2000_martins
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retardatárias do desenvolvimento econômico e da história, supostas ilhas de
primitivismo no suposto paraíso da modernidade. Diferentes concepções de
sociologia rural defrontaram-se com a mesma dificuldade.
Por muito tempo e para muitos, a sociologia rural foi mais uma sociologia da
ocupação agrícola e da produtividade do que uma sociologia propriamente
rural. Mais uma sociologia das perturbações do agrícola pelo rural do que uma
sociologia de um modo de ser e de um modo de viver mediados por uma maneira
singular de inserção nos processos sociais e no processo histórico. Não raro, o
mundo rural tornou-se objeto de estudo e de interesse dos sociólogos rurais
pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente com as fantasias da
modernidade. Não por aquilo que as populações rurais eram e, sim, por aquilo
que os sociólogos gostariam que elas fossem.
Quando assumiu o mundo rural como objeto, a sociologia rural o fez mais
como “adversária” do que como ciência isenta e neutra; mais como ciência da
modernização do que como ciência aberta à compreensão dos efeitos destrutivos
e perversos que muitas vezes a modernização acarreta. A modernização é um
valor dos sociólogos rurais e não necessariamente das populações rurais,
porque, de fato, para estas freqüentemente ela tem representado desemprego,
desenraizamento, desagregação da família e da comunidade, dor e sofrimento.
O deslocamento de grandes massas rurais para a cidade revelou-nos uma
dimensão desdenhada do mundo rural: um modo de ser, uma visão de mundo
e uma perspectiva crítica poderosa em relação ao desenvolvimento capitalista,
à modernização anômala e à desumanização das pessoas apanhadas de modo
anômico, incompleto e marginal pelas grandes transformações econômicas e
políticas, que não raro tiveram os sociólogos como acólitos. O deslocamento
nos mostrou, e já há estudos sobre o fenômeno, que o rural pode subsistir
culturalmente por longo tempo fora da economia agrícola. Pode subsistir como
visão de mundo, como nostalgia criativa e autodefensiva, como moralidade em
ambientes moralmente degradados das grandes cidades, como criatividade e
estratégia de vida numa transição que já não se cumpre conforme as profecias
dos sociólogos. Essa transição é antes inconclusa passagem, um transitório que
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permanece, uma promessa de bem-estar que não se confirma, uma espécie de
agonia sem fim.
A sociologia rural, sabemos todos, foi engolida por um compromisso precipitado
com a soi disant modernização econômica, no equivocado pressuposto de que essa
modernização acarretaria automaticamente a modernização social e o bem estar
das populações rurais ou ruralizadas. Foram necessários coragem e atrevimento
cívico, à custa de muita marginalização, para que sociólogos rurais desafiassem
esse compromisso, expusessem suas irracionalidades e reconhecessem no
mundo rural um mundo de criatividade, de inovação e de luta contra as aberrações
econômicas, políticas e mesmo acadêmicas que vitimam suas populações.
Desde os anos 60 a modernização forçada do campo e o desenvolvimento
econômico tendencioso e excludente nos vêm mostrando que esse modelo
imperante de desenvolvimento acarretou um contradesenvolvimento social
responsável por formas perversas de miséria antes desconhecidas em muitas
partes do mundo. As favelas e cortiços desta nossa América Latina e de outras
partes constituem enclaves rurais no mundo urbano, transições intransitivas,
desumanos modos de sobreviver mais do que de viver. O mundo rural está
também aí, como resíduo, como resto da modernização forçada e forçadamente
acelerada, que introduziu na vida das populações do campo um ritmo de
transformação social e econômica gerador de problemas sociais que o próprio
sistema em seu conjunto não tem como remediar.
No geral, debita-se na conta de uma suposta e nunca comprovada resistência
das populações rurais para a mudança e a modernização a responsabilidade
por esse desastre social. Essa resistência, ficou evidente, era resistência ao que
para elas não tinha o menor sentido e não podia, portanto, ser compreendido.
A culpa, no fim das contas, é da vítima.
Aqui no Brasil, tivemos, nos anos 70 e nos anos 80, a grande expansão territorial
do grande capital moderno que foi o da expansão da fronteira agropecuária
na Amazônia. Espaços ocupados por populações indígenas, que muitas vezes
jamais haviam tido contato com o homem branco, e ocupados por populações
camponesas pobres, remanescentes das ondas de povoamento do século XVIII e
do século XIX, foram declarados espaços vazios pelo Estado nacional. Estímulos
fiscais escandalosos foram concedidos a ricos grupos econômicos, nacionais
e estrangeiros, para que fizessem uma ocupação moderna do território. Uma
modernização postiça, pesadamente subvencionada pela sociedade brasileira,
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mais expressão da ineficiência da grande empresa do que de sua louvada
eficiência.
Os cientistas sociais deste país, e muitos estrangeiros que para aqui vieram
para estudar e acompanhar o deslocamento da fronteira econômica na região
amazônica, testemunharam e documentaram uma das grandes falácias
da sociologia rural, a da função emancipadora da modernização técnica e
econômica. As grandes empresas recorreram ao trabalho escravo, à peonagem,
à escravidão por dívida, para efetivar a implantação de megaprojetos
agropecuários. Invariavelmente usando pistoleiros para torturar, perseguir,
violentar e matar os que tentavam fugir. Alguns desses projetos são de grande
sofisticação tecnológica, como o da Fazenda Vale do Rio Cristalino, que foi
implantado pela empresa alemã Volkswagen. O plano previa criação e abate de
gado, que seria refrigerado no vôo entre a fazenda e a Alemanha, dispensando a
instalação de frigoríficos. Minúsculos artefatos eletrônicos eram implantados
no gado para permitir seu controle à distância, por satélite, e determinar
providências sanitárias e o momento próprio do abate. Mas, na fazenda havia
500 trabalhadores escravizados. Pesquisadores estimam que na década de
70 mais de meio milhão de trabalhadores foram submetidos à escravidão na
região amazônica para permitir a abertura das novas e modernas empresas
agropecuárias. Foi esse um retrocesso histórico espantoso em nome da
modernização econômica e tecnológica.
Não só aqui essas coisas têm acontecido. Na Junta de Curadores do Fundo
Voluntário das Nações Unidas contra as Formas Contemporâneas de Escravidão
[Board of Trustees of the UN Voluntary Fund on the Contemporary Forms of Slavery],
de que sou membro, temos recebido pedidos de socorro e denúncias de
escravidão no mundo inteiro. Estamos trabalhando com a hipótese, baseados
em dados da Antislavery International, de que há no mundo hoje 200 milhões
de escravos. Todos vitimados pela decomposição do mundo rural que resultou
de intervenções de “engenharia social” modernizadora, intervenções que,
infelizmente, não inocentam a sociologia rural.
Sabemos todos que a sociologia rural, a pretexto de se tornar uma força auxiliar
da modernização e da remoção das resistências sociais à mudança, contribuiu
abertamente para a violação de modos de vida e visões de mundo e de culturas
tradicionais em que a pobreza, ao menos, revestia-se de padrões sociais de
dignidade toleráveis. Onde a modernização rural forçada fracassou, como
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ocorre em amplas regiões e situações desta América Latina, da Ásia e da África,
as velhas estruturas sociais foram desmanteladas, as instituições corroídas,
as comunidades desorganizadas, os costumes desmoralizados e a população
degradada. Foi ela lançada impiedosamente na cloaca da civilização e do
desenvolvimento e da modernização excludentes que beneficiaram apenas parte
da sociedade, privando do benefício milhões de vítimas inocentes. A sociologia
rural tinha elaborados diagnósticos para desmontar a sociedade tradicional,
mas não possuía condições de diagnosticar e solucionar os graves problemas
sociais que não previu e que decorreriam dos processos sociais anômicos que
involuntariamente estimulou, sugeriu, apoiou ou promoveu.
O futuro da sociologia rural depende de que reconheçamos, antes de tudo, que
a nossa disciplina contribuiu para privar de futuro parcelas ponderáveis da
população do Terceiro Mundo. Não se trata de pedir à nossa profissão e à nossa
disciplina que façam um mea culpa tão em moda na hipocrisia contemporânea.
Trata-se de pedir que façamos uma revisão crítica corajosa dos rumos
dominantes na sociologia rural por longos anos, que nos dediquemos, também,
a uma sociologia da sociologia rural para compreender o grande desencontro
entre essa disciplina e a sociedade que ela deve compreender e explicar. É
preciso transgredir as imunidades estamentais e corporativas de que a sociologia
rural se cercou, fazê-la dialogar mais, comungar mais e aprender mais com a
História, a Literatura, a Geografia, a Antropologia. Há mais sociologia rural de
alto refinamento em obras de Gabriel Garcia Marquez, Manuel Scorza, John
Steinbeck, José Saramago, Juan Rulfo ou Guimarães Rosa do que em muitas de
nossas análises complexas e elaboradas.
É preciso fazer mais e insistentemente com a sociologia rural o que é próprio da
sociologia: objeto de uma sociologia do conhecimento, uma sociologia crítica
que nos permita remover compromissos que fazem dela um instrumento da
economia e da “engenharia social”, remover empecilhos que ainda subsistem
para que se torne um instrumento da dignidade humana e da libertação do
homem de suas carências e misérias. As populações rurais, mais do que
instrumentos da produção agrícola, são autoras e consumadoras de um
modo de vida que é também um poderoso referencial de compreensão das
irracionalidades e contradições que há fora do mundo rural. São uma reserva
importante de um tipo de inovação e criatividade que tende a ser destruído e
que pode desaparecer.
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O futuro da sociologia rural depende do futuro das populações rurais. O futuro
da sociologia rural depende, também, e muito, de que ela se liberte de uma
concepção estamental do mundo rural, que em muitos estudos sociológicos, e
reconheça-se, não de sociólogos rurais, aparece como um mundo degradado,
um mundo pária e irrelevante, lugar do nada, lugar de uma humanidade residual
destituída de competência histórica para afirmar-se como sujeito social e como
sujeito de seu próprio destino.
A sociologia rural acumulou poderosos conhecimentos sobre as contradições
sociais que alcançam de modo mais destrutivo as populações rurais. Os
sociólogos rurais podem assumir corajosamente a grande missão da ciência
que é servir ao Homem para libertá-lo daquilo que tolhe a sua humanização. E
não são poucos que o têm feito na pesquisa marcada por profunda inquietação
ética e ampla competência teórica para diagnosticar problemas e descobrir
alternativas nas próprias concepções e relações sociais dos grupos humanos
que estudam.
As próprias populações rurais vitimadas pelo desenvolvimento econômico
excludente, que todos testemunhamos, têm procurado seu próprio rumo, têm se
alçado acima da indignidade que as vitima, têm proclamado seus direitos e tem
questionado os responsáveis por sua situação. Os movimentos sociais do campo
são a forma do protesto dos pobres da terra, o clamor dos sem-voz porque não
foram ouvidos no devido tempo. Eles desafiam a sociologia rural a compreender
o protagonismo e a criatividade das populações rurais e a compreender também
as saídas possíveis das situações socialmente anômicas em que muitas vezes se
encontram.
O futuro da sociologia rural não depende do que ela tenha a propor quanto à
qualidade de vida rural. O futuro da sociologia rural depende amplamente
do que as populações rurais tenham a lhe propor para que essa qualidade
de vida seja incrementada, bem como do que os sociólogos rurais estejam
dispostos generosamente a oferecer a elas. Esse futuro depende amplamente
do deciframento e superação dos enigmas que as perturbam, da compreensão
dos processos sociais que as desagregam e as marginalizam e que, por isso,
precisam compreender e vencer para que tenham a qualidade de vida a que têm
direito. Para ensinar, a sociologia rural precisa aprender. Para compreender
sociologicamente, o sociólogo rural precisa reconhecer-se como membro da
comunidade de destino das populações que estuda.
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Para não parecer excessivamente severo, convém reconhecer que os equívocos
históricos da sociologia rural vêm de sua maior virtude, dentre as muitas
virtudes que há no conhecimento especializado que ela tem propiciado sobre o
mundo rural. Nelas o valor fundante está na transformação social, na superação
de problemas e bloqueios sociais ao desenvolvimento. Prefiro interpretar
esse compromisso extracientífico da sociologia rural como um compromisso
com os fins da mudança, com os resultados das inovações e não com a própria
inovação, o que muitos em nossa comunidade profissional têm assinalado e
concretizado.
A sociologia rural poderá contribuir para a melhora na qualidade de vida das
populações rurais se recuperar a dimensão crítica da tradição sociológica;
se puder ver-se criticamente na relação investigativa e na relação educativa
com as populações que estuda; se abrir mão de suas certezas para assimilar as
incertezas que ajudou a disseminar e fazer dessas incertezas uma mediação
cognitiva essencial na relação entre a teoria e a prática.
Na reconciliação com a tradição sociológica clássica e seu compromisso com
os benefícios sociais das grandes transformações, a sociologia rural poderá
se encontrar também, ainda que criticamente, como é necessário na ciência,
com os movimentos sociais que nos falam do novo protagonismo histórico das
populações rurais, de sua busca. A contribuição possível da sociologia rural
para a qualidade de vida rural está justamente no reconhecimento das reservas
de possibilidade histórica que as populações rurais, sobretudo as populações
camponesas, ainda têm para reinventar o mundo e reinventar-se no mundo.
O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural
dependem de que ela, nos ainda tortuosos e pedregosos caminhos desse mundo
rural desprezado e desdenhado, empobrecido e ameaçado, se encontre com
a esperança que em suas pedras há. Porque só pode haver qualidade de vida
para diferentes populações se para elas houver, também, lugar para o sonho e
a esperança. O desafio dos sociólogos rurais, numa proposta de compromisso
como a do tema destas falas, é o de mergulhar no sonho inventivo e regenerador
que ainda há no mundo rural. Tanto para decifrá-lo e prezá-lo, quanto porque
há nele a nostalgia do futuro e a negação das privações que o presente representa
para muitos.
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Resumo: (O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida
rural )Não raro, o mundo rural tornou-se objeto de estudo e de interesse dos
sociólogos rurais pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente
com as fantasias da modernidade; não por aquilo que as populações rurais
eram e, sim, por aquilo que os sociólogos gostariam que elas fossem. Este artigo
considera o desencontro entre a sociologia rural e as populações rurais.
Palavras-chave: Sociologia Rural; populações rurais; modernização.
Abstract: (The Future of the Rural Sociology and its Contribution for the Quality of
Rural Life). Frequently, the rural world has become an object of study and an
area of interest to rural sociologists because of its negative features, focussed on
aspects seen as incompatible with the fantasies of modernity. Rural populations
have not been studied for what they are but have become projections of what
rural sociologists would like them to be. This article discusses this gap between
the reality of rural populations and the practice of rural sociology.
Key words:Rural Sociology; rural populations; modernization.
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