O Corpo Cotidiano e o Corpo

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O corpo cotidiano e o corpo-subjtil: relaes Renato Ferracini (LUME UNICAMP) O ator-danarino, ou mais genericamente, o atuante, por definio comum,

, um artista do corpo. Isso significa, em primeira instncia, que ele usa, como territrio primeiro de trabalho, seu corpo corpo-fsico-celular-nervoso-fisiolgicomental inserido em seu cotidiano, que a partir de agora chamo de corpo cotidiano - em toda sua potencialidade artstica, transformando-o em suporte esttico de sua arte um corpo artstico, que chamarei de corpo-subjtil. Criar um corpo-subjtil, nesse caso, seria a capacidade do ator em usar uma vida, uma pulso de vida de seu prprio corpo cotidiano insuflando, imprimindo organicidade a esse mesmo corpo quando em Estado Cnico. Em outras palavras, o corpo-subjtil um artificial artstico, e portanto inorgnico, possibilitado pelo corpo cotidiano, portanto orgnico. O momento do Estado Cnico , ento, um inorgnico/orgnico, coexistente e paradoxal, e esse prprio paradoxo que possibilita o estado vivo do ator. O ator, assim como todo artista, algum que cria suas prprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possvel (Deleuze, 1992, p.167). Esse conceito de corpo-subjtil, paradoxal, toca outros conceitos dentro de especulaes anteriores sobre o trabalho do ator. Assim podemos encontrar conceitos parecidos como corpo-em-vida de Barba, corporeidade da ao fsica de Lus Otvio Burnier, transiluminao de Grotowski ou atleta afetivo de Artaud. Cunho esse termo corpo-subjtil, no apenas para criar mais um termo, ampliando o lxico e a dicotomia da antropologia teatral entre corpo cotidiano e corpo extracotidiano. O corpo-subjtil no somente o corpo extra cotidiano puro (j que acredito que essa pureza no existe!), nem mesmo o corpo artificial do qual nos fala a antropologia teatral. Nem mesmo pode ser confundido com esse corpoentre, corpus fictif, um corpo entre o cotidiano e extracotidiano, percebido pelos estudos de Barba e dos investigadores do ISTA. Na verdade no discordo da existncia de todos esses corpos: cotidiano, extra-cotidiano, corpus fictif. Todos eles, dentro de um plano abstrato, realmente existem. Posso certamente criar e perceber vrios corpos, cada qual com suas regras e comportamentos especficos, que iro se ampliando do corpo cotidiano ao corpo-em-arte. Mas o problema justamente o relacionamento entre todos esses corpos. Posso criar tantos corpos quantos forem necessrios para o entendimento da complexidade inerente ao trabalho do ator, mas ao criar esses corpos, tambm devo necessariamente gerar, dentro deles, mecanismos de comunicao entre eles para que no passem a ser criaes meramente abstratas e independentes. Enquanto ator tenho meu corpo cotidiano e dele que devo gerar qualquer outro corpo. dele, e somente dele, que criarei um corpo-em-arte. Acredito ser um tanto quanto arbitrria a diviso exata entre corpo/energia cotidiana corpo/energia extracotidiana. Esse ltimo termo cunhado por Eugnio Barba comea ser j usado de maneira arbitrria, fazendo com que essa diviso parea ser mstica e metafsica: essa arbitrariedade no uso do conceito pode fazer com que possamos pensar que

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o corpo extra-cotidiano construdo a partir de energias que pairam no ar, sendo quase um corpo ideal, separado desse mundo conhecido. No. O corpo e a energia extra-cotidiano vm do corpo-cotidiano, mais precisamente de sua (re)construo, ou ainda, de sua desautomatizao. O corpo cotidiano a base e primeira clula do corpo expandido, no somente extra-cotidiano, mas corposubjtil. Ora, como podemos pensar uma extra-cotidianidade sem uma cotidianidade ? Assim, como ator, prefiro realizar um outro exerccio terico: no sub-dividir corpos tentando encontrar regras especficas de cada universo corpreo criado para depois pensar um relacionamento entre eles at chegar ao corpo-em-arte. Prefiro sim, pensar um nico corpo, aberto a todas as multiplicidades inerentes a ele mesmo e que se auto gera nele mesmo, sempre, incluindo a o corpo cotidiano, o corpo-em-arte, as aes fsicas e vocais geradas nesse corpo-em-arte e mesmo a zona de relao com o espectador, essa zona de afetar e ser afetado, essa zona de turbulncia. Esse corpo uno, mas ao mesmo tempo mltiplo, que engloba todos os outros corpos, aes e zonas possveis que estou dando o nome, aqui, de corpo-subjtil. Ele subentende o corpos extracotidiano, o corpus fictif, mas os entende somente a partir do corpo cotidiano. O corpo-subjtil no um termo dualista, ou mais um corpo criado em zonas intermedirias entre o corpo cotidiano e o corpo-em-arte, mas um conceito vetorial. O corpo-subjtil um vetor do corpo cotidiano em direo ao uso artstico desse mesmo corpo. Sendo portanto, a figura do ator pluridimensional, heterognea, constituda por um primeiro plano enquanto corpo-fsico-celular-nervoso-fisiolgico-mental (corpo cotidiano) que seu suporte material potencialmente artstico e em um segundo plano que engloba o primeiro, enquanto vida orgnica/inorgnica que transborda e vetoriza esse corpo cotidiano, transformando-o em corpo-artstico (corpo-subjtil), ele, atuante, em Estado Cnico, confunde-se e justape-se em artista e obra. Justaposio do corpo cotidiano com o corpo obra esttica - no primeiro a discusso conceitual ou referente est inserida dentro do plano de imanncia filosfico ou do plano de referncia das cincias biolgicas e no segundo essa mesma discusso encontra-se dentro do plano de composio esttico. Talvez seja essa justaposio, confundindo-se com fuso/fisso de planos no ator em Estado Cnico que cause os distrbios de reflexes conceituais, pois nesse instante ele funde, no somente as teorias, mas tambm as crticas possveis do homem e da esttica contempornea alm de tambm incorporar signos sociais, pessoais e passionais. Isso sem contar a recepo; estamos aqui falando somente da figura do ator em Estado Cnico. Portanto, no a toa que qualquer teoria teatral encontre barreiras quase intransponveis. O ator, em Estado Cnico, ou seja, de fuso corprea de seu estado cotidiano e esttico, ser sempre contraditrio quando visto por ngulos parciais, pois ele ter, e ser, em si mesmo, essa contradio. Enfim, em Estado Cnico, contm, em si, vrios planos conceituais e semiticos. Na verdade, a tentativa de conceituao do trabalho do ator deveria ser realizada na borda do corpo-subjtil, como um ser que, mesmo sendo a expanso e transbordamento do corpo cotidiano, um ser de sensao independente, mesmo sujeito ao corpo cotidiano enquanto territrio de expanso latente. Qualquer conceito, reflexo e pensamento sobre o trabalho do ator deveria ser

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territorializado no na borda ou no interior do corpo cotidiano, mas na borda e no territrio do corpo-subjtil. Assim teramos uma gama conceitual independente para pensar o trabalho do ator em Estado Cnico, mesmo que eles derivem de conceitos conectados ao corpo cotidiano, que o territrio, por excelncia, das especulaes filosfico-ontologicas. Aqui reside uma grande problemtica e uma grande contradio: ao mesmo tempo que o corpo-subjtil borda e limite vetorial de transbordamento do corpo cotidiano e portanto um corpo uno que engloba todos os outros corpos, ele , em si, independente, pois o monumento artstico, corpo-em-arte que se sustenta em si e independente de seu autor. Na verdade essa uma questo especialmente problemtica, e por isso mesmo, devo tentar realizar algumas ponderaes sobre essa diviso interdependente entre corpo cotidiano e corpo-subjtil. Dentro de uma conceituao esttica-filosfica podemos encontrar afirmaes como: a obra de arte um ser de sensao e nada mais: ela existe em si (Deleuze e Guattari, 2000, p. 213), ou ainda que a obra de arte tornou-se independente de seu modelo, assim como dos outros personagens eventuais: 1) A obra independe do espectador ou do auditor, que se limitam a experiment-la. 2) A obra independe do criador, pela auto posio do criado, que se conserva emsi. [...] A obra de arte um bloco de sensaes, isto , um composto de perceptos e afectos. exatamente este bloco que se conserva (Deleuze e Guatarri, 2000, p. 213), ou ainda que o objeto esttico no um signo que remeta a outra coisa seno a si mesmo (Dufrenne, 1967, p.166). Portanto, embasando-me nessas afirmaes de renomados filsofos, posso realizar, sem qualquer dificuldade, a separao radical entre o corpo-subjtil e o corpo cotidiano, j que me permitido, ento, separar e deslocar autor e obra: a obra existe em si e independente em relao de seu criador. Pensando ento que o corpo em Estado Cnico (corpo-subjtil) realizando aes fsicas so o suporte artstico do ser de sensao que se conserva, nesse caso especfico no prprio corpo, ento simplesmente poderamos suportar a dualidade entre corpo artstico e corpo cotidiano, tornando-os independentes entre si. Mas o corpo-emarte, corpo-subjtil, no pode ser completamente independente do corpo cotidiano. Se assim o fosse ele seria um outro corpo a ser encontrado, um corpo-outro que no o nosso que paira para ser descoberto. Portanto o corpo cotidiano - enquanto suporte e territrio primeiro do corpo-em-arte - e o corpo-subjtil - enquanto vetor expandido e transbordado do corpo cotidiano - devem ser pensados conjuntamente, sendo sua diviso apenas abstrata para uma possvel conceituao independente, a posteriori, do campo do corpo-subjtil. Infelizmente, no caso especfico do ator, essa diviso no pura, pois o Estado Cnico engloba, compreende o ser cotidiano apesar de existir, repito, um momento claro no qual o ator encontra-se em Estado Cnico sendo esse estado um ser de sensao independente. Corpo-subjtil: dependncia e independncia coexistentes nele mesmo. O ser de sensao, enquanto corpo-subjtil em Estado Cnico, independente do corpo cotidiano mas ao mesmo tempo depende dele para se suportar em si mesmo, pois o corpo cotidiano seu territrio primeiro. O corpo-subjtil uma reterritorializao de um corpo cotidiano desterritorializado, sendo que esse movimento desterritorializao-reterritorializao no acontece de

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maneira pontual e nica, mas acontece em devir1, em movimento, em retorno constante, em ziguezague. O corpo cotidiano o territrio primeiro do corposubjtil, mas sempre em desterritorializao, enquanto a corpo-subjtil um territrio criado a cada instante na prpria desterritorializao do corpo cotidiano. Mas o corpo-subjtil um territrio fugaz que se desvanece a cada momento, devendo recorrer ao corpo cotidiano para recriar novamente seu territrio. Assim sendo, estando corpo-subjtil e corpo cotidiano justa(sobre)postos, existe uma dilogo conjunto, uma inter-simbiose entre ambos que no podemos simplesmente ignorar na reflexo. No momento do Estado Cnico o ator objeto esttico, criador, corpo-subjtil e corpo-cotidiano ao mesmo tempo. interessante observar que muitas das teorias estticas que cantam a obra artstica como um ser de sensao independente, sendo a prpria obra um monumento que se suporta em si mesmo, ou em outras palavras, blocos de sensaes (afectos e perceptos) que se conservam em si (Deleuze), no costumam citar o trabalho do ator, do danarino ou do performer em suas consideraes. Podemos claramente verificar isso, como exemplo, no texto de Deleuze, Percepto, Afecto e Conceito, em O Que Filosofia? no qual o autor realiza um contundente estudo sobre a obra artstica como ser de sensao independente e um bloco de afectos e perceptos que tem a durao de seu suporte. Mas em nenhum momento, infelizmente, o filsofo coloca a questo do corpo como obra de arte e a problemtica que implica essa questo, principalmente na questo da independncia entre autor e obra. Talvez seja mais claro pensar em um ser de sensao, enquanto suporte independente, na pintura, na literatura, na escultura, e mesmo na msica. Mas no caso do ator, sendo seu suporte seu prprio corpo, o caso se complica. Pensar o corpo como suporte artstico independente do autor, seria pensar o corpo como uma substncia independente manipulada, ou recriada, no presente do Estado Cnico, por uma outra substncia (seria, ento, o esprito ou a alma do ator esse manipulador do corpo enquanto suporte artstico?). Mas no seria aqui cair nos dualismos de substncias, no qual a alma ou o esprito habitam o corpo (Plato) ou ainda, cair no uso utilitrio do corpo pela alma como substncia instrumental de um estar-nomundo (Aristteles) ou ainda uma substncia extensa, mecnica manipulada por outra substncia de cogito, espiritual (Descartes)? No cairamos aqui nos dualismos e nas separaes mente/corpo/alma to combatidos na atualidade? Mas se no pensarmos nos dualismos, como realizar a separao e a independncia entre autor e obra no momento do Estado Cnico, se penso, (e acredito!) que o corpo uma unidade integrada, no dual, mas mltipla? Uma resposta possvel a essa questo seria pensar o corpo-subjtil no como um bloco de sensaes que se conserva em si, no corpo, como um suporte durvel, passvel de ser repetido de maneira igual, eterna e fechada, mas deve ser pensado enquanto um bloco de afectos e perceptos que vo se construindo no
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Um devir no uma correspondncia de relaes. Mas tampouco uma semelhana, uma imitao e, em ltima instncia, uma identificao. [...] Devir no progredir nem regredir segundo uma srie, e sobretudo devir no se faz na imaginao, mesmo quando a imaginao atinge o nvel csmico ou dinmico mais elevado como em Jung ou Bachelard. [...] O devir no produz outra coisa seno ele prprio. uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que real o prprio devir, o bloco de devir, e no os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. (Deleuze e Guatarri, 1997, p. 18).

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momento da atuao, sendo que essa construo criativa dos afectos e perceptos no corpo enquanto monumento engloba o ator como um ser integrado, incluindo a, obviamente, o corpo cotidiano. Os blocos de sensaes, no caso do ator, no se constroem em um suporte a ser conservado no futuro. No caso do corposubjtil, no momento da atuao, o futuro do suporte simplesmente no existe. Ele um eterno presente que se constri e se desvanece ao mesmo tempo. Um ziguezague de territorializao-desterritorializao entre corpo-subjtil e corpo cotidiano. O passado tambm no existe nesse estado, apesar de depender dele como base de recriao. O passado, enquanto memria ou reminiscncia do corpo, ou ainda, a tcnica corporal enquanto possibilidade de articulao do corpo no tempo-espao so apenas suportes, ou portas de entrada para o corposubjtil que tornam possveis uma certa repetio necessria ao fsica a ser recriada naquele presente. Digo aqui repetio enquanto recriao, no enquanto busca de um passado-ao previamente construdo e fechado em si mesmo. Recriar a ao fsica sempre, e no simplesmente repeti-la enquanto macro e micro densidades musculares. O Estado Cnico, enquanto fluxo de aes fsicas, realiza-se, portanto, por ser um presente que se cria a cada instante. Antes de ser um estado definido a priori, , na verdade, um estado que vai sendo definido a cada momento e tambm se desvanece a cada instante. Ele nunca poder ser definido ou localizado de maneira exata, a no ser no momento nfimo de seu suporte que , em si, indiscernvel, mas completamente percebido. um acontecimento, um continuum desvanecente que entra na sensao. Ele um estado virtual, absolutamente real, mas virtual. Entre corpo cotidiano e corposubjtil no h linha, fronteira ou borda apesar do corpo-subjtil ser sempre um limiar, ser em si mesmo, borda. E esse instante - sem passado, sem futuro, sem borda, desvanecente e virtual - apenas esse momento nfimo, que independente, mas mesmo assim propicia ao ser de sensao sua durao e sua conservao, pois tem a durao da recriao em continuum, gerando nesse fluxo pontos de eternidade coexistentes com sua efemeridade. A relao entre corpo cotidiano e o corpo-subjtil, no momento da atuao, habita um espao no euclidiano e um tempo outro, no-linear. Na verdade essa relao poderia ser alocada no espao de Escher, numa relao multidimensional sobre ele mesmo. A criao atoral, enquanto corpo, acontecendo no aqui-agora em um suporte que se recria a cada instante. Os prprios Deleuze e Gattari, mesmo sem citar diretamente o trabalho ator enquanto criador do corpo, nos d essa abertura: mesmo se o material s durasse alguns segundos, daria sensao o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com essa durao. (Deleuze e Guattari, 2000, p.216 grifo dos autores). O Estado Cnico realiza-se pelo devir, pelo mltiplo (que sua caracterstica intrnseca) e pelo fluxo transversal no qual essa multiplicidade perpassada no corpo-subjtil a cada instante. Qualquer teoria que busque pensar esse momento deve ter em mente esse universo extremamente complexo e deve residir nesse mesmo territrio de devir, fluxo e multiplicidade intrnsecas. Bibliografia Citada

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DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mil Plats : Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro : Editora 34.,1997. -------------------------------------- O que Filosofia. Trad. Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muoz. Rio de Janeiro : Editora 34, 2000. DELEUZE, GILLES. Conversaes. Trad. Peter Pl Pelbart. So Paulo : Editora 34, 1992. DUFRENNE, M. Phnomnologie de lexperince esthtique, vol. 1 e 2. Paris: Presses Universitaires de France, 1967.

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