitar o mal, muito' Mas
mane, e s te honra
! ' Mc)Nllio
'no contm: o segredo do que o Sbio conheceu pessoalmente, aqo que s a ele, entre centenas e milhares, foi dado mnhecer. Foi isso que pensei e de que tive conscincia quando ouvi os teus ensi' namentos. por isso que vou seguir o meu prprio caminho-no em ibusca de outra e melhor doutrina, pois sei que no existe, mas Para abandonar todas , douttinas e todos os mestres e alcanar sozinho o meu objectivo. Ou morrer. No entanto, Sbio, recordarei rnuitas vezes esta hora em que os neus olhos viram um homem santo. Os olhos do Buda estavam baixos, o seu rosto insondvel exprimia absoluta equanimidade' Espero que no estejas enganado no teu racio' Oxal alcan' lentamente, o Sbio. cnio -disse, Mas, dize-me uma coisa, viste o meu ces a tua rneta! grupo de homens santos, os meus 'rnuitos irmos que juraram fi.delidade doutrina? Pensas, samana e lt g", que seria melhor para todos les repudiar os ensinamentos e regressar vida do mundo e dos
desejos?
tua doutrina, na minha fidelidade e no meu amor por ti e pela comunidade dos 'rnonges. Com um meio-sorriso de impertur,bvel alegria e cordialidade, o Buda fitou firmernente o desconhecido e mandou-o embora, com um gesto quase
imperceptvel. s inteligente, samana, sabes falar inteligentenente, ,meu amigo. Acautela-te contra demasiada inteligncia. O Buda afastou-se e o seu olhar e o setr meio-sorriso ficaram 'para sempre gravados na memria de Siddhartha. nNunca vi um homem dhar e sorrir, sentar-se e caminhar como eleo, pensou. (Tambm gostaria de olhar e sorrir, sentarme e caminhar a3sim, to livre, to respeitvdl, to dominado, to inocente,,
to infantil e misterioso. Um homem s olha e caminha assim quando venceu o Eu. Tambm vencerei o meu Eu., nVi um homem, urn nicoo, continuou Siddha,rtha a pensar, (perante o qual devo baixar os olhos.
Jamais me acudiu semelhante pensamento! Possam todos respeitar a exclamou Siddhartha. - alcanar o seu objertivo! doutrina! Possam todos julgar No rne compete julgar outra vida' S devo o que me diz respeito, escolher e rejeitar' Ns' .u-ur,"r, procuranos libertar-nos do Eu, Sbio' Se fosse um dos teus adeptos, recedo que s o seria superf icialmente, que me enganaria a mim prprio p"rrsa"do que estava em paz e alcanara a salvaa viver o, quattdo na verdade o Etr continuaria a des"rruoltnet'se, pois ter'se-ia transformado na
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Nunca mais baixarei os olhos perante nenh.um outro homem. Nenhuma outra doutrina me atrair visto a deste homem no me ter atrado. .O Buda roubou-me, o Buda roubou-me e, contudo, deu-me algo de maior valor. Roubou-me o meu amigo, que acreditava em mim e acredita agora nele; era a minha som,bra e agora a sombra de Gautama. Mas deu-me Siddhartha, devolveu-me a mim prprio.o
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Ihprtar
QuANrlo deixou o bosque onde Buda, o Perfeito, ficara, e onde Govinda ficara tambrn, Siddhartha sentiu que ele prprio deixara iguarnente no bosque a sua vida anterior. Enquanto seguia, dwagar, o seu caminho, a sua cabea no pensava noutra coisa. Reflectiu profundamente, at essa sensao o avassaar por completo e chegar a um ponto em que reconheceu causas-pois reconhecer causas, parecia-lhe, era pensar, e s atravs do pensamento as sensaes se toruam saber e, em vez de se perderem, tornam-se reais e comeam a amadurecer. Siddhartha reflectiu profundamente, enquanto seguia o seu caminho. Compreendeu que j no era um jovem e, sim, um homem, compreendeu que algo o deixara, como a pele velha de que uma serpente se despe. Uma coisa o abandonara, uma coisa que o acom'panhara durante toda a juventude e fora, por assim dizer, uma parte dele prprio: o desejo de ter professores e ouvir os seus ensinamentos, Abando nara o maior mestre que jamais conhecera at rnais esse, o maior e mais sbio de todos, o santo, o Buda. Tivera de o deixar; no pudera aceitar os seus ensinamentos.
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Vagarosamente, o pensador continuou o seu caminho e perguntou-se: oQue querias tu aprender corn ensinamentos e mestres, e ,que coisa era que, embora te ensinassem m'uito, no te consegu-iram ensinar?' E pensou: .,Era o Eu, cujo carcter e natureza eu desejava conhecer. Oueria libertar-me do Eu, conquistJo, mes no fui capaz, consegui apenas iludi-lo,
o que tem
de
consegui apenas fugir dele, consegui apenas esconder-me dele. Em verdade, nada neste mundo tem ocupado tanlo os meus pensamentos como o Eu, este enigma, o facto de eu viver e ser nico, e separado, e diferente, de todos os outros, o fcto de ser Siddhartha, e de no saber menos acenca de nada no mundo do ,que acenca de mim prprio, de
Siddhartha.' Seguindo vagarosamente o seu caminho, o pensador estacou, de sbito, dominado por esse pensamento, do qual outro emergiu imediatamente: nA razo por que no sei nada a respeito de mim prprio, a razo por que Siddhartha me permaneceu estranho e desconhecido, deve-se a uma coisa, a uma nica coisa: tinha medo de mim prprio, fugia de mim prprio. Procurava Brame, procurava Atman, desejava destruir-me, libertar-me de mim, a fim de encontrar no mago desconhecido de mim mesmo o ncleo de todas as coisas-Atman, Vida, Divindade, Absoluto. Mas, ao proceder assim, perdi-me no caminho." Siddhartha olhou para ci'ma e em seu redor, e no seu rosto alastrou um sorriso, enquanto uma forte scnsao de despertar de um longo sonho permeava toclo o seu ser. Recomeou imed,iatamente a andar
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.Sim,', pelsou, a respirar profundamente, nnunca 'nais tentarei fugir de Siddhartha, Nunca mais devolirrei os meus pensamentos a Atman e ao sofrimento rlo mundo. Nunca mais me mutilarei e destruirei l)ira encontrar um segredo oculto atrs das runas. Nrrnca mais estudarei Yoga-Veda, Atharva-Veda, ou ;rstctismo, ou qualquer outra doutrina. Aprenderei r ornigo prprio, serei aluno de mim rmesmo; a4rrenrh'rt i comigo prprio o segredo de Siddhartha., olhou de novo em seu redor, como se visse o rrrrrrrtlo pela primeira vez. O mundo era belo, estrarlr') c misterioso, Havia azul, amareo e verde, havia r cu c rio, havia florestas e montanhas, tudo belo, tu(l() misterioso e fascinante, e no meio de tudo r,rtlva ele, Siddhartha, o que despertara, a caminho rlr.si mesmo. Tudo aquio, todo aquele amarelo e rurrrl, r'io e floresta, passou pea primeira vez peloS dc Siddhartha. J no eram a magia de Mara, 'rllrrrs lr rir() cram o vu de Maya, j no eram as diverrlrl,rrlr.s fortuitas e sem sentido das aparncias o rlrtrrrlo dcsprezadas pelos profundos pensadores brnrrr('s, (lue desdenhavam a diversidade e procuravam rr rrrrirlrrde. Ria era rio, e se o nico e o Divino em htrlrllriulha vivia,m scretamente em azu e rio, era rr|'' r.rs por a arte e a inteno divinas quererem que rtll l,,ssc amarelo e azul, ali cu e floresta-e aqui h|rLllrrltha. O significado e a realidade no estavam rrr rrlt,,s, ulgures, atrs das coisas; estavam nelas, r' t l|l(lis clas47
r
(Como fui surdo e estpido), pensou, enquanto caminhva apressadamente. "Ouando algum l alguma coisa que deseja estudar, no desdenha das ietras nem da pontuao, no lhes chama iluso, acaso e envlucros sem ,mrito; l-as, estuda-as e ama-as, letra polletra. Mas eu, que desejava ler o livro do mundo e o livro da minha prpria natureza, tive a presuno de desdenhar das letras e'dos sinais de pontuao. Chamei iluso ao mundo das aparnciai. Chamei acaso aos meus olhos e minha lngua' Mas agora acabou-se; despertei. Acordei deveras e s hoje nasci.o Mas, enquanto estes pensmentos desfilavam pelo pensamento de Siddhartha, ele estacau, de sbito, como se uma serpente se atravessasse no seu caminho. volveu-o, momentaneamente. Estremcceu interiorrcnte como um animalzinho, como um pssaro ou rrnra lebre, ao compreender como estava s, Havia inos que no tinha casa e, no entanto, nunca sentira o tlue sentia naquele momento. Anteriormente, quantlr merguhava em profunda meditao, continuava ;r scr o filho de seu pai, um brmane de alta hierar(
rlrr ia,
Ouira coisa se lhe tornara, repentinamente, olara: ele, que de facto como algum que tivesse acordado ou acabado de nascer, tinha de recomear completamente a sua vida, do princpio. Quando, naquela manh, deixara o bosque de Jetavana, o bosque do Sbio, j desperto, j a caminho de si prprio, era sua inteno, e parecera-he a soluo natural aps os seus anos de ascetismo, regressar a casa do pai' Agora, porm, naquele momento em que estacou como se uma serpente se lhe atravessasse no caminho, acudiulhe outro Pensamento: uJ no sou o que era, j no sou un asceta, nem um sacerdote, nem um brmane. Que farei, ento, em casa com meu pai? Estudar? Oferecer sacrifcios? Meditar? Tudo isso acabou, j, Para mim.o Siddhartha continuou imve e um frio de gelo
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llx, o desperto; mais nada. Respirou fundo e estrerrrcceu de novo. No havia ningum to s como ele. Niro era um nobre que pertercesse a qualquer arislrx racia, no era um arteso que pertencesse a qualrlrrcr guilda e nela encontrasse refgio, compartillrirndo a sua vida e a sua lngua. No era um brrnrrnc cornpartilhando a vida dos Brmanes, um irs( cta pertencendo aos Samanas. At mesmo o mais rs,rlado eremita das florestas no era o nico e sozi rrlrr, pertencia a uma classe de pessoas. Govinda l(,r'nara-se monge e milhares de monges ra.m sus r ri-ros, usavam o mesmo manto, compartilhavam r\ suas crenas e falavam a sua lngua. Mas a que pcr tcncia ol:, Siddhartha? Que vida compartilharia? ()rrc lngua faaria? Ncsse monento em que o mundo sua volta se rlt.sez, em que sg encontrou sozinho com uma lrtrtla no cu, avassalou-o uma sensao de gelado rll sr'.'-pero, mas foi mais firmemente ele prprio do rlr( r,unca. Foi o ltimo espasmo .do seu despertar, rs rlltimas dores do nascimento. Recomeou logo a ,rrrrlrrr, rpida e impacientemente. J no ia na direcr,,ro de casa, j no ia para junto do pai, j no ollrava para trs.
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SEGUNDA PARTE
Ksmsls
aprendia,ago de novo ern cada passo do seu caminho, pois o mundo transformara-se e cle estava fascinado. Via o Sol nascer sobre florestas c montanhas e pr-se sobre a praia distante, orlada de palmeiras. noite via as estrelas no cu e a Lua cm forma de foice flutuar como um barco azul. Via rvores, estrelas, animais, nuvens, arcoris, rochas, ervas, flores, regatos e rios, o brilho do orvalho nos arbustos pela nanh, altas montanhas clistantes, azuis e plidas. Cantavam aves, zurnbiam rrbelhas, o vento soprava suavement atravs dos arrozais. Tudo isso, colorido e com mil formas difercntes, existira sempre. O Sol e a Lua tinharn bri lhado sempre, os rios sempre tinham corrido e as abelhas sempre tinham zu,mbido. Mas, noutros tempos, tudo isso fora para Siddhartha nada mais do rlrc fugaz e ilusrio vu diante dos seus olhos, coilts olhadas.com desconfiana, condenadas a sersm lgnoradas e banidas dos pensamentos porque no rlam realidade, porque a realidade se encontrava do orrtro lado do visvel. Agora, porem, os seus olhos rh'rnoravam-se deste lado, ele via e reconhecia o
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visvel e pr@urava o seu lugar neste mundo. No procurava a realidade, a sua meta no estava em nenhum outro lado. O rnundo era belo ,quando visto assim, sem qualquer inteno de procura, ra to sim'ples e infantil! A Lua e as estreas eram belas, o regato, a paia, afloresta a rocha, a cabra e o besouro dourado, a flor e a borboleta, era tudo belo. Era belo e agradvel percorrer o mundo assim, to infantilmente, to desperto, to interessado no imediato, sem qualque desconfiana! Noutros lugares, o sol queimava furiosament; noutros lugares, estava frio na sombra da floresta; noutros 'lugares, havia abboras e bananas. Os dias e as noites eram curtos, todas as horas passavam rapidamente como uma vela no mar, sob uma vela de um navio de tesouros, carregado de ventura. Siddhartha viu um grupo de macacos nas profundezas da floresta, saltando nos ramos altos, e ouviu os seus gritos selvagens. Siddhartha viuum carneiro perseguir uma ovelha e cobri-la. Num lago de canios, viu o lcio caar, espicaado pela fome do fim da tarde. Cardumes de peixes novos, reluzentes e irrequietos, fugiam dele, assustados. Os crculos rpidos formados na gua pelo farrninto predador reflectiam fora e desejo. Tudo aquilo existira sempre e ele nunca o vira, nunca estivgra presente. Agora estava presente e pertercia a tudo aquilo, Atravs dos seus olhos via luz e sombras; atravs do seu esprito tinha conscincia da Lua e das estrclas. No caminho, Siddhartha recordou tudo quanto conhecera no jardim.de Jetavana, os ensinmentos que ouvira dos lbios do santo Buda, a se'parao
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de Govinda e a conversa que tivera com o Sbio. Recordava-se de todas as paavras que dissera ao Sbio e surpreendia-o ter dito coisas que, ento, no que a sabia realmette. O que dissera ao Buda Buda no se podiam ensisabedoria e o segredo do que nar, eram inexprimveis e incomunicveis - , e era ele experimentara numa hora de esclarecimeto, precisamente o que estava disposto a conhecer, o que j comeava a conhecer. Procisava de adquirir experincia. Sabia havia muito tempo que o seu Eu era Atman, da nesma natureza eterna de Brame, rnas nunc encontrara verdadeiramente o seu Eu, porque quisera enred-lo na armadilha dos pensamentos. O corpo no ra, com celez, o Eu, nem o jogo dos sentidos, nem o pensamento, nem a compreenso, nem a sabedoria adquirida, nem a arte de tirar concluses e d: pensamentos j conhecidos tecer novos pensamentos. No, este mundo de pensamento ainda estava deste lado, e no conduzia a nada quando algum destrua os sentidos do Eu acidental e o alimentava com pensamentos e erudio. Tanto o pensamento como os sentidos eram coisas excelentes, atrs das quais se ocultava o significado suPremo. Valia a pena escut-los a ambos, aprofundar amtros, no desprezar nem sobrestimar nenhum deles, mas, sim, ouvir atentamente ambas as vozes. S se esforaria para obter o que a voz interior he ordenasse, no pararia em lado algum, a no ser onde a voz lhe aconselhasse que se detivesse. Porque se sentara Gautama, uma vez, debaixo da figueira-dos-pagodes, na sua hora maior em que fora iluminado? Ouvira uma voz, uma voz vinda do seu prprio corao,
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ordenandolhe que repousasse debaixo daquela rvore, e no recorrera a mortificaes da carne, a sacrifcios, banhos, ou preces, a comer ou a beber, a dormir ou a sonhar; dera ouvidos voz. No obedecer a nenhuma outra ordem exterior, somente voz, estar preparado isso era acertado, isso era necessrio. Mais nada era necessrio. Durante a noite, enquanto dormia na cabana de paha dum barqueiro, Siddhartha teve um sonho. Sonhou que Govinda estava sua frente, com o manto a,marelo dos ascetas. O amigo parecia triste e perguntouhe: "Porrque me deixaste?D Ao ouvir tais palavras, Siddhartha abraou-o, envolveu-o nos braos, e ao aperto ao peito e beij.lo viu que no era Govinda e, sim, uma mulher, e ,que do seu manto emergia um seio trgido. Deitado, Siddhartha bebeu. Era doce e forte o sabor do leite daquele seio. Sabia a mulher e homem, a sol e floresta, a animal e flor, a todos os frutos, a todos os prazeres. Era embriagador. Quando Siddhartha acordou, o rio claro luzia, para alm da porta da cabana, e o pio de um mocho soou, ,profundo e lmpido, na floresta. Quando o dia nasceu, Siddhartha pediu ao seu anfitrio, o barqueiro, que o levasse ao outro lado do rio, e banqueiro evou-o, na sua jangada de bambu. O grande lenol de gua cintilava, rseo, luz matinal. um bonito rio-disse Siddhartha ao seu
companheiro. Sim, um rio muito bonito. Amo-o acima de - Tenho-o escutado e olhado muitas vezes e de tudo.
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'ter nenhum presente para te dar, nem te poder pagar. No tenho lar, sou filho de brmane e samana. e no esperava de ti qualquer -Compreendio prsente ou Pgamento. Pagar-me-s noutra ocasio. perguntou Siddhartha, diverAchas que sim? tido. certeza. Tambm aprendi isso com o rio: -Com no h nada,que no volte, e tu tambm voltars, samana. Agora adeus, e que a tua amizade seja o meu pagamento! Que penses em mim quando sacrificares aos deuses! Despediram-se, sorridentes. Siddhartha sentia-se contente com :i cordialidade do barqueiro. n como Govindao, pensou, sorrindo. oTodos quantos encontro no caminho so como Govinda. Todos gratos, cmbora eles prprios que meream gratido. Todos slrbservier'ts, todos desejosos de serem meus amigos, de obedecerem e pensarem pouco. As pessoas sio crianas. ') Ao meio-dia passou por uma aldeia. Crianas danavam no caminho, defronte das cabanas de adobe, e brincavam com sementes de abbora e me" xilhes. Gritavam e lutjvam umas com as outras, mas fugiram, acanhadas, quando o estranho samana lpareceu. Ao fundo da aldeia, o caminho corria ao longo de um regato, em cuja margem uma mulher jovem estava ajoelhada, a lavar roupa. Quando Siddharlha a saudou, ela levantou a cabea e olhou-o,
todas eas ele me ensinou alguma coisa. Pode-se aprender muito com um rio. Obrigado, bom homem-agradeceu Siddhartha, - desembarcar na outra margem. Lamento no ao
sorrindo, e ele viulhe o branco brilhante dos ohos. Lanou-lhe, rle onge, uma bno, como costume entre viajantes, e ,perguntouJhe a que distncia ficava ainda a estrada para a grande cidade. Ento ela levantou-se e foi ao seu encontro, com os lbios hmidos a brilhar tentadoramente no rosto jovem. Trocou com ele algumas observaes despreocupadas e perguntou-lhe se ainda no comera e se era verdade que os Samanas dormiam sozinhos na floresta, noite, e no estavam autorizados a ter mulheres com eles. Depois colocou o p esquerdo sobre o p direito dele e fez o gesto que a mulher costuma fazer quando convida um homem para aquele gnero de prazer amoroso a que os ivros sagrados chamam osubir rvore". Siddhartha sentia o sangue inflamado, reconheceu o sonho que tivera e inclinou-se um pouco e beijou o bico castanho do seio da mulher. Quando levantou a cabea viu-a sorrir, cheia de desejo, com os ohos semicerrados numa splica ansiosa. Siddhartha tambm sentiu desejo e a palpitao do sexo dentro de si. Mas como nunca tocara numa mulher hesitou um momento, embora as suas mos estivessem preparadas para a agarrar. Nesse instante ouviu a sua voz interior, e a voz disse: oNo!> Toda a magia se esvaiu, ento do rosto sorridnte da jovem, no qual ele viu apenas a expresso ardente de uma mulher presa de paixo. Afagou-lhe suavemente a face e afastou-se, apressado, da decepcionada jovem, metendo pelo bosque de bambus. Antes de anoitecer chegou a uma grande cidade e sentiu-se satisfeito, pois apetecia-lhe estr na com.58
panhia de pessoas. Vivera muito tempo na floresta a cabana de paha do barqueiro, onde dormira na noite anterior, fora o primeiro tecto que o cobrira rk sde que partira de casa do pai. Fora da cidade, junto de um belo bosque sem vcdao, o caminhante encontrou um pequeno grupo (l('cridos, homens e mtrlheres, carregados de ceslos. No meio deles, numa cadeirinha ornamentada Iransportada por quatro pessoas, ia uma rnulher, a irrri, sentacla em almofadas vermelhas debaixo de rrrn toldo co,lorido. Siddhartha estacou entrada do lrosque, a observar o cortejo, os criados, as criadas (. os ccstos. Olhou para a cadeirinha e para a senhora rlue a ocupava. Debaixo .do cabelo pre1o, penteado llrla cima, viu um rosto luminoso, muito terno e rlrito inteligente, uma boca vermelha como um figo ,r,rrbado de cortar, sobrancelhas pintadas a descrev{ r u n. aco ato, olhos escuros, inteligentes e observ;rrlorcs, c um pescoo caro e estrelto, a emergir do lr'st iclo verd.: e dourado. As mos da mulher eram Irrrrrcs c macias, .compridas e estreitas, ornamenl,r(l;rs com largas pulseiras de ouro nos pulsos. Ao vcr corno era b,ela, o corao de Siddhartha r,'lrrlrilou. Fez uma vnia profunda, quando a cadeirlrrlrr passou junto dele, e ao endireitar-se fitou o rrrslo luminoso e claro, d,emorou um momento o rrllrirl nos olhos inteligentes da bela criatura e aspir, rrr :r l ragrncia de um perfume que no reconheceu, I'L,rita mulher acenou com a cabea e sorriu, e ^ rlr'pois clcsapareceu no bosque, seguida pelos criados. " lr ;rssim", pensou Siddhartha, nentro nesta cidade rllr rrnxr cstrela feliz." Sentiu desejo de se embrenhar
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imediatamente no bosque, mas refLctiu ao lem' brar-se como os criados e as criadas o tinham'ohado to desdenhosamente, to desconfiadanr,ente, com um olhar to carregado de mudo repdio. <Continuo a ser um samana?o, pensou, nainda sou um asceta e um pedinte. No posso continuar a ser tais coisas, nem posso entrar no bosque desta ma-
neira." E riu-se.
Interrogou a primeira pessoa que ,encontrou aceca do bosque e do nome da mulher, e ficou a saber que se tratava do bosque de Kamala, a conhecida cortes, a qual tambm tinha uma casa na cidade. Entrou na cidade, guiado por um nico objectivo' Obedecendolhe, percorreu o labirinto das ruas, parou nalguns ugares e d,escansou nos degraus de pedra do rio. Ao fim da tarde travou amizade com um ajudante de barbeiro, que vira a trabalhar sob a sombra de um arco. Encontrou-o de novo a orat no tempo de Vixnu, onde lhe contou histrias de Vixnu e Lakshmi. Passou a noite entre os barcos do rio e, de nranhzinha, antes da chegada dos fregueses, pediu ao ajudante de barbeiro que lhe rapasse a barba. Mandou tambm pentear o cbelo e esfreg-lo com leo fino. Em seguida foi banhar-se no rio. Quando a bela Kamala se aproximava do seu bosque, ao entardecer, sentada na sua cadeirinha, Siddhartha estava entrada. Fez uma lnia, a que
tla.
Nunca nenhum samana da floresta me prorrrrrru e desejou aprender comigo. Jamais fui prolrrratla por u samana de cab,elo comprido e tanga lrrlqada. Tm-me procurado muitos jovens, incluindo Itllros dc brmanes, mas vm bem vestidos e bem
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calados, com perfume no cabelo e dinheiro na bolsa' assim que os jovens me Procuram samana' declaJ estou a comear a aprender contigo
o -Oh,bela ar-te,
samana forte e nada teme! Podia forKamala, podia roubar-te, podia ma-
rou
Ontem mesmo Siddhartha. a barba, penteei e pus leo no caheo' coisa. Rapei Pouco falta, agora, excelente senhora: belas roupas' j embelo calado e dinheiro na bolsa. Siddhartha que tais bagatelas p."rndeu tarefas mais dificeis do que' L realizou-as. Porque no conseguiria tambm o onem, decidiu conseguir? Ser teu amigo e aprender contigo os pazeres do amor, o que eu pretendo' Encontrars emmim um bom aluno, Kamala; tenho aprendido coisas mais difceis do que tens para me ensinar. Portanto, Siddhartha no serve para ti como agora, com leo no cabelo, mas sem roupa, sem
sapatos e sem dinheiro! Kamaa riu-se e redarguiu'lhe: ainda no serve. Precisa de ter rouPa -No, e sapatos bons saPatos , muito diboa ror.lpa nheiro na sua bolsa e presentes para Kamala' Agora compreendes, samana da floresta? Co-p.""odo muito bem. Como poderia deixar -comprender, se a lio me foi dada por tal boca? de tua Loca como um figo acabado de cortar' Kamala. Os meus lbios tambm so vermelhos e frescos e ajustar-se-o muito bem aos teus, \ners' Mas dize-me, bela Kamala, no tens receio do samana da floresta, que veio aprender coisas acerca do amor? Porque haveria de ter medo de um samana' -um estpido samana da floresta, que vem do meio de dos chacais e no sabe nada de mulheres?
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aprendi alguma
ll()ar-te... No, samana, no tenho medo. Algum samana ou algum brmane receou, jamais, que algum o prrdesse agredir e roubar o seu saber, a sua devoo, rr sua capacidade de pensar profundamente? No, p(,rlque essas coisas lhe pertencem e ele s pode tlr'ras quando deseja e se deseja. conteoe exactarr('rtc o mesmo comigo e cm os prazeres do amor. ( )s lbios de Kamala so belos e verrnelhos, mas llrrta beijos contra sua vontade e no lhe colhens r l('l('s uma s gota de me embora eles sai'bam bem - como dizes, Siddhartha, rlii lo. Se s bom aluno ,rlrlt.ndc tamtm isso. O amor pode-se esmolar, comI'r,rr, r'eceber de presente e achar nas ruas, mas no ,,,' lxrde roubar. Compreendeste mal, e seria uma lx'ua sc um excelente jwem como tu continuasse l rrxnpreender mal. siirklhartha inclinou a cabea e sorriu. 'l'cns razo, Kamala, seria uma pena. Seria uma 1r ,rrrtlc ,pcna. No, no se deve perder nenhuma gota rll rrrcl clos teus lbios, nem dos meus. Por isso,
rhr
rrrt
()rrorida Kamala, aonde poderei ir para obter lrcur llis coisas o mais depressa possvel?
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Meu amigo, muita grte deseja saber o mesmo. Deves fazer o que aprendeste e receber em troca dinheiro, roupa e sapatos. Um homem po re no pode arranjar dinheiro de outro modo. pensar, sei esperar, sei jejuar. -Sei nada? Mais - No. Ah, sim, sei compor poesia! Dar-me-s um beijo em troca de um poema? Darei se o poema me agradar. Como se chama? Depois de pensar um momento, Siddhartha recitou os seguintes versos:
rcspirar
rrrlpreendida com a riqueza de conhecimento e saber ,1rrc se desenrolava. diante dos seus olhos.
- A tua poesia muito boa - repetiu Kamala, St' losse rica, dar-te-ia dinheiro por ela. Mas ser-te- rlil cil ganhar o muito dinheiro de que precisas com
vcrsos. Sim, porque precisas de muito dinheiro Irara ser amigo de Kamala. tu beijas, Kamala! gaguejou Siddharllra.
-Como
No seu bosque entrcu a louru Kamala, entrdg encontrava-M o moteno sarxw. Ao ver a flor de loto, Ele c ur.vor.t-se prclundamente E Kamala raribuiuJhe, sorrndo. melhor, pensou o jovem satnoru, Fazer wrlcios loura Ksnda Do que olerecJos os deuel Kamala bateu parlmas, contente, e as pulseiras de ouro tilintaram. A tua poesia muito boa, moreno samana, esinceramente no rperderei nada se, em troca, te der um beijo. Chamou-o a si, com o olhar. Ele encoitou o rosto ao dela e uniu os lbios aos dela, qus eram como um figo acabado de cortar. Kamala beijou-o profundamente e, com grand eq)anto, Siddhartha compreendeu quanto ela lhe ensinava, como era inteligerrte, como o dominava, repeia e atraa, e que de,pois
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Pois beijo, e por isso que no me faltam r'oupas, sapatos, pulseiras e todo o gnero de coisas
lxrnitas. Mas que vais fazer? No sabes mais nada :rlern de pensar, de jejuar e comPor versos? Tambm sei os cnticos dos sacrifcios, mas - mais os entoarei. E sei encantamentos, mas [unca rrunca mais os pronunciarei. Li as escrituras... - Espera! interrompeu Kamala. Sa;bes ler e
, serrover?
- Crtamente. No tanta como julgas. Eu no sei. excelerrte rgrrc saibas ler e escrever, excelente, Talvez at preiscs dos encantamentos, tambm. Ncsse momento, entrou um criado, que segredou r;ualquer coisa ao ouvido da ama. Sai Tenho um visitante anunciou Kamala. tlcpressa e desaparece, Siddhartha, ningum te deve lcl aqui. Receber-te-ei de novo amanh. No entanto, ordenou ao criado que desse ao santo lrr'mane um marto branco. Sem bem compreender
r
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acontecia, Siddhartha foi levado pelo criado, que o conduziu, por um caminho indirecto, a uma casa num jardim, lhe deu um manto branco, o levou ao bosque e he recomendou expressamente que sasse sem ser visto e o mais depressa possivel. Obedeceu de bom grado, s instrues recebidas. Habituado floresta, saiu silenciosamente do bosque e satou a sebe. Regressou, conterte, cidade, com o manto enrolado debaixo do brao. Parou porta de uma estalagem onde se reuniam viajantes, esmolou sienciosamente comida e silenciosamente aceitou um boczrdo de bolo de arroz. "Talvez amanh no precise de esmolar comida", pensou. Sentiu-se, de sbito, invadido por uma sensao de orgulho. J no era samana, portanto j no estava certo que esmolasse. Deu o pedao de bolo a um co e passou sem cmer. nA vida que se vive aqui simplesD, pensou Siddhartha. (No tem dificudades nenhumas. Quando fui samana, era tudo difcil, irritante e, por fim, desesperado. Agora tudo fcil, to fcil como a lio de beijar que Kamala d. Preciso de roupa e dinheiro, mais nada. So objectivos fceis, que no perturbam o sono de uma pessoa.) J perguntara onde ficava a casa de Kamala na cidade, e apresentou-se l no dia seguinte. - Corre tudo bem - informou-o ela. - Kamaswami espera que o visites. o mercador mais rico
da cidade. Se he agradares, tomar-te- ao seu servio.
o que lhe
vm que sejas excessivamente modesto. No quero que sejas seu criado e, sim, se igual; caso contrrio, n:io ficarei contente contigo. Kamaswami comea a toar-se velho e indolente. Se lhe agradares, depositar grande confiana em ti. Siddharth:r agradeceuhe e riu-se. euando ela soube que ele no comera naquele dia nem no anterior, mandou trazer po e fruta e serviu-o. Tiveste despedida. As - esto sorte - disseJhe,ti, uma a abrir-se pa.a l)ortas aps outra. (-'orno o consegues? Tens algum encantamento? Ontem disse-te que sabia pensar, esperar e jc.juar, mas no considerste isso til-redarguiu liiddhartha. no entanto, que e muito til, -Vers, Krmala; vers que os.estpidos samanas da floresta rrprcndem e sabem muiias coisas teis. Anteontem, rrinda era um mendigo desgrenhado; ontem, j beijara Kamala, e em breve serei mercador e terei rlirrheirc, e todas essas cosas que aprecias. Pois sim, mas como te terias arranjado sem rrrinr? Onde estarias agora se Kamala no te jur
lasse ?
S astuto, moreno smana! Fiz chegar o teu nom ao seu conhecimnto atravs de outras pessoas. Mostra-te cordial; ele muito poderoso, mas no con
Minha querida Kamaa, quando fui ter contigo rro teu bosque dei o primeiro passo. Era minha irlcno fazer o aprendizado do amor por interrrrcdio da mais bonita das mulheres. A partir do n()rlcnto em que tomei essa resoluo, tive tambm ir ccrteza que a concretizaria. Sabia que me ajurlrrlias, compreendi-o pelo primeiro olhar que te lrrrrcei entrada do bosque. E se eu no quisesse?
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quiseste. Escuta Kamala, quando atiras -Mas uma pedra gua, e'la encontra o caminho mais rpido para o fundo. Acontece o mesmo quando Siddhartha tem um objectivo, uma meta. Siddhartha no faz nada. Espera, pensa, jejua, mas atravessa os assuntos do mundo como a pedra atravessa a gua: sem faz=r nada, sem se mexer, deixa-se arrastar e cair. trado pelo seu objectivo, pois no consente que penetre no seu esprito nada que a ele se oponha. Foi isso que Siddhartha aprendeu com os Samanas; os idiotas chamamlhe magia e pensam que causado por demnios. No h demnios, e toda a gente pode fazer a magia, toda a gente pode alcanar o seu objectivo se souber pensar, esPerar e jejuar. Kamala escutava-o com ateno. Amava a sua voz e a expresso dos seus olhos. murmuTalvez scja como dizes, meu amigo rou dooemente , e talvez seja, tambm, porque Siddhartha um belo homem, porque o seu olhar agrada s mulheres, que tem sorte. Siddhara beijou-a e despediu-se. Que assim seja, mi,nha mestra. Que o meu olhar -agrade sempre, que a m,inha fortuna me venha te sempre atravs de ti!
Entrc o povo
STDDHAFTHA foi procurar Kamaswami, o mercador, e convidaram-no a entrar numa casa rica. Criados
conduziram-no, por cima de carpetes luxuosas, a uma sala onde esperou pelo dono da casa. Kamaswami no tardou. Era um homem gil e vivo, de cabelo grisalho, ohos inteligentes e caute' osos e boca sensual. Dono da casa e visitante cumprimentaram-se de modo cordial. que s Disseram-me comeou o mercador um brmane, um homem instrudo, mas que-procuras trabalhar par' um mercador. Ests assim to necessitado, brmane, que precises de procurar trabalho? No estou nem No respondeu Siddhartha. runca estive necessitado. Vim da companhia dos Samanas, com quem vivi muito tempo. Se vieste da compa,nhia dos Samanas, como cxplicas que no sejas necessitado? No so todos os Samanas completamente desprovidos de bens? No possuo nada, se isso que Pretnde dizer. lil verdade que stou desprovido de todos os bens, rrras de minha livre vontade. Por isso, no sou nocessitado.
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Tens, portanto, vido dos outros? - Aparentrnente. O mercador bens dosvive dos tambm bens dos outnrs.
ests - Mas como vivers, se Estou desprovido de bems? Nunca pensei nisso. desprodo de bens h quase trs anos e nunca pensei do que viveria.
- S isso? - Creio que sim. - E que utilidade tm essas coisas? para que serve jejuar?
Bem pansado. Mas o mercador no tira aos outros em troca de nada, d.hes as suas mercadorias. Parece-me ser essa a lei das coisas. Toda a gerte tira, toda a gent d. A vida assim. tu no dar? -Mas se gente dtens nada, com podes d fora, Toda a que tem. O sodado o omercador mercadorias, o professor instruo, o lavrador arroz, o pescador peixe... M,uito bem, e que pods tu dar? Que aprendeste tu que possas da.r? Sei pensar, sei espsrar, sei jejuar.
razo, samana. Aguarda um momento. com um rolo de pergaminho, que estendeu ao visitante. capaz de ler isto? -perguntou-lhe. -s Sidd,hartha olhou para o pergaminho, no qual estava escrito um contrato de venda, e comeou a
l4o.
imporExcelente o mercador. -E - comentou tas-te de escrev:er qualq,trer coisa nesta folha? Estendeuhe urna folha e uma pena e Siddhartha escreveu quaquer coisa e devolveulha. Kamaswami leu: "Escrever bom, pensar me)hor. Inteligncia bom, pacincia melhor." Escreves muito bem elogiou o mercador. Ainda teremos muito que-discutir, mas hoje conviclo-te para seres me,u hspede e viveres na minha
casa.
Por exemplo,
-Tern muita utilidade. Se um homem no tem que comer, jejuar a coisa mais inteligente que pode fazer. Por exemplo, se Siddhartha no tivesse aprendido a jejuar, hoje teria sido obrigado a procurar qualquer trabalho, nesta casa ou em qualquer outra, pois a fome a tal o teria obrigado. Mas como aprendeu, Siddhartha pode esperar calmamente. No st impacient, no est necessitado, pode afastar a fome por muito tempo e rir-se dela. Portanto, jejuar til.
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Siddhartha agradeceu e aceitou. Passou a viver em casa do nrercador. Deramlhe roupas e sapatos ( um criado preparava-lhe diariamente um banho. l)uas vezes por dia serviam exceentes refeies, mas siddhartha s comia uma vez e no tocava en carne rrcm em vinho. Kamaswami falavalhe dos seus neg(
siddhartha aprendia muitas coisas novas; ouvia rrrtrito e dizia pouco. Recordado das palavras de Klrmala, nunca se rnostrava servi para com o merr irrlor; compelia-o a tratlo como igual e at mais rl', q,ue igual. Kamaswami geria os seus negcios r,,rn cuidado e, muitas vezes, com paixo; Siddhartlrir, porm, considerava tudo aquilo um jogo cujas
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ll
r!'gras se esforava por aprender bem, mas que no he emocionava o corao. Quando comeou a tomar parte nos negci,os do seu amo, passou a estar menos tempo em casa de Kamaswami. No entanto, diariamente, hora a que ela o convidava, visitava a bela Kamala, bem vestido e bem calado e, em breve, tambm, levando-lhe presentes. Aprendeu muitas coisas com os szus sabedores lbios vermelhos. As suas mos macias e suavcs no lhe ensinaram menos. Ele, que a respeito de amor ainda era um rapaz e propenso a mergulhar nos seus abismos cega e insaciavelmente, aprendeu com ela que no se pode Ier praze sem o dar e que cda gcsto, cacla caricia, cada contacto, cada olhar, cada parte do corpo tem o seu segredo prprio, que pode causar- prazer quele que o desvendar. Ela cnsinoule que os amantes no se deviam separar, depois de se amarem, sem se admirarem mutuamcnte, sem conquistarem e serem conquistados, para que no nascesse nenhum sentimento de saciedade ou desolao, e muito rnenos a horrvel sensao de fazer mau L.so ou ser mal usado. Passava longas horas com inteligente e bela cortes, da qual se tornou aluno, amante e amigo. Ali, em Kamala, estava o valor e o significado da sua vida presente, e nao nos negcios de Kamaswami. O merador delegou nele a escrita de cartas e eucomendas importantes e habituou-se a discutir com ele todos os negcios de importncia. No tardou a compreender que Siddhartha pouco percebia de arroz e , ernbarques e comrc.io, mas em contrapartida
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linha sorte e ultrapassava o mercadut' ctrr r.irltttir t' equanimidade e na arte de escutar e protluelt lrrrtt impresso em pessoas estranltas, uEste brrttitttc,, disse um dia a um amigo, nno um verdadeiro nrct. cador nem nunca ser; nunca se deixa absorver pel<.rs negcios. Mas tem o sogredo daquelas pessoas que o xito bafeja sem que se esforcem, quer por ter nascido sob uma boa estrela, quer se trate de magia ou quer o tenha aprendido com os Samanas. Os negoios pareem senpre um jogo para ele, uma brincadeira, lunca o impressionam, nunca o dominam, e ele nunca receia o fracasso, nunca se preG cupa com um preju2o." O amigo deu um conselho ao mercador: DJhe um tero dos lucros obtidos nos negcios que ele fizer em tu nome, mas cobra-lhe a mesma proPoro em prejuizos, se os houver. Assim tornar-se- mais entusiasta.)n Kamaswami seguiu o conselho do amigo, mas Siddhartha preocupou-se pouco com o assunto. Se tinha lucro, aceitava-o calmamente; se tinha prejuzo, ria-se c comentava: uPacincia, esta transaco correu n]al.)> De facto, pareoia indiforente aos negcios. Uma vez oi a uma aldeia, a fim de comprar uma grande safra de arroz, mas quando chegou o arroz j estava vendido a outro mercador. No entanto, Siddhartha ficou na aldeia divelsos dias, obsequiou os cultivadores e deu dinheiro s crianas, assistiu a um casamento e regressou da viagem todo satisfeito. Kamaswami censurou-o por no ter regressado irnedia73
mente e por ter desperdiado tempo e dinheiro' e Siddhartha resPonde'u: No me ralhe, querido amigo, pois nunc se nada ralhando. Se houve prejuzo, arcarei "on.ugtio ;;;". Estou muito satisfeito com a vinagem' relaum cionei-me com mu'ita gente, travei amizade coJn no meu colo e 9s brmane, sentarm-se crianas lavradores mostraram'me os seus camrpos' Ningum me tornou Por mercador. Tudo isso muito bonito - admitiu' relutante' mas a verdade que s mercador' Kamaswami - , Por Prazer? Ou viajaste aPenas Caro que viajei por prazer! - exclamou SidPorque no? Travei conhecimento dhartha, rino. - e novas lerras, saboreei a amicom novas pessoas confiana' Se fosse Kamaswami e no ,u" " " teria partido imediatamente' muito irriiin""tft", ntao' tado, ao ver que no podia fazer a compra' e reaimente ferdido ternpo e dinheiro' Mas "int,'t"tiu p".r"i aiu".t"t dias agradveis, ap:rendi muito' tive muita satisfao e no me magoei nem ^19*^t ?: 5e la outros mostrando-me aborrecido ou apressado' safra ou par:' voltar, talvez para comprar outra an' qualquer outra coisa, serei recebido por pssoas dado gu, ."ntir--"-"i grato por, desta vez' no ter " pressa De qualquer rno<lo' rostras de cn{ado ou csoueca o assunto meu amigo, e no se atormente u iutu. comigo. Se chegar o dia em que 'pense: .Este Siddharta est a prejudicar-me)' ' diga aenas uma paavra c Siddhartha seguir o ssu camrnho' At l, sejamos bons amigos' SidAs tentativas do mercador para convencer
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dhartha de que estava a comer do seu po - dclc, Kamaswami tambm eram inteis. Siddharthn -, comia o seu pprrio po alis, todos comiam o po de outrem, o po de todos. Siddhara "nunca se inquietava com as preocupaes de Kamaswarni, que no eram poucas. Se uma transao ameaava ser mal-sucedida, se um carrqlamento de mercadorias se perdia, se um dsvedor parecia incapaz de pagar, Kamaswami no lErala persuadir o seu colega de que tinha alguma utilidade ,proferir palavras de preocupao ou de cdera, arranjar rugas na testa e dormir mal. Quando uma vez Kamaswami lhe recordou que aprendera tudo com ele, redarguiu4he: "No diga graas dessas! Aprendi consigo quanto custa um cesto de peixe e quanto juro se pode cdbrar por ( mpestar dinheiro. esse o seu saber. Mas no foi consigo qrue aprendi a pensa, meu caro Kamaswarni. Seria mehor, at, se voc aprendesse isso comigo.r De ,facto, o seu corao alheava-se do negcio. lste eralhe til para lhe pernitir ,levar dinreiro a Kamala, e na realidade at ganava maris do que prc'cisava. Alm disso, a simpatia e a cuiriosidade dc Siddhartha iam todas para as pessoas, cujo trabaho, preocupaes, prazeres e louguras lhe eram rrrais desconhecidas e pareciam mais remotos do que ;r Lua. Embora lhe.fosse to fcil falar com toda a linte, viver com toda a gente, aprender com toda ir gente, tinha aguda corscincia do facto de haver rlu:rlquer coisa que o serparava dos outros, e de que tirl se devia a ter sido samana. Via as pessoas viver( r como crianas ou como animais, o que o levava rirnultaneamente a am-las e a desprez-las. Vias
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labutar, via-as sofrer e encanecer por coisas que' aos ...-,. oror, no pareciam va'ler tal preo - por dinheiro, por pequenos prazeres e honras banais' Via-as ralhar umas com as outras e magoanem-se umas s outras, via-as lamentar dores de q'ue os Samanas se riam e sdfrer privaes que um samana nem sentia' Aceitava tudo quanto as pessoas lhe levavam' O mercador que lhe levava tecido para veada era bem-vindo; o evedo,r que desejava um emprstimo' que era bem,vindo, como bem-vindo era o mendigo levava uma hora a contar-lhe a histria da sua p.t" e que, todavia, no era to pobre como qualqar", au-*uato. No trtava o nico mercador estrangeiro de modo diferente do criado q'ue o barbeava' que nem dos mscates a quem comprava bananas e consentia lhe 'roubassem umas pequenas moedas de qnundo. Se Kamaswami o procurava e he u"" "- as suas preocuPaes ou o censurava acerca contava de uma transao, escutava-o curiosa e atentamente' sunpreendia'se com ele, tentava compreendJo' oedia r'rrn pou"o onde lhe parecia necessrio ceder e deixa' va-o para ir atender o seguinte que rec{amava a sua ateno. Eram m'uitas as pessoas que o procuravam muitas para negociar com ele, muitas Para o enganar, mtritas para o ouvir, muitas para lhe atrai rem as boas graas e muitas para esoutarem os seus preconselhos. Ele aconselhava, compreendia, dava sentes, deixava-se enganar um bocadinho e ocuPava paixo o pensamelto com todo aquele jogo e com a jogavam, do rnssmo com a qual lodos os homens modo que antigamente ocupara o pensamento com os de'uses e Brame.
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s vezes, ouria dentro de si uma voz suave e meiga, que lhe recordava docemente coisas esquecidas, que se quaixava docemente, to docemente que mal a ouvia. De sb,ito, compreendeu claramente que levava uma vida eslranha, fazia muitas coisas q,ue no passavam de um jogo, se sentia alegre e, algumas vezes, experimentava prazr, mas que a verdadeira vida passava por ele e no lhe tocava. Corno um jogador que joga com a sua ibola, ele jogava com os seus negcios e com as pessoas que o cercavam, observava-as e divertia-se com elas; mas o seu corao, a sua verdadeira natrreza, no ertravam no jogo. A sua verdadeira personalidade vagueava algures, muito longe, prosseguia o seu caminho invisivelmente e no tinha nada a ver com a sua da. s vez,es sentia medo de tais pensamentos e desejava poder comparti,lhar, tarnbm, com internsidade, o infantil ,quotidiano daquela gente, participar verdat.leiramente nele, apreoiar e viver as suas vidas ern vez de estar ali apenas como espectador. Visitava regularmenta a bela Kamaa e aprendia a arte do amor em que, mais do que em tudo o mais, rlar e receber eram uma e a m'esma coisa. Falava com ea, aprendia com ela, dava-lhe conselhos e reog bia-os dela. Kamala compreendia-o melhor do que ( iovinda o compree,ndera, era mais parecida com ele. Uma vez, d,isselhe: pessoas. s como eu, - Kamala e maiss diferente das outras ti li:s ningum, e dentro de 'e,xiste rrrna serenidade e um santurio aos quais te podes rtt:olher em qualqusr a[tr.rra, qrara seres tu msma, 77
exactamente como acontece co/tigo. Poucs pessoas tm ssa faculdade e, todavia, todos a podiam ter' Nem todos so intsligentes.
cansados,
A cortes debruou-se s<rbre.ole e fitouhe longamerte o rosto e os olhos, que se tinham tornado
tem nada a ver com inteligncia, Kamala' -No to inteligente como eu , no ntanto, Kamaswami
no possui refgio nenhum. Outras pessoas, que em entendimento so apenas crianas, tm-no. A maioria das pessoas so como uma folha que paira e revoluteia no ar, estremece e cai no cho. Mas algu' mas so como estrelas, que seguem um caminho definido: nenhum vento as desvia, tm dentro de si o seu guia e o seu caminho. Entre os muitos homens sbios que conheci, um havia que era perfeito quanto a sso. Jamais o poderei esquec3r. Gautama, o Stibio, que Prega uma doutrina. Milhares de jovens ouvem diariamente os seus ensinamentos e seguem as suas istrues hora a hora, mas so todos folhas que caem; no tm sabedoria e guia dentro deles'
- s o melhor amante que jamais tive _ mur_ murou, pensativa. s mais forte do que os outros, mais flexvel, mais interessado. Apreneste bem a minha arte, Siddhartha. Um dia, quando for mais veha, tenei um filho teu. No entanto, apesar de tudo, meu querido, permaneceste um samana. No me tens realmente amor. . . no amas ningum. No ver_
dade?
Talvez.- admitiu Siddhartha, fatigado. _ Sou como tu. Tambm no podes amar, pois de contrrio no praticarias o amor como uma arte. Talvez as pessoas como ns no possam amar. As pessoas vulgares podem... esse o seu segredo.
outra vez a falar deles - observou. -Ests pensamentos de samana. Tens de novo
Siddhartha ficou calado e entregaram-se ao jogo do amor, numa das trinta ou quarenta formas diferentes que Kamaa cmrhecia. O seu orpo era to flexvel como o de um jaguar e como o arco de um caador; quem aprendesse amor com ela aprenderia muitos prazeres, muitos segredos' Brincou com Siddha,rtha durante muito tempo, repeliu-o, subjugou'o, venceu-o e rejutbilou com o domnio que exercia sobre ele, at Siddhartha se imobilizar' exausto, a seu lado.
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cSa,Ilaret
riqueza, a paixo e
HAvIA mul1e tempo que Siddhartha vivi,a a vida do mundo sem no entanto lhe pertencer. Os seus sentidos, que adormecera durante os ardentes anos de samana, estavam de novo despertos. Saboreava a
muito
ternpo permanecera samaDa no corao. A inteligente Kamala compreendera-o. A vida de Siddhartha era sempre orientada pela arte de pensar, esperar e jejuar. As pessoas do mundo, as pessoas vulgares, continuavam a serJhe estranhas, como ee hes era estranho. Os anos passaram e Siddhartha, envoto na atmosfera das circunstncias agradveis da sua vida, mal dava pela sua passagem. Enriquecera. Havia muito que tinha casa sua, criados e um jardim nos arredores da cidade, junto do rio. As pessoas gostavam dele e procuravam-no quando precisavam de dinheiro ou conselhos. No entanto, exceptuando Kamala, Siddhartha no tinha amigos ntimos. Aquele glorioso e exaltado despertar que conhecera na sua juventude, nos dias seguintes a ter ouvido o Gautama Fregar e se ter separado de Go81
vinda, aquela expectativa atenta, aquel orgulho de s9 encontrar sozinho sem mestres nem doutrinas, aquela nsia de ouvir a voz divina dentro do seu pprio corao, tudo isso se tornara gradualmente uma recordao, passara. A nica nascente que' outrora, estivera prxima e cantara ruidosarnente dentro dele, agora era aPenas um murmrio suave, longnquo. No entanto, conservou durante bastante tempo muitas das coisas que aprendera com os Samanas, com Gautama, com o pai e com os Brmanes: vida moderada, o Praze de pe'nsar, horas de meditao e o conh'ecimento secreto do Eu, do Eu eterno que no era corPo nem conscincia. Conservou muitas dessas coisas; outras afundaram-se no esquecimento e estaYam cobertas de poeira' Assim como a roda do o,leiro, uma vez Posta em movimento, continua a girar durante muito temPo, e depois gira devagarinho antes de parar, assim a roda do ascetismo, do pensamento e do discernimento continuou a girar durante muito temPo na alma de Siddhartha. E ainda girava, mas lentamete, hesitantement, quase a parar. Devagar, como a humidade penetrando no tronco moribundo de uma rvore, enchendo-se lentamente e apodrecendo-o, o mundo e a inrcia insinuaram-se tambm na alma de Siddhartha, encheram-na pouco a pouco, tornaram-na pesada, fatigada, adormeceram-na. Mas, em contrapartids, os seus sentidos tornaram-se mais despertos, mais vivos, e aprenderam e conheceram muitas coisas. Siddhartha aprendera a fazer negcios, a exercer poder sobre as pessoas e a divertir-se com mulheres;
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i
I
aprendera a usar belas e ,boas roupas, a dar ordens a criados e a ibanhar-se em gua doceme,nte perfumada. ,prendera a ingerir alimentos requiniados e cuidadosamente preparados _ incluind peixes, carnes e criao, espeoiarias e guoseimas _ e a beber vinho, o que o tornara indolente e esquecido. Aprendera a jogar aos dados e xad,rez, a d-ir". bailarinas, a sr transportado em cadeirinhas e a dormir numa cama macia. Mas sentia-se sernpr.e
sempre com certo desdm, com um desdm ligeira_ mente inico, com o desdm que um samana sente pelas pessoas do mundo. Se Kamaswami se smtia transtornado, se considerava que fora insultado ou se estava preocupado com os negcios, Siddhartha considerava-o sem,pre com ironia. Mas, lenta e im_ perceptivelmente, com o dobrar das estaes, a sua ironia e o seu sentimento de superioridade diminu ram. Graduamente, a par com o aumento da sua riqueza, o prprio Siddhartha adquiriu algumas das caractersticas das pessoas comuns, parte da sua infantilidade e da sua ansiedade. E, no entanto, invejava-as; quanto mais se assemelhava a elas, mais as invejava. Invejava.hes a nica coisa que no tinha e que elas possuam: a noo de imprtncia com a qual viviam as suas vidas, a profundidade dos seus prazeres e dos seus desgostos, a ansiosa mas doce felicidade da sua continua capacidade de amar. Aquelas pessoas estavam sempre apaixonadas por si prprias, pelos fihos, pela honra ou pelo dinheiro, por projectos ou esperanas. Mas isso no conseguia ele aprender com elas, no aprendia.a.", pr,urr".
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eles,
olhava'_os
e essas loucuras infantis. Com elas s aprendia as coisas desagradveis, que desprrzava. Com frequncia crescente, de'pois de uma noite alegre, na mamh segrinte ficava na cama at tarde e sentia-se cansado e embrutecido. Mostrava-se eradado e impaciente quando Kamaswami o aborrecia com as suas preocupaes. Ria-se ruidosamente quando perdia aos dados. O seu rosto continuava a ser mais intelinte e intelectual do que o das outras pessoas, mas como o riso, raramente o adoava assumiu, pouco a pouco, as expresses to frcquentes nos rostos dos ricos expresses de descontentamento, de mal-estar, de desagrado, de indolncia e de desamor. Insidiosamente, a doena da alma dos ricos
apoderava-se dele. A fadiga apossou-se de Siddhartha como um vu, como uma nvoa fina, dia a dia mais espessa, ms a ms mais escura, ano a ano mais pesada. Assim como um fato novo envelhece com o tempo, perde as suas cores vivas, se mancha e amarrota, as bainhas se lhe esfiapam e, aqui e ali, aparrecem partes pudas, assim envelhecia a nova vida de Siddhartha, iniciada depois de se separar de Govinda. Tambm p:rdera a cor e o brilho com o passar dos anos, as rugas e as ndoas acumulavam-se e, ocutas nas profundezas, aqui e ai j se notando, esperavam a desiluso e nusea. Siddhartha no dava por isso. S notava que a voz interior pura e cristaina, qu3 uma vez ouvira e que sempre o guiara nas suas melhores horas, emudecera. O mundo apanhara-o. Prazer, cobia, indolncia e, finamente, tambm, o vcio que sern:pre desprezara
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como o mais estpido de todos: avidez de possuir. Propriedada, bens, riquezas, tinham-no finalmente apanhado na armadilha. J no eram um jogo e um brinquedo, tinham-se transformado numa corrente c num fardo. Siddhartha enveredou por estranho e sinuoso caminho, nessa derradeira e mais abjecta das descidas: o jogo dos dados. Desde que, no seu corao deixara de ser um samana, comeara a jogar aos dados por dinheiro e jias, com crescente fervor, quando antes disso apenas jogara sorridente e indulgcntemente, como qum participa num costume de gcnte comum. Era um jogador fantstico e poucos ousavam jogar com ele, pois as suas paradas eram rnuito altas e temerrias. Jogava por necessidade do scu corao, experimentava um prazer apaixonado t'rn arriscar e desbaratar dinheiro vil. De nenhum outro modo podia demonstrar mais clara sarcasI icrmente o seu desprezo pela riqueza, a falsa divinrlrde dos homens de negcios. Por isso fazia paradas i.rltas e estouvadas, odiando-se, zombando de si prplio. Ganhou mlhares, desbaratou milhares, perdeu rlirrlreiro, perdeu jias, perdeu uma casa de campo, llrrrrhou de novo, voltou a perder... Amava a ansietlirrlc, a terrvel e opressiva ansiedade que experimenirv.r durante o jogo dos dados, durante o suspense rlrrs paradas altas. Amava essa sensao e tentava { r,lrstantemente renov-la, aument-la, estimulJa, pois s atravs dela sentia qualquer espcie de excil.r\io, um viver agitado no meio da sua existncia .,.rt iada, morna e insipida. Aps cada grande perda ,lcrlrt;rva-se de novo a procurar riqueza, e,ntregav.r s,. afanosamente aos negcios e insistia com os
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de novo, queria de$aratar de novo, queria mostrar novamente o seu desprezo pela riqueza. Comeou a impasientar-se com os prejuzos e a perder a pacin' cia com os devedores lentos a pagar, j no era generoso para com os mendigos mem sentia o desejo de dar presentes e conceder emprcstimos aos pdbres. Ele, que arriscava, a rir, dez mil sorte dos dados, tornava-se cada vez mais duro e mesquinlo nos neg cios e, s vezes, sonhava com dinheiro, de noite. E sempre que despertava desse enfeitiamento odioso, quando via o seu rosto reflectido no espelho do quarto, mais velho e mais feio, quando a vergonha e a nusea se apoderavam dele, corria de novo, cor'ria para um novo jogo de azar, fugia do esprito confuso, para a paixo para o vinho, e da lanava-se, mais uma vez, na nsia de ganhar e juntar riqueza. Esgotava-se neste ciclo insensato, to!'nava-se velho e doente. At que um sonho o despertou. noite estivera com Kamala, no szu encantador' jardim, a conversar dgbaixo de uma rvore. Kamala falara seriamente e as suas palavras ocultavam desgosto e fadiga. Pediralhe que lhe falasse de Gautama e pareceira
no se cansar de ouvir falar dele: como os seus olhos eram limpidos, como a sua boca ,era bela e cheia de paz, como o seu sorriso era gracioso, que paz dimanava toda a sua figura... Durante muito tempo, Siddhartha falaralhe de Buda e Kamala suspirava e dissera: uUm dia, labez em breve, tam'
bm me tornarei discpula desse Buda. Oferecenlhe'ei
seus
ensinamentos." Mas depois provocara-c e, no jogo do amor, abraara-o com extremo f,ervor, ardente e banhada em lgrimas, como se, mais uma vez, qu! sesse extrair a ltima doce gota quele fugidio prazer. Nunca Siddhartha compreendera com to estranha clareza como a paixo e a morte estavam streitamente relacionadas. Depois deitara-se ao lado dela c o rosto de Kamala ficara junto ao seu. Debaixo dos olhos e aos cantos da ,boca da bela cortes lera, caramente, pela primeira vez, um triste sinal: finas rugazinhas, vincos que recordavam Outono e velhice. O prprio Siddhartha, que ainda no chegara aos cinquenta anos, j encontrara cabelos brancos, aqui c ali, entre a sua cabeleira negra. O bonito rosto rlc Kamaa denunciava fadiga, fadiga de continuar a percorrer um longo caminho que no tinha uma r(ta alegre, fadiga e velhice incipienle, e scondida, e ainda no mencionada, e que talvez nem fosse, sequer, ainda, um medo consciente medo rlo Outono da vida, medo da velhice, medo da morte. Siddhartha despedira-se dela, suspirando, com o t orao cheio de angstia e secreto temor. Depois passara a noite em sua casa com bailarinas c vinho e fingira ser superior aos seus companheiros, o que j no sucedia. Bebera muito e deitara-se tarde, rnuito depois da meia-noite, cansado e agitado, quase :r desfazer-se em 'lgrimas de desespero. Em vo tenlara adormecer. O seu corao estava to cheio de sofrimento que lhe parecia impossvel continuar a sLrport-lo. Estava, tambm, repleto de nusea, de rrrna nusea que transbordava dele como um vinho rlcsagradvel, ou como uma msica demasiado suave
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seu cabelo e dos seus seios. Mas, acima de tudo, estava nauseado consigo prprio, com o seu cabelo perfumado, com o hlito avi'nhado da sua boca, com o aspecto mole, baofo, da sua pele. Como algum que comera e bdbera em excesso e depois vomitara penosamente e se sentira melhor, assim desejaria o homem desassossegado libertar-s, com um vmito terrvel, daqueles prazeres, daqueles hbitos, daquea vida sem sentido absolutamente nenhum. S ao nascer do dia, e quando j se ouviam os primeiros sinais de actividade no exterior da sua casa citadina, con' seguiu dormitar e ter alguns momentos de semiesquecimento, uma possitbilidade de sono. Durante esses momentos, teve um sonho. Kamala tinha numa gaiolazinha de ouro uma pequena ave canora rara, e foi com essa ave que ee sonhou. A ave, que costumava cantar pela manh, emudeceu, e ee, surpreendido, foi gaiola ver o que se passava. O pobre pssaro jazia, morto e hirto, no cho. Tirou-o da gaiola, segurou-o um instnte a mo e dopois atirou-o fora, para a estrada. No mesmo momento, sentiu-se horrorizado e o corao doeu-he como se, com a ave morta, tivesse deitado fora tudo quanto havia nele de bom e valioso. Despertou do sonho tomado de grande tristeza. PareciaJhe que desbaratara a sua vida intil e insensatamente; no retivera nada vital, nada que fosse, em quatlquer sentido, precioso ou que valesse a pena. Estava s como um nrago numa praia.
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Tristemente, Siddhartha foi para um jardim de recreio que lhe pertencia, fechou os portes, sentou-se debaixo de uma mangueira e sentiu o corao cheio de horror e morte. Sentado debaixo da rvore, sentiu-se morrer, definhar, acabar. Pouco a pouco, dominou os seus ,pensamentos e, mentalmente, Percorreu toda a sua vida, desde os tempos mais remotos de que se lembrava. Quando fora, realmente, feliz? Quando conhecera, realmente, alegria? Bem, conhe' cera-a diversas vezes. Salboreara-a nos dias da sua infncia, quando os Brmanes o elogiavam, quando ultrapassava os da sua idade, quando se distinguia na recitao de versos sagrados, ou a argumentar com homens eruditos, e quando assistia a sacrificios. Ento sentira uma certeza no seu corao: " tua frente abre-se um caminho que deves seguir. Os deu' ses esperam-te.> De novo a sentira na juventude, quando o seu objectivo cada vez mais elevado o isolara e cdlocara acima de outros que buscavam o mesmo, quando se esforava por com,preender os cnsinamentos dos Brmanes, quando cada conheci' mento recm-adquirido s servi,ra para engendrar nova sede. E de novo, no meio dessa sede, no meio dos seus esforos, pensara: "Em frente, em frente, este o teu caminho!> Ouvira essa voz quando abandonara a casa paterna e escolhera a vida dos Samanas, e novamente quando abandonara os Samanas e partira em busca do Perfeito, e mais uma vez cluando o trocara pelo desconhecido. H quanto lcmpo no ouvia essa voz, h quanto tempo no se crguia a quaisquor alturas? Como o seu caminho linha sido plano e desolado! Quantos ,longos anos
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passara sem um objectivo olevado, sem qualquer sede, sem qualquer exaltao, contentando-se com pequenos prazeres, mas nunca realmente saciado! Sem o saber, durante todos aqueles anos esforara-se e ansiara por ser como todas as outras pessoas, como todas aquelas crianas, e, no entanto, a sua vida ,fora muito mais desgraada e muito mais pobre do que a delas, pois os seus dbjectivos no eram os dela, nem os seus desgostos os desgostos dele. Todo aquole mundo de pessoas como Kamaswarni no passara de um jogo para ele, de um baile, de uma comdia que se observa. S Kamala .lhe era querida e tivera algum valor para ele. Mas ainda teria? Ainda precisaria dela, e ela ainda precisaria dele? No estariam entretidos num jogo sem fim? Seria necessrio viver para aquio? No. Aquele jogo chama',ta-se Samsara, era um jogo de crianas, um jogo talvez agradvel jogado uma vez, duas vezes, dez vezes... Mas valeria a pena jogJo continuamente? Siddhartha compreendeu ento que o jogo findara, que no poderia jogJo de novo. Percorreuhe o corpo um calafrio e teve a sensao de que algo morrera, Passou o dia sentado debaixo da mangueira, a pensar no pai, em Govinda e no Gautama. TJos-ia abandonado a todos para se tornar um Kamaswami? Ficou ali sentado at anoitecer. Quando levantou a cabea e viu as estrelas, pensou: .Estou aq sentado, debaixo da minha mangueira, no rneu jardim de recreio.o Sorriu um pouco. Seria nocessrio, seria justo, no s3ria um pouco estpido possuir uma manguira e um jardim?
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Isso estava acabado, era outra coisa que morrera nele. Levantou-se e despediu-se da mangueira e do jardim de recreio, Como no comera todo o dia, sentiu uma grande fome e pensou na sua casa da cidade, no seu quarto e na sua cama, na mesa posta com comida. Sorriu, fatigado, abanou a cabea e disse adeus a essas coisas. Na mesma noite, Siddhartha abandonou o seu jardim e a cidade e nunca mais votou. Kamaswami tentou encontrJo durante muito ternpo, convencido de que ele cara nas rnos de bandidos. Kamala, porem, no tentou encontr-lo nem ficou surpreendida quando soube que Siddhartha desaparecera. No o esperara sempre? No era ele um samana sem lar, um peregrino? Sentira-o mais do que nunca no seu timo encontro e, no meio da sua dor e da sua saudade, rejubilou por o ter arpertado tanto a corao nessa derradeira vez, por se ter sentido to completamente possuida e dominada por ele. Quando ouviu as primeiras notcias do desa4rarecimento de Siddhartha, foi janela onde tinha uma ave canora rara, numa gaioa de ouro. Abriu a porta da gaiola, tirou ave e deixou-a voar. Durante muito tempo seguiu com o olhar a avezinha que desaparecia. A partir desse dia no recebeu mais visitantes e conservou a sua casa fechada. .Passado agum temrpo, verificou que estava grvida, em consequncia do seu ltimo enco'rtro com Siddhartha.
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f,
pnetrou na floresta, j lon da cidade, consciente apenas de uma coisa: no podia voltar para tns, a vida que vivera durante muitos anos acabara, consumira-se e esgotara-se at nusea. A ave canora morrera; a sua norte, com a qual sonhara, era a do pssaro do seu prprio corao. Erlleara-se profundamente no Samsara; atrara para si morte e nusea, de todos os lados, como uma esponja que absorve gua at ficar saturada. Ele estava saturado de angstia, de tdio, de morte; no restava no mundo nada que o Pudesse atrair, que lhe pudesse causar prazer e consolo. Desejou apaixonadamente o esquecimento, estr em paz, morrer. Se um raio o fulminasse! Se aparecesse um tigre e o devorasse! Se houvesse algum vinho, algum veneno, que o mergulhasse no esquecimento, qu: lhe permitisse squecer, adormecer e nunca mais acordar! Haveria alguma imundcie com a qual no tiresse sujado, algum pecado e alguma loucura que no tivesse cometido, alguma ndoa da sua alma de que no fosse o nico culpado?.Ainda seria possvel viver? inda seria possvel respirar,
SIDDHABTHA
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deitar-se com mulheres? Esse ciclo tado e terminado para ele? Siddhartha chegou ao comprido rio da floresta, o mesmo rio, travs do qual um baryueiro o levara uma vez, qua,ndo ainda era jovem e viera da cidade
a no estaria esgo-
do Gautama. Parou, hesitante, na sua mLrgem. A fadiga e a fome haviam-no enfraquecido. Para
que havia de ir mais onge, para onde, com que objectivo? J no havia objectivo nenhum, j no havia mais do que um profundo e doloroso desejo de se libertar de todo aquele confuso sonho, de cuspir aquee vinho azedo, de pr fim qola vida amarga e dolorosa. Havia uma rvore na margem do rio, um coqueiro. Siddhartha rcostou-se a ela, enlaou-lhe o tronco com os braos e olhou para baixo, para a gua verde que corria a seus ps. Olhou para baixo e sentiu-se totalmente avassalado pelo desejo de se deixar escorregar e ser submergido pela gua. O vazio gelado da gua refectia o terve vazio da sua alma. Sim, chegara ao fim. No lhe restava mais nada seno anular-se, destruir a malograda estrutura da sua vida, deita fora, escarnecido pelos deuses. Era isso que desejava ,fazer, destruir a forma que odiava! Que os peixes o devorassem, que se saciassem com aquele co do Siddhartha, com aquele louco, com aquele corpo corrupto e pobre, com aquela alma indolente e ma usada! Que os peixes e os crocodios o devorassem, que os demnios o estraalhassem
em bocadinhos!
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Fitava a gua de semblante descomposto. Viu a reflexo do seu rosto e cuspiuJhe. Soltou os braos da rvore e virou-se um pouco, para poder cair de cbea e submergir, finamente. Inclinou-se, de olhos fechados... para a morte. Foi errto que, vindo de uma longnqua parte da sua alma, do passado da sua vida cansada, ouviu um som. Foi uma palavra, uma slaba que, sem pensar, pronunciou, o aatigo princpio e fim de todas as preces brmanes, o sagrado Om, que significava <O Perfeito> ou uPerfeio". Nesse momento, quando o som da palavra Om chegou aos ouvidos de Siddhartha, a sua alma entorpecida acordou suJbitamente e ele teve conscincia da troucura da aco que ia cometer. Sentiu-se profundamente horrorizado. Chegara, cnto, quilo! Estava to perdido, to confuso, to dcsprovido de toda a razo que procur:[a a morte. O desejo infantil de encontrar a paz pela destruio do corpo crescera e fortalecera-se dentro dele. Todo () tormento, todas as desiluses e todo o desespero tos timos tempos no o tinham afectado tanto
omo o momento em que a palavra Om chegou sua tonscincia e ele avaliou a vileza do seu crime. "Orn ", murmurou intimamente, e teve conscincia tlc Brame e da indestrutibilidade da vida, recordou-se clc tudo quanto esluecera, de tudo quanto era divino, Mas durou apenas um momento, foi como um rclmpago. Siddhartha deixou-se cair junto do t oqueiro, vencido pela fadiga. Deitou a cabea nas r rrzes da rvore e, a murnurar Om, mergulhou num suno profundo,
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O seu sono foi pesado e sem sonhos; no dormia assim havia muito tempo. Quando acordou, decorridas muitas horas, pareceu-lhe que tinham passado dez anos. Ouviu o marulhar suave d,a gta, nas no soube onde estava nem o que o levara a'li. Olhou para o alto e ficou surpreendido ao ver as rvores e o cu, por cima dee. Lembrou-se, ento, onde estava e como ali fora ter. Sentiu o desejo de se deixar ficar onde estava muito tempo. O passado pareciaJhe agora descdberto por um vu, muitssimo remoto e sem importncia. Sabia aperas que a sua vida anterior (no primeiro nomento em que recuperara a conscincia a vida anterior parecerahe uma encarnao distante, um nascimento anterior do seu Eu presente) acabara, que fora uma vida to cheia de nusea e de vileza que desejara destrutla, mas que regressara a si junto de urn rio, ddbaixo de um coqueiro, com a santa pala'tra Om nos lbios. Depois adormecera e ao acordar encarara o murtdo como um novo homem. Docemente, repetiu a palavra Om, a proferir a qual adormecera, e pareceuhe que todo o seu sono f<.rra um longo e profundo pronunciamento de Otn, lma meditao ern Om, uma imerso e penetrao em Om, no desconhecido, no Divino. Que sono maravilhoso fora o seu! Jamais um sono o refizera tanto, o renovara e rejuvenescera tanto! Talvez tivesse realmente morrido, talvez se tivesse afogado e renascido noutra forma. No. Reconhecia-se, reconhecia as mos e os ps, o lugar onde estava e o Eu abrigado no seu peito, era ele Siddhartha, obstinado e individualista. Mas aquele Siddhar96
teres velado durante o - Agradeo-te, samana, meu sono. Os discpulos do Sbio so muito bondosos, mas agora deves seguir o teu caminho. Seguirei. Que passes bem.
- Agradeo-t, samana. Govinda inclinou-se e despediu-se: - Adeus, Govinda. Adeus, - monge estacou, O
Dizes que andas a fazer uma peregrinao, e eu acredito. No entanto, perdoa que te diga uma coisa: no pareces um peregrino. Usas roupas de homem rico e sapatos modernos e o teu cabelo perfumado no o cabelo de um peregrino, no o cabelo de um samzna.
bem, meu amigo, no escapou nada -Observaste aos teus olhos penetrantes. Mas eu no te disse que era um samana, disse-te apenas que andava a fazer
como sabes o meu nome? riu-se e respondeu-lhe: da casa do teu pai, e da - Conheo-te, Govinda, sacrifcios, e da nossa escola dos Brmanes, e dos estada com os Samanas, e daquea hora no bosque de Jetavana m que juraste fidelidade ao Sbio' exolamou Govinda, en voz Siddhartha!
- Perdo, Siddhartha
gora reconheGte e no compreertdo porque alta. no te reconheci imediatamente. Saudages, Siddhartha, causa-me grande prazer voltar a ver-te.
-s -
ernbora no precisasse de guarda. Aonde vais, meu arnigo? vou a lado algum. Ns, monges, andamos -No seinpre a caminhar, excepto na estao das chuvas. Andamos de tcrra em terra, vivemos de acordo com a regra, pregamos a doutrina, recolhemos esmolas e partimos. sempre a mesma coisa. Mas aonde vais tu, Siddhartha? comigo o mesmo que sucede contigo, - Sucede No vou a lado algum, estou apenas de meu amigo. passagem. Ando a fazer uma peregrinao.
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uma peregrinao, e verdade. Andas a fazer uma peregrinao, mas poucos fazem peregrinaes com tl vestu,rio, tais sapatos e tal cabelo. Eu, que percorro os caminhos h muitos anos, nunca vi um peregrino assim. Acredito, Govinda. Mas encontraste hoje um peregrino assim, com tais sapatos e tal vesturio. Lembra-te, meu querido Govinda, de que o mundo das aparncias e o estilo do nosso ves"{f1l"lq turio e do nosso cabelo muitssimo transitrio. 0 nosso cabelo e o nosso corpo so, eles prprios, transitrios. Observaste correctamente. Uso, de facto, o vesl.urio de um rico. Usoo porque sou rico, e uso o cabelo como o dos homens mundanos e modernos porque isso que tenho sido. E que s tu agora, Siddhartha? -No sei; sei to pouco como tu. Estou de passagem. Fui rico, mas j no sou e ignoro o que serei
amanh.
as tuas riquezas? as perdi eu, ou elas me perderam... no -Ou tenho a certeza. A roda das aparncias gira rapida-
Pcrdeste
onde est Siddhartha, o sanana, onde est Siddhartha, o rico? O transitrio muda depressa, Govinda,
ben
sabes.
,Durante muito tempo, Govinda olhou duvidosamente para o amrgo da sua juventude. Depois inclinou-lhe a cabea, como se faz a um homem de elevada posio, e seguiu o seu caminho' Siddhartha viu-o partir, sorrindo. Ainda amava aquele amigo fie e ansioso. Naquele momento, naquela hora esplndida, depois do seu sono maravlhoso, saturado de Om, como podia deixar de amar tudo e lodos? Fora essa precisamente a magia que lhe acontecera durante o sono inspirado pelo Om amava tudo, estava cheio de jubiloso amor por tudo quanto via. pareciahe que fora por isso que ante' riormente se sentira to doente, por no poder amar nada nem ningum.
monge afastar-se.
O sono fortalecera-o, mas sentia grande fome, pois no comia havia dois dias e h muito tempo que no conseguia deter a fome. Pertunbado, mas sem deixar de sorrir, recordou esse terrryo distante. kmbrou-se de que, nessa altura, se vangloriara a Kamala de trs coisas, trs artes nobres e invencveis: jejuar, esperar e pensar. Eram esses os seus bens, o seu poder e a sua fora, o seu bordo firme. Aprendera essas trs artes e nada mais durante os anos diligentes e aplicados da sua juventude. Agora perdera-as, j no possua nenhuma delas, nem a de jejuar, nem a de esperar, nem a de pensar. Trocara-as pelas coisas mais vis, pelo transitrio, peos prazeres dos sentidos, pela vida grande e pela riqueza. Estranho
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eaminho seguira! Parecia que, finalmente, se torrara uma psssoa comum. Siddhartha reflectiu nessa condio. Tinha difituldade em pensar, na reaidade nem o desejava, rrras forou-se a pensar. oAgora qu: todas essas coisas transitrias me voltaram a abandonar", pensou, (encontro-me de rrovo debaixo do sol, como me encontrei uma vez, <luando era pequeno. Nada meu, no sei nada, no lxrssuo nada, no aprendi nada. Como estranho! gora que j no sou novo, que o meu cabelo encancce rapidamente, que as foras comeam a fallirr-me, agora recomeo como uma criana!o Sorriu, de novo. Sim, o seu destino era estranho! nclava para trs e encont'ava-se de novo vazio, nu L, igrorante no mundo. Mas eu no o lamentava; no, :rtri sentia um grande desejo de rir, de rir dele prpr io, dc rir d-este estranho e estpido mundol uAs coisas andam para trs contigo,,, murmurou, t.riu-se. Ncsse momento os seus olhos pousaram no rio c r.lc viu-o correr tambm continuamente para trs, ;r ( intar alegremente. Isso agradouhe muito, tanto rlrrt' sorriu, contente, ao rio. No fora nee que desehavia centenas de anos I,u ir uma vez afogar-se -, r)ao passara tudo de um sonho? "u( ()mo a sua vida tinha sido estranha, pensou. I'r'r'corrcra eslranhos caminhos. "Em rapaz andei ,,, rrpudo com deuses e sacrifcios; em jovem, com .r',1 t tisrno, com pensar e meditar. Andava em busca rlr. lr'ane e reverenciava o eterno em Atman. Na tllr( rtude a expiao atraira-me. Vivi nas florestas,
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sofri frio e calor, aprendi a jejuar e a dominar o meu corpo. Depois descobri, maravilhado, os ensinameni.r g.""a" Buda. Senti que o saber e a unidade ao -rrtt'ao circulavam em mim como o meu prprio ,ung,r", -ut tambm me senti imPelido a abandonar o S-,rdu o grande saber. Parti, fui aprender os Pra" ,".", do uot' "o- Kamala e negcios com Kamaswami. Amealhei dinheiro, esbanjei dinheiro' adquiri gosto pelas comidas fortes, aprendi a esti muitos anos assim -rlla. os-sentios. Tive de passar para perder a inteligncia, para perder a minha iaculdade de pensar e esquecer tudo acerca da unidade das coisas. No ? verdade que, Ientamente e para atravs de muitos atalhos, mudei de homem criana? De pensador Para uma pessoa comum? E, toavia, esse caminho foi bom e a ave existente no meu peito no morreu. Mas que caminho percorri! Tive de conhecer tanta estupidez, tantos vcios' tanto erro, tanta nusea, desilus e mgoa, s para Foi me tornar outra vez criana comear de novol de ser assim' Os meus olhos j.-rsto, po.m, e tinha corao aprovaram-no' Tive de conhecer o o " -".t de mergulhar nos maiores abismos mendesespero, tais, de acalentar pensamentos de suicidio' para para conhecer a Graa, para ouvir Om novamente' despertar de novo dormir profundamente e de novo refeito. Tive de me tornar idiota a fim de encontrar Atman em mim prprio. Tive de pecar para voltar a viver. Aonde me levar o meu caminho? Este caminho estpido, desenrola-se em espirais' talvez em circulos, nas v para onde for seguilo-ei'' Sentiu invadi'lo uma grande felicidade' i02
a razo deste sentimento de felicidade? Provm do meu longo e repousante s.ono, que tanto me a ter fugido, a ter concretizado a fuga a ser, finalmente, de novo ivre e encontrar-me dsbaixo do cu como uma criana? Ah, como foi boa esta fuga, esta Iibertao! No lugar de onde fugi havia sempre uma almosfera de brilhantina, especiarias, excessos e inrcia. Como odiava aquele mundo de riqueza, f,arras c jogos! Como me odiava, a mim, por permanecer tanto tempo naquele horrvel mundo! Como me odiei, contrariei, enverenei e torturei, como me tornei velho c feiol Nunca mais, como outrora imaginava lison.jeiramente, acreditarei que Siddhartha inteigente. Mas uma coisa fiz bem, uma coisa que me agrada e que devo elogiar: pus fim a essa auto-atrominao, a essa vida estpida e vazia. Louvo-te, Siddhartha, por depois de tantos anos de loucura teres voltado a ter uma boa ideia, por teres realizado qualquer coisa, por teres ouvido cantar a ave do teu peito e a tcres seguido., ssirn se elogiou, contente consigo prprio, enquanto escutava curiosamente o estmago, que roncava de fome. Compreendia que saboreava e expelira uma grande dose de sofrimento e angstia durante ('sse tempo passado, que os consumira at ao ponto do desespero e da morte. Mas agora tudo estava lrcm. Podia ter ficado muito mais tempo com Karrraswami, ganho e esbanjado muito mais dinhoiro, :rlimentado o seu corpo e descurado a sua alma; podia ter-se demorado muito mais tempo naquele
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inferno macio, bem estofado, se no fora aquele momento de absoluta importncia e desespero e o outro momento tenso em que se debruara sobre o rio, disposto a suicidar-se. Esse desespero, essa nusea extrema que experimentara, ,no o ti,nham vencido. A ave, a cristalina fonte existente no seu peito, ainda estava viva era por isso que rejubilava, era por isso que ria, era por isso que o seu rosto tinha uma expresso radiante, sob o cabelo grisalho. " bom conhecer tudo pessoalmente), pensou. uQuando era criana, ensinaram-me que os prazeres do mundo e as riquezas no eram bons. Havia muito tmpo que o sabia, mas s h pouco o sodbe por conhecimento prprio. Agora sei-o no s com o intelecto, mas tarnbm com os olhos, o corao e o estmago. E bom sabo." Pensou demoradamente na mudana efectuada nele ouviu a ave cantar alegremente. Se aquela ave que existia dentro dele tivesse morrido, ele teria perecido? No, qualquer outra coisa morrera nele, quatrquer outra coisa que desejaria durante muito tempo que morresse. No fora o que, outrora, desejara destruir, durante os seus ardentes anos de ascetismo? No fora o seu Eu, o seu pequeno, temvel e ongulhoso Eu, com o qual se digladiara durante tantos anos, mas que sempre o vncera, que reaparecera sempre aps cada luta, que he rouibara a felicidade e o enchera de medo? No fora isso que morrera, finalmente, naquele dia, na floresta, junto daquele delicioso rio? No era por causa da sua morte que se sentia agora como uma criana, cheio de confiana e felicidade, sem medo?
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Siddhartha compreendeu, tambm, por que motivo lutara em vo com o seu Eu enquanto fora brmane e asc.ta. Tolhera-o o excessivo saber. Demasiados v:rsos sagrados, demasiados ritos de sacrifcio, demasiadas mortificaes da carne, dernasiados esforos e utas. Fora uma pessoa choia de arrogncia. Tinha sido sem'pre o mais inteigente, o mais ambi cioso-sempre um passo frente dos outros, seo:npre o erudito e intelectual, sempre o sacerdote ou o sbio. O seu Eu infiltrara-se nesse sacerdcio, nessa arrogncia, nessa intelectualidade. Instalara-se l firmemente e crescera, enquanto ele pensava que o destrua oom jejuns e penitncia. Agora compreendia-o, e compreendia tambm que a voz interior tivera razo, que nenhum mestre he poderia ter dado a salvao. Por isso tivera de ir viver no mundo, de se perder na autoridade, nas mulheres e no dinheiro; por isso tivera de ser mercador, jogador de dados, bebedor e homem de bens, at morrerem o sacerdote L' o samana que existiam nee. Por isso tivera de passar por aqueles anos horrveis, de sentil nusea, de aprender a lio da loucura de uma vida vazia e flil at ao fim, at ao amargo desespero, para que Siddhartha, o homem dos prazeres, e Siddhartha, o homem de bens, pudessem morrer. Morrera e do seu sono despertara um novo Siddhartha. Um Siddhartha que tambm envelheceria e morreria. Siddhartha era transitrio, todas as formas eram transitrias, mas naquee momento ele cra jovem, era uma criana - o novo Siddhartha -, e sentia-se muito feliz.
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Estes pensamentos perpassavamJhe pelo esprito. Sorrindo, ele escutava o seu estmago e, grato, o zumbido de uma abelha. Olhava, feliz, para o rio. Jamais um rio o atrara tanto como aquele, jamais achara to belas a forrna e a voz da gua correrrte. Era como se o rio tivesse algo de especial para lhe dizer, algo que ele ignorava, algo que ainda o aguardava. Siddhartha quisera afogar-se naquele rio; o velho, cansado e desesperado Siddhartha estava, naquele momento, afogado nele. O novo Siddhartha sentia um amor profundo por aquela gua corrente e decidiu no a abandonar to cedo.
O borquir.o
FcRIx junto deste rio", pensou Siddhartha. n o " mesmo que alravessei quando me dirigi para a cidade. Um bom barqueiro atravessou-me. procurlo-ei. O meu caminho conduziu.me, um dia, da sua cabana a uma nova vida agora velha e morta. Oxal o meu caminho presente, a minha nova vida, partam de l!' Olhou cheio de amor para a gua corrente, para o verde transparente, para as linhas de cristal dos seus maravilhoss contornos. Viu rutiantes prolas subirem das profundezas, bolhas flutuarem no espeho da superfcie, com o azul do cu reflectido nelas. O rio olhava-o com 'mil olhos verdes, brancos, de cristal e azuis-celestes. Como era grande o seu amor por aquele rio, como ele o fascinava, como era enorme a sua gratido por elel Ouviu a voz recm-desperta no seu corao falar e dizerlh:: <Ama este rio, fica junto dele, aprende com ee.o Sim, queria aprender com ele, queria escut.Io. Parecia,lhe que quem compreendesse aquele rio e os seus segredos compreenderia muito mais, compreenderia muitos segredos, todos os segredos.
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Mas naquele dia viu apenas um dos segredos do rio, um segredo que lhe prendeu a alma. Viu que a gua no parava um instante de correr, corria sempre, e contudo estava sempre ali; era sempre a mesma e contudo, a cada momento, era nova. Quem poderia compreender, concerber ta coisa? Ele no cornpreendia; tinha apenas conscincia de uma vaga suspeita, de uma tnue recordao, de vozes divinas. Siddhartha lgvantou-se. As pu.nhaladas da fome comeavan a tornar-se insuportveis. Caminhou penosamente ao longo da margem do rio, a escutar o murmrio da ryta e a fome devoradora do seu corpo. Quando chegou ao molhe, o barco j l estava e, nele, de p, o barqueiro que uma vez conduzira o jovem samana atravs do rio. Siddhartha reconheceu-o. Tam.bm envehocera muito. perguntou-lhe. I-evas-me para o outro lado? por ver um homem de aspecto to Surpreendido distinto sozinho e a p, o barqueiro recebeu'o no barco e puseram-se a caminho. disse-Ihe SidEscolheste uma vida esplndida - deste rio e Deve ser bom viver perto dhartha. navegar nele todos os dias. O remador sorriu, a oscilar suavemente o corpo. bom, meu senhor, como diz, rnas no so igualmente boas todas as vidas, todos os trabalhos? mas eu invejo a tua vida. -Talvez, Oh, depressa perderia o gosto Por ela! No para pessoas bem vestidas. Siddhartha riu-se.
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J hoje tinha sido jutrgado pelas minltas rtrupas com desconfiana. Aceitas sts rouPls, que considero incmodas? Devo dizer-tc quc lo tenho dinheiro para te pagar a travssia. cavalheiro est a brincar! excamou o -O barquairo, rindo. No brinco, mzu amigo. J uma vez me transportaste de um lado para o outro deste rio sem que te pagasse; volta a faz-lo hoje, por favor, e aceita as minhas roupas como pagamento. E o cavalheiro continuar o seu caminho despido? Prefuria no ir mais longe. Gostaria que me - alguma da tua roupa velha, e rne deixasses desses ficar como teu ajudante, ou melhor, como teu aPrendiz, pois preciso de aprender a manejar o ibarco. O barqueiro olhou-o atentamente, durante muito tempo.
olhado e-
dormiu
Reconheo-o
declarou, por fim.-Uma vez na mjnha cabana. Foi h muito tempo, talvez
h mais d,e vinte anos. Levei-o Para a outra margem do rio e separmo-nos bons amigos. No era, ento, um samana? No me consigo lerrlbrar do seu nome. Chamo-mc Siddhartha e era samana a ltima - ,que me viste, vez Bem vindo, Siddhartha. O meu nome Vasudeva. Espero que seja mzu hspede e durma esta noite na minha cbana, e gostava de saber de onde vem e pot(ue se cansou tanto das suas ibelas roupas. Tinham chegado ao meio do rio e Vasudeva come' ou a remar com mais fora, por causa da corrente. Os seus braos fortes re(navam calmamente, en109
quanto os seus olhos observavam, atentos, a ponta do barco. Siddhartha observava-o e recordava que uma vez, nos seus tempos de sama,ra, sentira afecto por aquele homem. Aceitou, agradecido o convite de Vasudeva. Quando chegaram margem, ajudou-o a amarrar o barco. Depois Vasudeva conduziu-o cabana e ofereczulhe po, gaa e mangas, que Siddhartha comeu e bebeu com deloia. Mais tarde, quando o Sol comeava a pr-se, sen' taram-se no tronco de uma rvore, junto do rio, e Siddhartha faloulhe da sua origem e da sua vida e de como o encontrara naquele dia, depois da sua hora de desespero. A histria prolongou-se at altas horas da noite. Vasudeva esc.ltou-o com grande atero, ouu tudo acerca da sua origem e infncia, dos seus estudos, das suas buscas, dos seus prazeres e das suas necessidades. Uma das grandes virtudes do barqueiro era saber ouvir, coisa que acontecia a poucos. Embora Vasudeva no proferisse uma palavra, Siddhartha sentia que ele escutava todas as suas, serenamente, interessadamente, sern lhe escapar nada. No esperava coisa alguma com impacincia e no elc giava nem censurava; ouvia, apenas. Siddhartha achou ,maravilboso ter semelhante ouvinte, capaz de se absorver na da de outra pessoa, nas suas lutas e nos seus desgostos. Cerca do tim da histria, quando Siddhartha falou da rvore junto do rio, do seu profundo desespero, do sagrado Om e de como, depois de dormir, experimentara um grande amor pelo rio, o barqueiro
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escutou com redobrada ateno, completarnente absorto e de olhos fechados, Q'qndo Siddhartha acabou seguiu.se uma longa pausa e, depois, Vasudeva declarou: pensava; o rio faoulhe, E sente - como eu amizade por si, tamrbm, falaJhe. Isso bom, mto bom. Fique comigo, Siddhartha. Outrora tive mulher, a sua cama ficava ao lado da minha, mas ela morreu h muito e h muito ternpo que vivo sozinho. Fique a viver comigo; h espao e comida para ns do,is. - Agradeo-te, agradeo,te e aceito. Tarnbm te agradeo, Vasuderra, teres escutado to lbem. H l)oucas pessoas {lue saibam ouvir e eu nunca conheci rringum que o soubesse to bem como tu. Tam,brn aprenderei contigo a esse respeito. Aprender, mas no comigo. Foi o rio que me t rrsinou a escutar; tanbm aprender com ee. O rio srbe tudo, podemos aprender tudo com ele. O senhor jri aprendeu com ele que bom mergulhar, procurar rrs profundidades. O rico e distinto Siddhartha torrrirr-se remador; Siddhartha, o brmane erudito, tr rrrrar-se. barqueiro. Tambm aprendeu isso coqn ,r lio. Aprender igualmente a sutra coisa. Aps uma longa pausa, Siddhartha perguntou: Vasudeva? - Que outra coisa, o banqueiro, levantando-se. tarde- disse - Viuro-nos deitar. No lhe posso dizer o que - a outla coisa, meu amigo. Descobrir o que , talvez ,rlri j saiba. No sou um homem instrudo, no sei l,rlrrr ncm pensar. Sei apgnas escutar e afeioar-me; turrrrdo isso, no aprendi mais nada. Se soubesse Lrl;rl e ensinar talvez fosse professor,.mas assim sou
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apenas barqueiro e a minha misso transPortar pessoas de uma margem para a outra do rio. J transportei milhares de pessoas de um lado para o outro e para todas dlas o meu rio no tem sido mais do que Lrm contrtempo na viagem. Viajavam por causa de dinheiro e negcios, para assistir a casamentos em peregrinao; o rio atravessava-se no seu caminho e o ibarqueiro l estava para os transportar rapidamente atravs do obstculo. No entanto, entre milhares houve alguns, quatro ou cinco, para os quais o rio no rfoi um dbsticulo. Ouviram a sua voz e escutarm-na e o rio tornou-se sagrado para eles, como para mim. Agora vamos para a cama, Siddhartha. Siddhartha ficou com o barqueiro e aprendeu a mandbrar o barco, e quando no havia nada que fazer no molhe trabalhava no arrozal com Vasudeva, apanhava lenha e colhia frutos das bananeiras. Aprendzu a fazer remos, a consertar o lbarco e a fazer cestos. Sntia-se contente com tudo quato fazia e aprendia e os dias e os meses passavam rapidamente. Mas aprendeu mais com o rio do que tudo quanto Vasudeva lhe pde ensinar. ,Escutava-o com o rio a continuamente - s,obretudo aprendeu escutar, a escutar com o corao sereno e a a{ma aberta, sem paixo, sem desejo, sem jugar, sem opinies. Vivia feliz com Vasudeva e, ocasionalmente, trocavam algumas palavras, poucas palavras e longamente consideradas. Vasudgva no era falador e Siddhartha raramente conseguia levlo a falar. Uma vez perguntou-lhe:
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revista a minha vida e ea tambm era um rio, e Siddhartha nroo, Siddhartha homem maduro e Siddhartha velho encontravam-se separados apenas por sornbras e no pela realidade. As anteriores vidas de Siddhartha tambm no prtenciam ao passado e a sua morte e o seu regresso a Brame no pertencem ao futuro. Nada foi, nada ser, tudo tem realidade e presena.
Tambm aprendeste esse segredo do rio, quero coisa que no existe? Um sorriso luminoso alastrou peo rosto de Vasudeva. Sim, Siddhartha respondeu. dizer que o rio est en toda a parte ao-QuerEs mesmo tempo, na nascente, na foz, na catarata, no molhe, na corrente, no oceano e nas montanhas, em toda a parte, e que para ele existe apenas o presente e no a sombra do passado nem a sombra do futuro? Exactamente- E quando aprendi isso passei em
Siddhartha falava deliciado. Aquela descdberta tornara-o nuito feliz. No se encontrava, ento, todo o sofrimento no tempo, no se encontravam no tempo todo o autotormento e todo o medo? No se venciam todas as dificuldades e todos os males do mundo assim que se vencia o tempo, assim que se bania o tempr.r? Fala,va com delcia, rnas Vasudeva imitou-se a sr-rrrir',lhe, radiante, e a acenar com a ca,bea, afirmativamente. Deu uma palmadinha no ornbro de Siddhartha e voltou ao seu traibalho. De outra vez, quando o rio engrossou durante a estao chuvosa e as suas guas rugiam, Siddhartha disse:
Do molhe e dos dois barqueiros emanava qualquer coisa que muitos viajantes sentiam. s vezes sucedia que, depois de ohar para o rosto de um dos barqueiros, um viajante comeava a falar da sua vida c das suas preocupaes, confessava pecados e pedia conforto e conselho. s vezes sucedia algum pedir autorizao para passar a noite com ees, a fim de ( \cular o rio. Tamtm sucedia aparecerem curiosos, clue tinham cuvido falar de dois sbios, mgicos ou homens santos viviam no rnolhe. Os curiosos l:rziam muitas perguntas, mas no recebiam resl){)stas e no encontravam mgicos nem sbios. En(()ntravam apenas dois velhos de expresso amigvt'1, que pareciam mudos, muito caducos e estpidos. l:rt:ro os curiosos riam-se e diziam que as pessoas ,,r;rrn muito idiotas e crdulas, para espalharem lro;r l os to sem sentido. Os anos passavam e ningum os contava. At que rrrrr dia chegaram alguns monges, discpulos de Gaul,rrrra, o Buda, e pediram que os transportassem p,u r i outra margem. Os barqueiros ficaram a saber rlr{.os monges desejavam regressar o mais depressa p,,.,sivel para junto do seu grande mestre, pois chep,u.r iro seu conhecimento que o Sbio stava gravlrrrurtc doerte e no tardaria a sofrer a sua ltim rrorl(. e a alcanar a salvao. Pouco depois chegou "lro lr.Llpo de monges e a seguir outro, e os non. 1,,,'..,rssirr1 como a maioria das outras pessoas, no lrrlrll.ur dc mais nada a no ser da morte, que se r',,pr,r,r\ir para breve, do Gautama. E, assim como r\ lr',,.,(,is vinham de todos os ados para uma experllq,trr rrrililar ou para a coroao de um rei, assim
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atrados por um magneto,"a fim de seguirem para o local onde o grande Buda jazia no seu leito de morte, onde aquele grande acontecimento se dava e onde o salvador de uma poca passava Eternidade.
'Iinham chegado ao rio, mas o rapaz tlcpressa. Queria vdltar para casa, queria
cansava-se
descansar,
Naquela altura Siddhartha pensou muito no sbio moribundo, cuja voz influenciara milhares de pessoas e ele tambm ouvira, cujo semblante sagrado ele tambm observara com respeito. Pensou enternecidamente nele, recordou o seu camino para a salvao e, sorrindo, recordou as palavras que, jwem, dissera uma vez ao Sbio. Parecialhe que tinham sido palavras arrogants e prcoces. Durante muito tempo, tivera conscincia de que no se separara de Gautama, em,bora no pudesse aceitar os seus ensinamentos. No, aquele que procurava sinceramente no podia aceitar quaisquer ensinamentos, se na verdade desejava encontrar alguma coisa. Mas aquele que encontrara podia dar a sua aprovao a todos os caminhos, a todas as metas; nada o separava de todos os outros milhares que viviam na eternidade, que aspiravam o Divino. Um dia em que muita gente seguia em peregrinao para junto do Buda moribundo, Kamala, outrora a mais bela das rcortess, contava-se entre os peregrinos. Abandonara havia muito o seu anterior modo de vida, oferecera o seu jardim aos monges de Gautama, refugiara-se na sua doutrina e pertencia ao grupo de mulheres benfeitoras dos peregrinos. Ao saber da morte prxima de Gautama, partira a p, simplesmente vestida, com o filho.
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queria comer, Mostrava-se frequentemente amuado t: choroso e Kamala tivera de descansar muitas vezes, com ele. Estava habituado a fazcl valer a sua vontade e ela via-se obrigada a darJhe de comer, a lcconrfort-lo e a rahar-lhe. O rapaz no podia compreender por que motivo a me tinha de fazer aquela cstafante e miservel peregrinao a um ugar desconhecido, par ver um estranho que diziam santo c 3stava a morrer. Pois que morresse! Que lhe intelcssava isso? Os peregrinos no estavan longe do molhe de Vasudeva quando o pequeno Siddhartha disse mais uma vez rne que queria descansar. Kamala tambm estava cansada, e erquanto o filho comia uma b;rnana acocorou-se no cho, semicerrou os ohos t' d:scansou. De sbito, porem, soltou um grito de rkrr. Assustado, o filho olhou-a e viu-lhe o rosto livido de horror. Uma pequena serpente preta, que rrrordera Kamala, saa.:lhe a rastejar debaixo das
r1)upas.
Desataram ambos a correr, procura de algum. ()rrando estavam perto do molhe, Kamala caiu, incalrrrz de ir mais rlonge. O rapaz gritou por socorro, crrquanto beijava e abraava a me, e ela uniu os rcus gritos aos dele, at serem ouvidos por Vasudeva, r;rrc se encontrava no molhe. O velho correu apres,,;rtlamente, pegou na mulher e transportou-a para o lrrlco. O rapaz juntou-se-lhe e no tardaram a chel.rr cabana, onde Siddhartha acendia o lume. I cvuntou a cabea e a primeira coisa que viu foi
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a cara do rapaz, que lhe recordou stranhamente qualquer coisa. Depois viu Kamala e reconheceu-a
logo, embora ela estivesse inconsciente nos braos do barqueiro. Corrrpreendeu ento que o rosto que lhe lerrlbrara qualquer coisa era o do filho, e o, ater do seu corao acelerou-se. Lavaram a ferida de Kamala, mas j estava negra e o seu corpo inchara. Administraram-lhe um tnico, que 'lhe permitiu rocuperar a conscincia. Estava deitada numa cama, nuna cabana, e Siddhartha, a quem amar tanto, dbruava-se sobre ela. Jugou sonhar e, sorrindo, fitou o rosto do amado. Pouco a pouco, porm, compreendeu o estado em que se encontrava, lembrou-se da mordedura da serpente e chamou ansiosamente o filho, No t; preocupes, ele est aqui tranquilizou-a Siddhartha. Kamala fitou-o nos olhos. Tinha dificuldade em falar, com o Yeneno no sangue. Envelheceste, meu querido, tornaste-te grisaho, mas s como o jovem Siddhartha que uma vez me procurou no meu jardim, sem roupa e com os ps sujos de poeira. Pareces-te muito mais com ele agora do que quando deixaste Kamaswami e a mim. Os teus olhos so como o dele, Siddhartha. Ah, eu tambm envelheci tanto! Reconheceste-me? Reconhecite imediatamente, minha querida Kamala afirmou, sorrindo, Siddhartha. Karnala apontou o filho e perguntou: Tarnbm o reconheceste a ele? teu filho. - seus olhos enevoaram-se e fecharam-se. O rapaz Os comeou a chorar. Siddhartha sentou-o nos joelhos,
do garoto recordou-se de u:na prece brmane que aprendera quando tamHm era psqueno. Lentamente, em voz cantante, comeou a recitJa. As palavras acudianlhe memria, vindas do seu passado distante, da sua inf,ncia. O garoto foi serenando, enquanto o ouvia, soluou ainda um pouco e acabou por adormecer. Siddhartha deitou-o na cama de Vasudeva, que estava junto da chamin a cozinhar arroz. disse Siddhartha, baixinho, Ela est a morrer ao- barqueiro. Vasudeva acenou com a cabea, com a claridade das chamas reflectida no rosto bondoso. Kamala recuperou de novo a conscincia e Siddhartha eu dor na sua boca e no seu rosto plido. Leu-a serenamente, atentamente, na xpctativa e compartilhando-a. Kamala compreendeu-o e o seu olhar procurou o dele. Agora reparo que os teus olhos tarnbm muTornaram-se daram observou, sem o desfitar. muito -dlferentes. Porque reconhecerei que ainda s Siddhartha? s Siddhartha, mas no s como ele era. Ele fitou-a em silncio. perguntou KaAlcanaste o que querias? paz ? maa. Encontraste a Siddhara sorriu e pegou-lhe na rno. Sim vejo que encontraste murmurou a morihunda. Eu tambm encontrarei a paz. -a encontraste disse Siddhartha, baixinho. -J Kamala fitou-o intensamente. Fora sua inteno ir ao encontro de Gautama, ver o rosto do Sbio,
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obter alguma da sua paz. Em vez disso encontrara apenas Siddhartha, mas era bom, to bom como se tivesse visto o outro. Quis dizeriho, mas a ngua j no obedecia sua vontade. Fitou'o em silncio e ele viu a vida esvair-se'lhe dos olhos, que fechou com as pontas dos dedos depois do ltimo espasmo de dor os abandonar e de o derradeiro estremecimento lhe sacudir o corPo' Ficou muito temPo sentado, a fitar o rosto morto' Ohoulhe muito tom'po a boca, a boca velha e cansada e os lbios mirrados, e lernbrou-se de que uma vez, na primavera da vida, a comParara a um figo acabado de cortar. Olhou durante muito tempo, intensamente, o rosto plido e as rugas de fadiga, e viu o seu prPo rosto xactaEente como o dela, to plido e to norto como o dela - e, ao mesmo rempo, viu cs rostos de amrbos, jovens, de lbios vermelhos e olhos ardentes, e avassalou-o uma sen' sao de existncia Present contempornea. Naquela hora sentiu mais viryamente do que nunca a destrutibilidade de todas as vidas, a eternidade de todos os momentos. Quando se levantou, Vasudwa preparara-he um pouco de aroz, mas Siddhartha no comu' No st' bulo, onde tinharn a cabra, acamaram alguma palha e Vasudeva deitou'se. Mas Siddhartha saiu e sentou-se defronte da cabana, onde ficou toda a noite a escutar o rio, rnergulhado no passado, simultanea' mente perturbado e rodeado por todos os perodos da sua vida. De quando em quando, porem, evantava-se e ia at porta da cabana, ver se o rapaz dormia.
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De manh cedo, ainda o sol no se via, Vasudeva saiu do estbuo e aproximou-se do amigo. No dormiste. - No, Vasudeva. Fiquei aqui sentado, a escutar rio. o - Disse-me muitas coisas, encheu-me de muitos grandes pensamentos, de pensamentos de unidade. Sofreste, Siddhartha, mas, apesar disso, vejo que a tristcza no penetrou no teu corao. querido Porque havia de - Pois no, meu fui ricoamigo. tornei-me ainda cstar triste? Eu que e feliz mais rico e feiz. Foi-me dado o meu filho. Tambrn dou as boas-vindas ao teu fiho. Mas agora, Siddhartha, vamos trabalhar, pois temos muito,que lazer. Kamala morreu na (nesma cama onde se f,inou a minha mulher. Erguer-lhe-emos a pira funerria no mesmo monte onde, h muito tempo, ergui a da minha mulher. Enquanto o rapaz dormia, ergueram a pira funerria.
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AgsUsTADo
e choroso, o tapaz assistira ao funeral da me; assustado e triste, ouvira Siddhartha saud-lo como {ilho e darlhe as boas-vindas cabana de Vasudeva. Dias a fio, sentara-se, pido, no monte dos mortos, de olhos perdidos no vcuo, corao fechado, a lutar contra o seu destino. Siddhartha tratava-o com considerao e deixava-o s, pois rcspeitava a sua dor. Compreendia que o filho no o conhecia e no o podia anar como a um pai. Pouco a pouco, compreendeu tambm que o garoto de onze anos era um menino mimado da mam, fora criado com os hbitos dos ricos e stava hatbituado a boa comida e cama macia e a dar ordens a criados. Siddhartha conrpreendeu que o garoto mimado e sofredor no se podia sentir contente, d um momento para o outro, num lugar estranho e pobre. No o apressou. Fazia por ele quanto podia e reservava-lhe sempre os melhores bocados, na esperana de que, lentamente e com terna pacincia, acabaria por o conquistar. Considerara-se rico e feiz quando recebera o filho, mas medida que o tempo passava e o rapaz con123
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tinuava antagnico e amuado, se mostrava arrogante e provocador, no tralhava, no respeitava os velhos e roubava as rvores de fruto de Vasudwa, Siddhartha comeou a compreender que o filho no he trouxera felicidade e paz e, sim, desgostos e preocupaes, apenas. Mas amava-o e preferia os desgostos e as preocupaes do seu amor felicidade e ao prazer sem o filho. Desde que o jovem Siddhartha estava na cana, os dois velhos tinham dividido as tarefas. Vasudeva encarregava-se de todo o trabaho do mohe e do barco e Siddhartha, para pder estar com o filho, do trabalho do campo e da cabana. ,Durante muitos meses, Siddhartha esperou pacienteanente, na esperana de que o filho acabasse por compreend-lo, aceitasse o seu amor e talvez, at, o retribuisse. Durante muitos meses, Vasudeva observara tudo isso, esperara e guardava silncio. Um dia em que o jovem Siddhartha atormentara o pai com as suas provocaes e as suas birras e partira anbas as escudelas do arroz, Vasudeva chamou o amigo de parte, ao anoitecer, e falou-Ihe: Perdoa mas vou falar-te como arnigo. Vejo que andas preocupado e te sentes infeliz. O teu filho, meu caro, atormenta-te e atormsnta-me. O jovem passarito est habituado a uma vida diferente, a outro ninho. No,fugiu da riqueza e da cidade com um sentimento de nusea e repugnncia como tu; teve de deixar todas essas coisas contra vontade. Perguntei ao rio, meu amigo, pergunteilhe muitas vezes, e ele riu-se, riu-se de mim e de ti, estremeceu todo de riso, a expensas da nossa loucura. A gua
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corre para a^gua,a juventude para a ittvt'ttltttlt' O teu filho no ser feliz neste lugar. Pcrgurtta ao
rio e escuta o que ele diz. Perturbado, Siddhartha olhou para o rosto bondoso do amigo, onde o sorriso vincara muitas rugas. me poderei separar dele? perguntou, -Como D-me mais algum tempo,-meu querido baixinho. anigo. Luto por ele, esforo-me por tocar o seu corao. Conquisto-ei com amor e pacincia. O rio tambm lhe falar, um dia, ele tambm foi chamado. O sorriso de Vasudeva tornou-se mais quente. sim, ee tambm foi chamado, tambm per-Oh, vida eterna! Mas saberemos tu e eu a que tence foi ele chamado, a que caminho, a que empreendimentos, a que desgostos? E olha que os seus desgostos no sero pequenos! Tem o corao orguthoso e duro. Provavelmente sofrer muito, cometer muitos erros, muitas injustias e muitos Pecados. Dize-me, meu amigo, ests a educar o teu filho? le obedece-te? Bates,he ou castigalo? No, Vasudwa, no fao nenhuma dessas coisas. - J sabia. No s severo com ele, no o castigas, no lhe ds ordens, porque sabes que a bondade mais forte do que a severidade, que a gua mais forte do que a pedra, que o amor mais forte do que a rfora. Muito bem, louvo-te. Mas no ser, talvez, um erro da tua parte no te mostrares severo com ele, no o castigares? No o acorrentas com o teu amor? No o humilhas todos os dias com a tua bondade e pacincia, tornando tudo ainda mais difcil para ele? No obrigas esse rapaz arrogante e mimado a viver numa cabana com dois velhos papa125
-bananas, para quem at o toz uma iguaria, cujos pensamentos no podem ser os dele e cujos coraes io velhos, calmos e batem num ritmo diferente do
seu? EIe se no sentir constrangido e castigado com tudo isto? Siddhartha olhou para o cho, cheio de perplexi'
dade.
baixinho. '
perguntou,
Lwa-o cidade, a casa da sua me' Ainda l criados, entrega'lho. E se eles j l no estiverem, leva-o a um professor, no apenas para que se eduque, mas tambm para que conhea outros apa7s e raparigas e esteja no mundo a que pertence. Nunca Pensaste isso? no meu corao- respondeu Siddhartha, -Ls Pensei muitas vezes nisso. Mas como tristemente. - mundo, com uln corao to duro viver ele neste como o seu? No se considerar superior, no se perder na lbre dos Prazeres e do poder, no repeiit todot os pecados do pai, no se perder, talvez, por completo no Samsara? O barqueiro sorriu de novo, deu uma palmadinha no ombro de Siddhartha e redarguiu-lhe: Pergunta ao rio, meu amigo! Escuta como ele - ri! Crs, sinceramente, que cometeste todas as se tuas loucuras para as poupares ao teu filho? chas que o podes proteger do Samsara? Como? Por meio/ de insrues, de preces, de exortaes? Meu querido amigo, squeceste aquela esclarecedora histria acerca de Siddhartha, o filho do brmane, que uma vez me contasle, aqui? Quem Protegeu Siddhartha'
d.eve haver
do desatino? A religiosidade do pai, as e:rortaes do mestre, o seu prprio saber, a sua busca, poderiarn t-lo protegido? Que pai, que mestre, o poderiam impedir de viver a sua prpria vida, de se macular com ela, de se sobrecarregar de pecado, de levar pessoalmente os lbios a amarga bebida, de encontrar o seu prprio caminho? Pensas, meu amigo, que esse caminho poupado a algum? Talvz ao teu lilho, porque gostarias que lhe fossem poupados dest{ostos, dores e desiluses? Mas mesmo que morresst's dez vezes por ele no modificarias o seu destino na mlnima coisa. Vasudeva nunca falara tanto. Siddhartha agrarl,'ccu-lhe arnigavelmente, recolheu, perturbado, r irlrana, mas no conseguiu conciliar o sono. O amigo trrro lhc dissera nada em que j no tivesse pensado, r;rrc.j no soubesse. Mas o seu amor pelo rapaz, a errrr dedicao e o seu medo de o perder eram mais lortts do que o seu raciocnio. Alguma vez dera o r r rr irrro to competamente a algum? Alguma vez rrfl rr r algum cc/In tanto amor, to cegamente, to r luL rl rsarne nte, to desesperadamente e, contudo, r rln tnrta felicidade? 5[klhrrltha no pde seguir o conselho do amigo, rrnrr ltri (rpaz de renunciar ao filho. Consentiu que r r rr|.r1 llc desse ordens e o desrespeitasse, calou-se I r,l'r'rr)u. l)iariamente, recomeava a batalha muda rln ,rrlrz,rrl. c da pacincia. Vasudeva tambm espervrr t'rr \ilancio, amigavemente, cheio de compreene5l r rrrrlrrll',tirrcia. No tocante a pacincia, os dois !r'llr,r,. , r.rrrr lrrnbos mestres.
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o rosto do filho lhe recordou Kamala, Siddhartha lembrou-se, de sbito, de uma coisa que ela lhe dissera, havia muito tempo: cNo podes amar", disseralhe ela, e ele concordara. Comparara-se a uma estrela e as outras pessoas a folhas que caiam, mas apesar disso pressentira uma certa censura nas palavras de Kamala. Era verdade que nunca se perdera noutra pessoa a tal ponto que se esquecesse de si prprio, que nunca sofrera os desatinos do amor por outra pessoa. Nunca fora capaz disso e, ento, parecera-lhe ser essa a grande diferena ntre ele e a gente comum. Mas agora, desde que tinha o filho consigo, tornara-se, atravs da mgoa e do amor, exactamente uma dessas lrssoas comuns. Amava loucamente, o amor transformava-o em idiota. Tardiamente, e pela primeira vez na vida, tambm conhecia a mais forte e mais estranha das paixes, que o fazia sofrer tremendamente, mas que ao mesmo tempo, no sabia como, o elevava, o reno. vava e tornava mais rico. Sentia que o seu amor, o seu cego amor pelo filho, era uma pao muito humana, era Samsara, uma nascente turva de gua profunda. .Ao rnesmo tempo, sentia que no era uma coisa intil e, sim, necessria, que provinha da sua prpria natureza. Aquela emoo, aquele sdfrimento, aquela loucura, tambm tinham de ser conhecidas por ele. Entretanto, o filho, com as suas birras, deixava-o cometer as suas loucuras, deixava-o utar, deixava-o humilhar-se. No havia no pai nada que o atrasse, nada que tmesse. O pai era um bom homem, um homem generoso e brando, talvez um homem devoto,
Um dia em que
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um santo, mas isso no eram qualidades susccptveis de conquistar o rapaz. Aquee pai que o nrantinha naquea miservel cabana aborrecia-o, e quando ele reagia sua dureza com urn sorriso, aos seus insultos com amizade e a todas as suas patifarias com bondade, o moo considerava tal procedimento a mais odiosa astcia do velho raposo. Profcriria que o ameaasse, que o maltratasse. Chegou o dizr em que o jovem Siddhartha disse o que pensava e se virou abertamente contra o pai. Este disseraJhe que apanhasse alguns gavetos, mas o rapaz no sara da cabana. Deixara-se ficar onde cstava, desafiador e colrico, batera o p, cerrara os punhos e declarara vementemente o s:u dio e o seu desprezo, na cara do pai. voc buscar os gavetos! gritara a espu-V rnar pela boca.-No sou seu criado! Sei que no rnc bater, no se atreve! Mas tambm sei que me (istig constantem,ente, e me faz sentir mesquinho, (om a sua compaixo e indulgncia. Quer que seja r. oms voc, to devoto, to meigo, to sensato... mas, s(i para o contrariar, preferiria ser ladro e assassino c ir para o Inferno, a ser corno . Odeio-o! No rrrcu pai, ainda que tenha sido amante da minha me tttna dzia de vezes! ' Suftrcado de raiva e angstia, desabafou num r lrorrilho de palavras colricas e cruis mntra o pai. l)t.pois saiu da cabana a correr e s voltou ao fim tlir larde. Na manh seguinte, desaparecera. E com ele sumi|,r \( um pequeno cesto de entrecasca, de duas cores, ,rrrlt.os barqueiros guardavam as moedas de cobre
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e prata que recebiam como pagamento. E o barco tambm desapareoera. Siddhartha viu-o na outra margem. O rapaz fugira. disse o velho, que vivia Tenho de o procurar numa grande agitao desde que ouvira as palavras Uma criana no pode duras do filho, na vspera. - acontecer-lhe- alguma atravessar a floresta sozinha, coisa... Temos de fazer uma jangada par atravessar o rio. Faremos uma jangada para ir buscar o nosso - que o rapaz levou. Mas deixa-o ir, meu amigo, barco, ele j no uma criana, sabe olhar por si. Partiu em busca do caminho da cidade, e fez bem. No te esqueas disso. Fez o que tu devias ter feito e no fizeste, olha por ele, segue o seu caminho. Oh, Sid' dhartha, vejo que sofres, que sofres por uma coisa que d vontade de rir, da qual tu mesmo rirs, em bl'we! Siddhartha no respondeu. J empunha,ra um machado e comeou a fazer uma jangada de bambu. Vasudeva ajudou-o a unir os bambus uns aos outros, com corda feita de erva. Depois meteram-se gua e a cerrente arrastou-os, mas conseguiram dirigir a jangada para a outra margem. perguntou SidPorque trouxeste o machado? dhartha a Vasudeva. possve que o remo do nosso barco se tenha perdido. , Siddhartha compreendeu o que o amigo pJnsava: era possvel que o rapaz tivesse deitado o remo fora, ou que o livesse partido, por vingana d para os impedir de o seguirem. De facto, no havia rerno
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nenhum no barco. Vasudeva apontou para o fundo da embarcao e sorriu ao amigo, como se lhe perguntasse: No vs o que o teu filho pretende dizer? No compreendes que ele no deseja que o sigamos? Mas no o disse por palavras e comeou a fazer um novo remo. Siddhartha despediu-se, para ir procurar o filho. Vasudeva no tentou det-lo. Siddhartha encontrava-se na floresta havia muito tempo quando lhe ocorreu que a sua busca era intil. Ou o rapaz j sara havia muito da floresta e chegara cidade, ou, se ainda ia a caminho, esconder-se-ia do seu perseguidor. Refectiu um pouco mais e chegou concluso de que no estava preocupado com o filho, de que sabia, intimam.ente, que no lhe acontecera mal a-lgum nem estava ameaado por qualquer perigo, na floresta. No entanto, prosseguiu obstinadamente o seu caminho, no j para o salvar, mas impelido, talvez, pelo desejo de o oltar a vgr. Chegou assim aos arredores da cidade. Ao chegar estrada larga, prxima da cidade, parou entrada do bonito jardim de recreio que outrora pertencera a Kamala e onde ele a vira, pela primeira vez, transportada numa cadeirinha. O passado ressuscitou diante dos seus olhos. Viu-se, uma vez mais, ali parado, jovem samana nu, de barba t rescida e cabelo sujo de poeira. Ficou muito tempo prrrado, ao olhar para o jardim atravs do porto .rbcrto, e viu monges a caminhar debaixo das belas
iu vores.
p3'rrs, a
lricou muito tempo parado, a pensar, a ver imaver a histria da sua vida. Ficou muito tempo prrlrdo, a olhar para os monges, e no su lugar viu
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o jovem Siddhartha e Kamala caminhando debaixo das rvores altas. Viu-se claramente servido por Kamala e recebendo o seu primeiro beijo. Viu como recordara, arrogante e d'esdenhosamente, os seus tempos de samana, como iniciara, vida e orgulhosament-., a sua vida mundana. Viu Ka,maswami, os criados, os banquetes, os jogadores de dados e os msicos. Viu a ave canora de Kamala na gaiola dourada. Viveu tudo novament, mergulhou no Samsara, sentiu-se de novo velho e cansado, voltou a sentir nuseas 'e desejo de morrer e ouviu mais uma vez o sagrad,o Om. Depois de pennanecer muito ,tempo parado ao porto do jardim, Siddhartha compreendeu que o desejo que o lwara quele lugar era idiota, que no poderia ajudar o filho, que no se imporia. Sentia um amor profundo pelo fugitivo, como uma ferida, mas ao mesmo tempo tinha a certeza de que essa ferida no estava destinada a infectar, que sararia. Mas como a ferida no sarou na hora seguinte, sentiuse triste. Em lugar do objectivo que o l,evara ali, em busca d,o filho, no seu peito s hvia vazio. Sentou-ss tristement, sntindo qualquer coisa morrr no corao. J no antsvia nenhuma felicidade, nenhuma meta. Continuou sentado, deprimido, espera. Essa fora uma das coisas que aprendera com o rio: esperar, ter pacincia, esqrtar. Ficou sentado ,escuta ria estrada poeirenta, a ouvir o corao bater cansada e tristemente e eq)era de uma voz. Ficou assim muitas horas, sem mais vises, mergulhado no vazio e a deixar-se afundar, sem lobrigar
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a palavra Orn, enchia-se de Orn. Os monges do jardim viram-no. Como permancceu muitas horas ali
acocorado, a poeira foi-sehe acumulando no cabelo grisaho. Um dos monges aproximou-sc e colocouhe duas bananas frente. O velho no o viu. Despertou do transe, ao tocaremlhe no ombro. Reconheceu aquele contacto brando, tmido, e refez-se. Levantou-se e saudou Vasudeva, que o scguira. Quando viu o rosto bondoso do amigo, as rugas vincadas pelo sorriso e os seus olhos luminosos, sorriuJhe. Reparou ento nas bananas, abandonadas perto dce, apanhou-as, deu uma ao barqueiro e comeu a outra. Depois acompanhou silenciosamente Vasudeva :rtravs da floresta, at ao molhe. No falou do que rcontecera, no mencionou o nome do filho, no aludiu sua fuga nem ferida do seu corao. Sidclhartha deitou-se na sua cama, na catrana, e <1uando, passados momentos, Vasudeva lhe foi levar ur pouco de leite de coco, encontrou-o a dormir.
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A ferida doeuhe durant muito tempo. Siddhartha transportava, de uma margem para a outra do rio, muitos viajantes acompanhados pr um fiho ou uma filha, e no podia ver sem os invejar, sem pensar: (Tantas pessoas possuem esta grande feicidade! Porque no eu? At gente m, ladres e salteadores, tm filhos, amam-nos e so amados por eles, mas eu no.o A que ponto o seu raciocnio se tornara infantil e ilgico, a que ponto se tornara (omo a gente comum! Agora via as pessoas a uma luz diferente da ante'rior: no muito inteligente, no muito arrollante e, consequentemente, mais terna, curiosa e compreensiva.
hoQuando transportava os viajantes habituais j no lhe ntens de negcios, soldados e mulheres -, pareciam estranhos, como antigamente. No comPreendia nem compartilhava os seus pensamentos t as suas opinies, mas compartilhava com eles os irnpulsos e desejos da vida. Ernbora tivesse atingido ttm elevado estdio de autodisciplina suportasse corajosamente a sua ltima ferida, sentia-se irmo
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daquela gente vulgar. As suas vaidades, os s:us dcsejos c as suas futilidades j no lhe pareciam absurdos; tinham-se tornado compreensveis, enternecedores e, at, dignos de respeito. Compreendia o amor cego de uma me pelo filho, o orgulho cego e i.diota de um pai baboso pelo fiho nico, a nsia cega de uma mulher jovem e vaidosa pelos enfeites e pela admirao dos homens. Todos estes impulsos e desejos pequenos, simples e patetas, mas tremendamente fortes, vitais e apaixonados, j no pareciam fteis a Siddhartha. Por causa deles, via pessoas viver e fazer grandes coisas, viajar, travar guerras, sofer e suportar tormentos infindos, e amava-as por isso. Em todos os desejos e em todas as necessidades via agora vida, vitalidade, indestrutibilidade e Brame. Aqucla gente era merecedora de amor e adrnirao na sua lealdade cega, na sua fora e na sua tenacidade cegas. Com excepo de uma pequena coisa, de uma pequenssima coisa, no lhes faltava nada do que o sbio e pensador possua poquenssima coisa era a conscincia da -e essade toda a vida, Muitas vezes Siddhartha unidade chegou, at, a duvidar se esse saber, esse pensamento, tinha assim tanto valor, se no seria talvez, tambm, apenas uma gabarolice infantil dos pensadores, que porventura no passariam de crianas pensantes. Os homens mundanos eram iguais aos pensadores em todos os outrqp aspectos, e muitas exactamente como vezes at lhes eram superiores - e i,nvarivel, em os animais, no seu procede tenz casos de necessidade parecem frequbntemente superiores aos seres humanos.
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Dentro d.: Siddhartha cresceu e amadureceu lentamente o conhecimento do que eram, realmente, a sabedoria e o objectivo da sua longa busca. No passava tudo de uma preparao da alma, de uma faculdade, de unra arte secreta de pensar, senti e respirar pensamentos de unidade em todos os momentos da vida. Esta noo amadurecia entamente nele e reflectia-se no rosto velho e infantil de Vasudeva: harmonia, conhecimento da perfeio eterna do mundo e unidade. Mas a ferida continuava a doer. Siddhara pensava saudosa e arnargamente no filho, acal,entava o seu anor e a sua ternura qtor ele, deixava a dor ro-1o, submetia-se a todos os desatinos do amor. A flama no se extinguia. Um dia em que a ferida lhe doa terrivelmente, remou Ixra a outra urrgem, consumido de saudade, e saiu do barco decidido a ir cidade procurar o filho. O rio corria lenta e suavement. Estavam na estao seca, mas a sua voz vibrava de modo estranho. Ria-se, no resta'vm dvidas de qu'e se ria. O rio ria-se clara e alegremente do velho barqueiro. Siddhartha parou e inclinou-se para a gua, a fim de ouvir mehor. Viu o seu rosto espelhado na gua que deslizava serenamente e notou na sua reflexo um no-seiqu que lhe lernbrou algo esquecido, Passados instantes, compreendeu o que era. O seu rosto parecia-se com o de outra pessoa que ele amara, havia muito tempo, que ele amara e, at, temera. Parecia-lhe com o rosto do pai, o brmane. Recordou que uma vez, na sua juventude, compelira o pai a deix-lo reunir-se aos ascetas, se despedira
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dele, partira e nunca mais voltara' No teria o seu pai sofrido, tambm, a mesma dor 'que ele sofria agora pelo filho? No morlera o pai havia muito tempo, sozinho, sem tornar a ver o seu filho? E no o esperava a ele, Siddhartha, o mesmo? Aquea repe' tio, aquele curso de acontecimento nurn crcuo fatdico, no era uma comdia, uma coisa estranha e estpida? O rio ria-se. Sim, era assim mesmo. Tudo quanto no fosse sofrido at ao fim' concludo' 'repetia-se' tinha de se sofrer outra vez. Siddhartha meteu-se no barco e remou de novo para a outra margem, a caminho da cabana, enquanto pensava no pai e no filho e o rio se ria dele, em desacordo consigo prpriL-r, beir.r do des-spero e nem por isso menos inclinado a rir de si mesmo e do mundo inteiro. A ferida continuava a doer e ele a rebelar-se contra o seu destino. Ainda no conquistara a serenidade, ainda no vencera o sofrimento. No entanto, tinha esperana, e quando chegou cabana avassalava-o um desejo incontvel de desabafar com Vasudeva, de lb,e contar tudo, de confessar tudo ao homem que conhecia a arte de escutar. Vasudeva estava sentado na cabana, a fazer um cesto. J no trabalhava no barco. Os seus olhos elfraqueciam, assim como as suas mos e os seus braos, mas a felicidade e o sereno bem-estar do seu rosto, esss permaneciam imutveis e radiosos. Siddhartha sentou-se ao lado do veJho e comeou a falar, lentamente. Dissehe o que nunca he dissera antes, falou-lhe da sua ida cidade daquela vez, da dor da sua ferida, da inveja que serrtia ao ver'pais
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felizes, da conscincia da tolice dc tais scntincntos e da sua luta desesperada consigo mesmo. Contou tudo; podia dizer tudo a Vasudeva, at as coisas nrais dolorosas. Mostrou-he a sua ferida, falouhe da sua fuga daquele dia, de como atravessara o rio com a inteno de ir cidade e de como o rio se rira' Enquanto falava e Vasudeva o escutava de rosto sereno, Siddhartha tinha uma conscincia cada vez mais profunda da ateno do amigo. Sentia as suas preocupaes, as suas ansiedades e as suas esperanas secretas sarem dele para Vasudeva e regressarem. Mostrar a sua ferida quele ouvinte era o mesmo que banh,la no rio, at ela deixar de arder e se tornar una com o rio. Enquanto 'falava e se confEssava, Siddhartha sentia, com acuidade crescente, que no era Vasudeva, que no era um homem que o escutava. Sentia que o ouvinte imvel e silencioso absorvia a sua confisso como uma rvore absor-ve a chuva, que aquele homem imvel era o prprio rio, era o prprio Deus, era a prpria eternidade. Quando deixou de pensar em si mesmo e na sua ferida, o reconhecimento da mudana operada em Vasudeva possuiu-o, apoderou-se dele, e quanto mais disso,se apercebia menos estranho lhe parecia, mais se compenetrava de que tudo aquilo era natural, de que Vasudeva era assim h muito tempo, fora quase sempre assim, ele que no se apercebera. Na verdade, ee prprio quase no se distinguia de Vasudeva. Sentiu que considerava agora o amigo como as pessoas consideravam os deuses e que isso no poderia durar. Intimamente, comeou a despedir-se de Vasudeva. Mas, entretanto, continuou a falar.
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Ouando acabou, Vasudeva fitou nele o olhar enfraquecido. No falou, mas, silenciosamente, o seu rosto irradiou amor e serenidade, compreenso e saber. Pegou na mo de Siddhartha, conduziu-o margem, sentou-se a seu lado e sorriu ao rio. Ouviste-o rir-disse-, mas no ouviste tudo. Escutemos; ouvirs mais.
Escutaram. O cntico de muitas vozes do rio roava docemente- Siddhartha olhou e viu muitas imagens na gua corente. Viu o pai, a chorar sozinho a prtida do filho; viu-se a si prprio, tambm sozinho e atormentado pela sade do seu filho ausente, e viu o filho, igualmente sozinho, avanando avidamente ao longo do caminho escaldante dos desejos da da. Todos concentrados no seu objectivo, todos obcecad,os por esse objectivo, todos sofrendo. A voz do rio era pesarosa, cantava com saudade tristeza ao correr para o seu objectivo. perguntou o olhar mudo de VasuOuves? - e Siddhartha aconou af irmativamente. Esd:va, murmurou o amigo. cuta melhor Siddhartha tentou escutar melhor. imagem do seu pai, a sua prpria imagem e a imagem do filho fundiram-se umas nas outras. A imagem de Kamala tambm apareceu e foi levada pela gua, assim como a de Govinda e outros. Tornaram-se todos parte do rio. Era o cbjectivo de todos etres, nos seus anseios, nos seus desejos, no seu sofrimento. E a voz do rio desejo insaciive. O rio deslizava para a sua meta, Siddhartha viu-o apressar-se, feito dele prprio, dos seus familiares e de todas as pessoas que jamais vira.
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Todas as ondas e toda a gua se apressaram, sofrendo, a caminho de objectivos, de muitos objecti vos, para a calarata, para o mar, para a corrente e para o oceano, e todos os oLrjectivos eram alcanados e a cada um outro sucedia. A gua transformava-se em vapor e subia, tornava-se chuva e descia novamente, tornava-s fonte, regato e rio, mudava de novo, corria de novo. Mas a voz ansiosa modificara-se. Ainda ecoava pesarosamente, procura, mas outras vozes a acompanhavam, vozes de prazer e mgoa, vozes boas e ms, vozes que riam e lamentavam, centenas de vozes, milhares de vozes. Siddhartha escutava. Agora escutava atentamente, numa absoro total, lazio, captando tudo. Sentia que aprendera, finalmente, a arte de ouvir. Muitas vezes ouvira aquilo, aquelas numerosas vozes do rio, mas naquele dia soavam de modo diferente. J no voz aleconseguia distinguir as diferentes vozes - a todas gre da chorosa, a infantil da adulta. Pertnciam umas s outras: o lamento dos que anseiam, o riso dos sensatos, o grito de indignao e o gemido dos moribundos. Estavam todas entrelaadas e atro' sadas, entretecidas de mil maneiras. E as vozes todas, lodos os objectivos, todos os aneos, todos os desgostos, todos os,prazeres, todo o bem e todo o mal, irs vozes todas juntas eram o mundo. Todas juntas t'r'am o fluir dos acontecimentos, a msica da vida. (.)rrando Siddhartha escutava atentamente o rio, a srra cano de mil vozes; quando no dava ouvidos irl)cnas ao riso ou mgoa, no igava a alma a rrcnhuma voz particular e a absorvia no seu Eu, mas rrs ouvia a todas, ao conjunto, unidade, ento
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o olhar
de
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pairava alegremnte sobre todas as rugas do seu velho rosto' I-o o o- pairava sobre todas as vozes do rio' O seu sorriso era radiante quando olhava para o sua amigo e espelhou-se no rosto de Sidhartha' A o seu Eu f.riiu cl.utriruua, a sua dor dispersava; fundira-se na unidade. A partir desse momento, Siddhartha deixou de lutar contra o seu destino. No seu rosto brilhava a com serenidade do saber, de quem j no se debate vive em conflitos de desejos, encontrou a salvao, o ilui. dos acontecimentos, com o rio harmonia "o* de comPreenso e compaixo' ren' da vida, cheio todas dendo-se corrente, pertencendo unidade de
as coisas. do rio' Quando Vasudeva se levantou da margem viu nos seus olhos a sereolhou para Siddhartha e nidade do conhecimento, tocou-lhe sualmente no ombro, sua maneira bondosa e protectora' e disseJhe: Tenho esperado por esta hora, meu amigo' - que ea chegou, deixa-me partir' Fui- Vasu' gora dua, o-ba.qo.iro, urante muito tenpo' Acabou-se' Adeus cabana, adeus rio, adeus Siddhartha' Siddhartha inclinou-se prof,undamente perante o homem que Partia. Vais para murmurou docemente' Eu sabia
vou para a floresta. Vou pcnetrar na -Sim, respondeu Vasudeva, unidade de todas as coisas radiante. E assim partiu, seguido pelo olhar de Siddhartha, um olhar repleto de grande alegria e gravidadc, que viu os seus passos cheios paz, o seu rosto luminoso, a sua forma irradiando luz.
a'floresta?
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Govlnda
alguns outros monges no jardim de recreio que Kamala, a cortes, oferecera aos discpulos do Gautama. Ouviu falar de um velho 'banqueiro que vivia junto do rio, a um dia de viagem, e que muitos consideravam um sbio. Quando partiu, Govinda escolheu o caminho do rio, ansioso por ver o tal baryueiro, pois ernbora tivesse levado a vida de acordo com a regra e fosse olhado com respeito pelos monges mais novos, dada a sua idade e a sua modstia, ainda havia desassossego no seu corao e a busca estava insatideita. Chegou ao rio e pediu ao velho que o levasse rpara a outra margem. Quando desernbarcaram, do outro lado, observou: peregrinos com muita os - Tratatens monges e os muitos de ns no teu bondade, transportado barm. No procuras tambm o caminho certo? Brilhava urn sorriso nos velhos olhos de Siddharthal, ao responder: um - Consideras-teestsbuscador do caminho, veneque j rando, tu avanado em anos e usas o manto dos monges do Gautama?
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Um
-$6s procurar
rei. Parece ser esse o meu destino. Tenho a impresso que tu tambm procuraste. Importas-te de falar .r^ po.r"o comigo a esse respeito, meu arnigo? te poderia dizer de alguma importncia, -Que que talvez Procures demasiado e que, em a no ser
consequncia de procurares, talvez no encontres? Como se exPlica isso? - Quando algum procura, acontece 'facilmente s ver a coisa que procura, ser incapaz de encontrar seja o que foi, de absorver seja o que for, pgryue.s pensa nquilo que procura, porque tem um objectivo po.ql." est obcecado por esse objectivo' Procurar sigaifica ter um objectivo, mas encontrar significa ,"i liut", ser receptivo, no ter nenhuma meta' Tu' respeitvel, tavez sejas na verdade uma pessoa que procura, pois ao lutares para alcanar o teu Ui..tiuo no s muitas coisas que esto debaixo
dizer?
te
Siddhartha resPondeuJhe: Uma v,.'2, h muitos anos, vieste a este rio' respeitvel, e encontraste um homem adormecido' Se;taste-te a seu lado, a guardJo enquanto ele dormia, mas no reconheceste o homem adormecido'
Govinda. Espantdo, e corno que enfeitiado, o monge fitou o barqueiro. f t.t, Sicldhartha? - perguntou, constrangido' -Tambm no te reconheci desta vez' Sinto'me
Sim, tornei-me barrqueiro. Muitas pessoas tm de-mudar muito e usam toda a espcie de roupa. Eu sou uma delas, rneu amigo. Dou-te as iboas-vindas, Govinda, e convido-te a passar a noite na minha cabana. Govinda pssou a noite na cabana e dorrniu na cama que fora de Vasudeva. Fez muitas perguntas ao amigo da sua juventude e Siddhartha contou-lhe muitas coiss acerca da sua vida. Quando na manh seguinte, chegou a hora de 1:artir, Govinda disse, com certa hesitao: Antes de seguir o meu caminho, Siddhartha, llostaria de te fazer mais uma pergunta: tens alguma (loutrina, crena ou conhecimento que te ajude a vivcr e a proceder acertadamente? Sabes, meu amigo, que ainda jovem, quando viviamos com os ascetas da floresta, perdi a conI iana em doutrinas e mestres e vireilhes as costas. ()r)tinuo da mesma opinio, embora desde essa alIu'a tenha tido muitos mestres. Una ibonita cortes Ioi minha professora durante muito tempo, assim ()rno um mercador e um jogador de dados. Numa otrsio, um dos monges errantes do Buda tamUem loi meu professor. Interrompeu a sua peregrinao Irirra se sentar a meu lado, quando adormeci na foft.sla. Aprendi iguamente alguma coisa com ele e r.slou-lhe grato, muito grato. Mas, acima de tudo, rrplcndi com este 'io e com o nu antecessor, Vasurlr.va. Era um homem simples, no era um pensador,
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t46
TI
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mas compreendia o essencial to bem como o Gautama. Era um homem sagrado, um santo.
metade da verdade; faltahe totalidade, integralidade, unidade. Quando o Sbio Buda ensinou acerca
brincar um pouco
Parece-me Siddhartha,
de de
Acredi
nenhum mestre, mas no tens, pessoalmente, se no uma doutrina, ao menos alguns pensarnentos? No descobriste, s por ti, algum saber que te tenha ajudado a viver? Dar-me-ias muito prazer se me falasses a esse respeito. Sim, tenho tido pensamentos e conhecimento, aqui, e ali. s vezes, durante uma hora ou um dia, tenho conscincia de saber, do mes'rno modo como uma pessoa tem conscincia da vida no seu corao. Tenho tido muitos pensamentos, mas ser-me-ia difi ci falar-te deles. H, no entanto, um pensamento que me marcou profundamente, Govinda: a sabedoria no comunicvel. A sabedoria que um sbio tenta comunicar parece sempre ridcula. Ests a brincar? digo-te o que descobri. O conhecimento -No, comunicado, mas a sabedoria, no. Uma pode ser pessoa pode encontr-la, viv'a, ser fortiFicada por ela, operar maravilhas por seu interdio, tudo menos comunic-a e ensin-la. Desconfiei disso quando ainda era novo e foi isso que me afastou dos mestres. Tive um pensamento, Govinda, que igualmente supo' rs ser uma brincadeira ou uma toice: em toda a verdade o oposto igualmente verdade. Por exem' po, uma verdade s pode ser exprimida e envolta em palavras se for parcial. Tudo quanto pode ser pensado e exprimido por palavras parcial, apenas
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do mundo, teve de o dividir em Samsara e Nirtana, em iluso verdade, em sofrimento e salvao. No se pode proceder de outra maneira, no h outro mtodo para aqueles que ensinam. Mas o prprio mundo, que est em ns e volta de ns, nunca parcial. Um homem ou uma aco jamais so inteiramente Samsara ou inteiramente Nirvana; um romem jamais inteiramente santo ou inteiramente pcr:ador. Parece apenas que assim sucede porque tcmos a iuso de que o tempo algo rea. O tempo ruo real, Govinda, compreendi,o repetidas vezes. li sc o tempo no real, ento a linha divisria que ltirrece existir entre este mundo e a eternidade, entre i} sofrimento e a beattude, entre o bom e o mau, rrli-io essa linha , tarnbm, uma iluso. Como se explica isso?-perguntou Govinda, hrlligado. lscuta, neu amigol Eu sou um pecador e tu s ,utrr, mas um dia o pecador voltar a.ser Brame rrtr':! vcz, nm dia alcanar, o Nirvana, um dia tor-
r,llrirlo de um estado bdico, no est em evo lr',,r,,, (.rbora o nosso raciocnio no possa conceber rr r,,r\;rs de outro modo. No, o buda potencial j r.l',1, ll() pccador, o seu futuro j est nele. O buda Ilrlr,rrr rrrl ocuto deve ser reconhecido nele, em ti, em lrrrlrr ,, ,', O mundo, Govinda, no im'perfeito ',,". ll rrr ,,volrri lcntamente por um caminho que conduz Ir r lr.rr,,r(). No, perfeito em todos os seus morr
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rrr \(,ii um buda. Ora este (um dia, iluso, rrp('rr\ um termo de comparao. 0 pecador no vai
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mentos, cada pecado j traz a graa.conttt::,]:Oi: todos os beDes Ja as crianas so velhos potenciais' todos os moriibundos j .,,tro dej"s, ;';;;r; a vida eterna' 'No possvel a uma i- .""tig. no o".aou uat a que distncia outra se encontra de jogador It"ttn"' " u,ru "*itt" no ladro e no a medi.'^'r"a;t e*i't" no brmane Durante simul possivel banir o lempo' ver t^.". e "."a" i.l".",. todo o passado' presente -e futuro' Brame' tudo " i"a" e bom, tudo pedeito' existe que tudo quanto loT - a ;;;;",;,;"."""-me r-i.t," cmo u tida, o pecado como a santidade' tudo a l"uiandade rudo necessrio' ;;;;;; do meu col.r"."a.iru up""u. da minha concordncia' assrm' ,"rrti-anto, da minha terna comPreensao; prejudii"" .ro.a bem em mim e nada me poder ser.neces.ua. ep."nai atravs do corpo e da alma precisasse da luxria' que srio que eu pecasse, que e sentir nusea tivessJ de lutar para acumular bens p;"iundo, u fim de aprender : "to ll:,' :' ;;r;'.;'; e a oerresisrir, a fim de aprender a mar o mundo quulq""r espcie de aesSlill 'om qualquer im.aglnlll mundo imginrio, com -viso e' ama-lo como da perfeio. O essencial era deix-lo feliz por lhe pertencer' Estes' Govinda' ;-;;i;;. esprito' so alguns dos pensamentos do meu considhartha baixou-se, apanhou uma pedra e
;;;; ;;*;;;io
servou-a na mo.
uma pedra - prosseguiu de solo -Isto certo espao de tempo ser, talvez' solo e
"..,
e denro
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Anteriormente' tornar-se- planta, animal ou homem uma pedra; no t"rio aiio, oEsta pedra apenas
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tem vaor, pertence ao mundo de Maya, mas talvez porque no ciclo de mudana tambm se pode tornar homem e esprito, igualrnente importante'. Isto o que eu teria pensado. Mas agora penso: "Esta pedra uma pedra; tambm animal, Deus e Buda. No a respeito e amo por ser uma coisa e vir a tornar-se outra rqualquer, mas sim, porque j foi tudo h muito tenapo e sempre tudo. Amoa por''que uma pedra, porque hoje e agora me parece uma pedra. Vejo importncia e significado em cada uma das suas maras e cavidades, no amarelo, no cinzento, na dureza e no som que produz quando lbato com ela, na secura ou humidade da sua superfcie. H pedras cujo contacto embra leo ou sabo, que Trarecem folhas ou areia, e cada uma delas di'ferente e adora Om sua maneira; cada uma delas c Brame. Ao mesmo tempo muito pedra, oleosa ou cscorregadia como sabo, e precisamente isso que me agrada e parece maravilhoso e digno de adorao.o Mas no digo mais nada a este respeito. As palavras no exprimem muito bem os pensamsntos. listes tornam-se sempre um pouco diferentes logo rrps serem exprimidos, um pouco deformados, um pouco idiotas. E, no entanto, tarnbm me agrada e l)arece certo que parea a um homem idiotice o que ir outro parece ter valor e sabedoria. Govinda escutara-o em silncio. pedra? perguntou, he- Ponque me faaste da \itante, aps um momento. qualquer inteno. Mas talvez exem- Filo sem grli,lique que eu amo a pedra, e o rio, e todas estas r oisas 'que ns vemos e com as quais podemos apren15r
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der. Posso ar uma pedra, Govi'nda ou uma rvore' ou um bocado de cortia. So coisas, e uma pessoa pode amar coisas. Mas no pode amar palavras' Por sso, os enrina*entos no t&n qualquer utilidade para mim; no tm dureza, nem macidez, nem cores' nem arestas, nem cheiro, nem gosto - no tm nada' nada alm de palavras. Talvez seja isso que te impede de encontiar a paz, talvezhaja demasiadas palaras, at mesmo para salvao e virtude' Samsaro e Nirvana so somente palavras, Govinda' Nirvana no uma coisa; existe apenas a palavra Nirvana' Nirvana no apenas uma palavra, meu amigo -protestou Govinda ; um pensamento' - Ser um Pensamento, mas devo confessar'te' Maya, sotnente de imagem e aparncia? A tua pedra, a tua rvore, so reais? Isso tambm no me perturba muito respondeu Siddhartha. Se so iluso, nesse caso eu tambm sou iluso e, portanto, elas continuam a ser da mesma natureza que eu. isso que as torn to dignas de amor e venerao, por isso que sou capaz de as amar. E aqui vai uma doutrina de que te rirs: Parece-me, Govinda, que o amor a coisa mais importante do mundo. Para os grandes pensadores poder ser importante estudar o mundo, explicJo e desprez-lo. Mas eu penso que importante apenas amar o mundo e no desprez-lo, que o importante no odiar-nos uns aos outros e, sim, sermos capazes de ver o mundo, a ns prprios e a todos os seres com amor, admirao e respeito. Compreerrdo isso, apenas - o Sbio chamava mas trata-se pregava daquilo a que iluso. Ele a benevolncia, a indulgncia, a compreenso e a pacincia, mas no o amor. Proibia-nos de nos prendermos ao amor terreno. Bem sei - declarou, sorrindo Siddhartha. - Eu sei isso, Govinda, e aqui nos ncontramos ns no labirinto dos significados, no conflito das palavras, pois eu no nego que as minhas palavras acerca de amor esto em aparente contradio com os ensirimentos do Gautama. precisamente por isso que tlcsconfio tanto das palavras, porque sei que tal cont ladio uma iluso. Sei que sou uno com o Gautama. Como podia ele no conhecer o amor, ele que lcconhecera toda a vaidade e transitoriedade da lrrrmanidade, mas que apesar disso a amava tanto
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meu amigo, que no diferencio muito entre Pensano -.oto, J palanrat. Para ser franco, tam&m Atri' atribuo grnde importncia aos Pensamentos' buo maii inportncia s coisas' Por exemplo' neste molhe existiu um homem que 4oi meu predecessor e mestre. Era um homern santo, que durante muitos anos acreditou somente no rio e em mais nada' Repa.ou qo" a voz do rio lhe falava e aprendeu com-ee' o rionstruiu-o e ensinou-o' O rio era como um deus para ele e durante muitos anos o barqueiro no soube iue todos os ventos, todas as ntwens, todas as aves' todo. os insectos so igualmente divinos e sabem " podem ensinar to bem como o seu estimado rio' e Mas quando este santo homem partiu para a floresta,iabia tudo. Sem proessores nem livros, sabia mais do que tu e eu, s porque acreditava no rio' aquilo a que chamas ocoisa' algo real' -Mas algo intrnseco? No se trata apenas da iluso de
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que dedicou uma longa vida exclusivamente a ensinar e ajudar pessoas? Tambm com este grande mestre a (coisa) tem, para mim, muito mais importncia do que as palavras; considero as suas aces e a sua vida muito mais importantes do que as suas palavras, o gesto da sua mo muito mais importante do que as suas opinies. No pelas suas palavras ou pelos seus pensamentos que o considero um grande homem e, sim, pelos seus actos e pela sua
vida-
Os dois velhos ficaram silenciosos durante muito tempo. Por {im, Goryinda preparou-se para partir e disse: Agradeo-te, Siddhartha, teres-me dito alguma - dos teus pensamentos. Alguns so estranhos, coisa no os consigo apreender imediatamente. No entanto, agradeo-te e desejo-te muitos dias de paz. Intimamente, porm, rpensou: .Siddhartha um homem estranho e exprime estranhos pensamentos. As suas ideias parecem loucas. Como so diferentes as do Sbio! Essas so claras, simples, compreensveis; no contm nada de estranho, louco ou risive. Mas as mos e os ps de Siddhartha, os seus olhos, a sua,fronte, a sua respirao, o seu sorriso, as suas saudaes e o seu andar afectam-me de modo diferente dos seus pensamentos. Jamais, desde que o nosso Iluminado Gautama entrou no N irvana, encontrei um homem, exceptuando Siddhartha, acerca do qual sentisse: Este um homem santo! As suas ideias podem ser estranhas e as suas pala' vras podem ser idiotas, mas as suas mos, a sua pele e o seu cabelo irradiam uma pureza, ma paz, t54
uma serenidade, uma trondade e uma santidade que nuna encontrei em nenhum homem desde a morte recente do nosso sbio mestre.), Enquanto pensava estas coisas e sentia um dilema no corao, Govinda incinou-se de novo diante de Siddhart,ha, cheio de afecto por ele. Inclinou_se pro_ fundamente, diante do homem calmamente sentado. Siddhartha, estamos ambos velhos e talvez no nos voltemos a ver nesta vida. Verifico, meu querido amigo, que encontraste a paz e que eu no a encon_ trei. Diz-me mais uma palavra, meu prezado amigo, diz-me qlaquer coisa que eu possa conceber, qul_ quer colsa que eu possa compreender! D-me algo que me ajude no caminho, Siddhartha. O meu cami nho frequentemente duro e escuro. Siddhartha fitou-o, sem que se lhe apagasse o sorriso calmo, pacfico. Govinda fitou_o tambm, intensamente, com ansiedade, anelante. No seu olhar lia.se sofrimento, procura constante e constante
rnsucesso.
testa, Govinda. surpreendido, Govinda sentiu_se compe_ ._ lrn'.bo_ra ido.a obedecer-lhe por um grande amor r.r- p."r_ sentimento. Incinou-se e tocou na fronte do amigo com os bios. Ao az-lo, aconteceuhe algo mavilhoso. Embora continuasse a meditar nas .stranhas palavras de Siddhartha; embora se esforasse em vo por dissipar o conceito de tempo e imaginar N iruana e Samsara como uma s coisa; embora, at,
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Siddhartha compreendeu-o e continuou a sorrir. - Inclina-te para mim - pediu, ao ouvido de Govinda. - Chega-te mais, mais ainda! Beija-me na
\
um certo desdm peas palavras do amigo se debatesse no seu corao com o tremendo amor e a grande estima que sentia por ele, eis o que lhe
contec3u:
Deixou de ver o rosto do seu amigo Siddhartha, Em vez dele viu outros rostos, muitos rostos, uma longa srie, uma sucesso contnua de rostos -centenas, milhares de rostos que apareciam e desapareciam e, contudo, pareciam estar ali ao mesmo tempo, que se modificavam e renovavam continuamente e que continuavam, todos, a ser Siddhartha. Viu um rosto de um peixe, de uma carpa, com a boca penosamente aberta-um peixe moribundo, de olhos apagados. Viu um rosto de um beb recm-nascido, vermeho e cheio de rugas, prestes a chorar. Viu o rosto de um assassino, viu-o mergulhar uma faca no corpo de um homem. No mesmo momento, viu o criminoso ajoelhar-se, algemado, e o carrasco decapitJo. Viu corpos de homens e mulheres nus, em posies e transportes de amor apaixonado. Viu cadveres estendidos, inertes, frios, vazios. Viu cabeas de animars- javalis, crocodilos, elefantes, bois e aves. V.iu Crixna e Agni. Viu todas estas formas e todas estas caras relacionadas de mil maneiras umas cm as outras, cntreajudando-se, amando-se, odiando-se e destruindo-se umas s outras,e renascendo de novo. Cada uma delas era mortal, um exemplo apaixonado e doloroso de tudo quanto transitrio. Contudo, nenhuma deas morria; mudavam apenas, renasciam sempre, tinham continuamente um rosto novo: s o temp existia entre um rosto e outro, E todas essas formas e todas essas^caras t5
repousavam, deslizavam, reproduziam-se, passav n umas pelas oulras e fundiam-se umas nas outtas, c n acima de todas s xistia, continuamente, algo ct. reo, irrea e, todavia, existente, estendido por cima delas como vidro ou gelo fino, como uma pele transparente, uma casca, forma ou mscara de gua-e mscara era o rosto ' essaGovinda tocava com ossorridente de Siddhrtha, que lbios naquele momento. Govinda compreendeu que aquele sorriso de mscara, aquee sorriso de unidade sobre o deslizar das formas, aquele sorriso de simultaneidade sobre os milhares de nascimentos e mortes aquele soiso de Siddhartha era exactamente - mesmo sorrso o - , calmo, delicado, irnpenetrvel, lulvez gracioso, talvez irnico, sensato, o sorriso de mil expresses de Gautama, o Buda, o sorriso que observara, cheio de temsroso respeito, uma centena de vezes. Era assim, no duvidou ovinda, que o Perfeito sorria. Sem saber se o tempo xistia, se aquele desfilar durara um segundo ou cem anos, se existia um Siddhartha ou um Gautama, um Eu e outros, profundamente ferido por uma seta divina que he causava prazer, profundamente fascinado e exaltado, Govinda perrnaneceu ainda um momento incinado sobre o rosto pac,fico de Siddhartha, que acabara de beijar, o rosto que fora o palco de todas as formas presentes e futuras. O seu sernbante no se modificara, depois do espelho das mil formas se ter apagado da superfcie. Sorria pacfica e ternamente, tavez muito graciosamente, talvez muito ironicamente, tal qual como o Sbio sorrira.
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Govinda fez uma vnia profunda, enquanto lgrimas incontveis lhe deslizavam Pelo rosto velho' Avassalava-o um sentimento de grande amor, da mais humilde venerao' Inclinou-se mto, at ao cho, defronte do homem imve, cujo sorriso lhe recordava tudo quanto jamais amara, tudo quanto jamais fora valioso e santo na sua vida'
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