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Resumo
Não é certo, embora possa ter acontecido, que o jovem Viana da Mota tivesse conhecimento, durante os
seus anos em Berlim, da obra de Hugo Wolf. Contudo, os seus Lieder, compostos intermitentemente a
partir dos quinze anos, mostram uma notável assimilação da tradição alemã e assumem algumas
características formais que podemos aproximar da obra deste compositor. Este artigo pretende situar a
produção de Viana da Mota no contexto da tradição germânica do Lied, assim como a influência que as
suas canções exerceram na música portuguesa do século XX, nomeadamente em compositores como
Fernando Lopes Graça e Joly Braga Santos. Discutir-se-á também a forma muito pessoal como este pianista
e compositor diferencia as obras para canto e piano sobre textos alemães daquelas que compôs sobre textos
portugueses, abordando ainda um conjunto de problemas de interpretação musical por elas colocado.
Palavras-chave
Viana da Mota; Lied; Hugo Wolf; Literatura alemã; Interpretação; Canção de câmara em português.
Abstract
Although it may have happened, it is not certain that Viana da Mota was familiar with the work of Hugo
Wolf during his years in Berlin. However, his Lieder, composed intermittently from the age of fifteen, show
a remarkable assimilation of the German tradition and assume some formal characteristics that can be
associated with the work of this composer. This article aims to situate Viana da Mota’s production in the
context of the Germanic tradition of the Lied, as well as the influence that his songs had on Portuguese
music in the twentieth century, namely on composers such as Fernando Lopes Graça and Joly Braga
Santos. The individual characteristics in which this pianist and composer differentiates his works for piano
and voice with German texts from those he composed with Portuguese texts, will also be discussed, and a
series of musical performance problems raised by them is similarly addressed.
Keywords
Viana da Mota; Lied; Hugo Wolf; German literature; Performance; Portuguese song.
E
M 1882, COM APENAS CATORZE ANOS, Viana da Mota partiu para Berlim para estudar
piano e composição. Data dessa época o início de uma compreensão profunda da cultura
alemã e não só, pois, como refere a investigadora Christine Wassermann Beirão, Viana da
248 NUNO VIEIRA DE ALMEIDA
Mota tinha um «interesse inesgotável pela cultura» em geral. 1 Movido por uma insaciável
curiosidade, dedicou-se ao estudo de temas não apenas musicais e a escola provou ser um meio de
fundamental importância para atingir os seus fins:
Nos dois primeiros anos em Berlim numa escola particular (onde, dentro da sua idade, era o melhor
aluno) e, mesmo quando deixou de a frequentar para se concentrar em absoluto nos estudos
musicais, continuou com lições de cinco línguas [...], lia todas as obras importantes da literatura
universal, ia regularmente ao teatro e a concertos e dedicava-se intensamente a questões filosóficas.2
Tudo isto torna clara a imersão e compreensão do compositor na cultura alemã. A admiração por
Wagner, incentivada por Margarethe Lemke, que conheceu em 1883 e se tornou uma espécie de mãe
adoptiva, juntamente com os conhecimentos já adquiridos, fez despertar em Viana da Mota um
wagneriano esclarecido, sendo que, Goethe e outras referências da literatura alemã se lhe tornaram
também muito familiares. O propósito deste artigo é observar como Viana da Mota se integrou neste
universo, escrevendo canções sobre textos alemães que podemos identificar como Lieder, absorvendo
por completo uma tradição rica, complexa e muito diferente da portuguesa, sem deixar, contudo, de
mostrar um cunho pessoal bastante marcado desde as primeiras canções. Ao longo deste texto, serão
igualmente discutidos alguns problemas de interpretação que essas obras levantam.
Antecedentes
Quando Viana da Mota se instalou em Berlim, a tradição do Lied reinava suprema um pouco por
toda a Alemanha e Áustria. A data mais importante que marcou o início do período de maturidade
de Hugo Wolf, na época mestre incontestável desta forma musical, foi 1887. Nesse ano, Wolf
iniciou a composição dos Lieder sobre poemas de Joseph von Eichendorff, sendo Nachtzauber o
mais representativo do conjunto. Esta colectânea de Lieder será interrompida pouco depois para dar
lugar à torrencial obra-prima constituída pelo grupo de canções sobre poemas de Eduard Mörike,
composto no início de 1888, e depois retomada ainda nesse mesmo ano.
Tanto Wolf como Viana da Mota se inserem numa tradição que vem em linha directa de
Schubert, e não podemos perder de vista que a preponderância da escola de Lied no século XIX se
deve, em grande parte, à altíssima qualidade literária produzida no espaço germanófono nesse
período e um pouco anteriormente. É a nomes como Goethe, Eichendorff, Rückert ou Heine que
podemos associar o desenvolvimento da ligação entre música e palavra, tendo como intermediário o
1
Christine Wasserman BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Diários 1883-1893, traduzido por Elvira Archer (Lisboa,
BNP - CESEM, 2015), p. 14
2
BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Diários (ver nota 1), p. 14.
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piano. Evidentemente que o canto sempre habitou a música, basta pensar que a ópera foi, desde
Jacopo Peri, o género mais cultivado e desejado por uma grande maioria de compositores. Mas a
emergência de uma forma vocal tão específica como o Lied deveu muito do seu desenvolvimento à
poesia alemã, e não terá sido uma coincidência o facto de Mozart ter escrito Das Veilchen sobre um
poema de Goethe, com a atenção ao detalhe textual que a música tão inovadoramente reflecte.
Além disso, a ópera é um género caro na sua produção e execução, portanto pouco «portátil»,
e, com o advento da burguesia endinheirada, verificou-se um cada vez maior interesse na prática
musical doméstica, pois, como refere Lorraine Gorrel:
Even the social climate was ideal for song. Prosperous middle-class ladies had the money to buy
music, music periodicals, and musical instruments, such as piano, harp, or guitar, and they had the
leisure to learn to play and sing. Throughout Europe, accomplished young ladies hoped to improve
their marital prospects by distinguishing themselves as amateur musicians and artists.3
Foi neste contexto que se desenvolveu, um pouco por toda a Europa e particularmente na
Alemanha, um gosto particular pela relação entre texto poético e música, que ia a par com um
conjunto de outras motivações e convenções de ordem social – nomeadamente o desejo e a
necessidade de arranjar um «bom partido» para as jovens das famílias mais abastadas –, mas que
ajudaram a sistematizar uma forma musical que afortunadamente motivou a criatividade de
compositores como Schubert, Schumann, Brahms e Wolf.
A preponderância do elemento poético foi igualmente determinante no apuramento do Lied
enquanto forma musical. Basta repararmos que o desenvolvimento da mélodie se deveu em grande
parte, não apenas ao exemplo germânico, mas igualmente ao surgimento da grande poesia francesa,
com as obras de Verlaine, Baudelaire e mesmo Mallarmé. Citando mais uma vez Gorrel:
Not only did the nineteenth-century German lied stimulate the development of other national styles
of song, such as the French mélodie and the Italian lírica da camera, but song is now considered a
significant musical medium, attracting the interest of many serious composers. The link between
music and poetry, which composers have explored for hundreds of years, found a new vitality and
musical vocabulary with the German lied.4
Corroborando esta ideia, Richard Taruskin define o Lied romântico como «the setting of a lyric
poem for solo voice accompanied by the piano or (at first) some other “parlor” instrument, a genre so
3
Lorraine GORRELL, The Nineteenth-Century German Lied (Portland - OR, Amadeus Press, 1993), p. 12.
4
GORRELL, The Nineteenth-Century German Lied (ver nota 3), p. 13.
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German that it has retained its German name in English writing.» O desenvolvimento desta forma
musical projectou, por isso, uma nova e particular sensibilidade: «from the very beginning, moreover,
the Lied was associated not only with the idea of Empfindsamkeit or personal expressivity, but also
with the idea of Volkstümlichkeit or “folklikeness”.» 5 Essa ligação a uma expressão popular está bem
patente, como veremos, nas canções de Viana da Mota sobre textos portugueses.
O piano não se limita a um mero acompanhamento mas estabelece em cada caso o ambiente
expressivo geral da peça, o seu lançamento rítmico e o seu percurso harmónico, partilhando assim
em pé de igualdade com a linha vocal o protagonismo no desenho da obra.6
As escolhas poéticas vão, como seria de esperar, para a grande literatura alemã – Goethe,
Eichendorff, Uhland –, mas privilegiam também os poetas contemporâneos, como William Raabe
ou Peter Cornelius, ele próprio um compositor de mérito assinalável.
São justamente sobre um texto de Cornelius as três canções op. 10, que terão sido escritas em
1892. Comparemos a terceira destas canções, Erfüllung, com Nachtzauber de Wolf, composta em
1887 sobre um poema de Eichendorff. As obras têm em comum um parentesco temático e algumas
analogias em termos de construção.
5
Richard TARUSKIN, Oxford History of Western Music (Oxford University Press) vol. 3, p. 134.
6
José Viana da Motta: Lieder, canções, romanzas, João Rodrigues, Ana Maria Pinto Nuno Vieira de Almeida (CD
Tradisom, 2012), ver notas do livrete por Rui Vieira Nery.
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Parece evidente que o sujeito poético a quem Eichendorff se dirige é, quase seguramente, o
mesmo que o ouviu também no poema Im Abendrot:
Esta proposta de descanso redentor está também incluída em Nachtzauber. A frase final
«Komm, o komm zum stillen Grund!» é, sobre este aspecto, bastante elucidativa.
A primeira estrofe de Nachtzauber, que narra o aparecimento da noite e o que por ela é
evocado, encontra nos dois últimos versos uma clarificação, com as palavras «Und die Gründe
glänzen wieder, Wie du’s oft im Traum gedacht», como se a veneração do poeta pela natureza fosse
algo que apenas encontramos em sonhos: a beleza desmesurada parece ter o sonho como único
meio de transportar uma visão onírica de melancolia e interioridade. Quando na segunda estrofe
Eichendorff nomeia os «weiße Arme, roter Mund», expressão que dificilmente se aplica a uma
observação botânica, compreendemos que não estamos apenas perante um poema extático de
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Exemplo 1. Hugo Wolf, Nachtzauber, cc. 1-9, Eichendorff-Lieder (Mannheim, K. Ferd. Heckel, s. d.)
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diminuendo. Com este final e esta reprise é inevitável a sensação de completude ou término de
viagem. Como observação final, a tonalidade quase impressionista da canção, que Wolf obtém com
o motivo contínuo de semicolcheias da mão direita, é conseguida sobretudo pela inclusão de um
meio tom, facto que não deixa de ser irónico ao falarmos de impressionismo e da predilecção dos
impressionistas pela escala de tons inteiros.
Exemplo 2. Hugo Wolf, Nachtzauber, cc. 56-8, Eichendorff-Lieder (Mannheim, K. Ferd. Heckel, s. d.)
É interessante que um tão certeiro analista como Eric Sams não tenha em demasiada conta este
Lied: «So all this reiterated richness and sweetness may tend to cloy, without the most sensitive and
varied of interpretations.»7 A afirmação tem no entanto interesse ao demonstrar que toda a riqueza
de Nachtzauber repousa principalmente nos intérpretes. Sem um cantor capaz de grande variedade
de colorido vocal e controlo dinâmico e um pianista que compreenda que a obra se centra sobretudo
na escrita da mão esquerda, esta canção pode não transmitir a riqueza que carrega, um problema
genérico, mas que se coloca com menos intensidade em outras obras de Hugo Wolf, nas quais o
brilho vocal e pianístico ajuda ao despertar do ouvido mais distraído.
Talvez tenha sido Ernest Newman quem, na sua curta biografia e análise da obra de Wolf, melhor
o define como um dos grandes compositores do seu tempo e um dos maiores cultores de Lieder (no
entender de Newman o maior): «Now the secret of Wolf’s peculiar power is that he pierced to the
very heart of the poem as few musicians have done even in isolated cases, and as no other has done in
so many varied cases.»8 Newman aproveita para apontar defeitos genéricos à produção de Lieder de
Schubert, uma posição algo peculiar pois algumas das falhas apontadas, como, por exemplo,
demasiada fluência ou modificações ligeiras na forma estrófica, são características que podemos
também encontrar em Wolf. Os avanços deste na forma de pensar e trabalhar um poema para música
7
Eric SAMS, The Songs of Hugo Wolf (London, Eulenburg Books, 1983), p. 162.
8
Ernest NEWMAN, Hugo Wolf (New York, Dover Publications, 1966), p. 156.
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são, evidentemente, devedores de Schubert e da escola que de alguma forma este inaugura. Foi
igualmente dentro desta linhagem que Viana da Mota compôs os seus Lieder.
Vejamos uma entrada no seu diário com a data de 3 de Junho de 1885: «Depois do café fiz
música: Winterreise e, sobretudo, “Des Baches Wiegenlied”.9 Oh Deus (se é que há um), como isto
é lindo! Que Lied maravilhoso! Quase que me pôs maluco. E a minha irmã cantou-o tão bem, tão
suavemente!»10
Segundo Christine Wassermann Beirão, as Três canções op. 10 sobre poemas de Cornelius
foram compostas em 1892. Num postal enviado à tia Gretchen – Margarethe Lemke –, datado de 3
de Janeiro 1892 e que faz parte de um lote de correspondência não publicada, Viana da Mota
escreveu: «Gestern 3 Lieder (Cornelius) komponiert.»11 O compositor voltou à poesia de Cornelius
e podemos datar essas composições de um momento ligeiramente posterior – Março de 1892. Mais
uma vez a colaboração de Christine W. Beirão foi preciosa ao dar a indicação de uma outra carta,
também não publicada, que refere a composição de quatro novas canções sobre poemas de
Cornelius, sendo que as primeiras três foram publicadas como op. 13.12
Peter Cornelius foi poeta e compositor. Alguns compositores, sendo que o nome de Mahler
com os seus Lieder eines fahrenden Gesellen ocorre-nos imediatamente, escreveram poemas para as
suas próprias canções. Cornelius inscreve-se neste grupo. O seu círculo de conhecimentos incluiu os
poetas germânicos seus contemporâneos, como Eichendorff e Heyse, de quem se tornou íntimo
amigo. Mas, embora Cornelius tenha aproveitado e aprendido com os seus pares, a sua
independência, como poeta e sobretudo como compositor, foi sempre mantida: a obra musical
nunca se tornou uma imitação wagneriana apesar do contacto próximo com Wagner,
particularmente os Lieder, muitos sobre poemas dele próprio, e que são composições muito
interessantes. A canção Ein Ton [Um tom] por exemplo é muito justamente celebrada junto de
jovens compositores actuais, tendo sido o compositor Carlos Caires que, com entusiasmo, me
chamou a atenção para ela. A razão percebe-se: trata-se de uma declamação contínua do poema
sobre uma única nota, um si, dominante da tonalidade de mi menor em que está escrita.
Em Erfüllung, a junção do elemento natural com o humano faz-se de forma diferente do poema
de Eichendorff que analisámos anteriormente: enquanto este justapõe os dois elementos, criando
9
Do ciclo Die schöne Müllerin de Franz Schubert.
10
BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Diários (ver nota 1), p. 216.
11
«Ontem três canções (Cornelius) compostas.» As informações sobre toda a correspondência não publicada foram-me
facultadas por Christine Wassermann Beirão, a quem muito agradeço.
12
Indispensável uma referência ao trabalho de Elvira Archer, a primeira grande investigadora sobre Viana da Mota, e de
Christine Wassermann Beirão. Juntas publicaram o volume José Vianna da Motta: Diários 1883-1893 e Christine W.
Beirão a Correspondência de Viana da Mota com Margarethe Lemke 1885-1908, continuando actualmente a trabalhar
no espólio do compositor.
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propositadamente uma atmosfera difusa, Cornelius clarifica a sua mensagem. Depois de uma secção
inicial, que engloba as primeiras três quadras das seis que o constituem, na qual o poeta nomeia
elementos naturais sob uma forma interrogativa, a quarta tem um interessante volte-face ao negar as
perguntas colocadas para, na quinta quadra, justificar e identificar o vaguear do vento com os
afectos humanos. Estes afectos são suaves e, contrariando um certo ideal romântico, não são
extremos nem difusos como sugere a poesia de Eichendorff. O vento de Cornelius é amigável: trata-
se talvez de uma brisa – «Rühret er leis und gelind» – e não de um vendaval.
Ist es, weil all die Klänge Será que todos os sons
In ihm vereinigt sind, Nele se encontram reunidos
Daß er so meisterhaft aufspielt Tal a mestria que exibe
Der Wind, der wandernde Wind? Ele – o vento – o viandante?
Nein, nein! die süßen Laute, Não, não, as melodias suaves
Mit denen er füllt den Raum, Com que preenche os espaços
Er zieht sie nicht aus der Föhre Não provêm dos pinheiros
Nicht vom lispelnden Weidenbaum, Nem dos chorosos salgueiros
Das Band, das die Seelen verbindet, É o laço que une as almas
Rühret er leis und gelind, Que ele abala suavemente
Daß wir lauschen und zittern und beben, E a nós nos faz tremer
Vor dem Wind, dem wandernden Wind. Diante dele – o viandante.
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VIANA DA MOTA E A TRADIÇÃO DO LIED 257
O Lied de Viana da Mota é articulado em duas estrofes de três quadras cada uma. A oscilação
musical é diatónica e as modulações frequentes são de curta duração oscilando maioritariamente
entre tónica e dominante e fazendo-nos regressar ao conforto da tónica – mi maior – numa primeira
secção (Exemplo 3). A partir daqui as estrofes divergem (apenas os compassos 3 a 10 e 29 a 36 são
exactamente iguais). Na primeira, o compositor segue um caminho harmónico que leva à tonalidade
de ré maior para depois, utilizando de forma notável o desenho pianístico, com um acorde de sétima
dominante seguido da sensível, resolver em seguida e concluir a estrofe (cc. 23 a 28).
Exemplo 3. José Vianna da Motta, Canções sobre textos em alemão, edição crítica de João Paulo Santos
(Lisboa, TNSC – Imprensa Nacional, 2018), p. 95, Erfüllung, cc. 1-6,
Na segunda estrofe, o compositor recorda, como referi, a primeira estrofe na secção inicial e
prossegue um caminho harmónico diferente que oscila entre as dominantes de sol maior e dó maior
e ilustra de forma clara o clímax sobre a frase «Die Lieb’ in unsern Herzen». A voz canta a palavra
«Lieb’», conduzida por um cromatismo e prolongada por dois tempos e meio com a indicação Sehr
breit [Muito largo ou amplo], sobre um sol sustenido 4 em forte, e o piano arpeja também numa
dinâmica marcada forte a dominante de dó sustenido maior (cc. 40 e 41) (Exemplo 4). A esta
harmonia sucede-se um encadeamento sobre uma série de acordes de sétima, todos com função de
dominante (fá sustenido maior, si maior e mi), que apenas resolvem depois de se ouvir a palavra
«Ton» (cc. 42 a 45), concluindo a quinta quadra do poema na tonalidade principal. É inevitável
pensarmos aqui numa espécie de jogo harmónico que procura ilustrar perfeitamente o tom jovial do
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texto. A coda prolonga a alternância do jogo dominante/tónica num tempo mais lento, dando à voz a
oportunidade de fazer um diminuendo gradual até ao pianíssimo sobre a palavra «Wind», que
conclui a canção.
Exemplo 4. José Vianna da Motta, Canções sobre textos em alemão, edição crítica de João Paulo Santos
(Lisboa, TNSC – Imprensa Nacional, 2018), p. 99, Erfüllung, cc. 40-2
Do ponto de vista vocal, apesar da extensão não ser exagerada, Viana da Mota requer uma voz
com agudos brilhantes para o clímax sobre o sol sustenido sustentado, mas que compreenda as
outras nuances dinâmicas e torne claras as indicações precisas do compositor; nesta perspectiva o
tratamento das palavras «lauschen» – com a indicação heimlich sobre ela – e «zittern» – com um
staccato sobre as notas – é bastante eloquente (Exemplo 5).
Exemplo 5. José Vianna da Motta, Canções sobre textos em alemão, edição crítica de João Paulo Santos
(Lisboa, TNSC -Imprensa Nacional, 2018), p. 101 Erfüllung, c. 51
A parte pianística da canção é toda ela focada sobre o desenho do vento, grupos de semicolcheias
arpejadas com amplitude que preenchem praticamente todos os compassos, exceptuando dois de
resolução harmónica para a tonalidade do Lied, na conclusão da segunda estrofe, que preparam a coda
para uma menor agitação. A indicação do compositor é clara para estes treze compassos finais: Etwas
langsamer, sehr lieblich [Um pouco mais lento, amorosamente].
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VIANA DA MOTA E A TRADIÇÃO DO LIED 259
As analogias entre Erfüllung e Nachtzauber são notórias: ambas as peças possuem uma
estrutura musical semelhante em duas estrofes com uma coda, ambas criam o ambiente musical
propício à articulação do texto poético a partir da parte de piano e, apesar da diferença na qualidade
literária, ambas lidam com poemas de exaltação da natureza e dos afectos humanos. Além disso, as
duas alcançam um clímax na segunda secção da segunda estrofe, que se diluirá de forma gradual até
alcançar o ambiente musical do início; Wolf transfigura a música com a repetição da palavra
«Komm» na voz, apoiada pelo novelo impressionista do piano que se apropria da melodia inicial na
parte final da canção, Viana da Mota retoma o clima do início num andamento ligeiramente mais
lento e a repetição, agora mais explícita no seu significado, do leitmotiv ligado às palavras «Wind,
dem wandernden Wind». Esta modificação do tempo musical é, em Viana da Mota, absolutamente
crucial, por estabelecer a clarificação de sentido já mencionado e que faz justiça às palavras de
Raymond Monelle:
As in language, there is [in music] a temporality of syntactic structure. But theorists have studied
this sort of time, in its typical forms of meter, rhythm, and phrasing, with such profound attention
that we forget that music can also signify time. There is a temporality of the signified, as well as a
temporality of the signifier.13
13
Raymond MONELLE, The Sense of Music: Semiotic Essays (Princeton, Princeton University Press 1992), p. 83.
14
BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Diários (ver nota 1).
15
Christine Wassermann BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Correspondência com Margarethe Lemke 1885-1908
(Lisboa, BNP - CESEM, 2018).
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Full Circle
No seu artigo «Scenas nas montanhas: Viana da Mota e os Açores em 1895», publicado neste
mesmo volume, Luísa Cymbron refere o facto de o Quarteto de cordas em sol, composto em 1895,
ter sido mais tarde truncado para dar origem às Cenas nas montanhas. Viana da Mota aproveitou os
dois últimos andamentos do quarteto, que possuem uma cor mais portuguesa, através da inclusão de
temas populares açorianos e outros originais do compositor, deixando de fora o primeiro andamento
que, em seu entender, «não vale 10 réis.» Como refere Cymbron, o andamento em questão tem uma
«concepção nitidamente mais germânica» e é provável que tenha sido essa a razão da omissão. O
quarteto foi estreado na sua forma original no Orpheon Portuense, a 16 de Novembro de 1895.16
Este facto é muito interessante, pois remete-nos para as canções portuguesas que Viana da
Mota compôs cerca de um ano depois dos Lieder sobre poemas de Cornelius. Parece sintomático
que este intervalo temporal tenha suscitado uma mudança para um estilo mais português (talvez
motivado pela vontade de voltar a Portugal) ou, se quisermos, mais baseado em temas populares
originais ou inventados de raiz, que implica, tanto no quarteto como nas canções, uma certa
modificação estrutural e de linguagem.
Na carta de 7 de Agosto de 1893 a Margarethe Lemke, o compositor escreve: «Por estes dias
compus 4 canções portuguesas. Os textos são encantadores. Nesta busca de poemas pude ver a
excelente poesia que nós possuímos, não muito profunda, mas elegante, graciosa, ora
profundamente melancólica, ora atrevidamente jovial, sempre muito sensual.» Numa outra carta de
27 de Agosto, Mota acrescenta: «Continuo a trabalhar na composição das canções, estas cinco
agradaram muito ao Andrade. Dediquei-lhas e ele quer cantá-las na Alemanha, em português
naturalmente.»17 Desconhecemos qual a canção acrescentada por Viana da Mota no decorrer do mês
de Agosto de 1893.
A escrita das duas séries de canções, as alemãs e as portuguesas, é bastante diferente, tal como
acontece no quarteto na sua forma original. É lícito perguntar então qual a questão que se coloca ao
observar a diferença existente entre o estilo germânico de Viana da Mota e o seu estilo português,
uma vez que uma modificação estilística é um dado natural na progressão da linguagem de qualquer
compositor. O que espanta é a modificação ser tão imediata, com apenas alguns meses de diferença,
tratando-se portanto não de modificação, mas sim de adaptação: a sofisticação vocal dos Lieder, que
exige grande amplitude, dá lugar a um cantar apoiado sobretudo na clareza do texto com uma
extensão vocal muito menor e em que a parte de piano se simplifica ao ponto de se tornar apenas
16
Luísa CYMBRON, «Scenas nas montanhas: Viana da Mota e os Açores em 1895», Revista Portuguesa de Musicologia,
7/2 (2020), pp. 225-46.
17
BEIRÃO, José Vianna da Motta: Correspondência (ver nota 15), pp. 60 e 62.
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VIANA DA MOTA E A TRADIÇÃO DO LIED 261
quase um apoio à linha vocal, com uma harmonia também propositadamente simplificada, cujas
melodias têm de facto um carácter muito popular, seja ele genuíno ou do cunho do compositor.
Basta pensar na frase inicial da canção Amores, amores. Viana da Mota recuperará a complexidade
harmónica na canção A luz, de 1910, e voltará a dificultar em muito a vida ao pianista com a
extremamente difícil execução de Verdes são as hortas, de 1936.
Exemplo 6. Viana da Mota, Verdes são as hortas, cc. 40-5, transcrição e edição de João Paulo Santos
Citando Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro na sua História da música: «Como
compositor, Viana da Mota parte de uma aproximação à estética do romantismo alemão e consagra-
se muito em especial à invenção de um estilo que se assume como caracteristicamente nacional,
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262 NUNO VIEIRA DE ALMEIDA
parcialmente baseado numa recriação pessoal do folclore.»18 Este é sobretudo um projecto levado a
cabo entre 1893 e 1896, quando o compositor viveu no seu país natal e acalentou a ideia de nele se
fixar definitivamente.
Esta recriação de um folclore imaginário tem certamente um ponto alto na canção já referida,
Verdes são as hortas, redondilha de Camões, pois o seu tratamento escapa à lógica «portuguesa»
mais simplificada que genericamente preside à construção de todas as outras canções escritas nesta
língua. Depois de três arpejos de introdução, o mote da redondilha é apresentado a cappella pela
voz solista, articulado numa melodia popular de duas frases de quatro compassos cada. A entrada
propriamente dita do piano, excluindo os três arpejos da introdução, é feita depois com um desenho
rápido de oito semicolcheias ao qual Viana da Mota acrescenta (contrariamente a Erfüllung) duas
linhas melódicas, uma no baixo e outra sobre o desenho ininterrupto de semicolcheias (cc. 41-5). O
que torna a canção interessante e única na produção do autor é que essa riqueza no tratamento
pianístico, tanto a nível melódico como harmónico, modifica de alguma forma a quadratura da frase
inicial e impulsiona a canção para um patamar quase impressionista pela forma como o desenho do
piano joga sistematicamente com intervalos de meio tom. Esse impressionismo contraditório de
meio tom, juntamente com a junção de outras vozes no piano, remete-nos mais uma vez para Hugo
Wolf e para Nachtzauber. O círculo está completo.
O cosmopolitismo musical de Viana da Mota também parece evidente nas suas duas romanzas
em italiano, provavelmente fruto da admiração do compositor por Cavalleria rusticana, de Pietro
Mascagni. Esta ópera merece-lhe toda uma longa e entusiástica entrada no diário, a 13 de Junho de
1891, com apenas algumas reservas ao texto do libreto que não obstam a uma apreciação
apaixonada da música, levando-o a afirmar que «na próxima obra que o mundo espera dele
[Mascagni], certamente com uma expectativa de tremente tensão, ele irá ter mais cuidado com a
escolha do texto».19
Conclusão
Toda esta criatividade no domínio do Lied parece ter sido reduzida com a vinda definitiva de Viana da
Mota para Portugal em 1917. A crescente actividade pedagógica, a reforma do ensino no
Conservatório Nacional e as suas apresentações como pianista e director da Orquestra Sinfónica de
Lisboa passaram a ser o cerne da sua actividade. Um factor importante foi a amizade com Luís de
Freitas Branco, vinte e dois anos mais novo. Ambos representantes de escolas diferentes, a alemã e a
18
Rui Vieira NERY e Paulo Ferreira de CASTRO, História da música, Sínteses da Cultura Portuguesa (Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1991), p. 158.
19
BEIRÃO (coord.), José Vianna da Motta: Diários (ver nota 1), p. 785
Portuguese Journal of Musicology, new series, 7/2 (2020) ISSN 2183-8410 http://rpm-ns.pt
VIANA DA MOTA E A TRADIÇÃO DO LIED 263
Nuno Vieira de Almeida tem desenvolvido grande actividade como pianista de Lied. Trabalha com reconhecidos
cantores portugueses e internacionais. Gravou extensivamente repertório português, com destaque para inúmeras
primeiras audições. É actualmente professor na Escola Superior de Música de Lisboa. É doutorado pela
Universidade NOVA de Lisboa em Musicologia Histórica e membro do CESEM / NOVA FCSH.
Revista Portuguesa de Musicologia, nova série, 7/2 (2020) ISSN 2183-8410 http://rpm-ns.pt