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Krahos e Sementes Nativas

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Programa Gestão Pública

e Cidadania

Os Krahós e a reintrodução
de sementes nativas
Luiz Marcelo Vídero Vieira Santos

Versão em formato PDF


finalistas do ciclo de
premiação 1998
Originalmente publicado em:
20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania
Luis Mario Fujiwara, Nelson Luiz Nouvel Alessio
e Marta Ferreira Santos Farah (orgs.)

Copyright © Luis Mario Fujiwara, Nelson Luiz Nouvel Alessio e


Marta Ferreira Santos Farah

Direitos da edição reservados ao


Programa Gestão Pública e Cidadania
Av. 9 de Julho, 2029 – 2º andar da Biblioteca
01313-902 – São Paulo – SP
Tel: (11) 3281-7904 / 3281-7905
Fax: (11) 287-5095
E-mail: [email protected]
http://inovando.fgvsp.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

É permitida a reprodução total ou parcial desta obra, desde que


citada a fonte.

1ª edição – 1999

Revisão dos originais: Nelson Luiz Nouvel Alessio


Revisão: Luis Mario Fujiwara
Consultoria Gráfica: Wilson Barros
Capa: Polo Editor

Versão gráfica em formato PDF: Liria Okoda

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Karl A. Boedecker da


Escola de Administração de Empresas de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP)

20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania/


Luis Mario Fujiwara, Nelson Luiz Nouvel Alessio e Marta Ferreira Santos
Farah (orgs.) / São Paulo:
Programa Gestão Pública e Cidadania 1999

240 p.

1. Projetos comunitários – Brasil. 2. Projetos de desenvolvimento – Brasil.


I. Fujiwara, Luis Mario, 1971 -. II. Alessio, Nelson Luiz Nouvel, 1958 -. III. F arah,
Marta Ferreira Santos, 1952 -. IV. Programa Gestão Pública e Cidadania

CDU-35(81)
Os Krahós e a reintrodução
de sementes nativas
ESTADO DO TOCANTINS

Luiz Marcelo Vídero Vieira Santos1

A história dos Krahós


Os Krahós pertencem ao tronco lingüístico macro-Jê, assim como 1. Economista,
mestrando em
os Timbira, Krikati, Kayapó e outros. Os primeiros registros, datados Administração
do início do século passado, localizam os Krahós na região do Rio Bal- Pública e Governo
pela EAESP/FGV e
sas, no Maranhão. Eles foram migrando por Goiás até se fixarem no associado do LEAD –
Programa para o
que hoje é o nordeste do Tocantins. Sua alimentação é baseada na Desenvolvimento de
Lideranças em Meio
caça, pesca e cultivo de plantas nativas. Sua população atual está esti- Ambiente e

mada em 1500 habitantes, espalhados por 13 aldeias 2 , em uma área Desenvolvimento.

de 3200 km 2 (o tamanho da grande São Paulo), que é considerada a 2. A reserva é da


tribo Krahó. Dentro
última grande área preservada de cerrado do Brasil. dela há diversas
aldeias, que são
Sua história é marcada por tragédias. Nos anos 40, sofreram um formadas por
famílias, chefiadas
massacre comandado por fazendeiros, que queriam expulsar os índios por um cacique.
da região. Muitas aldeias foram destruídas, mas algumas, mais distan-
tes, conseguiram escapar, garantindo a sobrevivência dessa nação indí-
gena. A partir desse episódio, o governo de Getulio Vargas resolveu
4 demarcar a área da reserva indígena, o que ocorreu em 1951, trazendo
paz para os Krahós e iniciando uma fase de relação paternalista entre
os índios e o governo.
Os Krahós têm uma cultura muito rica, chegando a praticar mais de
trezentos rituais, destacando-se o da machadinha de pedra, que, com
idade estimada em mais de 1000 anos, foi recuperada recentemente do
Museu Paulista da Universidade de São Paulo (Museu do Ipiranga).
Em 1949, época em que os Krahós encontravam-se em uma situa-
ção de fragilidade física e moral, um antropólogo alemão havia troca-
3. Para saber um
do essa machadinha por uma arma. Por acaso, em 1987, um outro
pouco mais sobre a antropólogo reconheceu, nas histórias contadas pelos índios mais ve-
cultura e história dos
Krahó, vide a lhos, a machadinha que havia visto no Museu Paulista. Iniciou-se, en-
reportagem de Marina
Amaral, “O tesouro dos tão, uma longa negociação para a devolução da machadinha, que teve
Krahós) na revista
Caros Amigos, ano 1,
lances pitorescos, como quando os índios acamparam em um pátio da
No. 11, fevereiro de
universidade. Após meses de negociação e pressão, reforçada por uma
1998. Outra fonte de
informações utilizada campanha feita pelos estudantes e pela presença da imprensa, final-
foi a Revista de
Atualidade Indígena, mente foi negociada uma forma de “devolver” a machadinha aos
N.º 12, set-out/78 e N.º
13, nov-dez/78. Krahós, sem ferir os estatutos do museu3 .

Do arroz às sementes
Nos anos 70, o governo brasileiro determinou que os índios preci-
savam gerar renda a partir de seus próprios excedentes, de modo a
garantir seu sustento. Incentivou-os, assim, a substituir suas culturas
tradicionais por arroz que, cultivado para venda, geraria renda para a
compra de outros produtos nas cidades vizinhas. Os Krahós foram le-
vados a abandonar suas técnicas seculares, substituindo-as por novas,
desconhecidas e inadequadas aos hábitos e costumes indígenas.
Note-se que até os anos quarenta, antes do massacre, eles produzi-
am excedentes a partir de suas plantações tradicionais, que eram ven-
didas e trocadas por bens de consumo nos armazéns da região. Em
suas festas era comum haver uma grande fartura de alimentos, consu-
midos durante dias em encontros que reuniam diversas aldeias vizi-
nhas. Essa demonstração de fartura espelha o orgulho Krahó, que se
perdeu durante algum tempo, como veremos a seguir.
Infelizmente, por diversos motivos, a estratégia governamental 5
revelou-se equivocada (mea culpa feito inclusive pelos próprios técni-
cos da FUNAI4 ). Sem experiência no manejo do arroz, os índios pas-
saram a enfrentar problemas para os quais não tinham solução. Em
cerca de dois anos a produção caiu vertiginosamente. A renda espera- 4. FUNAI - Fundação
Nacional do Índio.
da não se realizava, levando os Krahós a racionar sua alimentação por
falta de condições de comprar mantimentos na cidade.
Houve também um problema social. Com a introdução do arroz, as
roças familiares foram transformadas em uma grande e única roça co-
munitária. As lavouras familiares funcionavam em regime de consórcio,
enquanto a monocultura de arroz (a roça comunal) passou a funcionar
em regime de mutirão. Daí surgiram vários conflitos, pois os Krahós
perderam as noções de propriedade e da relação entre esforço e resulta-
do alcançado. Nas palavras de Fernando Schiavini, o técnico da FUNAI
que trabalha com os Krahós, “o que é de todos não é de ninguém”. Alguns
trabalhavam mais que outros, mas como não havia meios de aferir o
esforço individual, não havia como fazer uma distribuição proporcio-
nal, gerando descontentamentos e conflitos entre famílias.
Com tudo isso, houve sucessivas quedas na produção e no início
dos anos 80 os Krahós começaram a passar fome, sendo considerados
caso perdido pela FUNAI. Os técnicos federais consideravam que “ti-
nham feito tudo pelos Krahós”, ao proporcionar-lhes as condições para
tornarem-se grandes produtores de arroz.
Como se não bastassem os fatos já narrados, os Krahós - atraídos
pela maior produtividade de variedades híbridas produzidas em labo-
ratório e cultivadas por agricultores locais - foram substituindo pau-
latinamente as variedades nativas cultivadas por seus ancestrais. Os
resultados foram decepcionantes, já que essas espécies eram apropria-
das à industrialização e não ao consumo imediato. Além disso, essa
prática os fazia dependentes da FUNAI que anualmente era obrigada
a fornecer novas sementes híbridas para novo plantio. Para piorar, não
conseguiam voltar às antigas variedades abandonadas, por não terem
como recuperá-las. Foi nesse momento que se estabeleceu o contato
com o banco de sementes do CENARGEN.
6 O banco de germoplasma
O CENARGEN, ou Centro Nacional de Pesquisa de Recursos
Genéticos e Biotecnologia, ligado à EMBRAPA5 , vem fazendo desde
os anos 70 um trabalho sistemático em todo o país de recolhimento de
sementes de plantas nativas, com o intuito de preservá-las e de desen-
5. EMBRAPA - volver pesquisas. A conservação das sementes permite a manutenção
Empresa Brasileira de
Pesquisa da diversidade genética de espécies com importância socioeconômica,
Agropecuária.
atual ou potencial.
6. Estas informações Uma das formas de conservação é a realizada através do Banco
estão presentes no
folder Conservação de Ativo de Germoplasma (BAG). Iniciado em 1976, esse banco, em 1998,
Recursos Genéticos,
do próprio contava com cerca de 68 mil acessos genéticos (sementes e outras par-
CENARGEN.
tes da planta que podem servir à reprodução) de feijão, arroz, cevada,
milho, amendoim, aveia, entre outras espécies, ainda cultivadas ou já
extintas, conservados em embalagens herméticas, mantidas em gran-
des câmaras frias a –25O C.
Esta foi a forma pela qual foram preservadas as sementes nativas
utilizadas pelos Krahós. Colhidas nos anos 70, essas sementes estão
preservadas e vêm sendo paulatinamente reintroduzidas na reserva, de
modo a permitir aos Krahós a retomada de seus antigos hábitos ali-
mentares e culturais.
Essa tipo de “biblioteca genética” ou “banco de dados” de se-
mentes serve para preservar espécies naturais, com características
próprias. Quando se precisa de um determinado atributo, como mai-
or produtividade, resistência ao frio etc., resgatam-se as espécies
com as características desejadas e fazem-se os cruzamentos. Desta
maneira, obtém-se um novo híbrido, que permite um bom resulta-
do na safra, mas que não se reproduz, o que obriga o agricultor a
cultivá-lo indefinidamente.
Muitas espécies não utilizadas hoje, ou que não têm valor co-
mercial, ou que ainda não tenham sido pesquisadas, podem no fu-
turo ser aproveitadas. Nesse sentido, o BAG é fundamental na me-
dida em que garante a riqueza e o melhoramento genéticos. Assim,
coletar o máximo possível de espécies é um dos objetivos e desafios
do CENARGEN 6 .
A entrega das sementes 7
Tendo iniciado sua carreira como técnico da FUNAI em 1974 jun-
to aos Krahós, Fernando Schiavini passou a sentir-se ligado por laços
afetivos a essa tribo. Quando foi convidado a trabalhar com eles em
1982, não teve dúvidas em aceitar. Essa já era uma época difícil, pois
eles começavam a ter dificuldades com a alimentação em virtude dos
problemas com o arroz e com as espécies híbridas. A necessidade de
encontrar uma solução era cada vez mais premente, mas onde obter as
antigas sementes nativas?
Foi de um encontro de Fernando com um técnico do CENARGEN
que surgiu a menção ao banco de sementes. Comunicado da existên-
cia do BAG, Fernando imediatamente buscou maiores informações
sobre o assunto. Isso já nos anos 90, quando a situação dos Krahós já
era considerada um caso perdido pelo governo.
Em 1995, foram entregues as primeiras 50 sementes aos caciques
Krahós, que ficaram responsáveis por plantá-las e disseminá-las pela
reserva. O chamado milho gigante (200g de sementes comestíveis) foi
o escolhido inicialmente. Com espigas finas e compridas, grãos maci-
os e doces, ele se presta ao consumo imediato, o que é feito pelos
índios sob a forma de papas, bolos ou cozidos. Cada família fez sua
roça individual para evitar cruzamento entre as espécies, uma exigên-
cia para que se mantivesse a pureza das espécies nativas.
Em 1996, foram introduzidos o amendoim, a abóbora, a batata-
doce, o inhame, a mandioca e o cará. Além desses, houve também a
introdução de novas culturas (não-tradicionais) que podem dar certo
na região e são facilmente adaptáveis aos hábitos e à cultura Krahó,
como pupunha, coco e açaí.
O objetivo inicial do projeto foi o de buscar uma alternativa para
solucionar o problema da fome na reserva. Posteriormente, observou-
se que também poderia servir de meio de obtenção de renda, através
da negociação dos excedentes produzidos. Mais que isso, observou-se
um ganho cultural, que permitiu a retomada de uma série de tradi-
ções e hábitos que estavam sendo ou já haviam sido abandonados.
Assim, de um objetivo inicial mais modesto, o projeto ganhou cor-
po e força, o que tem permitido que cresça e se torne mais ambicioso,
8 como no caso do plano de estabelecer uma escola dentro da Kapey7 e
de montar uma cooperativa inteiramente administrada pelos índios,
que sirva de ponte para acordos e convênios de cooperação com o go-
verno, organizações não-governamentais, setor privado etc.
Outras iniciativas estão sendo postas em prática. Embora os
7. Os Krahós dividem as
Krahós sejam tradicionais caçadores, hoje em dia já não há caça sufi-
terras da reserva entre
aldeias formadas por ciente para todos, o que exige alternativas, como a criação de gado
famílias, sendo cada
aldeia chefiada por seu para alimentação. Além do gado curraleiro, já existente, há o plano
cacique. Algumas
aldeias reuniram-se e de criação de caprinos e ovinos rústicos - o chamado Programa Arca
formaram a Kapey, que
é uma mistura de
de Noé, da CENARGEN.
conselho e centro Atualmente o projeto funciona em torno da Kapey, que serve de
administrativo. Tem
sede própria, difusor de conhecimentos. Há roças experimentais, viveiros de árvores
coordenador,
administrador da área e frutíferas e uma estação modelo de criação de animais. Para
funciona como uma
cooperativa, onde todos
potencializar todas essas iniciativas, foi criada a Escola Katxêkwÿ8 , que
têm direito a voz e voto.
organiza a transmissão de técnicas de conservação de solo e sementes,
8. Nome de um ser criação de grandes e pequenos animais, o plantio de árvores frutíferas
mitológico representado
por uma estrela-mulher e o uso e conservação de alimentos.
que ensinou a
agricultura ao povo Para o melhor desenvolvimento das propostas, cada aldeia escolhe um
Krahó. Pronuncia-se
Katchekúi.
casal como seu representante. Eles recebem uma quantia em dinheiro
relativa ao tempo que dedicam à escola, passando a ser responsáveis por
aprender as técnicas ensinadas e transmiti-las para suas aldeias.

Métodos utilizados
Os métodos utilizados para a implantação do projeto, principal-
mente em relação à Escola Katxêkwÿ, ainda estão sendo desenvolvi-
dos, demonstrando uma certa dose de empirismo.
Não houve grandes problemas em relação ao cultivo das sementes,
pois são nativas e os mais velhos transmitem aos mais jovens as técni-
cas tradicionais de cultivo. De qualquer forma, sempre houve a pre-
sença de técnicos, dando o apoio necessário à implantação de novas
técnicas e no uso dos equipamentos fornecidos pela FUNAI. Além dis-
so, a própria EMBRAPA tem pessoas que acompanham o desenvolvi-
mento do projeto.
Hoje, além de Fernando Schiavini, há um agrônomo da FUNAI,
que se dedica especificamente a esse projeto Krahó, além de uma
nutricionista, que está tentando trabalhar com a mudança dos hábitos 9
alimentares, de modo a torná-los mais saudáveis. O projeto está evo-
luindo da eliminação da fome para a promoção da saúde.

Fatores de inovação e replicação


O resultado mais importante do projeto talvez seja a recuperação
da autoconfiança dos índios, pela recuperação de sua capacidade de
auto-sustento. Quando eles começaram a perceber que não dependi-
am mais do sucesso da colheita do arroz (evento anual, que estava
sempre sujeito a acidentes de percurso), e que poderiam a qualquer
momento plantar seu próprio alimento, garantindo a vida de suas fa-
mílias, tornaram-se mais confiantes e restauraram o orgulho perdido
nos tempos de fome.
Isso permitiu a retomada de uma série de tradições ligadas à co-
mida, como festas, cantos e rituais, servindo de exemplo para outras
nações. Muitos dos rituais dos índios Krahó estão relacionados à ali-
mentação, desde a busca do alimento ou sua produção, passando pelo
agradecimento pela fartura, chegando aos próprios alimentos, cada
qual com sua própria canção.
O projeto também apresenta uma utilização prática para o banco
de germoplasma (ou BAG) do CENARGEN. Uma iniciativa extrema-
mente louvável, que tem um grande potencial de utilização, tanto em
pesquisas quanto na agricultura, mas que ainda é subtilizado. A expe-
riência Krahó representou um exemplo de uso rico e produtivo do
material do BAG, abrindo perspectivas de maior cooperação entre
EMBRAPA e FUNAI.
Outro ponto importante do projeto é seu potencial de multiplica-
ção, uma vez que não se exigem altos investimentos para sua implan-
tação. Por trabalhar com sementes nativas, o projeto pode ser facil-
mente adaptado a outras reservas ou assentamentos de terra.
Um resultado importante é que o projeto acabou por gerar um
dos raros exemplos de movimento “de baixo para cima” dentro da
história recente dos índios. Com o sucesso da experiência Krahó,
outras tribos próximas tomaram conhecimento da experiência, par-
10 ticipam da feira anual de troca de sementes e estão começando a
pressionar a FUNAI e a EMBRAPA para implantar um programa se-
melhante em suas reservas.
Além disso, é um grande exemplo de exercício de cidadania e de
luta da sociedade organizada por seus direitos, em especial por se tra-
tar de índios, sistematicamente tratados pelo sistema legal e pelo go-
verno como crianças.

Objetivos gerais e metas específicas já alcançadas


Como já comentado, o projeto iniciou-se como estratégia de
enfrentamento da fome na reserva Krahó. Com a sua implantação,
notou-se que os resultados foram muito além do esperado, atingindo a
questão social e cultural dos índios, o que estimulou os técnicos a irem
mais longe.
Atualmente a questão da fome está sendo equacionada. Se ainda
não há fartura ou excedente, a situação é muito mais tranqüila do que
na virada da década passada para esta. A tendência é de melhora pau-
latina dos níveis de produção e de alimentação. Um trabalho específi-
co na área da saúde será o próximo passo a ser dado, com a presença de
uma nutricionista na aldeia.
O projeto vem crescendo e incorporando novas idéias como a da
Escola Katxêkwÿ. Nessa escola, além de aprenderem o manejo de cul-
turas, os índios poderão aprender outras práticas que possam garantir
o seu sustento no futuro, a exemplo do manejo do gado. Eles também
aprenderão algumas noções de contabilidade, finanças (já existe um
tesoureiro na Kapey), e administração, que permitam melhorar o rela-
cionamento institucional com outros atores sociais.
Com o sucesso da organização da Kapey, pensa-se na possibilidade
de criar uma cooperativa formada pelas aldeias, administrada e coor-
denada pelos próprios índios. Esta organização seria responsável pela
relação da reserva com o meio externo, principalmente nas questões
econômicas, contando sempre com a colaboração da FUNAI. A idéia é
estabelecer relações de cooperação e não de paternalismo.
Orçamento anual, captação e fontes de recursos 11
O projeto conta com a alocação de recursos orçamentários da
FUNAI e da EMBRAPA, graças ao convênio assinado por ambas em
maio de 1997. Foram R$ 134.800,00 vindos da FUNAI e cerca de R$
30.000,00, da EMBRAPA, permitindo o envio de técnicos e pesquisa-
dores à área Krahó, para a identificação de demandas, reintrodução do
material genético e realização de seminários.
A EMBRAPA colabora com a identificação e fornecimento do ma-
terial genético e o envio de técnicos para avaliação do andamento do
projeto em colaboração com os técnicos da FUNAI. Além disso, desen-
volvem-se pesquisas que podem ser repassadas para a Kapey. Atualmen-
te oito técnicos de cada instituição estão envolvidas no projeto.
O objetivo é que, dentro de três a cinco anos, o projeto seja auto-
sustentável financeiramente, através da venda dos produtos gerados na
própria reserva. Essa expectativa - apresentada por Fernando e Carlos,
ambos da FUNAI - não foi respaldada por dados e nem é oficial.

O gerenciamento do projeto
A gerência do projeto era basicamente da FUNAI (representada
pela administração do órgão em Araguaína), através do técnico
Fernando Schiavini. Com o tempo, os Krahós, organizados na Kapey,
têm aumentado sua participação, inclusive na gestão financeira. Hoje,
eles participam do planejamento, execução, avaliação e administração
dos recursos junto com a FUNAI. Um representante de cada entidade
(Kapey e FUNAI) assina o pedido de liberação de recursos e de aquisi-
ção de bens e serviços. A EMBRAPA responde às requisições do coor-
denador do projeto – Milton Krahó, coordenador da Kàpey - quando
este solicita materiais para a aldeia.
O objetivo é que no futuro os Krahós possam gerir o programa
independentemente. Para tanto, deverão montar uma estrutura
organizacional em forma de cooperativa, cumprir determinadas exi-
gências jurídicas e burocráticas, tornando-se parceiros formais da
FUNAI e EMBRAPA.
12 É desejo dos índios eliminar a relação paternalista de antes, substi-
tuindo-a por uma relação de cooperação com os técnicos do governo,
na qual eles possam ter condições de decidir sobre suas vidas.
Isso de certa forma também é um reflexo da mudança de postura
dos Krahós após a introdução das sementes. Refeitos de sucessivos
golpes, hoje eles vislumbram possibilidades reais de retorno a seus
melhores tempos, retratados nas histórias dos mais velhos. Se ainda
não conseguiram chegar a níveis excepcionais de autonomia e qualida-
de de vida (segundo seus próprios conceitos), eles têm certeza de que,
com seu trabalho, isso é só uma questão de tempo.
Por sua vez, a FUNAI ainda age com reservas em relação à inde-
pendência da gestão indígena, o que de certa forma reflete toda sua
história e razão de existência. É evidente que se trata de um processo
de aprendizado para a própria instituição, que está sendo forçada a
mudar suas concepções, cultura, hábitos e sua relação com os índios.
Ela deve abandonar a postura paternalista e desagregadora, para bus-
car um efeito multiplicador e inovador em sua ação.

Conclusão
A conclusão só pode ser muito positiva. A despeito dos problemas
(e das polêmicas) existentes, deu-se um importante passo em vários
sentidos: na sustentabilidade física dos índios e econômica da reserva;
na valorização da cultura indígena; na utilização dos recursos indíge-
nas de forma consciente; no incentivo à formação de um movimento
independente indígena (pelo menos dentro da reserva Krahó, que está
se tornando conhecida em outras reservas por essa experiência), e na
relação entre índios, governo e instituições, só para resumir alguns pon-
tos relevantes.
Dentre as polêmicas, uma das mais importantes e críticas é a do
convênio assinado pela EMBRAPA e a FUNAI, que permite a utiliza-
ção de recursos genéticos para pesquisa e intercâmbio com entidades
no exterior. As duas entidades defendem que estes recursos genéticos
são os destinados à alimentação e à agricultura, pertencentes a espéci-
es conhecidas. Estariam excluídas as espécies ligadas ao ramo farma-
cêutico e as ervas curativas, que são o centro das discussões sobre a 13
propriedade industrial em todo o mundo.
Os críticos (principalmente organizações de defesa dos índios e
setores que vêm acompanhando a questão da regulamentação do acesso
e uso de recursos genéticos no país) argumentam que não há previsão
de autorização dos índios para a cessão a terceiros dos direitos de uso
de seus recursos naturais. Além disso, eles não terão controle ou qual-
quer compensação econômica por esse uso, o que é confirmado por
técnicos da EMBRAPA.
Quanto a questões metodológicas, é necessário sempre estar re-
pensando o projeto como um todo, de preferência incorporando ou-
tros atores na discussão, o que a tornará mais rica. Não existem fórmu-
las prontas, especialmente quando se trata de diversos atores indepen-
dentes (os índios, o governo, as instituições, a sociedade civil etc.), o
que reforça a necessidade de revisão sistemática do rumo a seguir.
Outro problema está na incoerência e desconhecimento do pró-
prio governo sobre o que acontece dentro de sua estrutura. Se, por um
lado, este projeto indica uma possível solução para problemas em re-
servas, assentamentos e ocupação de terras em todo o Centro-Oeste,
Nordeste e Norte, por outro, o governo aponta a região como a nova
fronteira da soja, repetindo o erro cometido com o arroz nos anos 70,
com o risco de acentuar-se o processo de desertificação na região.

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