spp-2439 (1)
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82 | 2016
SPP 82
Édition électronique
URL : http://journals.openedition.org/spp/2439
ISSN : 2182-7907
Éditeur
Mundos Sociais
Édition imprimée
ISBN : 0873-6529
ISSN : 0873-6529
Référence électronique
Sociologia, Problemas e Práticas, 82 | 2016, « SPP 82 » [En ligne], mis en ligne le 13 octobre 2016,
consulté le 20 avril 2020. URL : http://journals.openedition.org/spp/2439
SOMMAIRE
Artigos
“Se estava tudo bem, porque é que eu havia de ir a uma obstetra?”: identidade, risco e
consumo de tecnologia médica no parto domiciliar em Portugal
Mário J. D. S. Santos et Amélia Augusto
Normas face ao género e à diversidade sexual: mudanças inacabadas nos discursos juvenis
Dulce Morgado Neves
Recensões
Artigos
Pedro Abrantes
leitura mais fina, o autor observa diversas referências implícitas a aspetos da natureza
para explicar as ações em sociedade, como a necessidade de alimentação, de segurança,
de integração, os impulsos agressivos, os sentimentos de medo, vergonha ou orgulho, a
fuga a sanções e a agressões ou a busca de recompensas e de bem-estar. Como conclui, a
natureza humana é o elefante invisível na sala da sociologia.
4 Num estudo sobre o modo como a socialização tem sido abordada em 16 revistas
internacionais de referência, no campo sociológico, pude apurar que, não constituindo
um tema central na agenda da investigação, a socialização surge como fator explicativo
de um conjunto diversificado de fenómenos, como a participação política e cívica, a
etnicidade e o desvio, a religião e os valores, as estruturas familiares e a identidade de
género, o percurso educativo e a integração laboral, as histórias de vida e as memórias
coletivas, a reprodução e a mobilidade social.1 Tal como se aprofundou anteriormente
(Abrantes, 2011), entendemos a socialização como o processo através do qual os
indivíduos, ao longo da vida, participam na vida e, simultaneamente, incorporam um
conjunto de referências que potenciam essa participação, incluindo linguagens,
conhecimentos, crenças, valores, disposições, etc.
5 Uma observação dos quadros teóricos destes estudos não deixa de revelar uma
significativa fragmentação das referências e, em muitos casos, uma “subteorização” do
conceito de socialização. Obras fundamentais no ensino da sociologia, tais como as de
Durkheim (1968 [1922]), Parsons (1968 [1951]) ou Berger e Luckmann (1998 [1966]),
estão praticamente ausentes dos artigos analisados, sendo Pierre Bourdieu o que
recolhe um maior número de referências sobre o tema — autor que curiosamente não
produziu teoria sobre a socialização como tal. Por seu lado, existe uma utilização
frequente de referências de outros campos disciplinares, com particular destaque para
a teoria da aprendizagem social de Albert Bandura (1977) que, sendo uma perspetiva
consagrada na psicologia, assenta na ideia de que o comportamento e a cognição se
desenvolvem, fundamentalmente, em resultado de estímulos, recompensas e reforços.
Será este o elefante que queremos?
6 Entretanto, alguns sociólogos têm vindo a desenvolver notavelmente o conceito de
socialização (Lahire, 2002 e 2005; Dubar, 2005; Darmon, 2007), sendo já referências
importantes para alguns dos trabalhos recenseados. Estas teorizações, ora tecem duras
críticas às pseudoexplicações do social provenientes da genética, da sociobiologia ou
das “ciências cognitivas”, ora recuperam autores clássicos da psicologia, sobretudo
Freud e Piaget, com os quais, aliás, já haviam estabelecido um diálogo, mais ou menos
explícito, as referidas obras de Durkheim, Parsons ou Berger e Luckmann. Se é certo
que Freud e Piaget produziram contributos de uma riqueza inesgotável, este debate não
dispensa uma atualização permanente, de parte a parte. Neste sentido, será importante
reconhecer que, nas últimas décadas, se registaram enormes avanços no conhecimento
sobre o funcionamento da mente humana, nomeadamente no campo das neurociências.
Muitos destes estudos utilizam hoje conceitos como disposição, identidade ou eu (self),
que são centrais na nossa disciplina, e inclusive têm providenciado à opinião pública
explicações para diversos fenómenos sociais.
7 O impacto público destas démarches — que têm descurado, por seu lado, o grande
volume de trabalho sociológico, elaborando explicações do social pelo biológico —
comporta um sério risco de subalternização da sociologia, sobretudo nos domínios das
ciências cognitivas e educacionais, mas não só, bem como de “tecnologização” da
investigação e naturalização dos processos sociais — incluindo uma negligência acerca
Perceções e disposições
9 Pesquisas recentes em neurociências têm mostrado que, longe de ser apreendida de
forma imediata ou de ser determinada pela genética, a perceção que temos do nosso
interior e, sobretudo, do mundo exterior é fortemente condicionada pelas nossas
experiências passadas, devido à notável plasticidade do cérebro. A este propósito, as
nossas capacidades percetivas, apesar de ocuparem uma grande parte do cérebro, são
muito escassas à nascença e, assim permanecem, se não forem estimuladas desde uma
idade precoce.
10 Mesmo na idade adulta, a nossa capacidade percetiva imediata permanece
relativamente limitada e implica grandes gastos de energia. A perceção (visual,
auditiva, etc.) que temos de uma dada situação depende, em grande medida, das
experiências anteriores e daquilo que estamos motivados para alcançar. As cirurgias
que têm restituído a visão a adultos cegos revelam, precisamente, as enormes
dificuldades iniciais de interpretação e de processamento da informação visual,
afetando a capacidade de identificar os objetos e o seu movimento, o que, em alguns
casos, pode provocar danos cerebrais profundos (Sacks, 1996). Desde a infância,
construímos, testamos e ajustamos continuamente suposições acerca da realidade, o
que nos permite, a cada momento, focar-nos apenas nos aspetos que nos parecem
fundamentais e que não correspondem aos mapas mentais previamente incorporados
(Eagleman, 2012). Essas inferências não são apenas um conjunto de elementos
memorizados de vivências anteriores, mas são, sobretudo, “narrativas” complexas
sobre a nossa relação com o mundo, associadas a reações emocionais, juízos morais,
nexos de causalidade e cálculos de probabilidade (Volpi, 2007).
11 Importa dizer que estes processos ocorrem a um nível inconsciente, orientados pela (e
para a) prática, ativando um naipe alargado de perceções involuntárias, de memórias
implícitas e de reações intuitivas. A prática permite assim inscrever um enorme volume
de conhecimento no “espaço disposicional” — por vezes, designado também “memória
palestras ou ações de formação, dado que algumas delas implicam a estimulação desde
uma idade precoce ou apenas se desenvolvem em “períodos críticos” do
desenvolvimento do corpo, pelo menos para obter performances socialmente
distinguidas (Skrzypczak, 1996; Li, 2009). Inclusive, a ausência de certos nutrientes e
estímulos (ou a exposição em excesso a outros) — que sabemos associados a condições e
estilos de vida —, em especial, durante a gravidez e a infância, podem provocar danos
irreversíveis nos sistemas percetivos e de memória implícita (Handel, Cahill e Elkin,
2007).
17 Além disso, a socialização representa um encadeamento (e não apenas uma
justaposição) de processos (Darmon, 2007). As noções de socialização primária e
secundária representam uma primeira aproximação a este fenómeno, mas é evidente
que precisamos de aprofundar a questão. Sabemos hoje, por exemplo, que as áreas
neuronais responsáveis pela produção da consciência (o eu autobiográfico) são mais
lentas a desenvolver-se, o que pode explicar alguns elementos específicos das culturas
infantis e juvenis. E sabemos que, ao longo da vida, a rigidez do cérebro vai
aumentando, o que promove processos de hysteresis (Bourdieu, 1987), enquanto a
incidência de doenças degenerativas (“dessocializadoras”) vai aumentando, o que não é
independente dos contextos e estilos de vida.
18 Contudo, os sociólogos devem também ter presente que a investigação em
neurociências não tem revelado a existência de qualquer sistema unificado ou coerente,
gerador sistemático de práticas e representações, que funcione de forma independente
da produção de significados (ou que controle essa produção). Embora este seja um
campo em que muito está por descobrir, os avanços recentes parecem apontar, ao
invés, para uma multiplicidade de sistemas disposicionais, em constante interação, mas
com claras tensões entre si, sendo a sua harmonização um trabalho, sempre precário e
a posteriori, realizado pelo eu (ver adiante o ponto “Consciência e reflexividade”). Assim,
além da pluralidade das disposições que estão associadas aos diferentes contextos de
vida e cuja transferência não é um dado adquirido (Lahire, 2002), torna-se igualmente
importante que os sociólogos assumam que as próprias mentes são plurais, explorando,
por exemplo, as diferenças, conflitos e negociações entre múltiplos processos mentais,
configurados por diversas forças sociais. Por exemplo, estudar as relações entre as
disposições rotinizadas e as elaborações conscientes, entre processos emocionais e
racionais, entre desejos de curto e de longo prazo, entre memória quotidiana e
memória dramática, entre lado direito e esquerdo do cérebro. A investigação das
neurociências já tem produzido algum conhecimento nesta área (Eagleman, 2012), mas
assumindo com frequência que, pelo menos, os primeiros elementos destes pares são
biológicos (e simplificando frequentemente a dimensão social dos segundos). Se
atendermos, por exemplo, ao modelo de “inteligências múltiplas” de Gardner (1995),
temos sete distintas capacidades que se desenvolvem de forma autónoma, todas elas em
interação com os quadros estruturais, culturais e relacionais específicos em que os
indivíduos são socializados ao longo da vida. Os sociólogos podem efetivamente
reconhecer as forças sociais que atuam na produção destes distintos mecanismos, bem
como estudar os modos (socialmente construídos) de articulação (ou “negociação”)
entre eles.
Emoções e relações
19 A investigação recente no campo das neurociências tem revelado a importância das
emoções na regulação da vida humana, em questões fundamentais como a conservação
e ativação das memórias (aprendizagem), os processos de tomadas de decisão ou a
própria construção do eu. António Damásio (1995 e 2011) é uma das principais
referências mundiais, a este respeito, tendo questionado o dualismo clássico entre
mente e corpo, ao demonstrar o modo como as emoções, estando orientadas para a
homeostase, constituem elementos fundamentais na regulação do corpo, mas também
nos processos cognitivos e de tomada de decisão dos seres humanos. Em vez de reações
instintivas e irracionais, as emoções permitem-nos, em pouco tempo, aceder à memória
implícita, combinar inúmeras variáveis e tomar decisões eficazes para o nosso bem-
estar pessoal (mesmo que não as consigamos explicar, senão por referência à intuição).
20 O autor português distingue emoções básicas (dor, prazer, medo, nojo, etc.) e emoções
sociais (vergonha, orgulho, desprezo, etc.), atribuindo uma menor importância a estas
últimas, como criação evolutiva recente e pouco profunda, em termos neurológicos.
Diferencia também emoções e sentimentos, considerando que estes últimos são
interpretações conscientes, culturalmente situadas, das reações emocionais. No
entanto, Damásio (2011) reconhece que as emoções sociais são criadas nas mesmas
regiões que as emoções básicas, envolvendo processos cerebrais profundos e
intimamente associados à construção do eu. Assim, uma emoção social como o
desprezo, por exemplo, constitui uma apropriação social de uma repulsa biológica (o
nojo).
21 Na linha de autores como Durkheim, Goffman ou Bourdieu, os avanços recentes no
campo da sociologia das emoções têm colocado em causa este mapa conceptual, ao
mostrar como os padrões culturais, as estruturas sociais e os quadros de interação têm
um impacto profundo, não apenas nos sentimentos, mas também nos dispositivos e
registos emocionais dos indivíduos, incluindo as emoções mais básicas. A diferença (e
tensão) entre as emoções geradas, de forma espontânea, nomeadamente no âmbito das
relações de poder, e a capacidade dos seres humanos de gerirem essas emoções, a partir
de “guiões culturais” incorporados em processos de socialização (também eles
profundamente assimétricos), constitui um dos temas em foco em muitos destes
trabalhos (Turner e Stets, 2006; Handel, Cahill e Elkin, 2007).
22 Além disso, tal como nota Dores (2005), a ideia em voga nas neurociências de que os
desenvolvimentos culturais derivam dos mecanismos biológicos de homeostase e
seleção natural é controversa, pois parece não reconhecer que a vida social tem lógicas
próprias e que não tendem, necessariamente, para o equilíbrio ou a preservação da
espécie. Curiosamente, o neurocientista Eagleman (2012) percorre o caminho inverso —
igualmente polémico — ao defender que a mente humana tem um conjunto de
propriedades que habitualmente atribuímos às sociedades, como é o caso da existência
de diversas forças que estabelecem relações de cooperação, concorrência, conflito e
negociação entre si.
23 Todavia, como sociólogos, devemos ter em consideração que as emoções são elementos
fundamentais na produção e ativação de memórias, na construção do eu e, por
conseguinte, nos processos de socialização.
Consciência e reflexividade
29 A investigação em neurociências tem também produzido importantes avanços no
estudo da consciência, mostrando que esta é um produto do cérebro e, especificamente,
de uma combinação entre genes e experiências, ao longo da vida. Embora reconheçam
que uma grande parte das operações mentais permanece inconsciente, o que, aliás,
contribui para a sua eficácia, autores como Damásio (2011) ou Eagleman (2012) notam
que a consciência significou um passo fundamental na evolução da espécie, permitindo-
lhe enormes ganhos de regulação, adaptação e dominação, incluindo o
desenvolvimento de estruturas simbólicas cada vez mais complexas e abstratas.
30 Segundo estes autores, a consciência é o maestro que permite coordenar os diversos
circuitos disposicionais e imagéticos, construindo um conhecimento mais sofisticado e
abstrato acerca do eu e do mundo exterior, com vantagens na interpretação das
situações e na regulação das ações. Visto que, em cada momento, o volume de
informação que conseguimos reter na consciência é limitado, as emoções produzem
marcadores acerca dos elementos que são decisivos e com os quais as disposições não
estão a conseguir lidar, nos quais, portanto, a consciência deve focar-se. Importa notar
que a consciência não se forma numa região específica do cérebro, mas em circuitos
neurais complexos que articulam diferentes regiões. Porém, existem efetivamente
especificidades próprias na ativação da consciência, evidentes nos casos de acidentes e
anomalias que inviabilizam a utilização de certas áreas, mas também nas diversas
situações quotidianas, vividas por qualquer indivíduo, em que os sistemas
disposicionais e conscientes não coincidem.
31 Damásio (2011) caracteriza três etapas do desenvolvimento da consciência. Na base,
encontra-se o proto-eu, composto por sentimentos primordiais acerca do próprio corpo
(por exemplo, a consciência de ter fome). Num segundo momento, desenvolve-se o eu
nuclear, enquanto um reconhecimento (uma narrativa coerente acerca) da relação
imediata entre o corpo e o meio exterior (a consciência do aqui e agora). No terceiro
momento, forma-se o eu autobiográfico, assente na capacidade de relacionar as
experiências ocorridas ao longo da vida, através de uma coordenação e evocação das
memórias de longo prazo. Um duplo processo de ajustamento está, permanentemente,
em curso: o presente (o aqui e agora) é interpretado à luz do passado, mas o passado
36 Por seu lado, tal como a importância das disposições desafia as perspetivas sociológicas
mais racionalistas, os estudos sobre a consciência não deixam de colocar em causa as
teorias mais “disposicionalistas”, em que as ações individuais são “orquestradas sem
serem o produto da atividade organizadora de um maestro”, nas palavras de Bourdieu
(1987: 193). Sendo as disposições incorporadas, em grande medida de forma
inconsciente, em diferentes contextos e etapas de vida, sem haver uma necessária
coerência e transferência entre si (Lahire, 2002), existe efetivamente uma consciência
(o tal maestro) que procura permanentemente (re)construir uma narrativa única e
consistente, mesmo que provisória e precária, acerca do eu e do mundo envolvente, a
partir da evocação de memórias produzidas em diferentes experiências vividas,
impondo uma certa ordem sobre a pluralidade disposicional.
37 No seu tratado sobre o processo de socialização, Muriel Darmon (2007) distingue
precisamente dois mecanismos distintos, nem sempre coerentes: um ocorrendo ao nível
do corpo, o outro ocorrendo ao nível da linguagem (ambos ocorrem no cérebro, mas em
processos distintos). O autor assume que a socialização, sendo fundamental para a
constituição da consciência, inclui hoje uma dimensão de “trabalho sobre si”,
parcialmente orientado pela intencionalidade individual.
38 É neste ponto que será importante reequacionar a já conhecida crítica ao conceito de
habitus, pela pouca importância atribuída à consciência e, em particular, à
racionalidade (Casanova, 1995). Afastando-nos de noções naturalistas da racionalidade,
importa, contudo, investigar o peso de certas operações mentais, assentes em
princípios abstratos e universalistas (o que não significa universais), associados a
princípios morais (aquilo que é correto, legítimo e eficaz) e incorporados através de
processos de socialização específicos e prolongados no tempo (com destaque para os
sistemas educativos e meios de comunicação social, mas não só), na forma como os
indivíduos vivem, pensam e agem, nas sociedades contemporâneas (mesmo quando isso
os prejudica ou oprime, objetivamente).
39 Contudo, a referida conceção de três distintos níveis na formação da consciência abre
também espaço à discussão acerca de possíveis divergências e tensões entre eles. Como
nota Sacks (1996), sendo a consciência autobiográfica constituída em forte associação
com os mecanismos emocionais, há traumas e bloqueios psicológicos provocados pela
incapacidade de integrar certas memórias ou perceções na restante narrativa
autobiográfica. Daí que as pessoas possam tornar-se resistentes a aprender com certas
experiências. Aliás, este é um dos princípios fundamentais da psicanálise, na sua busca
por tornar conscientes as memórias que permanecem reprimidas, afetando os estados
mentais, as perceções e os comportamentos dos indivíduos.
40 A este propósito, a par dos estudos mais circunscritos à formação de certas disposições,
valores ou identidades, tem-se desenvolvido uma linha de estudos sobre a “socialização
autobiográfica”, consolidando a ideia de que a história de vida (incluindo a sua
dimensão prospetiva) constitui um stock estável e duradouro de (auto)conhecimento,
mesmo em períodos de grande transformação sócio-histórica, como foi o caso da
transição para o capitalismo e para a democracia liberal, na Europa de Leste (Hoerning
e Alheit, 1995; Kupferberg, 1998). Mas a relação entre socialização situacional e
autobiográfica requer maior investigação, de preferência interdisciplinar. Na sua obra
dedicada ao processo de socialização, Claude Dubar (2005) distingue precisamente a
construção de uma “identidade relacional”, baseada no aqui e agora (ou seja, variável
consoante o momento e o contexto de vida), e uma “identidade autobiográfica”,
enquanto uma narrativa mais estável e que relaciona as diferentes etapas e contextos
da vida individual, mas não explora, nem teórica nem empiricamente, as relações (e
conflitos) entre elas.
Notas conclusivas
41 Ao longo do presente artigo, estabelecem-se algumas pontes entre a investigação
recente em sociologia e em neurociências, em particular sobre os processos de
socialização. Importa notar que este diálogo não nos permite estabelecer qualquer
princípio comum que permita explicar o social pelo biológico (ou vice-versa). Desta
forma, procura-se mostrar como um conhecimento recíproco atualizado é útil para o
desenvolvimento de ambas as áreas, desde que se respeitem as especificidades teóricas
e metodológicas de cada uma delas.
42 Um dos principais obstáculos a uma abordagem interdisciplinar encontra-se,
precisamente, nas divergências metodológicas. Mesmo que seja possível construir um
quadro teórico em que se articulem conceitos e resultados de investigação de ambas as
áreas, os protocolos metodológicos considerados válidos, em cada uma delas,
permanecem claramente diferenciados (Brown e Seligman, 2009). Ainda assim, a
crescente importância, atribuída em ambos os campos às abordagens biográficas
constitui uma base promissora para futuras aproximações entre os dois campos.
43 A estruturação do artigo em três domínios não pretende, obviamente, abarcar todas as
questões em que esta relação entre neurociências e sociologia pode ser explorada. Além
disso, devemos sublinhar que as disposições, as emoções e a consciência não são
geradas em áreas bem delimitadas do cérebro e funcionam de forma profundamente
interligada, na grande maioria das situações. Por seu lado, nenhum destes domínios é
mais biológico ou mais social do que outros.
44 Contudo, procurámos ao longo do artigo mostrar que, em termos analíticos, existem
vantagens em distinguir estes três domínios, no sentido em que efetivamente eles
podem ativar circuitos neurais distintos, forças sociais diferentes e tipos de ação
divergentes. Busquei, desta forma, contribuir para que, após o reconhecimento de que
vivemos em sociedades plurais e de que somos, nós próprios, atores plurais, enquanto
sociólogos, estudemos também as implicações de possuirmos mentes plurais.
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NOTAS
1. O período analisado foi de 1991 a 2012 e as revistas consideradas foram: Acta Sociologica,
American Journal of Sociology, American Sociological Review, Annual Review of Sociology,
Current Sociology, European Journal of Social Theory, European Sociological Review,
International Sociology, Journal of Sociology, Social Forces, Sociological Perspectives,
Sociological Quarterly, Sociological Research Online, Sociological Review, Sociological Spectrum e
Sociology. O principal critério para a construção desta amostra de artigos foi o facto de a palavra
“socialização” surgir no título, nas palavras-chave ou no resumo. Foram identificados e
analisados os 75 artigos nos quais a socialização constitui um dos temas centrais do trabalho, o
que corresponde a cerca de 1% do universo dos artigos publicados nestas revistas naquele
período.
RESUMOS
O artigo apresenta um diálogo entre perspetivas atuais, nos campos da sociologia e das
neurociências, em torno dos processos de socialização, observando tensões e hiatos, mas também
convergências e pistas para um desenvolvimento científico assente na cooperação
interdisciplinar. Esta discussão centra-se em três domínios profundamente interligados:
perceções e disposições; emoções e relações; consciência e reflexividade. Advoga-se que avanços
recentes no campo das neurociências são valiosos para o desenvolvimento do conhecimento
sociológico e vice-versa, nomeadamente numa questão central para ambos: o modo como
desenvolvemos (e articulamos) disposições e um eu autobiográfico, a partir das experiências que
vivemos.
The article provides a dialogue between current perspectives, in the fields of sociology and
neurosciences, over the socialization processes, stressing tensions and gaps, but also some
convergences and clues for a scientific development based on interdisciplinary cooperation. Such
discussion is focused on three intertwined topics: perceptions and dispositions; emotions and
relations; conscience and reflexivity. I argue that recent findings in neurosciences are valuable
for an advance of the sociological knowledge (and vice versa), especially on a central question for
both: the way people develop (and combine) dispositions and a biographical self, based on lived
experiences.
Cet article présente un dialogue entre les approches actuelles, dans les champs de la sociologie et
des neurosciences, autour des processus de socialisation, en observant les tensions et les
cassures, mais aussi les convergences et les pistes pour un développement scientifique fondé sur
la coopération interdisciplinaire. Ce débat est axé sur trois domaines profondément reliés entre
eux: perceptions et dispositions; émotions et relations; conscience et réflexivité. L’article
soutient que les avancées récentes dans le domaine des neurosciences sont précieuses pour le
développement de la connaissance sociologique et vice-versa, surtout sur une question centrale
pour les deux: la façon dont nous développons et (articulons) des dispositions et un moi
autobiographique, à partir des expériences que nous vivons.
Este artículo presenta un diálogo entre las perspectivas actuales en el campo de la sociología y las
neurociencias en relación a los procesos de socialización observando tensiones y huecos, así
ÍNDICE
Palabras claves: habitus, disposiciones, emociones, conciencia
Palavras-chave: habitus, disposições, emoções, consciência
Keywords: habitus, dispositions, emotions, conscience
Mots-clés: habitus, dispositions, émotions, conscience
AUTOR
PEDRO ABRANTES
Professor da Universidade Aberta e investigador do Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail:
[email protected]
Introdução
1 Nos últimos anos temos assistido, em diferentes contextos geográficos, ao
aparecimento de formas novas e inesperadas de mobilização coletiva e de ativismo.
Entre os aspetos inovadores encontra-se a utilização de equipamentos e média digitais
como recursos cruciais para a participação política e cívica. Em tempos de crise
económica e turbulência social, estas novas ferramentas tecnológicas e meios de
comunicação têm-se afigurado particularmente relevantes para exprimir
reivindicações e organizar o protesto, favorecendo o surgimento de formas de
mobilização informal (leia-se extrainstitucional) da ação política e cívica. Nestas
práticas os jovens têm tido um papel proeminente, embora não exclusivo, enquanto
rosto visível do descontentamento generalizado, como atestam as recentes
manifestações públicas a que assistimos em Portugal e noutros países. Os protestos de
2011 na Tunísia ou no Egito são um bom exemplo disso, do mesmo modo que o
movimento de “Los Indignados” em Espanha, no mesmo ano, também testemunha a
mesma tendência. Não por acaso, em Portugal, a manifestação denominada “Geração à
rasca”, que ocorreu a 12 de março de 2011, e que tem sido considerada uma das mais
marcantes da sociedade portuguesa dos últimos anos, teve os jovens como
protagonistas, tendo sido notada por diversos autores como um momento de viragem
para um novo ciclo de protesto (Baumgarten, 2013; Accornero e Pinto, 2015; Estanque,
Costa e Soeiro, 2013).
2 Podemos situar a manifestação da “Geração à rasca” num ciclo de protesto mais amplo
que se intensificou durante o ano de 2012, tendo culminado na primeira metade de
2013, para depois sofrer uma diminuição progressiva que continuou durante todo o ano
de 2014. Este ciclo é caracterizado por um reportório de ação diversificado, que inclui
grandes manifestações com impacto público, marchas, assembleias, ocupação de
espaços públicos, sit-ins, etc. Com efeito, desde 2011, emergiram no país o que podemos
designar “novíssimos movimentos sociais” (Feixa, Pereira e Juris, 2009) em torno de
ações de protesto específicas sob a reivindicação geral da “luta contra as medidas de
austeridade” desencadeadas pela crise económica e financeira. A agudização da crise
conduziu ao resgate financeiro, em 2012, com a intervenção do Fundo Monetário
Internacional (FMI), do Banco Central Europeu (BCE) e da Comissão Europeia (CE), que
passaram a ser popularmente conhecidos como “Troika”. Atendendo à fraca tradição de
envolvimento político e participação cívica da população portuguesa (Cabral, 2014;
Mendes e Seixas, 2005), os protestos atuais surgem como um momento significativo de
viragem numa paisagem de participação pública relativamente inexpressiva,
inaugurando o que pode ser designado “um novo ciclo de contenção” caracterizado por
uma nova estrutura de oportunidades políticas (Tarrow, 2011).
3 Este artigo baseia-se num projeto realizado entre 2014 e 2015, 1 que procurou articular o
uso dos média digitais com as formas de ativismo e participação pública dos jovens em
Portugal. Este projeto não trata diretamente de todo o período de movimentação social
e política mais recente, embora tenhamos de reconhecer que este horizonte temporal
mais amplo se encontra presente na informação recolhida e é algo que tem implicações
óbvias nos resultados que aqui apresentamos. Metodologicamente este projeto adotou
uma abordagem de natureza qualitativa, envolvendo uma pesquisa online (análise de
plataformas digitais) e off-line (entrevistas aprofundadas, observação de eventos, etc.).
Neste artigo analisaremos, por um lado, o uso das tecnologias digitais no ativismo,
procurando articulá-las com um conjunto de dimensões do “trabalho ativista” e, por
outro lado, as representações acerca dos desafios, oportunidades e resistências
despoletados pelo denominado “ativismo digital”.
15 Como referido inicialmente, este foi um projeto que definimos como de natureza
exploratória por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque se tratava de uma
pesquisa pioneira, na medida em que não existem evidências de pesquisas recentes
sobre a relação entre o ativismo e os média digitais no nosso país, particularmente num
período de alguma turbulência social e política, com evidentes repercussões ao nível da
ação cívica e política extrainstitucional dos cidadãos. Por outro lado, este foi um projeto
financiado no âmbito de pesquisas exploratórias, com um quadro temporal de execução
relativamente curto,2 que procurava criar bases empíricas e teóricas para a exploração
de objetos de estudo emergentes. Deste modo, as questões e metodologias que nos
orientaram buscaram, principalmente, criar as condições para que se pudesse explorar
de forma abrangente, aberta e flexível um objeto de estudo sobre o qual ainda não
existe suficiente base empírica ou teórica que permitisse construir um quadro
analítico-conceptual a priori mais definido. Tal não invalida que consideremos o
material analítico recolhido suficientemente rico e coerente para, a partir daqui,
construirmos não apenas categorias conceptuais substantivas e empiricamente
sustentadas, mas também para desenvolver o debate teórico sobre a matéria.
16 A nossa grande questão de partida foi, por isso, razoavelmente abrangente e flexível
nos seus contornos. Questionámo-nos sobre a articulação entre os média digitais e as
formas de ativismo contemporâneo em Portugal. Para responder a esta questão, uma
série de outras subquestões foram levantadas: que (a) “usos” e (b) “representações” dos
média digitais existem no campo do ativismo?; (c) qual a relação entre as “práticas
online” e as “práticas off-line”?
17 As opções epistemológicas tiveram em consideração a prioridade dada à exploração e
descoberta, com consequências ao nível da seleção da amostra e dos instrumentos de
recolha de informação. Acresce o facto de os próprios instrumentos de observação
apresentarem uma natureza inovadora, na medida em que pressupunham uma
articulação entre duas realidades empíricas distintas — online e off-line — e,
consequentemente, exigiam um desenho metodológico que tivesse em consideração
esta articulação. Assim, desenvolvemos uma pesquisa off-line de natureza qualitativa,
recorrendo a entrevistas aprofundadas e observação de alguns eventos (manifestações,
encontros, etc.). Apesar de recorrermos à entrevista aprofundada, concedendo
liberdade ao entrevistado para construir o seu discurso em torno das temáticas ou
episódios que para ele fossem mais relevantes, delineámos um guião de orientação com
duas grandes áreas temáticas. A primeira correspondia às práticas ativistas (inserção no
meio, biografia ativista, descrição do movimento, etc.). A segunda era relativa aos usos
digitais (envolvimento com ferramentas digitais, tipos de plataformas usadas, funções
desempenhadas, etc.) e às representações acerca do ativismo digital e da sua
interligação com o ativismo “tradicional” (opiniões acerca das plataformas digitais,
benefícios e perigos destas ferramentas, relação entre as ações de rua e as digitais, etc.).
18 Para a nossa amostra optámos por uma estratégia inclusiva, procurando abarcar
ativistas com diferentes percursos e com envolvimento em distintas causas (políticas,
ecológicas, sociais, etc.). Privilegiou-se nesta escolha a heterogeneidade de áreas de
dá-se com a nossa própria obrigação de comunicarmos todos os dias com as pessoas,
a partir daquilo que está a acontecer e dos nossos assuntos específicos, as duas
coisas. […] E para isso é preciso uma plataforma de comunicação comum. Portanto,
utilizamos o site como base e o Facebook como difusor, é uma espécie, eu acho que é
assim. [Ativista, “Precários Inflexíveis”]
existência de dois tipos de público alvo das mensagens ativistas. Há, por um lado, um
público mais restrito, composto por “ativistas, simpatizantes e militantes das causas” e
pessoas conectadas online, para quem o Facebook, os e-mails, os blogues, etc. funcionam
bem. Por outro lado, há “o resto da sociedade” (o público indiferenciado e,
particularmente, os infoexcluídos) que é mais difícil de atingir, convencer e mobilizar e
a quem a informação divulgada pelas redes restritas dos ativistas não chega. 15 O desafio
está, pois, em jogar estrategicamente com os média digitais e os média tradicionais/
mainstream, de forma a fazer passar a mensagem ao maior número possível de pessoas.
Cada um de nós acaba por viver numa bolha e nós, no Facebook, no Facebook e nas
redes sociais em geral, a internet, criamos uma realidade alternativa onde vivemos
rodeados das pessoas que partilham os nossos interesses. Quebrar as bolhas dos
outros é muito difícil, se as pessoas não estão para aí viradas, não é porque veem aí
o teu coiso no Facebook que se vão interessar, a não ser que apareça algum vídeo
hiperviral. [Ativista, “No Hate Ninjas”]
36 Outro dos principais desafios é gerir e filtrar uma grande quantidade de informação
num ecossistema mediático cada vez mais complexo. Nas entrevistas é comum esta
questão ser associada à multiplicação das plataformas digitais, situação que gera uma
certa “saturação de inputs” ou “excesso e fragmentação de informação”. O Facebook e
outras plataformas digitais fomentam uma cultura da renovação constante da
informação, da transitoriedade e multiplicação da informação. Os inputs informativos
são muitos e, por vezes, não favorecem uma avaliação mais densa/detalhada da
informação, nomeadamente no que respeita à aferição da veracidade e fidedignidade
dos seus conteúdos. Isto é algo sentido por muitos:
[…] isso é outra desvantagem na internet, é a volatilidade do que é que pode ser
hegemónico e no momento seguinte já não é, o que é que é viral e o que é que não é.
Uma coisa que não interessa para nada torna-se completamente viral, uma coisa
importantíssima que é expressa pelas palavras erradas ou com a imagem errada
ninguém… […] E, por outro lado, a criação constante de… Focos que, às tantas,
tornas as pessoas um bocado imper… Ficam impermeáveis ou deixam de reagir, tal é
a velocidade com que se reproduz a informação. [Ativista, “Precários Inflexíveis”,
“Que se Lixe a Troika”]
37 Finalmente, outro dos desafios é criar formas de utilização do digital que funcionem à
margem dos sistemas de controlo e vigilância dos atores mais poderosos,
nomeadamente do Estado e das grandes corporações. Isto porque é reconhecida a
ambivalência dos média digitais: se, por um lado, existe um caráter emancipador,
democrático e de empoderamento presente nestas ferramentas, por outro lado, estas
tecnologias permitem o desenvolvimento de formas aperfeiçoadas de monitorização
dos cidadãos e das suas ações. Como tal, muitos recorrem a ferramentas específicas que
dificultam o registo e monitorização por parte de certas instâncias.
[…] de repente, aquilo apareceu-me como uma novidade e a encriptação, por
exemplo, tínhamos um colega que era um hacker, um verdadeiro paranoico da
comunicação encriptada e ainda nos, até deu uma série, houve uma série de
seminários e workshops sobre como, como se proteger no computador, ah… Da
vigilância, não é? Eu, por acaso, não participei mas, e houve outros sobre live
streaming, justamente, sobre como documentar, fazíamos esse tipo de, de
seminários, não é? Para implementar capacidades […] Há muita necessidade de… De
reagir, digamos assim, à hegemonia do controlo de informação, que as corporações
e os governos têm. E, portanto, a única forma é criar um, uma retaguarda, digamos
assim de ativismo, de pessoas que dominam sistemas de informação e de
comunicação e essas tecnologias sem serem vigiadas […]. [Ativista, “Que se Lixe a
Troika”]
Conclusão
38 É indiscutível a relevância que a internet e outras tecnologias digitais possuem numa
multiplicidade de práticas quotidianas, onde podemos incluir a esfera da intervenção
pública. Com efeito, não só a internet se apresenta cada vez mais como um terreno
complementar para trocar informação, comunicar, criar redes, como também se tem
afirmado como território específico para a intervenção pública, constituindo tanto um
recurso para a luta ativista como uma causa que fundamenta reivindicações e a
participação política e cívica. Episódios relativamente recentes ocorridos em diversas
partes do globo atestam precisamente esta situação. Tal justifica a necessidade de nos
questionarmos sobre o impacto que as tecnologias digitais tiveram no ativismo em
Portugal. Daí que tenhamos colocado como questão genérica do presente projeto a
articulação entre a internet/ tecnologias digitais e as diferentes práticas ativistas. Para
responder a esta questão de partida procurámos examinar os usos e representações do
digital, bem como as articulações entre os domínios off-line e online das práticas
ativistas.
39 Em primeiro lugar, podemos concluir que o caso português se aproxima de outros
contextos recentes de protesto e de mobilização de cidadãos em que os média digitais
têm desempenhado um papel relevante em diferentes sentidos (Feixa e Nofre, 2013;
Fernandez-Planells, Figueras-Maz e Feixa, 2014; Juris, 2012; Postill, 2014). Todavia, uma
análise mais fina revela-nos que, se por um lado o digital parece integrar-se em práticas
e modos de fazer ativismo preexistentes (ou pré-digitais), por outro lado esta
integração possui um caráter transformador, na medida em que se geram novas
gramáticas e repertórios de ação com a introdução e o suporte de ferramentas digitais.
O digital participa de diferentes formas em cada uma das práticas que constituem o que
designámos “trabalho ativista” — que vão da difusão de informação à mobilização e
recrutamento, passando pela logística, propaganda, criação de redes e eventos —,
enquanto a sua importância e centralidade vai variando em cada uma destas tarefas. De
certo modo, podemos dizer que certas atividades ou etapas do trabalho ativista
beneficiam de forma evidente dos dispositivos e circuitos digitais, ao passo que outras
se poderão distanciar mais facilmente de tais ferramentas. Assim, conclui-se que tudo o
que são práticas associadas a processos de comunicação, interna ou externa, sai
claramente beneficiado pela inclusão da internet.
40 De destacar, por isso, a imprescindibilidade da internet para o desenvolvimento de
estratégias de comunicação e de construção identitária dos coletivos. Não é por acaso
que, a cada novo coletivo que se forma, um novo site/ página de Facebook é criado,
permitindo simultaneamente a divulgação do projeto e o diálogo com diferentes atores
(Sádaba e Roig, 2004; Pereira, 2009). Por vezes a implementação do site web chega a
preceder a ação efetiva noutros domínios que não o virtual, tanto para associações ou
coletivos específicos como para eventos ou plataformas de convergência. Nos
movimentos contemporâneos, muitas vezes consubstanciados em organizações
efémeras, sem uma existência jurídica concreta, a atribuição de um nome e a inscrição
no ciberespaço constitui, frequentemente, a forma privilegiada de formalização e
institucionalização de determinado projeto16 Daí que alguns autores (Gerbaudo e Treré,
2015; Milan, 2015) tenham destacado a importância destas ferramentas para a
construção da “identidade coletiva” dos movimentos, na medida em geram uma rápida
e eficiente adesão coletiva a certos slogans, imagens ou ideias disseminados via internet,
como emblemas de causas comuns. Em suma, práticas que tradicionalmente estavam
algo limitadas por constrangimentos de ordem espacial, podem ser claramente
favorecidas pelo emprego de utensílios digitais que favorecem ações de natureza
desterritorializada. Ou seja, recorrendo à internet é mais fácil e eficiente fazer circular
informação, mobilizar pessoas, organizar o trabalho e a logística interna.
41 Quando a análise se foca nas “representações” (opiniões, juízos de valor, etc.) acerca
dos média digitais, verificamos que, apesar dos benefícios relatados, existe um certo
grau de ceticismo e resistência que emerge de uma série de tensões não inteiramente
resolvidas entre “velhos” e “novos” modos de fazer ativismo. A inclusão do digital
parece fazer emergir alguns paradoxos. Se, por um lado, estas ferramentas parecem
sugerir potencialidades emancipadoras e participativas, concretizando o que seria a sua
vocação supostamente democrática, por outro lado, suscitam dúvidas, pelo facto de se
“afastarem da realidade”, gerando uma espécie de “mundo paralelo”, de participação
fácil e inconsequente (de que o chamado “ativismo de sofá” é o melhor exemplo). Com
efeito, persiste a representação tradicional da “rua” como local primordial de ativismo,
de participação política e cívica, sendo o terreno digital uma espécie de extensão
secundária do primeiro. Assim se compreende que a integração destes novos recursos
naquilo que são procedimentos e formas de atuação já instituídas seja realizada tendo
em consideração uma avaliação dos benefícios e prejuízos que a mesma acarreta, nunca
esquecendo a importância crucial da rua enquanto espaço simbólico de mobilização e
luta. Por isso mesmo, apesar de a utilização das tecnologias digitais ser generalizada,
tendo-se, de certo modo, “naturalizado”, é igualmente notório um certo sentido crítico
na sua utilização, que decorre tanto das circunstâncias que envolvem os vários usos
como da sua própria avaliação.
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NOTAS
1. O projeto “Ativismo Juvenil em Rede: Média Digitais, Movimentos Sociais e Cultura
Participativa entre Jovens Ativistas” (EXPL/IVC-COM/2191/2013) foi desenvolvido no Centro
Interdisciplinar de Ciências Sociais, CICS. Nova — FCSH/UNLUID/SOC/04647/2013), com o apoio
financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT/MEC) através de fundos nacionais. O
prosseguimento da pesquisa conta, ainda, com o apoio financeiro da FCT/MEC através de uma
bolsa de pós-doutoramento (SFRH/BPD/99671/2014).
2. O projeto teve a duração total de 16 meses.
3. Agradecemos publicamente a disponibilidade demonstrada pelos diferentes ativistas que se
predispuseram para ser entrevistados no âmbito do projeto, bem como o trabalho realizado por
Ana Mafalda Esteves, bolseira e membro da equipa do projeto que esteve diretamente implicada
nesta tarefa.
4. Com duas exceções de entrevistados na casa dos 40 anos, correspondendo a líderes de grupos e
ativistas envolvidos há bastante tempo em determinados grupos.
5. Estes dados ainda se encontram em análise.
6. Para a elaboração desta taxonomia baseámo-nos essencialmente nas descrições efetuadas pelos
ativistas. Estas dimensões estão obviamente interligadas e, em muitos casos, sobrepõem-se.
Porém, do ponto de vista analítico faz sentido destrinçá-las, na medida em que isso nos permite
aferir de forma mais rigorosa o papel atribuído aos diversos média digitais no ativismo
contemporâneo.
7. O digital é representado enquanto mais um elemento de um conjunto mais vasto de
plataformas de comunicação, que incluem os média tradicionais (jornais, revistas, televisão, etc.).
Deste modo, é pensada a sua interligação com outros média, tendo em consideração as vantagens
e desvantagens que pode trazer em função dos diferentes contextos em análise. Os média
mainstream, pela relevância que possuem na construção de uma agenda mediática, não poderiam
ser ignorados.
8. Claro que esta distinção nem sempre é evidente.
9. Referimo-nos aos processos de comunicação através de panfletos, cartazes, jornais, etc.
10. Esta alteração não é vista como necessariamente positiva, mas como uma imposição/
decorrência de uma série de alterações tecnológicas e sociais que determinaram que o Facebook
se tornasse a ferramenta dominante.
11. Daí que as imagens funcionem muito bem neste contexto. São rápidas, têm impacto. No
Facebook resultam especialmente bem.
12. O Twitter apesar de ser referido pelos ativistas como um utensílio digital relevante, não é dos
mais utilizados, apesar de ter tidoumpapel importante noutros contextos de mobilização e
protesto além-fronteiras, como é o caso conhecido de Barcelona (Fernandez-Planells, Figueras-
Mas e Feixa, 2014). O pouco uso do Twitter é, aliás, algo que se destaca em Portugal, quando
comparado com outros países europeus.
13. Os média mainstream são geralmente representados pelos entrevistados como parciais,
ideologicamente motivados/ condicionados ou controlados por corporações, sendo difícil que as
causas mais minoritárias e fraturantes tenham um espaço nesse universo.
14. Não existe uma “visão ingénua” do poder emancipador e democrático dos média digitais, pois
praticamente todos manifestam algumas dúvidas acerca de certos aspetos destes, sublinhando
alguns dos efeitos menos positivos do seu emprego.
15. Dado que neste caso funcionam melhor os média mainstream.
16. Por exemplo, no caso português, M12M e Plataforma 15 de Outubro criaram blogues e páginas
de Facebook.
RESUMOS
Os últimos anos têm sido férteis em formas novas de mobilização coletiva e ativismo, em que os
equipamentos e os média digitais assumem papel de relevo. Este artigo baseia-se num projeto
exploratório, realizado entre 2014 e 2015, que procurou articular o uso dos média digitais com as
formas de ativismo e participação pública dos jovens em Portugal. Metodologicamente este
projeto adotou uma abordagem de natureza qualitativa, que procurou articular uma pesquisa
online e off-line. As conclusões que apresentamos decorrem de uma análise das entrevistas
aprofundadas realizadas a ativistas com perfis distintos pertencentes a diferentes atores
coletivos.
Recent years have been fertile in new forms of collective mobilization and activism. In this
context the digital media have been assuming a particularly important role. This article is based
on an exploratory project, carried out between 2014 and 2015, which sought to study the use of
digital media with the forms of activism and public participation of young people in Portugal.
Methodologically this project took a qualitative approach, which sought to articulate a research
online and off-line. The conclusions presented derive from an analysis of in-depth interviews
carried out with activists belonging to different collective actors.
Les dernières années ont été fertiles en nouvelles formes d’activisme et de mobilisation
collective. Dans ce contexte, les médias numériques ont joué um rôle très important. Cet article
est basé sur un projet exploratoire, réalisée entre 2014 et 2015, qui visait l´étude de l’utilisation
des médias numériques dans les formes d’activisme et de participation publique des jeunes au
Portugal. Méthodologiquement ce projet a adopté une approche qualitative, qui cherche à
articuler une recherche online aussi bien que off-line. Les conclusions présentées proviennent de
l’analyse des entretiens approfondis avec des militants appartenant à différents acteurs
collectifs.
Los últimos años han sido fértiles en lo que respecta a las nuevas formas de mobilización
colectiva y activismo. En este marco, los médios digitales han assumido un papel importante. Este
articulo se basa en un proyecto exploratorio, realizado entre el 2014 y el 2015, que tenía como
objectivo estudiar el uso de los médios digitales en las formas de activismo y la participación de
los jóvenes en Portugal. Metodológicamente se trataba de un proyecto que partindo de un
enfoque cualitativo, pretendía articular una investigación online y off-line. Las conclusiones
presentadas provienen de un análisis de las entrevistas en profundidad realizadas a activistas
pertenencientes a diferentes atores colectivos.
ÍNDICE
Palabras claves: ativismo, movimientos sociales, media digitales, Internet
Keywords: activism, social movements, digital media, Internet
Palavras-chave: ativismo, movimentos sociais, média digitais, internet
Mots-clés: activisme, mouvements sociaux, média numériques, Internet
AUTORES
RICARDO CAMPOS
Investigador e bolseiro de pós-doutoramento, CICS.Nova, FCSH/UNL, Av. De Berna, 26-C,
1069-061, Lisboa. E-mail: [email protected]
INÊS PEREIRA
Professora auxiliar convidada, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas 1649-026, Lisboa. E-mail:
[email protected]
Introdução
1 Enquanto fenómeno social, o parto hospitalar contemporâneo ilustra, de forma
paradigmática, os modos como os valores médicos e masculinos se sobrepõem aos
valores leigos e femininos. Na gravidez e no parto, a medicalização — projeção social da
ampliação do poder da medicina — não pode ser analisada apenas como uma mera
replicação de um fenómeno, num campo mais restrito da realidade. A afirmação da
medicina sobre o corpo da mulher assenta em bases mais amplas de género e de
dominância social do masculino sobre o feminino.
2 Os movimentos pró-desmedicalização do parto, reclamando neste o protagonismo
perdido pela mulher e pela família, divulgam e apoiam o direito à prática de
alternativas ao parto hospitalar padronizado, como o parto em casa. Esta opção,
estar já cansados da gravidez, ou porque se quer fazer coincidir o parto com o dia de
trabalho do obstetra, ou porque já se calculou o mapa astral para aquele dia e aquela
hora, em que a conjuntura astrológica era a mais favorável. Todos estes motivos foram
já enunciados em serviços de obstetrícia, com maior ou menor grau de discrição. 4 São
razões bastantes, numa lógica de consumo, para que se intervenha na gravidez e se
aumentem consideravelmente os riscos num parto que, eventualmente, teria todas as
condições para decorrer com um mínimo de intervenção médica.
12 Mais do que complexo, o consumo de tecnologias obstétricas revela-se paradoxal. Por
um lado, reconhecem-se e divulgam-se amplamente os riscos da gravidez e do parto
para a própria grávida e para o seu corpo, para o bebé e, consequentemente, para a
sociedade; desenvolvem-se mecanismos de vigilância e tecnologias de controlo desses
riscos; e criam-se respostas sociais que permitam atenuar as desigualdades no acesso a
essas tecnologias. Por outro, publicitam-se tecnologias mais avançadas para um
diagnóstico do risco mais preciso e mais caro; e recorre-se a intervenções mais
iatrogénicas, com mais riscos e mais dispendiosas, por opção da mulher, do obstetra ou
de ambos, aprofundando insidiosamente as desigualdades sociais. A lógica do consumo
e a reflexividade individual da mulher grávida verificam-se quer no recurso à
tecnologia obstétrica, quer na recusa de a utilizar. Por existirem ideologias ou
fundamentações diferentes, desde as que se aproximam mais do “natural” e do místico,
às que se afirmam pela sobredosagem tecnológica, há uma diversidade de opções
quanto ao uso da tecnologia, todas elas ilustrando a procura de um parto perfeito e de
um bebé normal.
O trabalho de campo
13 O percurso inicial de investigação empírica foi orientado por questionamentos em
torno da opção pelo parto em casa e pelos aspetos que a enformam. Tomando como
referência o cariz exploratório desta investigação, optou-se por uma metodologia
qualitativa, já que se pretendia conhecer os processos de criação da experiência social e
a sua significação (Denzin e Lincoln, 2011 [1994]), ou seja, conhecer em profundidade a
realidade do parto em casa, desde um ponto de vista subjetivo — de quem optou e
experienciou um ou mais partos domiciliares. Para que fosse possível aceder a estes
fenómenos subjetivos, neste caso apenas compreensíveis através da linguagem
(Ghiglione e Matalon, 2001 [1992]), e porque importava captar o discurso dos
entrevistados que surgisse da sua própria linha de pensamento (Ruquoy, 1997 [1995];
Guerra, 2006), a técnica de recolha de dados que emergiu como a mais adequada foi a
entrevista semidiretiva, realizada à mulher ou ao casal. Realizaram-se 18 entrevistas,
oito delas em casal, que foram gravadas, com a duração média de 1 hora e 25 minutos.
As entrevistas decorreram entre março e abril de 2012, nos distritos de Braga, Vila Real,
Porto, Coimbra, Lisboa, Setúbal e Faro, sendo dez delas realizadas no distrito de Lisboa.
14 Foram descritos 34 partos com diferentes graus de profundidade, sendo oito deles
partos hospitalares (PH) e 26 partos em casa (PC). Os partos domiciliares ocorreram
entre 2005 e 2011.5 As experiências hospitalares foram principalmente descritas como
contrastando com a experiência domiciliar, ou como legitimadoras, por si só, da opção
pelo domicílio no parto seguinte. No entanto, o nível de profundidade da descrição
destas experiências não permitiu uma análise comparativa entre as experiências de
parto num e noutro local. Como tal, e em linha com os objetivos iniciais da pesquisa, a
análise centra-se na experiência de um ou mais partos domiciliares.
riscos reconhecidos à opção de parir em casa, a morte era verbalizada como uma
possibilidade e aceite como tal. Em alguns casos, a morte do bebé era um medo presente
no parto, noutros casos foi referida como algo que se aceitou como possível no
planeamento do parto e no parto, mas que não esteve racionalmente presente nesses
momentos:
Pode-se morrer num parto. Tenho perfeita noção disso. Acho que faz parte da vida.
[Rita, 28 anos, 1 PC]
18 A opção pelo parto em casa é construída sobre um processo reflexivo de apropriação
leiga de conhecimento e de linguagem científica que mune a mulher ou o casal de uma
capacidade de argumentação legitimada pela ciência e que, em muitos casos, os
próprios peritos não conseguem acompanhar, limitando-se a uma rejeição perentória
das propostas e das opções apresentadas. Os profissionais perdiam assim, em definitivo,
a confiança e a sua credibilidade pericial, como refere uma mulher sobre a sua visita ao
hospital, na sua terceira gravidez:
Já tinha investigado e a minha ideia era eu poder circular, eu poder andar durante,
durante as contrações e poder parar se me apetecesse e poder relaxar como, como
eu sentisse que devia relaxar. E ter, por exemplo, a bola [de Pilates] para me sentar,
para me sentir mais confortável e tudo isso e… Quando eu estava no quarto e faço
essa pergunta [à enfermeira que conduzia a visita], primeiro eu vi que o espaço, sim
senhor, eu podia ter a bola, até dava para ter ali, sim senhora. […] E eu perguntei:
“Mas e se eu me quiser levantar da cama, posso? — Mas levantar-se? — Sim, se eu
não estiver confortável deitada e quiser estar em pé, estar encostada à cama, estar
sentada… — Ah, não… Não, então mas vai estar ligada ao CTG!” E eu: “Sim, mas o fio
pode esticar ligeiramente, posso ao menos dar dois passos para cada lado? — Ah,
pois, não, mas isso, não, tem de estar deitada.” E eu pronto, OK. [Cristina, 34 anos, 2
PH e 1 PC]
19 Não obstante a rejeição do modelo hospitalar hegemónico de assistência no parto,
durante a gravidez valorizou-se o acompanhamento por um ou mais profissionais de
saúde e recorreu-se à tecnologia médica na avaliação e controlo dos riscos, embora não
houvesse, habitualmente, um cumprimento absoluto do que está definido como a
vigilância normal da gravidez. O modelo que predomina, ainda assim, é o
acompanhamento médico habitual a nível público, no centro de saúde, ou a nível
privado. Reconhecendo, também neste caso, o risco moral da opção pelo parto em casa,
a opção era geralmente mantida em segredo perante a figura do obstetra ou do médico
de família, profissionais que se orientam pelo modelo de parto hospitalar. Ao medo de
condenação moral, acrescia o medo de represálias, quando o médico que fazia as
consultas também podia ser encontrado no hospital. Quando a opção era comunicada
ao médico, a reação mais frequente foi a condenação mas, inesperadamente, nem
sempre a reação do médico era concordante com a expectativa:
R: Eu gostava de lhe ter dito, só que, por um lado, eu receei um bocadinho a reação
dele. Porque pensei: “Ó pá, ele se calhar, à última da hora, é capaz de me dizer que
eu tenho pouco líquido, ou que a bebé está pequena, ou que está grande demais e
depois vai-me obrigar a, tipo, a… Ou induzir a que eu tenha um parto hospitalar.” E
por isso, na primeira gravidez, optámos por não lhe dizer nada. M: Sim. R: Depois,
ele… Eu fui lá no pós-parto e ele foi muito simpático e “Ah, então, já estava a pensar
o que é que lhe teria acontecido” porque já tinham passado as 42 semanas, não é?
Então, eu disse-lhe que tinha tido em casa e ele “Ah, então um parto à holandesa,
não é?” [risos]. M: Depois apresentou-nos à equipa toda como a holandesa, os
holandeses. Houve ali uma receção boa. [Raquel, 32 anos, e Marco, 32 anos, 1 PC]
20 A reação, real ou esperada, dos médicos face à opção pelo parto em casa, conjugada com
a incapacidade ou indisponibilidade para compreender a não aceitação de algumas das
suas prescrições contribui para a degradação da confiança no modelo médico e
hospitalar. Reconhece-se que a medicina e o ambiente hospitalar por ela configurado
estão vocacionados para a intervenção e para a prescrição, e não para o
aconselhamento e a negociação.
21 Dentro da maioria que opta pela vigilância médica mais comum durante a gravidez, é
frequente um acompanhamento paralelo pela enfermeira/parteira, que é descrito como
mais personalizado, complementando a vigilância pré-natal e tornando-a, no conjunto,
mais abrangente. Por oposição ao seguimento médico, mais impessoal, no percurso de
definição da opção por um parto em casa e durante a gravidez é construída uma relação
alicerçada na confiança com a equipa que assiste ao parto, por ser reconhecida como
mediadora no processo de integração da gravidez e contribuir para a conquista de um
sentido de coerência identitária. A par da informação científica mobilizada, a presença
da enfermeira/parteira é um argumento usado como legitimador da opção perante a
família, os amigos e os próprios médicos. É comum a referência à doula, uma figura
emergente no panorama da saúde materna que não está enquadrada enquanto
profissional de saúde. Habitualmente, possui uma formação orientada para a prestação
de apoio emocional e de informações que, em grande medida, incorporam informação
médico-científica da área, combinada com uma abordagem holística, contrastando com
a abordagem médica mais comum. A doula pode ser enquadrada como uma conselheira
perinatal e, habitualmente, o seu apoio é mobilizado durante a gravidez, o parto e o
pós-parto. É de referir que, quando existe, a figura da doula emerge pela relevância do
acompanhamento e da informação dados ao longo da gravidez, que medeia o processo
reflexivo de construção da opção, sendo, em alguns casos, mais notória a
complementaridade entre o médico e a doula, do que entre o médico e a enfermeira/
parteira:
J: Fiz tudo, ou seja, tinha o acompanhamento hospitalar que elas aconselham
sempre, nunca houve nenhum nem ninguém que tivesse dito o contrário, e depois
tinha o, aquele acompanhamento mais específico e mais personalizado da parte da
minha doula e da minha enfermeira. A única coisa que elas, que a minha doula dizia
era: “Se não quiseres tomar os medicamentos que são químicos, o…” E: O ferro, o
ácido fólico… J: Exatamente. “Come bananas, ou cereais. Alteras uma coisa pela
outra e escusas de estar a ingerir químicos.” Eu nunca tomei esses medicamentos,
aliás comecei a tomá-los no início, ainda não sabia. A minha doula falou comigo, eu
pus de parte e comecei a ter uma alimentação mais, com mais ferro e com mais
legumes e com mais coisas. Todas as minhas análises estavam excelentes, nunca
disse à minha médica. A minha médica disse: “Bem, as suas análises estão
excelentes, tem tomado o ferro que lhe dei?” E: Tenho sim senhora. J: Tudo
tranquilo. E não tomei nada, nunca tomei nada disso. Pronto lá tive as minhas, as
minhas consultas, fiz tudo, só alterei isto. [Joana, 36 anos, 1 PC]
22 Não existe, portanto, uma rejeição do modelo biomédico, mas uma seleção reflexiva de
qual deve ser o espaço ocupado pela biomedicina na gravidez, fazendo sobressair os
conceitos de consumo e de manager do corpo (Baudrillard, 2007 [1970]). Com base num
grande número de recursos disponíveis, quer do sistema médico e convencional, quer
de um sistema alternativo, há uma definição personalizada de quais os recursos a
mobilizar para que a vivência da gravidez ganhe sentido e seja integrada no self. A
modalidade adotada para o acompanhamento médico da gravidez varia entre a mulher
que cumpre todo o programa normal de consultas médicas e apenas rejeita uma ou
outra indicação médica, como um suplemento ou uma análise, e a mulher que faz
apenas uma consulta médica no início da gravidez e vai fazendo, depois, os exames que
entende necessários.
23 Estas escolhas não significam uma rejeição do conhecimento científico, em favor de um
conhecimento mais “tradicional” ou “popular”, uma vez que são, em grande medida,
escolhas fundamentadas com a pesquisa de conhecimento científico e legitimadas pela
confiança na parteira ou na doula. São evidentes diferentes perceções do risco que se
confrontam no encontro entre o médico e a grávida. De facto, em alguns casos, mais do
que desnecessárias, algumas prescrições médicas foram vistas como arriscadas. Noutros
casos, as recomendações fizeram sentido, mas foram adaptadas de modo a poderem ser
integradas no conjunto das opções de vida anteriores. Noutros casos ainda,
simplesmente não foram aceites, porque a compreensão do corpo fez sentir que estava
tudo bem. A seguinte descrição representa de forma significativa o consumo de
tecnologias médicas na gravidez:
R: Eu não queria ser tocada. É desnecessário. Muitos vão tocar para ver se está, se
não está, se está quase, mas não é por aí que vou… Achei que não era necessário. E
se eu sentia o bebé, estava sempre a mexer, sentia-me bem, sentia que estava tudo
bem, não sentia que havia necessidade. Também percebi também de toda a pesquisa
que o CTG demonstra o estado da mãe e do bebé nesse determinado momento. Não
quer dizer que no parto possa estar melhor ou pior, não é? Então não fazia sentido
eu estar a sair da minha rotina e estar a deixar de fazer coisas ou pôr isso e ir para
lá, quando realmente não havia, também não estava a planear ter no hospital. Não
fazia sentido. E: Houve mais alguma coisa […]? R: Não, acho que não… […] Acho que
não tomei o ferro. Mas… tomei um ferro… comecei com um ferro e ácido fólico
proveniente de um meio mais… de ervanária. … Pois, recomendações, sim, houve
assim algumas coisas que eu não fiz: não comer chouriço, não comer presunto, ter
cuidados com os ovos, aa… Esse tipo de coisas, eu fazia o que o meu corpo me pedia.
Tinha cuidado com as saladas e lavava as saladas por causa da toxoplasmose.
[Ronalda, 31 anos, 1 PH e 1 PC]
24 De facto, o que mais frequentemente é alvo de rejeição é a toma de medicamentos e
suplementos, como o ferro e as vitaminas, o que se procura compensar com a
alimentação ou a toma de suplementos naturais, não químicos, lembrando o que
Badinter (2010: 39) conceptualiza sobre a maternidade ecológica e a demonização da
química, por encarnar “o artificial que, por definição, é inimigo do natural”. No polo
oposto, são consensuais a utilidade e a importância do recurso à ecografia, sendo a
única tecnologia a que se recorre sempre, apesar de se reconhecerem riscos na
realização de ecografias obstétricas em excesso, o que leva a que se rejeite a realização
de mais do que três.6 Mesmo quando há uma rejeição completa das consultas médicas e
das análises, não se prescinde da segurança dada pela realização de ecografias:
M: Na segunda gravidez nem fui a nenhuma consulta de obstetrícia, só fiz as três
ecografias. E: […] O que é que te fez optar pelas ecografias e não pelas consultas, por
exemplo? M: Ah, as ecografias porque queria ter a certeza que estava tudo bem com
o bebé, não tinha malformações, tinha também… Porque eu achava desnecessárias,
as consultas… Não sei o que é que elas me iam trazer de mais… o que é que elas iam
ajudar a juntar àquilo que a ecografia revelava. Se estava tudo bem, porque é que eu
havia de ir a uma obstetra? [Maria B, 32 anos, 2 PC]
25 De facto, como ilustra Ettorre (2000: 410), a relevância social da deficiência e a pressão
exercida pelos mecanismos de controlo da reprodução conduzem a mulher na procura
do estatuto da “boa reprodutora” que concebe um bebé normal. A imprescindibilidade
do rastreio ecográfico entre os casos estudados denuncia a conformidade com estes
mecanismos e demonstra o impacto das persistentes perceções de risco médico e social
associadas à possibilidade de se ter um bebé imperfeito, com malformações. Mas além
do seu potencial diagnóstico, esta relação com a ecografia aproxima-se também da
proposta de Petchesky (1987) e de Lupton (2013), que descrevem a construção social das
imagens do feto como objetos culturais, que excedem os propósitos médicos originais e
englobam processos de personificação do embrião/feto, reconfigurando historicamente
os seus estatutos sociais.
26 Há, de resto, um grande número de recursos mobilizados reflexivamente durante a
gravidez e que foram referidos como parte do percurso de acompanhamento desta,
como as sessões com a doula, os cursos sobre a gravidez e o parto, os encontros de
casais, o yoga e os cursos mais comuns de preparação para o parto. Estes recursos são
apresentados como um meio para o desenvolvimento de aspetos que o
acompanhamento habitual, com um profissional de saúde, não permite desenvolver,
complementando-o e contribuindo, também, para a já referida integração da gravidez
no self. No entanto, o curso de preparação para o parto emerge como o recurso que, nos
casos em que foi mobilizado, não contribuiu ou contribuiu pouco para essa integração:
Sinceramente, [o curso] a mim não me ajudou em nada, até por, eu acho, pela
quantidade de informação que já tinha, não é? Mas, portanto, isto tinha sido num
parto anterior. Mas tive noção que tudo aquilo que, pronto, também temos de ver
que um curso de preparação para o parto é preparação para um parto hospitalar,
não é? E eu acho que parte muito da ideia… É um bocado paternalista. Eu acho.
Porque quando entramos aqui nas questões do como respirar e não-sei-quê, epá!…
Só quem não, pronto, só quem não teve um parto assim, como eu tive, natural, é que
acha que é preciso que nos ensinem a respirar. Eu acredito que, se calhar, num
parto hospitalar, naquelas condições, pronto. É útil. Para quem tem um parto
desses, talvez seja útil. Mas realmente aquilo que eu me apercebi pelo meu parto é
que se tivermos as condições certas, esse ambiente propício, é inata a maneira como
respiramos, a posição que procuramos. Ela não nos precisa de ser ensinada.
[Jasmim, 39 anos, 1 PH e 1 PC]
27 O curso é referido em moldes que permitem enquadrá-lo como um mecanismo de
regulação moral e de controlo do comportamento no parto, definindo-se como respirar,
como se movimentar, como o companheiro pode ajudar e, no limite, como parir no
hospital. O parto é descrito como uma experiência concreta de reconhecimento do
corpo e, por isso, o curso é caracterizado pelo sentido de incoerência que promove em
quem o frequenta e quer ter um parto em casa.
28 Também no parto foi feita referência à relevância e ao papel de cada um dos atores que
estavam ou que deveriam ter estado presentes. Na sua maioria, foi referida a presença
do outro membro do casal, da enfermeira/parteira e da doula, e é possível distinguir os
papéis atribuídos a cada um.
29 Recuperando o conceito de gineceu, a que se recorre para ilustrar a exclusão do homem
do local do parto nas sociedades tradicionais (Carneiro, 2008), identifica-se no parto
domiciliar um gineceu reconfigurado, onde não tanto o género, mas principalmente as
relações de confiança definem as condições de acesso. Neste sentido, também o papel
do homem surge com configurações distintas, sendo reconhecida importância ao seu
31 O início do trabalho de parto e o parto surgem como uma experiência concreta (e não
mística) de incorporação de um processo que é fisiológico ou natural. A
autodeterminação, o instinto, a confiança no corpo e a interpretação e compreensão
dos seus sinais são eixos condutores da experiência de parir. A referência ao instinto
confere naturalidade ao parto e aproxima a experiência da mulher da experiência dos
restantes mamíferos:
Eu tive a sensação que nós nos tornamos um bicho autêntico. Em casa, eu posso-lhe
descrever, no parto da minha primeira filha, eu gosto muito de ouvir música e pus
música quando comecei, mas durou muito pouco tempo, porque a seguir o que eu
queria era silêncio, escuridão e quentinho. E pedi até ao marido para pôr o colchão
na sala, veja lá. Ele pôs-me o colchão na sala, ligou os aquecedores todos e eu fiquei
ali, no escuro, apaguei as luzes, pus tudo em silêncio e o que eu senti era, eu acho
que deve ser aquilo que sentem os mamíferos quando vão para a toca para ter os
seus filhos. [Jasmim, 39 anos, 1 PH e 1 PC]
32 Não obstante, a tomada de consciência de que o parto estava próximo nem sempre foi
despoletada por um sinal físico do corpo, que é o que se verifica com a maioria. Num
conjunto minoritário, mas significativo, há sinais subjetivos que são descritos como
tendo permitido intuir o início do trabalho de parto, tal como a fase da Lua (lua cheia),
a “despedida da barriga” ou a “síndrome do ninho”, estes últimos revelando não só a
intuição da mulher, mas o seu poder de decidir quando está preparada para o parto:
Só comecei a arranjar as coisas muito tarde, a preparar as coisas para o bebé muito
tarde, então achava que ele nunca ia nascer enquanto eu não tivesse tudo
preparado, que eu inconscientemente não ia deixar aquilo acontecer. E então, a
certa altura, falei com a minha doula e disse-lhe: “Olha, ele nunca mais nasce.” Já
estava com quarenta e uma semanas, e ela disse: “Estás muito confortável nisso, não
estás?” E eu: “Sim, eu acho que não me está a apetecer agora deixar de ficar grávida.
Agora estou aqui nisto!” E ela disse: “Pois, tens de te despedir da barriga.” Então fiz
assim uma despedida da barriga, assim, fui passear, despedi-me da barriga, tirei
muitas fotos e depois, um dia depois ou dois dias depois, eu passei uma tarde assim
em casa a ver um filme […] e comecei a sentir as contrações. [Lassa, 34 anos, 1 PC]
33 Os sinais físicos surgem de seguida, nestes e nos restantes casos, confirmando a
proximidade do parto através de contrações rítmicas, dores, a saída do rolhão mucoso e
a rotura da bolsa de águas. Partindo daqui, cada pessoa revelou uma experiência
singular do trabalho de parto, refletindo a liberdade e a autodeterminação da mulher,
Conclusões
40 Este artigo lança as bases para um retrato sociológico do parto domiciliar planeado
contemporâneo. Pela análise das experiências descritas, ele afasta-se de alguns dos
enunciados apriorísticos que o associam a uma recuperação de valores e modelos
tradicionais, ou a uma experiência mística, espiritual ou esotérica. Em certa medida,
afasta-se até do pressuposto de que este se enquadra no naturalismo, embora se
verifique uma valorização do natural. Pelo contrário, o parto domiciliar caracteriza-se
por um recurso reflexivo à ciência e ao conhecimento médico, onde apesar de se
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NOTAS
1. Disponíveis em https://www.ine.pt
2. Este artigo tem por base a dissertação de mestrado em Saúde, Medicina e Sociedade, intitulada
Nascer em Casa — A Desinstitucionalização Reflexiva do Parto no Contexto Português,
apresentada em 2012 e disponível em http://hdl.handle.net/10071/4684.
3. O parto, em si, não depende da atuação profissional, não se podendo considerar um “ato
médico”. Nem mesmo a assistência não profissional de um parto ou a opção por um parto não
assistido constituem, por si só, uma ilegalidade.
4. Estes exemplos foram vivenciados por Mário J. D. S. Santos num serviço hospitalar de
obstetrícia em Portugal.
5. Para mais detalhes sobre os modos de seleção das participantes no estudo e sobre a sua
caracterização, recomenda-se a consulta da dissertação de mestrado.
6. É frequente a referência a médicos que prescrevem mais do que três ecografias obstétricas,
embora a norma n.º 023/2011 de 29/09/2011 da Direção-Geral da Saúde recomende a realização
de apenas três, na vigilância de uma gravidez de baixo risco.
RESUMOS
O parto domiciliar contemporâneo é um fenómeno raro, pouco visível e, enquanto terreno
empírico, é pouco explorado. Partindo de entrevistas a mulheres e casais que experienciaram um
parto em casa planeado, o artigo pretende fornecer um primeiro retrato sociológico do fenómeno
em Portugal. Este surge não como um retorno ao tradicional ou uma procura de uma experiência
mística, mas antes como um acontecimento físico concreto, grandemente enformado por
conhecimento científico e médico, que se inscreve numa procura de coerência identitária.
Emergiram diversas perceções de risco social e de risco médico, tornando-se visível um consumo
reflexivo de tecnologias médicas modelado por essas mesmas perceções. Ainda que destitua
algum do protagonismo da medicina na gravidez e no parto, de facto não pode dizer-se que se
trate de um fenómeno de desmedicalização.
Contemporary home births are rare and quite invisible phenomena, and quite unexplored as an
empirical field. From interviewing women and couples who experienced a planned home birth,
this article aims to give an initial sociological portrait of this phenomenon in Portugal. It is
shown to be not a return of the traditional or a search for a mystical experience, but rather a
physical and concrete happening, strongly shaped by scientific and medical knowledge, within a
search for identity coherence. Several social and medical risk perceptions emerged, as well as a
reflexive consumption of medical technologies framed by these same perceptions. Despite the
fact that home birth detracts the relevance of medicine during pregnancy and birth, it is not
possible to frame it as a phenomenon of demedicalisation.
L’accouchement à domicile contemporain est un phénomène rare, peu visible et en tant que
terrain empirique il est peu exploré. À partir d’entretiens avec des femmes et des couples qui ont
vécu un accouchement programmé à la maison, l’article prétend fournir un premier portrait
sociologique de ce phénomène au Portugal. Celui-ci apparaît, non comme un retour au
traditionnel ou comme la recherche d’une expérience mystique, mais plutôt comme un
évènement physique concret, énormément formé par la connaissance scientifique et médicale,
qui s’inscrit dans une recherche de cohérence identitaire. Diverses perceptions de risque social et
médical ont surgi, ce qui a permis l’analyse d’une consommation réfléchissante de technologies
médicales modelées par ces perceptions. Bien que l’accouchement à domicile enlève de
l’importance à la médecine de la grossesse et de l’accouchement, on ne peut cependant pas dire
qu’il s’agisse d’un phénomène de démédicalisation.
El parto domiciliario contemporáneo es un fenómeno raro, poco visible y como terreno empírico
está poco explorado. Partiendo de entrevistas a mujeres y parejas que han experimentado un
parto en casa planificado, el artículo pretende mostrar un primer retrato sociológico del
fenómeno en Portugal. Este surge, no como un regreso a lo tradicional o una búsqueda de una
experiencia mística, sino como un acontecimiento físico concreto extremadamente enmarcado
por el conocimiento científico y médico, que se inscribe en la búsqueda de una coherencia
identitaria. Surgieran diferentes percepciones de riesgo social y riesgo médico, y un consumo
reflexivo de las tecnologías médicas modelado por estas percepciones. Aunque le quita algún
protagonismo a la Medicina en el embarazo y parto, de hecho no se puede decir que se trate de
un fenómeno de desmedicalización.
ÍNDICE
Mots-clés: accouchement à domicile, medicalisation, perceptions de risque, cohérence
identitaire
Palavras-chave: parto em casa, medicalização, perceção de risco, coerência identitária
Keywords: home birth, medicalisation, risk perception, identity coherence
Palabras claves: parto domiciliario, medicalización, percepción de riesgo, coherencia identitaria
AUTORES
MÁRIO J. D. S. SANTOS
Assistente de investigação, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL, Av. Forças
Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]
AMÉLIA AUGUSTO
Professora auxiliar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade da Beira Interior,
Estrada do Sineiro, s/n, 6200-209 Covilhã. E-mail: [email protected]
Introduction
1 La sous-représentation des femmes en politique est un phénomène international
(Krook et O’Brien, 2010; Gaspard, 2007). Face à cette inégalité, plus d’une centaine de
pays se sont dotés de quotas électoraux et de lois sur la parité (Dahlerup, 2008). De
telles mesures ont contribué à féminiser la profession politique, mais elle continue à
être structurée par la division sexuelle du travail et la féminisation ne s’accompagne
pas d’un réel partage du pouvoir entre hommes et femmes politiques (Sineau, 2011).
Nous considérons donc que les professionnelles de la politique sont en position de “
token” (Wright, 2001), c’est-à-dire constituent une minorité non seulement parce
qu’elles sont moins nombreuses que les hommes dans le champ, mais surtout du fait
que la politique reste un monde que la classe des hommes domine et dans lequel elles
doivent lutter pour légitimer leur place. A partir de ce point de vue, le présent article
s’attache à cerner les expériences de femmes travaillant dans le monde masculin de la
politique et les stratégies de genre qu’elles développent dans ce contexte. Notre objectif
principal est de voir de quelles manières elles gèrent leur statut doublement
6 L’intégration des femmes dans des métiers masculins se fait dans un cadre idéologique
particulièrement propice à masquer les logiques institutionnelles inégalitaires, celui de
l’idéologie méritocratique. En effet, différentes études ont montré que l’adhésion des
tokens à cette idéologie peut les amener à ignorer les discriminations subies par les
groupes dominés (Ellemers, Spears et Doosje, 1997) et à défendre le statu quo qui leur a
permis d’obtenir une position supérieure (Barreto, Ellemers et Palacios, 2004). D’autres
travaux établissent que les discriminations contre “les femmes en général” sont
reconnues, mais que ce sont les discriminations vécues personnellement qui sont
déniées (e.g., Crosby, 1984; Roux, 1999). Les femmes elles-mêmes auraient tendance à se
“détacher” de leur groupe de sexe pour maintenir la culture organisationnelle qui a
favorisé leur succès (Apfelbaum, 1999), voire se désolidariseraient de leur groupe en
privilégiant des discours individualistes qui les placent dans une position méritante et
qui placent en revanche leurs pairs dans une position de non-méritantes. Ainsi, le
tokenism semble entretenir l’idéologie du mérite (Taylor et McKirnan, 1984), soutenir
les mythes légitimateurs de l’ordre social hiérarchique délimitant “qui a droit à quoi?”
(Staerklé et al., 2007), et constituer un phénomène institutionnalisé qui maintient les
privilèges des hommes et leur position de classe dominante (Williams, 1995). Si l’on y
ajoute les difficultés, évoquées plus haut, que les femmes rencontrent lorsqu’elles
s’engagent dans un métier masculin, l’on peut penser que leur présence dans ce type
d’espaces sert plus d’alibi que de moteur d’un changement des pratiques et des normes
de genre.
l’inégalité de leurs positions respectives dans les partis politiques, mais aussi dans la vie
privée, car même dans les professions prestigieuses (Fassa et Kradolfer, 2010) parmi
lesquelles nous incluons “être femme politique” (Sineau, 2011), le travail domestique
continue d’être de la responsabilité principale des femmes (e.g., voir Amâncio, 2007;
Geist, 2010; Silva, Jorge et Queiroz, 2012; Wall et Guerreiro, 2005).
9 C’est donc à partir des expériences familiales et professionnelles d’élues que nous avons
étudié les effets du tokenism en politique. Notre étude vise à analyser les stratégies que
des femmes engagées dans la politique locale portugaise développent pour s’affranchir
de leur position doublement dominée, que ces stratégies confortent le système de genre
ou au contraire œuvrent en faveur de l’égalité des sexes. L’intérêt de la démarche est
qu’elle se situe dans un contexte de tokenism particulier: celui d’un espace politique
dans lequel la Loi sur la parité a été appliquée.
Méthode
Participantes
10 Vingt-deux femmes des cinq partis en activité au niveau local ont participé à cette
étude, menée au Centre (16 communes de Lisbonne et des environs) et au Nord (six
communes de Porto et environs) du Portugal. Nous avons interviewé deux femmes du
Bloc de gauche (BE), quatre du Parti communiste portugais (PCP) et six du Parti
socialiste (PS), huit du Parti social-démocrate (PSD) et deux du Parti du centre
démocratique et social — Parti populaire (CDS-PP). Quatorze exercent leur activité au
niveau exécutif (une présidente d’une mairie, sept présidentes de petites communes et
six conseillères municipales) et huit au niveau délibératif (députées de différentes
Assemblées municipales et communales). Seize sont mariées, deux sont divorcées, une
est veuve et trois sont célibataires. Dix-sept ont des enfants, deux femmes mariées et
les trois célibataires n’en ont pas. Onze femmes ont entre 32 et 53 ans (M = 42 ans),
tandis que l’âge des 11 autres varie de 54 à 78 ans (M = 64 ans). Dans ce second groupe
d’âge, l’activité politique des élues s’étend en moyenne sur près de 26 ans (médiane = 29
ans), l’exercice de cette activité étant évidemment plus court, bien que solide, dans le
groupe des plus jeunes (M = 16 ans, médiane = 11). Ces dernières sont mieux
représentées dans les partis de gauche (les deux-tiers des 12 élues de gauche ont entre
32 et 53 ans) et les interviewées plus âgées sont plus investies dans les partis de droite
(7 des 10 élues de droite ont entre 54 et 78 ans).
11 L’échantillon des élues a été constitué avec la technique dite “boule de neige”, en
partant de nos contacts avec des députées du Parlement national. Sollicitées par
courrier électronique, les 22 femmes politiques ont été interviewées entre avril et juin
2012, durant 1h30 en moyenne. Les entretiens ont été enregistrés puis retranscrits
intégralement, tout en garantissant aux élues leur anonymat.
12 Notre guide d’entretien semi-structuré englobait plusieurs questions divisées en six
dimensions thématiques: les expériences des participantes dans l’exercice de leur
métier politique (donc les dynamiques du tokenism); les compétences qu’elles jugent
nécessaires pour “faire de la politique” de façon efficace; la conciliation des vies
politique et familiale; les causes de l’inégalité des sexes dans la politique, leurs opinions
sur la situation et sur des mesures telles que les quotas et la Loi sur la parité; leur
sentiment sur la discrimination des femmes en général et d’elles-mêmes en particulier;
leurs formes de mobilisation (individuelle ou collective) pour l’égalité des sexes.
Procédure analytique
13 Le corpus des 22 entretiens a été soumis à une analyse des données textuelles effectuée
avec le logiciel Alceste 2012.1 Nous avons opté pour une procédure qui ne se centre pas
sur la spécificité interne de chaque interview et donc sur la logique des discours ou des
parcours individuels, mais qui vise à saisir la diversité ou la communauté des points de
vue exprimés sur chacune des six dimensions thématiques décrites ci-dessus. Dans nos
résultats, les dimensions seront désignées par les mots-clés suivants: (i) dynamiques,
(ii) compétences, (iii) conciliation, (iv) in/égalité, (v) discrimination et (vi) mobilisation.
14 De manière à saisir l’ancrage social des classes identifiées par Alceste, nous avons
projeté sur celles-ci trois variables sociodémographiques des interviewées: le statut
marital (vit en couple vs. seule), le nombre d’enfants (avec vs. sans enfants) et le groupe
d’âge construit à partir de l’âge médian (11 femmes de 32 à 53 ans vs. 11 de 54 à 78 ans).
Une quatrième variable d’ancrage social a été considérée, l’appartenance politique, à
partir d’une division dichotomique: gauche (BE, PCP, PS: 12 élues) vs. droite (PSD, CDS-
PP: 10 élues).2
Résultats
15 Les résultats ont révélé une structure thématique divisée en deux grands groupes de
cinq classes. Le premier groupe, incluant les classes 1, 2 et 3, est plus centré sur
l’activité politique, tandis que le deuxième groupe, incluant les classes 4 et 5, intègre
davantage d’éléments de la sphère privée, articulés à l’engagement des femmes dans la
sphère publique. Nous allons nommer et interpréter ces classes en tenant compte des
mots à partir desquels elles ont été construites et des “unités de contexte élémentaires”
(les UCE sont des extraits d’interviews) qui les caractérisent (voir figure 1). 3
16 La classe 1 représente 10% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à la
formation de cette classe sont liés aux questions sur l’in/égalité, portés par l’ensemble
de la population étudiée mais davantage encore par les élues de gauche et la catégorie
d’âge la plus jeune (32-53 ans).4
17 Dans cette classe, nous avons identifié quatre thèmes organisant les prises de position
des interviewées concernant la Loi sur la parité et les quotas: la division sexuelle du
travail, le principe du mérite, les résistances des hommes et la minimisation de la
discrimination personnelle.
18 Le premier thème est constitué par la division sexuelle du travail qu’elles voient comme
un obstacle à la mise en œuvre des mesures paritaires, et ceci indépendamment du fait
qu’elles sont favorables ou défavorables aux quotas. Comme l’illustre l’extrait suivant,
les interviewées estiment que le monde politique n’est pas capable de s’organiser sur
un mode égalitaire et que la difficulté, pour une femme, d’accéder au métier politique
est renforcée par sa charge de travail dans la sphère domestique:
Les femmes ont de nombreuses contraintes, ont beaucoup de difficulté à faire partie
d’une liste, d’autant plus qu’après, à mon avis, elles n’auront pas le temps de
pouvoir suivre. [Présidente d’une commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant
petit]
19 Une autre dynamique de genre qui fait obstacle à la mise en œuvre de la Loi sur la
parité tient au poids de l’idéologie méritocratique. L’ensemble des participantes, mais
avant tout les plus jeunes positionnées à gauche, estiment que l’égalité des sexes n’est
pas respectée si le principe du mérite n’est pas lui-même respecté. Concrètement, le
mérite se mesure aux efforts de la personne, à son investissement, à ses qualités et
compétences. L’on relèvera cependant que seul le mérite des femmes est évalué, celui
des hommes politiques va de soi. Ainsi, lorsqu’une femme est invitée à rejoindre une
liste, ce doit être parce qu’elle est compétente, et non pas pour faire nombre, pour
donner une bonne image du parti ou pour appliquer la loi, car sinon, cela serait injuste
pour les hommes:
Les quotas, c’est très injuste parce que ce que j’ai toujours vu, c’est qu’on finit par
remplir les listes avec des femmes qui étaient très peu impliquées auparavant, et
que les hommes sont placés comme suppléants, les malheureux, alors qu’ils sont
très compétents et se sont beaucoup donnés pour la cause. [Députée d’une
Assemblée municipale, gauche (PS), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]
20 Si l’idéologie méritocratique imprègne les conceptions de ces élues, c’est aussi parce
qu’elles savent que les hommes et les partis résistent à l’entrée des femmes en politique
et cherchent à préserver leurs privilèges masculins. En effet, elles font état des
stratégies que les partis, y compris le PS — qui a impulsé l’idée des quotas —, ont
développées ou développent encore pour détourner le sens premier, donc l’objectif
d’égalité, des quotas ou de la Loi sur la parité. Les militantes se montrent relativement
fatalistes, voire désabusées face à ces stratégies de résistance masculines, telles que
répartir les femmes dans les listes de manière à ce qu’elles ne soient pas élues, nommer
des femmes-alibis, ou encore augmenter le nombre de sièges pour que les hommes n’en
perdent pas un au moment où les femmes politiques en conquièrent quelques-uns,
comme l’exprime clairement cette élue:
Comme les hommes ne voulaient pas partir, la première fois que le quota des 25%
devait être appliqué, Guterres [ancien premier ministre] n’a changé qu’une seule
chose: il a augmenté de 25% le nombre de sièges dans les organismes nationaux, ce
qui prouve que le gros problème, jamais explicite, est que les hommes ne veulent
pas sortir. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants adultes]
21 Ainsi, d’un côté, les interviewées dénoncent les fortes résistances des hommes et des
partis à l’application de la parité. Mais de l’autre, elles se montrent très attachées au
principe du mérite individuel. Or, aux yeux de beaucoup, ce principe est incompatible
avec des mesures telles que les quotas, qui cherchent à corriger les positions
inégalitaires des groupes sociaux. Prises en quelque sorte entre le marteau (les
résistances masculines) et l’enclume (le mérite), elles semblent s’en dépêtrer en
évacuant l’idée qu’elles pourraient être personnellement discriminées:
Je n’ai jamais ressenti ça [être traitée autrement qu’un camarade], parce qu’ici il y a
toujours eu des femmes élues. Et c’était même le cas bien avant cette dernière règle
qu’est la Loi sur la parité. [Conseillère municipale, gauche (PCP), 35 ans, célibataire,
sans enfant]
Inégalités de genre
22 La classe 2 représente 30% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à la
formation de cette classe sont les réponses aux questions sur l’in/égalité et la
discrimination. Ils proviennent surtout des femmes politiques plus âgées (54-78 ans) et
de gauche.
23 Dans cette classe, nous avons identifié cinq thèmes: la discrimination que vivent les
femmes en général, la discrimination que vivent les femmes politiques, la fragilisation
des carrières politiques féminines, les différences entre hommes et femmes, en
particulier dans leur façon de faire de la politique, et les réponses, en termes
d’éducation ou de formation surtout, à donner aux inégalités de genre.
24 Le premier thème révèle que ces élues de gauche sont conscientes de l’existence des
discriminations auxquelles l’ensemble des femmes sont confrontées:
Je pense que oui, les femmes en général sont victimes de discrimination. Oui, il
suffit de regarder les statistiques et ça se voit. Elles sont victimes de discrimination
dans l’accès aux postes de responsabilité, n’est-ce pas? [Députée d’une Assemblée
municipale, gauche (BE), 44 ans, mariée, sans enfant]
25 Les femmes politiques sont également perçues comme un groupe discriminé, au même
titre que “les femmes en général”. Mais lorsque les interviewées dénoncent les
inégalités de genre à l’œuvre dans le monde politique, elles n’évoquent pas qu’elles
sont incluses dans cette catégorie. En d’autres termes, on est toujours ici dans le
registre de la discrimination collective et non dans celui de la discrimination
personnelle, dont on a vu auparavant (classe 1) qu’elle était minimisée:
Il n’y a pas autant de femmes que d’hommes dans la vie politique, cela signifie qu’il
y a bien une discrimination. Le système politique est essentiellement auto-éligible,
c’est-à-dire que les hommes sont choisis par eux-mêmes… ils sont proposés par eux-
mêmes, c’est ainsi. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants
adultes]
26 Plusieurs comportements masculins fragilisent la carrière politique des femmes. En
particulier, les plus âgées dénoncent le paternalisme de certains hommes politiques et
l’irritabilité de ceux qui ne supportent pas qu’elles fassent carrière. Elles observent que
les élues se sentent très visibles dans cet univers masculin et donc relativement
vulnérables, devant alors être plus performantes que les hommes afin d’être reconnues.
Dans ce contexte, les femmes font leur travail politique sous pression, d’autant plus
quand les soutiens professionnels et/ou privés font défaut:
La femme politique doit démontrer plus de choses, elle est plus sous observation et
plus visible. Elle est aussi plus fragile, parce que tout ça endommage sa vie
personnelle. Parce qu’un homme politique est généralement soutenu par sa femme,
tandis que le mari d’une femme politique, lui, s’associe moins avec elle, il la soutient
moins. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants adultes]
27 Un autre thème est centré sur la différence des sexes. Notamment, les femmes sont
perçues comme plus sensibles, plus humaines et plus pacifiques que les hommes, et ces
différences se reflètent dans leurs manières respectives de travailler en politique.
Parfois, la complémentarité entre hommes et femmes associée à la différence des sexes
est valorisée, mais surtout, les élues valorisent les qualités spécifiquement féminines et
espèrent que celles-ci seront le support d’un changement des pratiques en vigueur dans
le monde politique masculin:
Quand une femme est dans une position de leader, elle est meilleure qu’un homme.
Quand elle est bonne, elle est vraiment bonne… enfin, je veux dire, par
comparaison. [Députée d’une Assemblée communale, gauche (BE), 54 ans,
célibataire, sans enfant]
28 Le dernier thème est l’éducation à l’égalité. Du point de vue des interviewées, les
inégalités entre femmes et hommes en général et, plus spécifiquement, la sous-
représentation des femmes en politique, reposent en bonne partie sur la socialisation
différentielle des sexes. Dans cette perspective, l’intégration de valeurs égalitaires dans
les politiques d’éducation et de formation leur paraît un bon moyen d’améliorer le
destin des femmes:
Les femmes sont de meilleures leaders que les hommes, c’est prouvé. [Alors,
pourquoi n’arrivent-elles pas aux postes de pouvoir?] Je ne sais pas. Je ne
comprends pas. Ça ne peut être qu’une question de société, ça passe sous une forme
soft dans l’éducation. [Députée d’une Assemblée communale, gauche (BE), 54 ans,
célibataire, sans enfant]
29 La classe 3 représente 22% des UCE classées. Elle est formée par les discours sur la
compétence politique et, plus modérément, sur la mobilisation contre les inégalités de
genre. Ils émanent davantage des militantes âgées de 32 à 53 ans, indépendamment de
leur appartenance politique. Nous avons identifié quatre thèmes: les compétences
nécessaires en politique, les qualités personnelles, la reconnaissance des pairs et la
mobilisation pour l’égalité.
Les discours montrent que le spectre des compétences nécessaires au travail
politique est très étendu. La personne militante doit savoir communiquer, écouter,
observer, réfléchir, être disponible, honnête, humaine, humble, intelligente, in/
formée, compétente, travailleuse, avoir du bon sens, aimer la communauté,
connaître son entourage, être personnellement désintéressée, avoir de l’intérêt
pour la cause publique et s’y dévouer, servir le bien commun, défendre ses idéaux,
avoir le sens de la justice, une bonne capacité de travail et savoir prendre des
décisions:
30 Les caractéristiques importantes pour faire de la politique, ce sont le travail, la capacité
de travail, l’honnêteté, la compétence, l’écoute, et savoir communiquer. [Présidente
d’une commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]
31 Outre les compétences politiques, les qualités personnelles sont des outils importants
pour s’investir en politique. Pour expliquer leur engagement et à la fois rendre compte
de leur manière de militer, les jeunes élues mettent en avant leurs aptitudes
personnelles, se décrivant comme des personnes équilibrées, engagées, créatives et
avec un certain sens de l’humour, solidaires et ambitieuses:
En tant que personne, en tant que femme politique, en tant qu’étudiante, je suis
quelqu’un qui a de l’ambition, mais pas une ambition démesurée. J’ai une ambition
personnelle. Je suis une personne solidaire et très équilibrée. [Députée d’une
Assemblée municipale, gauche (PS), 33 ans, célibataire, sans enfant]
32 Cette conception exigeante de la profession politique, qui multiplie les compétences
politiques et les qualités personnelles attendues de l’élue, semble être le garant de la
reconnaissance par les pairs. Ainsi, sur un plan individuel, les interviewées s’estiment
généralement bien intégrées, respectées et non stigmatisées:
Mes collègues du conseil municipal me respectent. Personne ne dit: “elle fait ça
parce que c’est une femme”. Non, d’aucune façon. Au contraire, je sens un respect.
Je dirais même, sans fausse modestie, que certaines personnes ont de l’admiration
pour moi. Oui, c’est un fait. [Conseillère municipale, droite (PSD), 45 ans, mariée, 2
enfants petit et adolescent]
33 Le dernier thème est centré sur la mobilisation contre les inégalités de genre. Dans leur
parcours, toutes les interviewées ont déjà milité pour l’égalité, d’une façon ou d’une
autre, à travers un parti, une association ou un mouvement de femmes:
Oui, j’ai participé à plusieurs actions collectives [pour l’égalité] et à des initiatives
locales de la municipalité, ainsi que du MDM [Mouvement démocratique des
femmes]. [Conseillère municipale, gauche (PCP), 35 ans, célibataire, sans enfant]
34 La classe 4 représente 17% des UCE classées. Elle fait partie du deuxième groupe
thématique émergeant de la classification descendante hiérarchique effectuée par
Alceste. Les discours qui ont le plus contribué à la formation de cette classe sont liés à
la conciliation, résultant surtout des plus jeunes élues qui ont des enfants et sont
mariées. La “conciliation” entre le travail politique et la vie familiale est structurée
autour de trois thèmes: le travail domestique en tant que frein aux carrières politiques,
les compétences organisationnelles des mères et l’indispensable soutien du conjoint.
35 Le travail domestique, incluant les tâches ménagères, la prise en charge des enfants et
le soin aux parents, est un frein à la carrière politique des interviewées. Pour ces
femmes, le quotidien domestique représente une lourde charge de travail, qui rend
ladite conciliation difficile et conditionne leur investissement politique. Dans ce
contexte, elles tendent à déléguer une partie de ce travail à des membres de la famille,
à une femme de ménage ou à une crèche. Mais lorsqu’un de ces soutiens devient
défaillant, l’articulation de leurs diverses activités se fragilise. L’idée est même émise
qu’une femme engagée en politique aurait intérêt à ne pas avoir d’enfant. Le
militantisme, qui ne prévoit ni horaire ni week-end, se conjugue donc difficilement
avec une vie familiale qui elle aussi exige beaucoup de disponibilité:
J’ai une personne à la maison tous les jours. Elle s’occupe des tâches ménagères, du
nettoyage de la maison, de la lessive et elle m’aide avec les repas. Ce serait
impossible sans cette aide, car en fait, mon mari n’a pas non plus d’horaire pour
rentrer à la maison le soir, et s’il fallait, au moment où il rentre, avoir à faire le
dîner ou devoir sortir pour l’acheter, cela n’aurait aucun sens. [Présidente d’une
commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]
36 Les conditions dans lesquelles le travail domestique se fait étant un élément
fondamental de la possibilité même du militantisme des femmes mariées, ce travail leur
demande une organisation rigoureuse, où rien n’est laissé au hasard. Elles font ainsi
valoir leurs compétences organisationnelles comme un facteur d’ajustement important
entre le temps familial et le temps militant:
Le secret, c’est de bien rentabiliser le temps. Je dis toujours: la journée a 24 heures
pour tout le monde. Je ne perds pas de temps, je n’ai pas de temps mort. C’est
l’organisation qui est fondamentale. Toutes mes minutes sont importantes, très
importantes. [Conseillère municipale, droite (PSD), 45 ans, mariée, 2 enfants petit et
adolescent]
37 Le troisième thème sur le militantisme des femmes mariées est le soutien des conjoints
au travail domestique, et donc au travail politique de leur compagne. Les discours des
élues, tant de gauche que de droite, montrent que ce soutien masculin ne va pas de soi
et qu’elles doivent lutter pour obtenir que les tâches ménagères et éducatives soient
partagées au sein du couple. La contribution domestique de leur conjoint détermine les
modalités de leur engagement politique:
À la maison, rien n’a jamais été partagé. La responsabilité m’est toujours revenue,
particulièrement au niveau logistique. C’est évident par exemple avec mon fils. Et
cela m’a empêchée de faire de nombreux choix [notamment au niveau politique].
[Conseillère municipale, droite (PSD), 57 ans, mariée, 1 enfant adulte]
38 La classe 5 représente 21% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à sa
formation résultent avant tout des dynamiques du tokenism, de la mobilisation et de la
conciliation. Ils émanent principalement des élues de droite qui ont entre 54 et 78 ans.
Nous identifions deux thèmes qui ont trait au sexisme qu’elles rencontrent à partir de
leur double statut minoritaire, donc en tant que femmes et en tant que tokens: leurs
stratégies face aux agressions des dominants et le sexisme ordinaire des univers
professionnels masculins.
39 Tout au long de leur parcours, les élues plus âgées se sont fait régulièrement rappeler
par les hommes qu’elles sont d’abord des femmes, objets de conquête de ceux-ci. Dans
tous les espaces de vie (dans la rue, dans l’entreprise et dans le monde politique), ces
femmes ont fait l’expérience de regards masculins qui s’expriment avec plus ou moins
de violence, allant de tentatives de séduction déplacées à des agressions et du
harcèlement sexuel. Pour résister à ces rappels à l’ordre sexué et se défendre des
agressions, elles adoptent toutes sortes de stratégies. Notamment, elles utilisent
l’humour, cherchent à décourager leur agresseur en lui montrant qu’elles n’ont pas
peur de lui, feignent de l’ignorer pour éviter que la situation dégénère, et parfois lui
opposent une riposte frontale:
Quand je suis confrontée à une situation de discrimination, je suis frontale. Quand
je vois quelque chose que je n’aime pas, c’est quelque chose qui… je suis très…
impulsive! Vous voyez? Moi, devant une telle situation, je réagis à chaud, ce qui,
parfois, n’est pas très bon. [Présidente d’une commune, droite (PSD), 53 ans, mariée,
sans enfant].
40 Dans les partis de droite, les discours des élues mettent également en avant qu’elles
sont ou ont été renvoyées à leur statut de femme par des comportements plus subtils,
qui relèvent d’un sexisme ordinaire et routinier. Ainsi, dans leur quotidien politique ou
professionnel, il leur est arrivé plus d’une fois de se voir dénié, par les hommes, le droit
à la parole, de disparaître derrière l’usage généralisé du masculin ou d’être tenues à
l’écart des informations:
Un jour dans l’entreprise où je travaillais, l’un des directeurs a dit à la fin d’une
réunion: “J’ai encore deux ou trois questions, mais on verra ça plus tard.” Le
président lui dit: “Comment ça, plus tard?” Le directeur, jetant un œil dans ma
direction, lui a répondu: “J’en parlerai avec vous plus tard.” Le président lui a dit:
“Non, les choses de l’entreprise, nous devons en parler ici.” “Pas possible en sa
présence” semblait penser le directeur en se tournant de nouveau vers moi
[Conseillère municipale, droite (PSD), 57 ans, mariée, 1 enfant adulte]
Discussion
41 Nous proposons de discuter les dynamiques de genre qui œuvrent dans le contexte du
tokenism en distinguant celles qui relèvent de stratégies de contestation de l’ordre
social sexué par les femmes politiques et celles qui contribuent à le maintenir, incluant
aussi bien les discriminations exercées par le groupe dominant que certaines des
stratégies adoptées par ces femmes. En particulier, cette discussion des résultats sera
attentive à l’ancrage social (âge, statut familial et appartenance politique) des
dynamiques observées, car même si la plupart des interviewées ont contribué à la
ou du moins dans leur parti. Si tel est le cas, leur évaluation de la discrimination
personnelle n’est pas du déni. Mais il est aussi possible que leur place dans le groupe
dominant soit encore plus difficile à consolider que celle des élues plus âgées, parce que
leur entrée en politique a eu lieu, en moyenne, 10 ans plus tard que leurs aînées. Le cas
échéant, la sous-estimation du sexisme de leurs camarades masculins serait alors un
moyen de poursuivre leur carrière, en ne se laissant pas enfermer dans un statut de
“femme dominée”. Cette volonté de sortir d’un statut inférieur est fort bien illustrée
par la manière dont les plus jeunes interviewées, indépendamment de leur
appartenance politique, conçoivent leur métier: l’élue doit cumuler toutes les qualités
et toutes les compétences possibles et imaginables (classe 3) et doit faire une double
journée de travail ou tout au moins assurer ladite conciliation de ses engagements
politiques et familiaux, aussi bien envers ses enfants et ses parents qu’envers son
conjoint dont le soutien lui fait trop souvent défaut (classe 4). Il faut relever que ce
manque de soutien est déploré par les militantes de droite comme de gauche: la
division sexuelle du travail au sein des couples transcende les oppositions idéologiques.
44 Un autre résultat appuie l’idée que les plus jeunes cherchent à contrer leur assignation
à un groupe d’appartenance dominé en profilant une sorte de superwoman capable de
tout gérer à la fois: leur attachement au principe du mérite (classe 1). Même favorables
à la Loi sur la parité, elles subordonnent sa mise en œuvre au respect et à la
reconnaissance des mérites individuels, en particulier celles qui militent au PS. Ce
faisant, elles prennent un risque, car elles savent que ce sont toujours le mérite et les
compétences des femmes qui sont questionnés, rarement le mérite et les compétences
des hommes. Mais elles observent aussi les stratégies que les hommes politiques et les
partis, y compris le leur, qui est à l’origine de la mise en place des quotas au Portugal,
déploient pour ne pas appliquer la Loi sur la parité, détournant de multiples manières
l’objectif d’égalité qu’elle est censée concrétiser (classe 1). Du coup, dans ce contexte
ambivalent où l’égalité est censée s’accommoder du maintien des privilèges des
hommes, l’adhésion à l’idéologie méritocratique paraît relever d’une stratégie que les
jeunes élues de gauche mobilisent pour forcer les partis à repenser leur conception de
l’égalité des sexes et pour mener à bien leur carrière malgré leur position de tokens.
Peut-être même est-ce là une stratégie visant à faire oublier qu’elles sont des femmes,
un objectif qui intéresserait nettement moins les interviewées plus âgées.
45 En effet, ces dernières sont particulièrement attentives, surtout dans les partis de
gauche, à la différence des sexes et valorisent des qualités qu’elles jugent
spécifiquement féminines (e.g., le pacifisme, classe 2). Adoptant d’autres modes de
travail que les hommes politiques, elles estiment que les femmes, pour autant qu’elles
soient féministes, pourraient rendre plus égalitaires le fonctionnement des partis et la
nature même de la politique (classe 2). Dans cette perspective, leurs stratégies d’action
prioritaires visent à changer les mentalités, à travers des politiques d’éducation et de
formation qui devraient être aptes à contrer la socialisation différentielle des sexes
toujours dominante aujourd’hui. Les plus jeunes pour leur part évoquent rarement ce
type de politiques et se centrent davantage sur ce qu’elles peuvent faire depuis
l’intérieur du parti ou d’une association pour lutter contre les inégalités de genre
(classe 3).
46 Notre étude a montré que l’application de la Loi sur la parité au Portugal ne bouleverse
pas l’ordre de genre structurant la politique locale et va dans le même sens que les
travaux cités en introduction qui ont été menés dans d’autres domaines professionnels:
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NOTES
1. Nous avons utilisé la méthode de “classification descendante hiérarchique” que propose
Alceste: à partir des (co)occurrences de mots et d’un découpage des discours en “unités de
contexte”, le logiciel crée des classes thématiques qui permettent d’identifier l’organisation des
discours.
2. La dispersion des 22 interviewées entre les cinq partis rendait délicate une analyse effectuée
au sein de chaque parti.
3. Alceste a classé 74% du corpus, ce qui constitue un bon indice de pertinence.
4. Le fait qu’un groupe d’interviewées soit plus représenté dans une classe ne signifie pas que les
discours des autres élues ne contribuent pas à la formation de la classe.
RÉSUMÉS
L’article présente une recherche sur les dynamiques de genre œuvrant dans un contexte de
tokenism: la politique. Vingt-deux femmes politiques portugaises ont été interviewées. Leurs
stratégies pour se faire une place dans le monde masculin de la politique sont surtout
déterminées par l’âge: les plus âgées luttent contre les discriminations de genre et privilégient
des compétences féminines, tandis que les plus jeunes valorisent le profil de la superwoman qui se
distancie de son groupe socialement dominé, au risque de dénier la discrimination vécue, et se
montrent très attachées à l’idéologie méritocratique menacée par les quotas.
O artigo apresenta uma investigação sobre as dinâmicas de género que operam num contexto de
tokenism: a política. Vinte e duas mulheres políticas portuguesas foram entrevistadas. As suas
estratégias para assegurar um lugar no mundo masculino da política são sobretudo determinadas
pela idade: as mais velhas lutam contra as discriminações de género e privilegiam as
competências femininas, enquanto as mais jovens valorizam o perfil da superwoman, que se
distancia do seu grupo socialmente dominado, correndo o risco de negar a discriminação
experimentada, e mostram-se muito ligadas à ideologia meritocrática ameaçada pelas quotas.
The article presents a research on the gender dynamics operating in a tokenism context: politics.
Twenty-two Portuguese female politicians were interviewed. Their strategies to get a place in the
masculine world of politics is mainly determined by the age: whereas the older women fight
against gender discriminations and favor women’s skills, the younger value the superwoman
profile that distance themselves from their socially dominated group, at the risk of denying the
experienced discrimination, and are very attached to the meritocratic ideology threatened by the
quotas.
El artículo presenta una investigación sobre las dinámicas de género que operan en un contexto
de tokenism: la política. Veintidós mujeres políticas portuguesas fueron entrevistadas. Sus
estrategias para hacer su lugar en el mundo masculino de la política están principalmente
determinadas por la edad: las de más edad luchan contra las discriminaciones de género y
favorecen las competencias femeninas, mientras que las más jóvenes favorecen el perfil de la
superwoman, que se distancia de su grupo socialmente dominado, al riesgo de negar la
discriminación experimentada, y se muestran muy apegadas a la ideología meritocrática
amenazada por las cuotas.
INDEX
Palavras-chave : tokenism, política, género, discriminação, discursos
Palabras claves : tokenism, política, género, discriminación, discursos
Keywords : tokenism, politics, gender, discrimination, discourses
Mots-clés : tokenism, politique, genre, discrimination, discours
AUTEURS
MARIA HELENA SANTOS
Psychologue sociale, investigadora de pós-doutoramento à l’Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE-IUL) (CIS-IUL), Lisbonne, Portugal, et Centre en Etudes Genre LIEGE, Université de
Lausanne, Lausanne, Suisse. E-mail: [email protected]
PATRÍCIA ROUX
Ancienne professeure en Etudes Genre à l’Université de Lausanne et co-rédactrice en chef de la
revue Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, Suisse. E-mail: [email protected]
LÍGIA AMÂNCIO
Psychologue sociale et professeure à l’Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) où elle dirige
le Centre de Recherche en Psychologie (CIS-IUL), Lisbonne, Portugal. E-mail:
[email protected]
Introdução
1 Pós-modernidade (e.g. Lyotard, 1989; Harvey, 1989; Baudrillard, 1991; Jameson, 1995),
modernidade tardia (Giddens, 2002) e sociedade pós-paradigmática (Simon, 1996) são
alguns dos termos imortalizados pelas ciências sociais para definir a nossa
contemporaneidade — um tempo, segundo os autores, fortemente marcado pelo
pluralismo, pelo alargamento das escolhas individuais e pela constante redefinição das
noções espaciotemporais.
2 Para vários autores, tais mudanças têm um impacto significativo também na forma
como vivemos e representamos a intimidade. No que à sexualidade e à revisão dos
papéis de género diz respeito, a atual conjuntura tende, de resto, a ser entendida como
resultado de uma “revolução sexual”: “a revolution that created a temporal
compression such that […] it becomes difficult to speak of many dominant sexual
homogenities” (Simon, 1996: 27). Qual metáfora do discurso público (Scott, 1998), a
ideia de revolução é promovida tanto nos media como no discurso científico para
reforçar o impacto de mudanças operadas nas décadas de 1960 e 1970, no sentido da
sempre que admitir a possibilidade de existir um hiato entre as atitudes que as pessoas
expressam no momento da entrevista e aquelas que são as suas práticas reais. Partimos
para a análise conscientes das limitações deste exercício mas, independentemente das
verdades de cada um, os discursos que se produzem sobre sexualidade, género e
intimidade são importantes portadores de sentidos e é precisamente disso que aqui
pretendemos dar conta. Em suma, neste artigo, para pensar as resistências que na
contemporaneidade continuam a colocar-se à consagração do ideário moderno de
libertação sexual, propomo-nos recorrer, com caráter ilustrativo, a opiniões, atitudes,
normas e valores (em suma, aos sistemas de representações sociais) que os
entrevistados jovens partilharam acerca de dois tópicos-chave dos estudos sobre vida
íntima — a (des)igualdade de género e a (não) aceitação da diversidade de orientações
sexuais.
à consciência” (Bourdieu, 1999: 82). Assim, na sua relação com a sexualidade, o género
continua a constituir um forte princípio de organização da realidade e a persistência do
duplo padrão (isto é, de um quadro normativo que dita modelos de conduta distintos
em função do género) assume-se como obstáculo ao ideal de sexualidade liberta de
constrangimentos e discriminações.
11 Quando, nas entrevistas realizadas, questionámos os indivíduos acerca das mudanças
ocorridas no campo da sexualidade, a tendência — não só no grupo aqui analisado mas
transversal às diferentes gerações entrevistadas — foi o reconhecimento de que muita
coisa se alterou nas últimas décadas em virtude da revisão dos papéis de género na
sociedade. Com efeito, os discursos tenderam a atribuir às mulheres o epicentro das
transformações, sendo os homens entendidos como “retardatários” de tais mudanças,
na linha do que nos sugerem autores como Giddens (2001). Neste sentido, as mudanças
verificadas nas trajetórias das mulheres parecem, aos olhos dos entrevistados, ser mais
abruptas e significativas, sendo as verificadas na vida dos homens uma consequência
necessária de adaptação da masculinidade às novas regras.
Acho que a mudança do papel do homem se deve à mudança do papel da mulher. Ou
seja, o homem não muda por livre vontade, porque quer ir trabalhar e porque lhe
apetece cozinhar, mas acho que isso se impõe por uma maior afirmação do papel da
mulher. [Inês, 24 anos, pós-graduação, psicóloga, Lisboa]
12 Efetivamente, nos discursos juvenis sobre mudanças nas relações de género e na
sexualidade, damo-nos conta da prevalência de posturas otimistas que se
consubstanciam na valorização de fenómenos tão diversos como a igualdade de género
na vivência da sexualidade, a multiplicação de meios para a construção das
experiências, o maior acesso a informação sobre sexualidade, a atenuação do controle
(social, familiar…) exercido sobre as práticas de rapazes e raparigas, a pluralização de
scrips da sexualidade, etc. Todavia, apesar da vastidão dos princípios de liberalização
enumerados, o confronto com as práticas reais dos sujeitos ou com os seus julgamentos
face às condutas concretas de outrem revela-nos que a construção de um ambiente
social efetivamente livre e igualitário em termos de género parece ser mais um recurso
estilístico que uma conquista real e inabalável nesta geração. Neste quadro, os discursos
dos jovens entrevistados revelam-se ainda muito ambivalentes, oscilando, no que ao
género diz respeito, entre a celebração da igualdade de oportunidades e a reedição
(normalmente, pouco consciente) do duplo padrão de género.
13 Com efeito, uma das tensões normativas que adiam a superação do duplo padrão tem
justamente a ver com o facto de, na sociedade ocidental contemporânea, a informação
sobre sexualidade feminina e a diversificação das experiências das mulheres não
aniquilarem dilemas relacionados com a respeitabilidade social e a decência moral das
mulheres. Apesar dos discursos amplamente difundidos do prazer sexual feminino e da
aproximação dos comportamentos das mulheres aos padrões de diversidade masculinos
(mais parceiros e maior atividade sexual), para vários autores, a dupla moral que
qualifica as mulheres como “sérias/respeitadas” ou “fáceis” não caiu completamente
em desuso. Neste sentido, continuamos a assistir à reprodução de esquemas associados
a uma heterossexualidade compulsória (Rich, 1980), isto é, de uma conceção
institucionalizada da sexualidade na qual a mulher surge como dependente da
orientação e da iniciativa masculinas.
14 Entre os discursos recolhidos verificamos que tal dicotomia é muitas vezes apontada
pelos indivíduos como injusta e obsoleta, traduzindo uma desigualdade do passado. No
16 Por outro lado, refira-se que, para além de este escrutínio operar na produção de
avaliação negativa sobre as condutas de outrem (de outras raparigas), também no que
toca à autoavaliação, os testemunhos das entrevistadas são pródigos em defender a sua
própria conduta, reclamando para si um certificado de respeitabilidade sexual. No
entanto, na maioria das vezes, esta salvaguarda assume uma forma mais implícita que
explícita, integrando-se numa postura de suposta tolerância face ao outro.
Não tenho nada a ver com a vida das outras pessoas, eu não o fazia, mas… [Carolina,
18 anos, estudante universitária, Loures]
Cada um sabe de si, não é? Eu não tenho feitio para isso, mas tenho amigas minhas que
têm… [Susana, 29 anos, curso técnico-profissional, empregada administrativa,
Lisboa]
17 Desta forma, damo-nos conta que, apesar de a mudança nas relações de género ser
indesmentível e bastante valorizada pela generalidade dos entrevistados, a divisão
binária da sociedade em homens e mulheres continua muito atual e constitui um
refúgio identitário importante mesmo entre os mais jovens. Tal como Bozon (2002)
refere, em matéria de sexualidade, homens e mulheres continuam a ser entendidos
como seres opostos sendo, muitas vezes, esta oposição justificada em termos das
diferenças de natureza psicológica de cada género. De uma maneira geral, os homens
são pensados como agentes “com desejo sexual” e independentes e as mulheres são
entendidas como objetos desse desejo, sendo a sua agência sexual pouco valorizada
simbolicamente.
18 Assim, as representações de género ou os discursos sobre as diferenças produzidos no
contexto das entrevistas podem ser bastante elucidativos do quão atual e operante se
mantém o duplo padrão. Com efeito, verificamos que se entre os mais jovens começam
a ganhar visibilidade os apelos retóricos à fluidez das identidades de género (dizia-nos
uma entrevistada: “Nem todos gostamos do mesmo e nem todos esperamos o mesmo
dos outros, por isso as coisas não são assim. Não gosto nada que apregoe que homens
são todos iguais ou que as mulheres são todas iguais”), por norma, a generalidade das
pessoas assume as categorias de género como constitutivas da razão simbólica
(Heilborn, 1992), fazendo recair sobre elas uma parte importante da sua consciência
identitária e dos pressupostos das suas relações.
19 De facto, para Jackson e Scott (2004), uma das antinomias que melhor caracteriza a
dubiedade normativa contemporânea é a que se refere às expectativas que os
indivíduos depositam nas relações de género. Segundo as autoras, a relação entre
homens e mulheres quer-se de igualdade e simultaneamente de diferença — um
paradoxo que resulta da tensão entre os ideais igualitários e a ênfase nas diferenças
“naturais” entre sexos. E, efetivamente, a análise dos discursos dos entrevistados jovens
— e em especial das nossas entrevistadas — parece convalidar uma “situação de
dualidade normativa entre valores e atitudes emergentes de tendência igualitária e as
disposições incorporadas e materializadas em práticas quotidianas que tendem a
reproduzir as distinções sociais de género” (Coelho, 2008: 28). No entanto, afirmar a
coexistência entre os significados modernos e os arquétipos tradicionais de género na
sociedade não significa apenas assumir que umas pessoas (gerações e grupos sociais)
aderem a normas mais permissivas, enquanto outras continuam a protagonizar atitudes
mais conservadoras. Trata-se antes de perceber que a pluralidade que ressalta no
retrato social pode habitar cada um dos seus indivíduos, relembrando a natureza
híbrida das identidades pessoais modernas num mundo repleto de múltiplos e
contraditórios significados (Weeks, 1995).
20 É desta forma que constatamos que mesmo aqueles que mais se envolvem na denúncia
das desigualdades de género e que adotam condutas mais liberais acabam, muitas vezes,
por também protagonizar a acomodação a um essencialismo renovado e,
consequentemente, ao reforço do esquema binário ordenado pela natureza. É isto que
vemos acontecer, com alguma clareza, em casos como os de Raquel ou Sara, por sinal,
duas jovens cujas trajetórias e reflexividade discursiva as inserem entre os perfis mais
emancipatórios e experimentalistas da amostra de entrevistados, mas que, não
obstante, também reproduzem afirmações como as seguintes:
As mulheres são mais sentimentalistas e dão mais importância a tudo […] [porque]
as mulheres é que geram os filhos.
Os homens têm muito mais… não é desejo que eu quero dizer, mas talvez impulso.
Os homens são muito mais carnais, têm aquelas necessidades que têm que ser
mesmo satisfeitas, as mulheres não, são mais emocionais.
Elas é que têm a criança na barriga [e isso] tem tudo a ver.
Eles são […] muito parecidos entre eles, mas isso em conversas com raparigas nota-
se que os homens são todos muito parecidos e que nós também somos todas muito
parecidas. [Raquel, 27 anos, ensino secundário, assistente de produção, Almada]
Acho que os homens têm muita razão quando dizem que as mulheres complicam,
acho que eles têm razão. Têm muita razão. Nós somos umas chatas, somos muito
chatinhas. Eles também são uns totozinhos às vezes. […] É verdade que homens e
mulheres pensam de forma diferente, ou pelo menos acho que os homens e as
mulheres pensam as coisas de forma diferente e veem as coisas de forma diferente.
[Sara, 28 anos, pós-graduação, assessora de imprensa, Lisboa]
21 Assim, apesar de aqueles que protagonizam a emergência da ética sexual moderna
insistirem numa retórica de condenação do duplo padrão, a verdade é que muitas vezes
as suas trajetórias bem como os seus discursos sobre experiências vividas derivam num
reforço involuntário e até pouco consciente da lógica binária que diferencia a
masculinidade da feminilidade. Concretamente, verificamos que a emancipação sexual
feminina (premissa fundamental de um ideário libertário da sexualidade), sendo
sobejamente aclamada pelos indivíduos e em especial pelos mais jovens, acaba por
significar uma emancipação regrada dentro dos limites postulados pela reprodução das
identidades de género, ou seja, pela ordem das suas desigualdades (Bloss e Frickey,
1994).
Notas finais
36 Neste artigo quisemos salientar alguns limites que se colocam ao ideário da liberdade e
igualdade sexuais. Para o efeito, fizemos incidir a nossa análise sobre dois domínios
temáticos específicos, chamando a atenção para a persistência de desigualdades e
tensões que, mesmo no contexto atual de pluralização de escolhas legítimas, continuam
a condicionar as condutas individuais, obstando à plena consagração das liberdades
sexuais.
37 Combinando a revisão de literatura com ilustrações discursivas recuperadas de
entrevistas biográficas realizadas a rapazes e raparigas, julgamos ter saído reforçada a
ideia de que, não obstante os discursos apontarem para uma individualização dos
valores e dos comportamentos nos jovens, as mudanças neste sentido não são unívocas
nem transversais a todos os temas e contextos, continuando o usufruto das novas
liberdades a estar sujeito a uma regulação ativa e fortemente associada à ordem de
género e à heteronormatividade.
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NOTAS
1. O termo quase-mercado designa contextos organizacionais em que, apesar de existir
financiamento ou cofinanciamento por parte do estado, também estão presentes mecanismos de
funcionamento de mercado (Bertolin, 2011).
2. Para o estudo, foram realizadas entrevistas a 22 linhagens familiares (11 masculinas e 11
femininas), perfazendo um total de 66 pessoas entrevistadas (33 homens e 33 mulheres).
Começando pela geração mais nova (justamente, aquela cujos discursos são aqui mobilizados) a
estratégia de constituição da amostra recaiu em entrevistar famílias cujos jovens se
encontrassem em distintas situações de transição da escola para a vida profissional. Embora não
houvesse o intuito de formular um estudo representativo, a distribuição da amostra procurou
garantir a diversidade dos perfis sociais dos entrevistados. Assim, entre os 22 jovens
entrevistados, observavam-se desde casos de abandono escolar precoce até situações de
completude dos estudos superiores.Para maior aprofundamento acerca das características sociais
da amostra e da sua relação com os resultados da pesquisa, ver Neves (2013).
3. Perante isto, não podemos, contudo, deixar de colocar a hipótese de tais juízos fazerem parte
de uma performance de quem procura projetar uma determinada imagem diante do/a
entrevistador/a.
RESUMOS
Partindo do princípio de que os jovens são portadores de normas mais tolerantes e
individualistas que as das gerações anteriores, o artigo vem recuperar excertos de entrevistas
biográficas aplicadas a rapazes e raparigas e questionar os limites do ideário de liberalização
sexual. Para isso, a análise centra-se em duas dimensões fundamentais dos discursos sobre
mudança na sexualidade: a igualdade de género e a aceitação da diversidade sexual. Sem negar a
crescente flexibilização das normas e dos percursos afetivos e sexuais dos indivíduos, pretende-se
mostrar como a vivência da sexualidade reflete um movimento de liberalização das condutas
apenas nos limites do prescrito, estando tais condicionantes ainda muito associadas às diferenças
de género e à heteronormatividade.
Assuming that young people have more tolerant and individualistic standards than the previous
generations, this paper uses excerpts from biographical interviews applied to boys and girls to
question the limits of the sexual liberalization ideology. To do that, the analysis focuses on two
key dimensions of the discourses on changes in sexuality: the gender equality and the acceptance
of sexual diversity. Without denying the growing flexibility of affective and sexual norms and
trajectories, we seek to show that the experience of sexuality reflects a movement towards the
liberalization of the conducts only in the prescribed limits, being such constraints attached to
the gender differences and to the heteronormativity.
En partant du principe que les jeunes sont porteurs de normes plus tolérantes et individualistes
que celles des générations précédentes, cet article reprend des extraits d’entretiens
biographiques auprès de garçons et de filles et il s’interroge sur les limites des idéaux de
libération sexuelle. L’analyse se centre sur deux dimensions fondamentales des discours sur les
changements dans la sexualité: l’égalité de genre et l’acceptation de la diversité sexuelle. Sans
pour autant nier la croissante flexibilisation des normes et des parcours affectifs et sexuels des
individus, l’article s’efforce de montrer comment le vécu de la sexualité reflète un mouvement de
libéralisation des conduites uniquement aux limites du prescrit, ces contraintes étant encore très
associées aux différences de genre et à l’hétéronormativité.
Partiendo del principio de que los jóvenes poseen normas más tolerantes e individualistas que las
generaciones anteriores, el artículo viene recuperar extractos de entrevistas biográficas de
jóvenes hombres y mujeres con el objetivo de reflexionar sobre los límites de la liberalización
sexual. Para eso, el análisis se va centrar en dos dimensiones clave de los discursos sobre los
cambios en la sexualidad: la igualdad de género y la aceptación de la diversidad sexual. Sin
denegar la creciente flexibilidad en las normas y trayectorias afectivas y sexuales, se concluye
que la experiencia de la sexualidad refleja un movimiento hacia la liberalización de las conductas
en los límites establecidos, estando tales limitaciones muy vinculadas a las diferencias de género
y a la heteronormatividad.
ÍNDICE
Palavras-chave: revolução sexual, género, orientação sexual, discursos juvenis
Palabras claves: revolución sexual, género, orientación sexual, discursos juveniles
Mots-clés: révolution sexuelle, genre, orientation sexuelle, discours des jeunes
Keywords: sexual revolution, gender, sexual orientation, youth speeches
AUTOR
DULCE MORGADO NEVES
Investigadora no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos
de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail:
[email protected]
João Mineiro
Introdução
1 As universidades nas sociedades ocidentais têm pelo menos 928 anos de história.
É nessa história, em particular nos séculos XIX e XX, que se estruturam as
universidades modernas. Contudo, pese embora essa contextualização, que também
abordaremos, este artigo centra-se nas transformações do campo universitário
português entre 1988 e 2015, respondendo a três grandes questões. Quais foram as
principais transformações no ensino superior português nos últimos 27 anos? O que nos
revelam elas sobre as conceções em disputa entre os agentes? Podemos falar de um
campo universitário com uma autonomia relativa no atual quadro do neoliberalismo e
das mutações na organização do estado?1
2 Centrado na análise de entrevistas a atuais e antigos reitores e dirigentes estudantis,
procurarei desenvolver três tipos de análise. Em primeiro lugar, irei explicitar as
transformações que, segundo os agentes, são mais relevantes para perceber a transição
da universidade portuguesa, discutindo-as no quadro das transformações económicas,
sociais e políticas desde a segunda metade do século XX. Em segundo lugar, analisarei
os principais dissensos que se identificam nos discursos dos agentes em torno das
transformações do campo universitário. Finalmente, discutirei como estas
transformações e disputas nos ajudam a refletir sobre as características de um campo
universitário português, enquanto campo social com autonomia relativa no espaço social.
5 Concentramo-nos no caso das universidades públicas2 e nos seus dois maiores corpos:
professores e estudantes. Mas, procurando uma análise em torno do poder, analisarei
os discursos de uma parte específica destes corpos: reitores e dirigentes estudantis. Do
ponto de vista espaçotemporal centramo-nos nos últimos 27 anos, isto é, entre 1988 e
2015, e em oito universidades públicas, nomeadamente: Universidade de Lisboa (UL),
Universidade Nova de Lisboa (UNL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL),
Universidade de Coimbra (UC), Universidade do Porto (UP), Universidade da Beira
Interior (UBI), Universidade de Aveiro (UA) e Universidade do Algarve (UAlg).
6 A amostra mobilizada foi de 18 entrevistados, entre os quais oito atuais ou antigos
reitores e dez atuais ou antigos dirigentes estudantis. Esta amostra procurou refletir
quatro critérios: (a) a diversidade de universidades públicas em termos de dimensão e
de localização; (b) a amplitude do ciclo temporal em estudo; (c) a representação da
diversidade de protagonistas com responsabilidades universitárias no período em
análise; e (d) o critério da diversidade de pontos de vista políticos sobre as principais
transformações em análise.
hegemonia da escola keynesiana e o fim dos acordos de Bretton Woods mudaram o ciclo
político, referindo Rui Canário (2005) que na educação se passou do “tempo de
promessas”, para um “tempo de incerteza”.3 É nesse contexto que se desenha um novo
paradigma com a eleição de Tatcher (1979) e Regan (1981) e com o estabelecimento do
“Consenso de Washington” em 1989, onde instituições como o Fundo Monetário
Internacional (FMI) ou o Banco Mundial (BM) passam a ter a função de consolidar o
processo de neoliberalização que visou a redução da despesa pública, as privatizações e
a desregulação.
Quadro 3 Percentagem de alunos por natureza do sistema de ensino superior entre 1960 e 2013
Figura 1 Evolução do valor da propina máxima e mínima em euros entre os anos letivos de 1992/93
e 2014/15 no ensino superior público (a preços correntes)
27 O aumento das propinas desde 1992, acompanhado nos últimos anos com o que
Boaventura de Sousa Santos (Santos e Filho, 2008) designa descapitalização pública da
universidade, conduziu a posicionamentos muito distintos. No quadro das entrevistas,
identificamos três posições em confronto. A primeira refere-se àqueles que são
explicitamente contra a fixação das propinas, na medida em que a justiça social se deve
fazer por via fiscal e em que constitui um dever do estado proporcionar a tendencial
gratuitidade do ensino superior. A segunda refere-se aos que afirmam que não há
alternativa, quer pelo peso que as propinas têm no orçamento das instituições, quer por
razões estratégicas de exigência de mais financiamento público. A terceira posição
reflete-se em quem concorda com o princípio das propinas pelas vantagens individuais
que os diplomados têm no mercado22 ou porque elas devem servir para a melhoria da
qualidade ou da ação social.
28 Uma dimensão fundamental da transformação do campo universitário teve que ver com
a mudança nos órgãos de gestão. Vários reitores argumentam que a redução dos
membros do Conselho Geral, em relação aos principais órgãos, estabelecidos em 1988,
não introduz um caráter menos democrático uma vez que as universidades podem criar
outros métodos de auscultação. Outros destacam o facto de a dimensão excessiva dos
antigos órgãos criar desresponsabilização. Contudo, vários agentes referem que o RJIES
“é um sistema claramente menos democrático” porque faz com que os corpos
participem cada vez menos na vida interna da universidade. Hoje as posições
confrontam-se entre a necessidade de eficiência dos órgãos e a exigência da
participação interna em órgãos democráticos e representativos.
29 Uma das transformações mais importantes no que respeita aos órgãos de gestão foi o
fim da paridade entre docentes e estudantes. Mas esse não foi o único fator de dissenso.
Outro teve a ver com a introdução de membros externos. Para Júlio Pedrosa, antigo
reitor da UA, é “trazerem para dentro vozes de fora, o que é boa notícia, porque as
universidades são entidades públicas”, mas outros agentes universitários defendem um
modelo alternativo em que os membros externos estariam numa estrutura consultiva
da instituição, e não nos seus órgãos deliberativos.
32 Como defendi noutra ocasião (Mineiro, 2015), a mais recente literatura sobre a noção de
“empregabilidade” mostra como ela adquiriu um uso ideológico muito forte,
relacionado com o tipo de formação que os diplomados supostamente devem ter para
estarem “empregáveis”. Mas para além do debate sobre as “competências de
empregabilidade” nos currículos, uma das questões muito presentes é a definição das
vagas de cada instituição em função dos “índices de empregabilidade”. As opiniões
dividem-se entre os que acham que o sistema deve ser regulado tendo em conta estes
indicadores e aqueles que consideram que este não é um fator crucial a ter em conta.
33 Uma outra disputa entre os agentes no quadro da implementação do RJIES teve que ver
com a introdução do regime fundacional. Se para uns agentes este regime “reforça as
lideranças”, permite “uma maior responsabilidade de quem dirige”e garante
universidades mais “ágeis” e “flexíveis”, para outros ele “parece ser claramente uma
porta aberta para dinâmicas de privatização”. Na verdade, o modelo fundacional
mantém dimensões de natureza pública (como sejam as regras da fixação de propinas
ou de vagas), mas introduz mecanismos de gestão privada que estão longe de ser
consensuais entre as universidades públicas.
34 O conceito de excelência é dos mais marcadamente polissémicos, mas também dos mais
usados na apresentação das instituições. Para alguns agentes a universidade de
excelência é a que consegue atingir os patamares de empregabilidade, eficiência
formativa e investigação, e ter “capacidade de se gerir por si própria”; para outros ele é
um conceito “vazio” ou “chavão”, relacionado com a mercantilização das
universidades.
disputas destes 27 anos, nos podem revelar sobre o lugar da universidade nas dinâmicas
da sociedade contemporânea?
campo. Dessa doxa faz parte precisamente o que Bourdieu (2001) chama “sentido do
jogo”, isto é, um certo senso prático que faz com que os agentes, ao jogarem, respondam
às exigências das regras do campo, aceitando as regras inerentes à disputa da posse de
um conjuntos de capitais transponíveis para o conjunto do espaço social. 27
entendidos como clientes; (l) o acesso à universidade deixou de ser entendido como um
direito, por meio da cidadania, mas sim como um serviço, por meio do consumo.
53 A reconfiguração das universidades mostra-nos que a diluição das fronteiras entre o
campo universitário e o campo económico se concretiza precisamente no quadro das
transformações do próprio estado. Mas ao constituírem um campo social, as
universidades não viram estas transformações ocorrer sem intensas disputas internas
que, em muitos casos, continuam em aberto.
54 No final dos anos 80, em La Noblesse d´Etat (1989) Bourdieu analisa a estrutura da
educação francesa organizada entre as grandes écoles, de formação de elite, e as
universidades, instituições de massas e que não estão necessariamente ligadas ao mundo
do trabalho. Uma das dimensões da diferenciação é precisamente a dualização
institucional que tende a mimetizar as desigualdades sociais no sistema de educação.
Mas o que sobressai nesta pesquisa não é tanto uma disputa sobre a diferenciação
interna no sistema universitário português, mas sobretudo sobre a relação que o campo
universitário estabelece com os campos que o circundam.
55 Na verdade, as disputas dos agentes sobre algumas das matérias mais estruturantes do
processo de mudança dos últimos 27 anos são reveladoras de disputas mais amplas
sobre a natureza da autonomia do campo universitário, nomeadamente na sua relação
com o estado, o mercado e a sociedade. Com o estado quando, por exemplo, no quadro
da Lei da Autonomia Universitária, do RJIES ou dos novos processos de avaliação, se
opõem conceções sobre o grau de autonomia que o poder político deve atribuir às
instituições. Com o mercado quando, no quadro do aumento das propinas, das novas
regras de gestão ou dos novos valores em emergência, se disputam posições sobre a
maior ou menor necessidade de mimetismo com esfera privada. E com a sociedade,
porque no conjunto das transformações que analisei se opõem visões distintas sobre o
tipo de interação que a universidade deve estabelecer com a sociedade em que se
inscreve. O desenho da autonomia do campo universitário, nomedamente na sua
permeabilidade ao poder político e económico, parece ser uma das arenas em que os
agentes mais disputam lutas pela dominação interna.
falam da função de formar recursos humanos, outros de formar cidadãos livres. Uns
destacam a promoção do pensamento culto, outros da formação técnica. Uns
privilegiam a necessidade de garantir a aplicabilidade do conhecimento, outros de
formar gente crítica. Uns de dar respostas a nível tecnológico, outros de se organizar
para a autonomia. Uns a missão do direito à educação independentemente da origem
económica ou regional, outros de contribuir para a competitividade económica. Uns
destacam a promoção da justiça social, outros a função de contribuir para o
crescimento dos estados. Uns acentuam a função de combater as desigualdades, outros
de garantir os benefícios individuais da educação. Uns destacam a promoção da
competitividade, outros a função de garantir uma experiência democrática e de
participação cidadã. Uns a função de soberania, outros a de crescimento económico.
Uns de promoção de uma sociedade coesa e solidária, outros de garantir a função de
contribuir para o desenvolvimento económico local.
59 A maioria destas funções não são nem dicotómicas, nem mutuamente exclusivas. Elas
provavelmente poderiam ser melhor agrupadas se estivéssemos a analisar a
diferenciação entre universidades e politécnicos. Mas mesmo analisando apenas o
campo universitário, o destaque dado pelos diversos agentes a cada função da
universidade revela também a identificação de posições divergentes sobre a natureza e
o futuro das universidades no século XXI. É a intensidade das disputas no campo que
aqui analisámos e são as relações de força que nele se estruturam que colocam o seu
futuro tão aberto e imprevisível nesta transição de século.
Conclusão
60 Em 2009, dizia George Steiner em Lisboa que “desde a sua instauração em Bolonha,
Salerno ou Paris medieval, as universidades são bichos frágeis mas tenazes”. Foi esse o
caminho desta pesquisa: nele procurámos olhar para a tenacidade que faz das
universidades uma das mais notáveis invenções da humanidade; mas olhámos também
para a fragilidade da sua exposição às mais diversas formas de pressão política e
económica, no quadro da intensificação do neoliberalismo e das transformações no
estado.
61 É verdade que a pressão mercantil e as transformações do estado com a emergência do
new pubic management são uma realidade que tem reflexos profundos no que são hoje as
universidades portuguesas. Contudo, se analisarmos os discursos diretos dos agentes
universitários dos 27 anos que aqui se escrutinam, somos levados à conclusão de que a
universidade não tem sido um espaço amorfo e isento de conflitos. A sua primeira
característica enquanto campo é precisamente o facto de as suas transformações nestes
27 anos não terem ocorrido sem disputas intensas no seu seio, condicionando avanços e
recuos na relação da autonomia da universidade no conjunto do espaço social.
62 Estas transformações e disputas, sendo parte intrínseca e constitutiva do campo,
mostram como tem mudado a relação da universidade com o estado e o mercado. Mas é
precisamente pelo facto de a universidade constituir um campo social que ela não é
hoje uma mera expressão de nenhum dos dois, mantendo características próprias e
elementos de autonomia. Apesar da pressão economicista e mercantil, é a “autonomia
relativa” que lhe permite constituir-se como um microcosmo social que, na sua
dinâmica interna, redefine permanentemente, mediante a relação de forças de cada
momento, a relação de interseção com as suas fronteiras.
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NOTAS
1. As reflexões a que este texto dá corpo têm origem numa pesquisa desenvolvida entre setembro
de 2014 e junho de 2015 sobre as transformações e disputas nas universidades portuguesas entre
1988 e 2015.
2. Importa referir que o sistema de ensino superior português se divide nos subsistemas
universitário e politécnico. Por razões de espaço e tempo, optamos por analisar exclusivamente o
caso do sistema universitário, tendo ainda assim consciência de que a análise do sistema de
ensino superior politécnico tem uma enorme relevância na sociedade portuguesa.
3. É precisamente nessa década, em 1974, que Hayek publica O Caminho da Servidão (2010), onde
defende que as soluções de tipo coletivista conduzem à violência e à supressão da liberdade,
reforçando as ideias defendidas em 1962 por Milton Friedman (2014), que opondo-se ao welfare
state, argumentava que a educação superior não devia depender sobretudo da iniciativa privada.
4. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Financing education in
developing countries—an exploration of policy options” (1986).
5. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Higher education: the
lessons of experience” (1994).
6. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “The financing and
management of higher education: a status report on worldwide reforms” (1998).
7. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Higher education in
developing countries: peril and promise” (2000).
8. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Constructing knowledge
societies: new challenges for tertiary education” (2003).
9. A este respeito veja-se que, segundo dados do INE,em1960 tínhamos apenas 0,9% da população
residente com o ensino superior, enquanto em 2013 essa percentagem já estava nos 15%.
10. Lei n.º 108/88, de 24 de setembro.
11. Dela faziam também parte o reitor, os vice-reitores, presidentes dos órgãos de gestão das
unidades orgânicas, presidentes das associações de estudantes, o administrador e o vice-
presidente dos serviços sociais (artigo 17.º).
12. Não sendo obrigatório, a lei permitia ainda integrar representantes externos à universidades,
em número não superior a 15% da totalidade dos seus membros.
13. Apesar de as propinas para as licenciaturas só sofrerem um aumento com a lei de 1992, este já
tinha sido propostoem1990 no Livro Branco sobre o Financiamento Público ao Sistema de Ensino
Superior, da autoria de Afonso de Barros, Daniel Bessa e outros.
14. Respetivamente, Diamantino Durão (1991-1992), Couto dos Santos (1992-1993) e Manuela
Ferreira Leite (1993-1995).
15. Esta fórmula durou até 2009.Em2010 e 2011 o financiamento foi baseado na fórmula de 2009
complementado com financiamento atribuído por contratualização de objetivos, o Contrato de
Confiança. No ano de 2013, o financiamento voltou a ser feito com base numa fórmula, que tem
em consideração o histórico do orçamento anterior (85%) e a reposição da fórmula usada até 2009
(15%).
16. Estes cortes fizeram com que em muitas universidades hoje o financiamento público já não
chegue aos 50% do seu orçamento.
17. A Declaração de Bolonha, assinada a 19 de junho de 1999, encontra-se disponível em: http://
www.magna-charta.org/resources/files/BOLOGNA_DECLARATION.pdf
18. Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro.
19. Não sendo obrigatório, a estes membros podem ainda juntar-se representantes dos
funcionários não docentes.
20. Se virmos o número de matriculados no ensino público, ele reduziu-se de 311.547 em 2012
para 301.654 estudantes em 2014. Quase menos 10 mil inscritos matriculados em dois anos.
21. Decreto-Lei n.º 70/2010, de 19 de julho.
22. A legitimação das propinas em nome dos benefícios que os diplomados têm no mercado de
trabalho também foi identificada, no caso do Reino Unido, por Boden e Nedeva (2009).
23. Isso manifesta-se nos estudantes que querem aceder à universidade, mas também para
professores que têm de concluir os vários graus de formação para ingressarem numa carreira
docente.
24. Na verdade, é a avaliação quantitativa desse tipo de conhecimentos anterior à universidade —
as chamadas “médias” —, que regula a relação entre o número efetivo de candidatos à entrada e o
número de vagas disponíveis. Quem está melhor avaliado nos graus antecedentes tem acesso
prioritário ao campo.
25. Um exemplo paradigmático é a possibilidade da ativação de redes de contactos na
universidade que facilitem candidatura a uma bolsa de estudo para suportar os custos da
educação ou o simples processo de candidatura e entrada num curso.
26. Esse habitus do campo pode ser desenvolvido e instigado dentro e fora dele pelos seus
próprios agentes internos (professores, estudantes, antigos estudantes, investigadores, reitorias,
funcionários, etc., que produzem discursos sociais sobre a importância da pertença ao campo),
mas também por agentes externos (estado, mercado, governo, sociedade civil, etc., que inscrevem
narrativas na sociedade sobre as função do campo e as vantagens de lhe pertencer).
27. Delas fazem parte, para estudantes, a aceitação dos mecanismos de avaliação e classificação,
regras pedagógicas, custos da formação, currículos, hierarquias internas ou regras de acesso.
Para professores, sistemas de avaliação de desempenho, regras laborais de progressão na
carreira, estatutos docentes, regras salariais ou hierarquias internas.
28. Entre outras, podemos ter como exemplo as lutas pela a redução de propinas ou a melhoria de
bolsas (para facilitar o acesso), as estratégias contra o abandono (para assegurar a permanência),
ou os mecanismos de promoção do sucesso escolar (para facilitar a conclusão da passagem pelo
campo com sucesso).
29. Exemplo curioso desse facto é a expressão “fuga de cérebros”, que tende a privilegiar na
sociedade a preocupação com a emigração dos jovens qualificados, invisibilizando a emigração
não qualificada.
30. O termo quase-mercado designa contextos organizacionais em que, apesar de existir
financiamento ou cofinanciamento por parte do estado, também estão presentes mecanismos de
funcionamento de mercado (Bertolin, 2011).
RESUMOS
Este artigo analisa o campo universitário português entre 1988 e 2015, com base no discurso de
18 antigos e atuais reitores e dirigentes estudantis e nas mudanças sociais, económicas e políticas
deste período. Primeiro, descrevem-se aquelas que, segundo os agentes, constituem as dez
principais transformações das instituições universitárias. Depois, examinam-se os principais
dissensos suscitados por essas transformações. Por último, partindo destas transformações e
dissensos, analisamos a universidade enquanto campo, isto é, enquanto subconjunto relacional
do espaço social, estruturado através de posições e disposições, onde os agentes lutam pela posse
de um capital específico e que tem uma autonomia relativa na relação com o poder político e
económico.
This article analyses the Portuguese universities field between 1988 and 2015, laying its
foundations on the discourses of 18 current and former deans and leading students and in the
social, economic and political changes in that period. At first, we will describe those that,
according to social agents, constitute the ten main transformations of the university institutions.
Then, we will examine the main points of contention raised by these transformations. Lastly,
departing from these transformations and points of contention, we analyze the University as a
field, this is, as a relation subset of social space, structured through the positions and
dispositions, where the agents struggle for the possession of specific type of capital and that has
a relative autonomy in relation to the political and economic power.
Cet article porte sur le champ universitaire portugais entre 1988 et 2015, sur la base du discours
de 18 anciens et actuels doyens et leaders étudiants et aussi des changements sociaux,
économiques et politiques de cette période. D’abord, on décrit celles qui, selon les responsables,
sont les dix principales transformations des universités. Ensuite, on examine les principaux
désaccords soulevés par ces transformations. Enfin, en partant de ces changements et
désaccords, nous analysons l’université comme un champ, ça veut dire, en tant que sous-
ensemble relationnelle de l’espace social, structuré par des positions et des dispositions, où les
agents se battent pour la possession d’un capital spécifique et qui a une autonomie relative dans
la relation avec le pouvoir politique et économique.
Este artículo analiza el campo universitario portugués entre 1988 y 2015, con base en el discurso
de 18 antiguos y actuales rectores y dirigentes estudiantiles y en los cambios sociales, económicos
y políticos en este período. Primero, se describen aquellas que, según los agentes, constituyen las
diez principales transformaciones de las instituciones universitarias. Después, se examinan los
principales disensos suscitados de esas mismas transformaciones. Por último, a partir de estas
transformaciones y disensos, analizamos la universidad como un campo, es decir, siendo un
subconjunto relacional del espacio social, estructurado mediante posiciones y disposiciones,
donde los agentes luchan por la posesión de un capital específico y que tiene una autonomía
relativa en la relación con el poder político y económico.
ÍNDICE
Palavras-chave: universidade, campo, campo universitário, neoliberalismo, ensino superior
Mots-clés: université, champ, champ universitaire, le néolibéralisme, l’enseignement supérieur
Keywords: university, field, university field, neoliberalism, higher education
Palabras claves: universidad, campo, campo universitario, neoliberalismo, enseñanza superior
AUTOR
JOÃO MINEIRO
Doutorando e bolseiro de investigação, Socius-ISEG e CRIA-IUL, Avenida das Forças Armadas,
Edifício IUL, 1649-026, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]
Catarina Egreja
Introdução
1 Nas últimas décadas, a sociologia tem vindo a ganhar dimensão, tanto ao nível do
ensino superior como da investigação em Portugal. Este crescimento, acompanhado de
uma maior notoriedade, verifica-se não só no seio das ciências sociais, mas também
noutras áreas do conhecimento, potenciando a multidisciplinaridade na produção
científica. No entanto, o olhar reflexivo da sociologia sobre esta realidade tem sido
descurado.
2 O presente artigo pretende dar um contributo para a atualização do conhecimento
nesta área, focando-se ao nível do ensino — não o ensino da sociologia como área
científica principal, mas sim a sua mobilização por outros cursos e áreas no ensino
superior. Qual a presença da sociologia no ensino superior português? Como é que esta
é vista por docentes e coordenadores de curso? A pesquisa[1] iniciou-se com o
levantamento das licenciaturas e mestrados integrados que lecionam uma disciplina de
sociologia no ensino superior português, excluindo os próprios cursos de sociologia,
para permitir perceber quais as áreas mais e menos recetivas à integração desta
disciplina na formação dos seus alunos e também que diferenças existem entre os
vários subsistemas de ensino. Na fase seguinte da pesquisa, procurou-se perceber de
que forma a sociologia se enquadra no âmbito geral do curso e qual a sua utilidade —
tanto prevista como percecionada —, pelo que se entrevistaram alguns responsáveis
(coordenadores e docentes da disciplina) em diferentes cursos / instituições.
Apresentam-se aqui as principais conclusões da análise das entrevistas.
Considerações metodológicas
10 A informação recolhida sobre a presença da sociologia no ensino superior permitiu
fazer a seleção dos cursos / instituições para realização das entrevistas de forma
informada, contemplando as diferentes áreas ISCED e tendo em atenção a sua
distribuição por subsistemas de ensino. Em primeiro lugar, optou-se por eliminar o
sistema de ensino superior militar e policial, não só pela sua especificidade, como pelo
reduzido número de casos que apresenta; em segundo lugar, tomou-se a decisão de
agregar as áreas de ciências naturais, matemática e estatística, tecnologias da
informação e da comunicação, e agricultura, silvicultura, pescas e veterinária numa
nova classificação — “outras áreas”, devido ao reduzido número de casos em cada uma
das categorias. Por último, de forma a avançar para o trabalho de campo, calculou-se o
número ideal de cursos por área e sistema de ensino com vista a respeitar a proporção
real anteriormente calculada (Egreja, 2014), mas sem preocupações de
representatividade.
11 O guião de entrevista utilizado foi construído de raiz, debruçando-se sobre os seguintes
tópicos: caracterização pessoal e institucional; presença e avaliação da sociologia no
curso; considerações sobre o ensino da disciplina; expectativas de competências
adquiridas e de contributo para a inserção profissional e futuras funções dos alunos; e
perspetivas sobre os motivos de escolha da disciplina e aspetos mais e menos
valorizados pelos alunos. À margem das questões do guião, outros temas de interesse
foram abordados pelos entrevistados, uma vez que as entrevistas seguiram um método
semidiretivo (Quivy e Campenhoudt, 1998).
12 O trabalho de campo decorreu de setembro de 2014 a junho de 2015, e foram realizadas
32 entrevistas em 17 cursos (em instituições de norte a sul do país), cujas características
podem ser consultadas no quadro 1. Em alguns casos, não foi possível realizar
entrevistas ao par docente / diretor no mesmo curso, enquanto noutros se entrevistou
mais que um docente, pelo facto de haver oferta de mais que uma disciplina da área da
sociologia.
39 Porém, alguns docentes têm uma posição muito particular, em que rejeitam a avaliação
utilitarista da disciplina (docentes I, N2).
Mas se a disciplina tem ou não tem contributo futuro, para o futuro profissional,
interessa-me pouco. Eu não estabeleço nenhuma relação utilitária entre as
disciplinas que são lecionadas na universidade, num curso universitário, e depois o
futuro profissional. […] Quando eles manifestam esse tipo de preocupação eu
procuro desconstruir isso e faço-lhes o discurso que estou a fazer aqui, e dizer-lhes
que se eles quisessem de facto aprender aquilo que vão pôr em prática, iam para um
curso de formação profissional, não vinham para aqui. Aqui, vêm desenvolver-se
como pessoas, vêm aprender a pensar, aprender a olhar a realidade e se eu puder
contribuir para isso, por pouco que seja, já me sinto feliz. [Docente I, CSJI]
Há uma ideia ainda muito utilitarista da educação e mesmo os próprios colegas que
trabalham essas questões tentam, no fundo, dar-lhes o que chamam as
competências para trabalhar, as competências para se adequarem ao mercado de
trabalho e eu penso que devemos fazer ao contrário. Eu costumo dizer nas aulas até
a propósito de uma pergunta que eles me fizeram: “Para que é que isso serve
professor? Não serve para nada, aquilo que eu vos digo não tem nenhum tipo de
utilidade e portanto não serve para nada, não é para levar a sério.” E acho que a
educação é isso mesmo, não deve servir para nada, não tem que ter utilidade. A
utilidade é uma outra questão e, portanto, se quiserem refletir sobre a vida, sobre o
mundo, a essa reflexão estamos abertos. [Docente N2, educação]
40 Também houve referências ao facto que muitas vezes os ex-alunos, depois de entrarem
no mercado de trabalho, transmitem um feedback positivo dos ensinamentos que
receberam nestas aulas, pois frequentemente só mais tarde é que conseguem
verdadeiramente entender a sua pertinência (diretora B e docente B2, diretora e
docente D, docentes M, P).
ganhá-lo-á em dignidade”. Para nós, isso é importante. Ou seja, não é dizer que
somos herméticos, até porque fazemos um esforço para não ser; mas evitamos fazer
o populismo da sociologia, a propaganda da sociologia. [Docente B1, SBE]
Eu acho que a única diferença e, por isso, é que temos alguma dificuldade, é que a
sociologia na forma como nós a lecionamos, principalmente em cursos com
componentes significativamente práticos, é que temos que aligeirar o processo das
teorias. E depois, a partir de certa altura, acabamos por transmitir uma imagem de
uma sociologia, mas de uma sociologia — isso é uma análise que eu faço — de uma
sociologia algo superficial. De uma sociologia que se confunde com… com algo
pouco científico, com algo pouco estruturado, com algo que não tem bases teóricas
fortes. [Docente M, serviços]
Eu acho que estamos a simplificar demasiado o exercício da docência e da… em cada
uma das unidades, estamos a transformar isto quase num curso profissional de nível
superior. E isso pode ser problemático. [Docente N2, educação]
Reflexões finais
47 A presença da sociologia nos cursos em foco é, no geral, bastante antiga e consolidada.
Em vários casos, a sua inclusão deveu-se à “visão” dos fundadores dos cursos ou de uma
determinada tradição das instituições, que valorizam a vertente multidisciplinar do
ensino superior. A presença da disciplina é assim vista como sendo importante no
âmbito dos cursos, ao permitir abordar os temas centrais lecionados como fenómenos
sociais e desenvolver o sentido crítico nos alunos.
48 No entanto, na perspetiva dos entrevistados, a presença da sociologia tem vindo a
diminuir, ou é expectável que venha a ser cortada no futuro, em grande parte dos
cursos, possivelmente em favor da substituição por outras ciências sociais — esta é uma
preocupação manifestada quase exclusivamente pelos docentes. Sabendo que entre os
anos letivos de 1989/1990 e de 2013/2014 houve uma expansão considerável da oferta
de disciplinas de sociologia em cursos de outras áreas de formação no ensino superior
português (Egreja, 2014), novas interrogações surgem: será que a presença da sociologia
atingiu o seu auge antes da implementação do Processo de Bolonha, havendo então
lugar a um corte significativo desta oferta? E após a sua implementação, a tendência
tem sido realmente de decréscimo? Para poder determinar até que ponto a opinião dos
entrevistados corresponde, de facto, à realidade, novas análises terão de ser levadas a
cabo.
49 Os docentes referem que as dificuldades que normalmente surgem no ensino da
disciplina são a falta de hábitos de escrita e leitura dos alunos, o seu baixo nível de
cultura geral e imaturidade, acentuados de ano para ano — na verdade, estas são
críticas apontadas várias vezes de forma espontânea, tanto pelos docentes como pelos
diretores de curso, transversalmente aos vários cursos e tipos de instituições de ensino.
Diretamente relacionados com a área da sociologia, surgem alguns reparos ao facto de
esta ser muitas vezes vista como uma “ciência da mesa de café” e que, como tal, traz
maiores dificuldades a quem não tenha interesse pela área.
50 Questionados sobre as competências que gostariam que os alunos adquirissem,
docentes e diretores destacam o desenvolvimento da capacidade crítica e reflexiva; o
rompimento com o senso comum; a aquisição de uma perspetiva das áreas de estudo
enquanto fenómenos sociais; o desenvolvimento de capacidades de escrita e de leitura,
de trabalho em grupo e de exposição oral; e, menos frequentemente, o
[2] Apresenta-se aqui um resumo da informação mais relevante recolhida na fase anterior da
pesquisa de doutoramento; a versão completa pode ser consultada em Egreja (2014), se bem que
alguns dados tenham sido revistos e atualizados entretanto.
[3] Analisaram-se todas as licenciaturas e mestrados integrados. Sublinhe-se que, apesar de tudo,
ficam de fora desta análise todos os outros mestrados, pós-graduações, doutoramentos e outros
tipos de formações que podem existir em instituições de ensino superior, muitos deles
certamente também com valências na área da sociologia.
[4] International Standard Classification of Education, adotada pela UNESCO. O documento pode
ser consultado em: http://www.uis.unesco.org/Education/Documents/isced-fields-of-education-
training-2013.pdf
[5] Na maior parte das situações, a unidade curricular já existia mas houve necessidade de
substituição do docente anterior e, por maior afinidade com a área em questão e opção de se
trabalhar com o corpo docente existente na instituição, foram convidados a lecionar a disciplina.
BIBLIOGRAFIA
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Quivy, R., e L. V. Campenhoudt (1998), Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva.
RESUMOS
O presente artigo pretende dar um contributo para a atualização do conhecimento sobre a
presença da sociologia no ensino superior português — não enquanto área científica principal,
mas sim na sua mobilização por outros cursos e áreas de formação. Após o levantamento de
informação nos planos curriculares, procurou-se perceber de que forma a disciplina se enquadra
no âmbito geral do curso e qual a sua utilidade, pelo que se entrevistaram alguns responsáveis
(coordenador / docente da disciplina) em diferentes cursos / instituições. Em suma, o ensino da
sociologia nestes contextos, apesar de ser valorizado, enfrenta vários obstáculos.
The present article seeks to help update what we know about Sociology’s place in Portuguese
higher education — not as a primary academic field, but rather when mobilised by other courses
and areas. After surveying the information in curricular plans, the author looks at how the
discipline fits into the general framework of other courses and how useful people find it, with
interviews of a number of senior staff (coordinators / teachers) from different courses and
institutions. The outcome shows that although Sociology is valued in such contexts, it still faces
various obstacles.
Cet article apporte une contribution à l’actualisation des connaissances sur la présence de la
Sociologie dans l’enseignement supérieur portugais — non en tant que discipline scientifique
principale, mais dans sa mobilisation par d’autres filières de formation. Après le relevé
d’informations dans les programmes d’études, l’article tâche de comprendre de quelle façon cette
discipline s’inscrit dans le cadre général de la formation et quelle est son utilité. À cet effet,
quelques responsables (directeurs / enseignants de la discipline) de différents établissements /
formations ont été interrogés. En somme, bien que l’enseignement de la Sociologie soit valorisé
dans ces contextes, il rencontre plusieurs obstacles.
El presente artículo pretende dar una contribución para la actualización del conocimiento sobre
la presencia de la Sociología en la enseñanza superior portuguesa, no como área científica
principal sino en su incorporación en otros cursos y áreas de formación. Después del
levantamiento de información en los planes curriculares se procuró entender de que forma la
disciplina se encuadra en el ámbito general del curso y cuál es su utilidad, por lo que se
entrevistaron a algunos responsables (coordinador/docente de la asignatura) en diferentes
cursos/instituciones. En conclusión, la enseñanza de la Sociología en estos contextos, a pesar de
ser valorada, enfrenta varios obstáculos.
ÍNDICE
Keywords: Sociology, higher education, multidisciplinarity, ISCED
Palavras-chave: sociologia, ensino superior, multidisciplinaridade, ISCED
Palabras claves: Sociología, enseñanza superior, multidisciplinariedad, ISCED
Mots-clés: Sociologie, enseignement supérieur, multidisciplinarité, ISCED
AUTOR
CATARINA EGREJA
Bolseira de doutoramento FCT no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), ISCTE —
Instituto Universitário de Lisboa, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail:
[email protected]
Introducción
1 La manipulación de resultados se ha convertido en uno de los problemas más
relevantes del fútbol mundial. Las instituciones que gobiernan este deporte han
establecidos proyectos conjuntos con organizaciones tales como Interpol o
Transparencia Internacional (TI) para estudiar, entender, diagnosticar y prevenir el
flagelo (Moriconi, 2016).
2 A pesar de que el problema de los resultados combinados se remonta a la antigüedad 1 y
ha estado siempre presente en el mundo del deporte (SportAccord, 2011; Hill, 2011), 2 el
fenómeno se habría expandido y ganado tinte criminal debido a las nuevas tecnologías
y el crecimiento de las apuestas online (Haberfeld y Sheehan, 2013; Interpol, 2013; TI,
EPFL y DFL, 2014; SportAccord 2013; Carpenter, 2012; Federbet, 2015). En la actualidad,
un apostador puede apostar en tiempo real en un partido de cualquier parte del mundo
y obtener suculentas ganancias. Esto ha generado el interés del crimen organizado que
Definiciones
7 La manipulación de resultados es la influencia irregular en el desarrollo de un evento
deportivo para obtener ventajas personales o institucionales para uno mismo o para
terceros. Esta influencia remueve parcial o totalmente la incertidumbre normalmente
asociada al resultado final de un evento deportivo (DFL y DFB, 2012; TI, EPFL y DFL,
2014; SportAccord, 2011: 1; Council of Europe, 2011: 3).
8 Los amaños pueden materializarse por cuestiones deportivas o económicas. En los
primeros, lo que se busca es asegurar un resultado final que sirva para cumplir
objetivos deportivos, como ganar un campeonato, evitar un descenso, acceder a una
fase siguiente de una competición o lograr un cruce más accesible en una etapa de
eliminación directa. En este caso, los principales implicados son personas relacionadas
al mundo del futbol: árbitros, jugadores, entrenadores, dirigentes, o agentes. En los
segundos, lo que se busca es un rédito económico, habitualmente relacionado con el
mundo de las apuestas. Además de los actores del mundo futbolístico, en este tipo de
manipulación podrían participar actores externos que ofrecen sobornos. Según el
discurso oficial de las instituciones internacionales (Council of Europe, 2011; 2012;
Interpol, 2013; Carpenter, 2012; TI, EPFL y DFL, 2014; Mutschke, 2013), el crimen
organizado estaría detrás de este tipo de manipulación. Este tipo de manipulación se
habría expandido debido a las nuevas tecnologías y al crecimiento de las agencias de
apuestas deportivas online (SportAccord, 2013; Interpol, 2013: 6). La nueva gama de
apuestas, y la posibilidad de apostar en vivo sobre diferentes injerencias del juego, han
determinado la expansión de un nuevo tipo de manipulación, el spot-fixing. En este caso,
se trata de manipular acciones precisas, como el acuerdo de qué equipo llevará la
primera tarjeta o será favorecido con un penal.
9 En un video de prevención,5 SportAccord advierte que, si bien el problema del amaño
de partidos no es nuevo y ha sido parte de la historia de los deportes, “este nuevo
fenómeno de las apuestas globalizadas vinculadas a la Internet es actualmente el
principal peligro para la credibilidad de los deportes”. La expansión de las nuevas
tecnologías permite que personas de todo el mundo apuesten en línea, en tiempo real,
en las competiciones en todo el planeta. En consecuencia, este cóctel de variables ha
determinado la intromisión del crimen organizado en el negocio y ha transformado a la
manipulación de resultados en un camino para el lavado de dinero (Interpol, 2013).
10 La variable “crimen organizado” (Mutschke, 2013: ix ss.) es fundamental para entender
el relato oficial sobre el flagelo. Tanto los programas de educación de Interpol-FIFA, 6
como los utilizados por TI, EPFL y la DFL (DFL y DFB, 2012) o SportAccord (2013)
consideran que la manipulación de resultados es algo peligroso materializado por
actores deportivos que son cooptados por el crimen organizado y que, posteriormente,
quedan a su merced, incluso en peligro de muerte (SportAccord, 2013: min. 8:17;
Interpol, 2013). De esta forma, el problema es colocado discursivamente fuera del
mundo del futbol: la amenaza provendría de fuera (criminales deseosos de ganar dinero
con apuestas) y nunca del ámbito institucional del futbol. Esta estrategia discursiva
permite que entidades como la FIFA, tantas veces denunciada por escandalosos casos de
corrupción (Aguilar, 2013; Jennings, 2006; Yallop, 1999; Kistner, 2012), se posiciona
discursivamente como un agente limpio y legítimo deseoso de participar en la cruzada
por el juego limpio.
11 Los amaños de partido serían más factibles cuando algún actor deportivo tiene
problemas económicos o cuando los jugadores sufren retrasos en el pago de sus salarios
(Hill, 2010; FIFPro, 2012). Pero también existen problemas deportivos debido a la
pérdida de competitividad de algunos campeonatos. Las diferencias de presupuestos y
poder entre distintos clubes de la misma competición son, en algunos casos, extrema,
limitando la lógica competitiva. El nivel de salarios en algunas ligas también es
desproporcionado. En relación a los juegos, los partidos amistosos y los finales de las
temporadas serían los momentos en los que la potencialidad de amaños de resultados
es mayor.
31 En relación a los árbitros, el tribunal consideró que las ofertas de objetos de oro no
significan, por sí solos, que los árbitros hayan violado las leyes del juego y manipulado
resultados. El tribunal explica que, aunque se puede discutir en cual jugada el árbitro se
equivocó, quedará siempre la duda de si el error fue intencional o no.
32 Por su parte, Jorge Nuno Pinto da Costa fue absuelto de todos los cargos.
33 La resolución del caso, y las sospechas sedimentadas sobre el desarrollo interno del
mundo del futbol, mudó las percepciones sobre el tema. Aunque no fueron
consideradas válidas para juzgamiento en los tribunales, las escuchas publicadas fueron
de interés público y confirmaron sospechas sobre el modus operandi al interior del
mundo institucional del futbol. Desde entonces, diversas denuncias sobre la
transparencia y corrupción aparecen habitualmente en la prensa. Criticar y dudar de la
honestidad del futbol se convirtió en algo “aceptable” en la opinión pública.
34 Según un informe de CMTV (Correio da Manhã TV) emitido en abril de 2013, y en el que
se revelaron escuchas inéditas sobre el caso “Apito Dourado”, “la impunidad tornó
vulgar a la corrupción”.14 Asimismo, habitualmente se escucha que la trama y la forma
de proceder continúa existiendo, puesto que muchos de los implicados en el caso “Apito
Dourado” continúan desempeñando importantes funciones de dirigente dentro del
mundo del futbol (Melo, 2010: 12).15
35 Ante esta situación, se construyó un imaginario social alrededor del fútbol en el que la
sospecha en torno a la honestidad y transparencia de sus actores está siempre puesta
en duda. Los árbitros aparecen como el punto más débil y criticado. En la temporada
2013/2014, las dudas sobre el desempeño de los árbitros fueron recurrentes: en al
menos 20 jornadas hubo al menos un equipo que consideró que el árbitro lo perjudicó e
influyó en el resultado final del partido.
36 En febrero de 2014, y ante las constantes críticas de varios dirigentes futbolísticos, la
APAF sacó un comunicado diciendo que no toleraría más agresiones. Hasta ese
momento, en un mes, los presidentes del Porto, Pinto da Costa, Sporting, Bruno de
Carvalho, y Sporting de Braga, António Salvador, habían criticado duramente el
desempeño de los árbitros. En su comunicado, la APAF consideró que los “señores del
futbol” estaban promoviendo la muerte del fútbol y aseguraba que los fallos arbitrales
que acontecían se debían a “errores naturales”.16
37 Pero las críticas también llegan de las altas esferas institucionales del futbol. El
entonces presidente de la Liga Portuguesa de Futbol Profesional (LPFP), Mario
Figueiredo, denunció recurrentemente entre 2013 y 2014 la falta de transparencia en la
nominación de los árbitros para los partidos de las principales ligas nacionales. Para
Figueiredo, el Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol parecia una
“monarquia” en la que “tudo é secreto e ninguém sabe como são feitas as avaliações.
Ainda no final da época passada, os melhores árbitros desciam e não ficavam nos
árbitros da elite”. Para Figueiredo, algunas nominaciones eran “incompreensíveis”. 17
38 Por estas cuestiones, la LPFP consideraba que el arbitraje debería estar bajo el dominio
de una entidad independiente y los procesos de nominación y evaluación deberían ser
claros, trasparentes y homogéneos.
39 En este último año, el informe anual de Federbet fue duro contra Portugal. Según la
institución, es uno de los países donde el flagelo más se extiende, fundamentalmente en
la Segunda Liga que fue descripta por el secretario general de la institución, Francesco
Baranca, como una competición enferma. Según la institución, también hubo sospechas
Resultados
Diagnóstico sobre los resultados combinados y áreas de riesgo en
Portugal
48 Los resultados sugieren que el panorama del futbol portugués dista mucho del
diagnóstico oficial sobre la expansión de la manipulación de resultados. Los árbitros
encuestados no incluyen a la manipulación de resultados como un problema grave del
futbol portugués (figura 1). Apenas un 3,6% considera que se trata de un flagelo
importante a nivel nacional. Los principales problemas relevados son: la disparidad
económica entre los clubes (27,4%), falta de transparencia en la gestión de los clubes
(21%) y distribución injusta del dinero (15,3%). Es de destacar que estos problemas son
relevados en la literatura como generadores de estructuras de oportunidad para el
ingreso del crimen organizado en el contexto deportivo. En palabras de un dirigente de
un club de Primera División entrevistado, la combinación de resultados no es un
problema extendido en el país. Sin embargo, existen flaquezas institucionales que, en
caso de desearlo, permitirían que la mafia de las apuestas aprovechara áreas de riesgo y
sedimentara el problema rápidamente. Por su parte, un ex jugador y dos entrenadores
reconocieron que vivieron o escucharon intentos de combinación de resultados cundo
se desempeñaban en ligas de ascenso (Tercera Liga en el caso del jugador y uno de los
entrenadores). Las ligas de asenso serían más proclives a manipulaciones.
Tabla 1 Participación de árbitros en manipulación de resultados (la pregunta fue: “Ouviu falar de
manipulação de resultados com participação de árbitros na sua liga?”)
Tabla 2 Participación de actores en la manipulación de resultados según los hinchas (la pregunta
fue: “Em cada 100 [árbitros/dirigente/jugadores] quantos diria que, em geral, participam em
manipulação de resultados?”)
58 Según los aficionados encuestados, los árbitros (51%) son los actores más permeables a
la hora de combinar un resultado, seguido de los dirigentes (29%). Sin embargo, a nivel
europeo, los aficionados consideran a los dirigentes de las federaciones como los más
permeables (39,3%), seguidos por los árbitros (21,3%).
59 La permeabilidad de los árbitros ha sido ampliamente denunciada, como en el caso del
“Apito Dourado”, y descripta en la literatura (Hill, 2011; Coroado, 2006; Queirós, 2008).
Los factores de riesgo y persuasión no sólo incluirían dinero, regalos o favores políticos.
Una denuncia constante en relación al amaño de partidos es la utilización de
prostitutas para comprar a los árbitros (Hill, 2011: 152, 155-163). En medio de las
investigaciones del “Apito Dourado”, y tras la publicación del libro de Carolina Salgado,
las vinculaciones entre el fútbol y la prostitución se hicieron más visibles. En este
sentido, algunos sectores institucionales sugirieron que una medida para acabar con
este problema era ampliar el cupo de árbitros femeninos.
60 Las respuestas indican que los árbitros reconocen la existencia del problema. Sólo un
28,34% de los encuestados aseguró que es un fenómeno que no sucede. Mientras tanto,
el 48,90% de los encuestados reconoce que escuchó hablar de donde fueron ofrecidos
servicios de prostitución a árbitros portugueses en Portugal (tabla 3).
Tabla 3 Oferta de prostitutas a árbitros (pregunta: “Alguns testemunhos sugerem que a oferta de
prostitutas tem sido uma prática comum no mundo do futebol. Já ouviu falar de casos onde foram
oferecidos serviços de prostituição?”)
70 Esta vicitimización presenta una doble moral cuando incorpora al equipo del
aficionado. Sólo el 26,8% afirma que su equipo se ha visto favorecido en alguna
oportunidad por el arreglo de resultados. El panorama, entonces, incluiría una alta
percepción de existencia de resultados combinados por objetivos deportivos, en los que
los equipos de los aficionados son fundamentalmente víctimas del sistema y en muy
pocas ocasiones utilizarían las estrategias de manipular.
Discusión y conclusiones
71 El análisis de percepciones, opiniones y actitudes de actores clave es una herramienta
útil para recabar información empírica sobre el fenómeno de los resultados
combinados. En esta línea, y con las dificultades propias de un tema polémico, el
artículo brinda un primer análisis sobre el problema de la manipulación de resultados
en Portugal. El análisis general gira en torno a uno de los colectivos más sospechados
por el imaginario popular nacional: los árbitros.
72 Esta investigación permite dar cuenta de algunas diferencias sustanciales entre el caso
portugués y la literatura sobre el tema.
73 Los resultados combinados en Portugal no son el problema central del fútbol nacional.
Más bien se trataría de una consecuencia relacionada a problemas anteriores que
generan estructuras de oportunidad para que diversas corrupciones se materialicen.
Las abruptas diferencias de poder económico, cultural y deportivo en la Primera Liga, la
opacidad en la nominación de los árbitros, y las presiones psicológicas generadas por
esas diferencias serían los factores de riesgo más importantes. A pesar de que la
narrativa oficial sobre prevención de la manipulación de juegos vincula directamente al
problema con el mundo de las apuestas deportivas online y el crimen organizado, la
historia y los imaginarios sobre el fenómeno en Portugal tienen una raíz diferente. Las
motivaciones, en este caso, no surgen debido a intimidaciones externas al mundo del
fútbol, sino de intereses institucionales y deportivos y de situaciones personales
particulares, como los problemas económicos o los intereses económicos individuales.
Este trabajo, centrado en un estudio de caso crucial, sirve para demostrar las
limitaciones y errores de diagnóstico que pueden tener los programas preventivos
universales (Moriconi, 2016). Para combatir el flagelo es necesario prestar atención a
las particularidades de cada país. Las estructuras de oportunidad varían de país en país
y de liga en liga. Muchas premisas que se construyen con intenciones universales
pueden estar dislocadas de realidades particulares.
74 En ese sentido, por ejemplo, una premisa del discurso institucional de combate a los
resultados combinados indica que si los espectadores y televidentes sospechan que los
resultados de los partidos están combinados, perderán interés y dejarán de asistir a los
estadios (TI, EPFL y DFL, 2014: 6). Sin embargo, los datos indican que, a pesar de que los
aficionados desconfían de la transparencia del fútbol y perciben que sus equipos sufren
manipulación de resultados en contra, continúan haciendo del fútbol una parte
importante de su vida de ocio.
75 Por último, los datos relevados sirven para alertar a los programas oficiales de
prevención sobre el peligro de mantener la estrategia discursiva de conceptualizar el
problema como externo al mundo institucional del futbol y culpabilizar de la
naturalización y expansión del fenómeno al crimen organizado. Si bien esto permite la
BIBLIOGRAFÍA
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junio 2011).
Yallop, David (1999), How They Stole the Game, Londres, Poetic Publishing.
NOTAS
1. El primer caso de amaño exitoso en la historia del deporte se remonta a los Juegos Olímpicos
de 388 AC. En aquella oportunidad, Eupolos de Tesalia sobornó con dinero a tres de sus rivales,
entre ellos el antiguo campeón Phormion de Halikarnassos, y de esa manera pudo obtener el
título en la competición de pugilato (Maennig, 2005: 216).
2. Incluso han existido casos en los que la manipulación de resultados formaba parte de una
trama sistemática e institucional, como el caso de Calciopoli match-fixing scandal o el enredo
criminal del Olympique de Marsella de Bernard Tapie. Ver: http://www.telegraph.co.uk/sport/
football/european/8878870/Former-Juventus-general-manager-Luciano-Moggi-to-appeal-jail-
sentencefollowing-match-fixing-scandal.html
3. Europol (2013), “Results from the largest football investigation in Europe”: http://
www.europol.europa.eu/content/results-largest-football-match-fixing-investigation-europe
4. El proyecto fue liderado por Transparencia Internacional (TI), la European Professional Footbal
Leagues (EPFL) y la Liga Alemana de Fútbol (DFL). Fue financiado por la Dirección General de
Educación y Cultura de la Comisión Europea. El objetivo fue desarrollar programas y materiales
de prevención que pudieran ser utilizados por las Ligas a través de Europa para hacer frente al
RESÚMENES
El artículo presenta datos sobre opiniones y percepción de los árbitros del fútbol portugués y los
hinchas sobre la manipulación de resultados, uno de los principales problemas del fútbol
mundial. Los analistas suelen vincular el problema con el crimen organizado y las apuestas
deportivas. En Portugal, sin embargo, los escándalos del pasado indican que la manipulación se
conectaría más con el interés deportivo, el tráfico de influencias y el soborno de los directivos y
actores institucionales. En la opinión pública, los árbitros aparecen como el grupo más
sospechoso y denunciado. A través de una encuesta a los miembros de la Asociación Portuguesa
de Árbitros de Fútbol (APAF) y a simpatizantes agrupados en diferentes asociaciones, el artículo
confirma empíricamente hipótesis de la narrativa oficial sobre el arreglo de partidos, como la
existencia de oferta de prostitutas a los árbitros. Sin embargo, muestra una perspectiva más
amplia del fenómeno que va más allá de la esfera de las apuestas y el crimen organizado.
Entrevistas en profundidad a informantes clave se llevaron a cabo para confirmar y ampliar los
resultados.
O artigo apresenta dados sobre opiniões e perceções dos árbitros do futebol português e dos
adeptos sobre a manipulação de resultados, um dos principais problemas do futebol mundial. Os
analistas vinculam o problema com o crime organizado e as apostas desportivas. No entanto, em
Portugal, os escândalos de anos anteriores indicam que a manipulação estaria conectada com o
interesse desportivo, o tráfico de influências e o suborno de diretores e atores institucionais. Para
a opinião pública, os árbitros são o coletivo mais suspeito e denunciado. Através dum inquérito a
membros da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) e adeptos membros de
diferentes associações, o artigo confirma empiricamente hipóteses da narrativa oficial sobre a
combinação de resultados, como a existência de oferta de prostitutas. Não entanto, o trabalho
apresenta uma perspetiva mais abrangente, que vai além do mundo do crime organizado e das
apostas. Entrevistas em profundidade a informantes chave foram realizadas para confirmar e
ampliar os resultados.
The paper presents data about opinions and perception of Portuguese football referees and
supporters about manipulation of results, ones of the main problems of football worldwide.
Analysts often link the problem with organized crime and sporting betting. In Portugal, however,
recent scandals indicate that manipulation would be mostly connected with sporting interest,
influence peddling and bribing from managers and officials. In the public opinion, referees
appear as the most suspicious and denounced group. Through surveys of members of the
Portuguese Football Referees Association (APAF) and supporters, the paper empirically confirms
some assumptions of the official match-fixing narrative, like the existence of offers of prostitutes
to referees. Nevertheless, it shows a wider perspective of the phenomenon that goes beyond the
betting sphere and organized crime. In depth interviews to key informants were carried out to
confirm and extend the results.
L’article présente des données sur les opinions et les perceptions des arbitres de football
portugais et des supporteurs sur la manipulation des résultats, un des principaux problèmes du
football à travers le monde. Les analystes lient souvent le problème avec le crime organisé et les
paris sportifs. Cependant, au Portugal, les scandales récents indiquent que la manipulation serait
principalement liée aux intérêts sportifs, au trafic d’influence et à la corruption des gestionnaires
et des fonctionnaires. Au sein de l’opinion publique, les arbitres sont perçus comme étant le
groupe le plus suspect et dénoncé. Grâce à des enquêtes à des membres de l’Associação
Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) et des partisans, l’article confirme empiriquement une
hypothèse du récit officiel des matches truqués, comme l’existence d’offres de prostituées aux
arbitres. Toutefois, il montre une perspective plus large du phénomène qui va au-delà de la
sphère des paris et du crime organisé. Des entretiens approfondis avec des informateurs clés ont
été effectués pour confirmer et amplifier les résultats.
ÍNDICE
Palavras-chave: resultados combinados, árbitros, Portugal, corrupção, futebol
Mots-clés: manipulation des résultats, arbitres, Portugal, corruption, football
Keywords: match-fixing, referees, Portugal, corruption, football
Palabras claves: resultados combinados, árbitros, Portugal, corrupción, futbol
AUTORES
MARCELO MORICONI BEZERRA
Investigador no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL e CEI-IUL, Lisboa,
Portugal. E-mail: [email protected]
RITA TEIXEIRA-DINIZ
Mestre em Global and Comparative Politics, University of Essex. Assistente de investigação na
Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC) Lisboa, Portugal.
Recensões
REFERÊNCIA
M. Margarida Marques (org.) (2014), Lisboa Multicultural, Lisboa, Fim de Século
3 Este estudo mostra de forma clara como a cidade é muito mais do que uma coleção de
settlements com alguma contiguidade nos espaços e nas linguagens. Repare-se nos três
textos que compõem a parte 2 do livro e no modo como ilustram a variedade de
acontecimentos identitários e oferecem uma imagem, dir-se-ia, de totalidade, não de
um somatório de fragmentos. Os media tendem a devolver-nos essa imagem de
totalidade como ressalta do escrito de Nuno Domingues sobre como o jornal Público
relata a presença dos imigrantes em Lisboa, entre 1996 e 2000. É uma narrativa sobre a
diversidade percebida, centrada principalmente na música, no artesanato, no cinema e
na TV, e em outras expressões culturais, como a literatura, a dança e os festivais, sem
que o autor deixe de nos alertar para a possível marca cultural de segmentos das elites
culturais como responsáveis pelos acontecimentos de maior cobertura jornalística.
4 Francisco Lima Costa regressa de novo à escrita para falar de (des)ordenamento do
território, noção heuristicamente riquíssima, com que procura caraterizar os
(des)ajustamentos das categorias geográficas e estatísticas utilizadas desde 1930 (do
“distrito de Lisboa” à “grande Lisboa” e à “região metropolitana de Lisboa”). Ao lado da
oscilante nomenclatura estatística, o texto dá conta da recente multiplicação por dez do
número de estrangeiros residentes em Lisboa (de 14.500 em 1970, para 147.800 em
2011), que se pode “experimentar” na viagem que o autor propõe desde a Lisboa dos
“bairros de lata” até aos espaços de imigração de hoje, marcados por (i) um edificado
envelhecido, (ii) alojamentos sobrelotados e arrendados e (iii) uso intenso de
transportes coletivos.
5 No seu outro texto sobre a revitalização urbana e os mercados da diversidade, Sofia
Santos coloca-nos perante a valorização cultural decorrente da disponibilidade de
novos produtos comerciais (veja-se o exemplo trazido noutro capítulo, do ato banal da
compra de chá), resultante da atividade empresarial de muitos imigrantes. Tal cenário
de renovado consumo, visível na oferta de bens de consumo doméstico, na restauração
e no artesanato, produz um efeito de boa convivência local (veja-se como Frederica
Rodrigues enuncia o acolhimento das empresárias de salões de beleza e manicure), tanto
em espaços residenciais, como em espaços históricos e turísticos da cidade, ao mesmo
tempo que sedimenta uma relação dupla: por um lado, coétnica (partilha dos outros com
os seus iguais) e, por outro lado, exoétnica (procura pelos locais dos lugares dos outros).
6 Em si, tanto bastaria para considerar este Lisboa Multicultural um relato
socioantropológico notável, que convida a refletir sobre a urbanidade de uma cidade
que se transforma, quer ao sabor da sua própria história, quer de outras histórias.
É disso que trata o livro e não tanto da outra mudança turística que, por enquanto, traz
muitos lisboetas extasiados com o radioso negócio do turismo internacional.
7 Lisboa Multicultural lê-se como se fosse um livro de contos. E essa é uma vantagem
enorme. O conto, aqui chamado “capítulo”, é por natureza um texto curto. Sempre se
chega ao fim. Além disso, o estudo é também, obviamente, atual. Primeiro porque trata
de um tempo urbano contemporâneo que nos surpreende a cada instante. Depois
porque é feito de linguagens modernas e retóricas atualizadas que geram
intertextualidade e comunicação entre capítulos, ampliando a coerência ao conjunto.
Este Lisboa Multicultural é ainda fonte de cautelosas “traduções”, isto é, de aplicações
rigorosas de conceitos forjados em outros contextos e que aqui se testam e aplicam com
génio e criatividade. Na voragem do tempo que fustiga Lisboa, este livro permanece
atual, apesar de já datado. Mas todos livros são datados, sobretudo os que temos por
“clássicos”. E, creio, este Lisboa Multicultural partilha dessa virtude dos “clássicos” ao
tratar de uma espécie de “presente eterno”, uma novidade que se vai prolongar no
tempo como tudo parece indiciar.
8 O renovado enlace etnocultural que se revela na leitura do livro configura um
cosmopolitismo progressista, já que a presença dos outros assinala uma condição de
cidadania que faz deles atores a ter em conta no planeamento estratégico da própria
cidade. Na Lisboa “de outras eras”, se cosmopolitismo existia, era profundamente
conservador e a “diversidade” era marcada pela subjugação e destituição. Agora, como
sujeitos e não já mero décor da evolução urbana, os recém-instalados em Lisboa, vindos
de África, da Ásia, da América do Sul, ou da antiga Europa de Leste, negoceiam, vivem e
pluralizam os espaços públicos e, mais que isso, participam diretamente, embora
limitadamente ainda, no devir da cidade.
9 No texto de abertura, Margarida Marques (MM) — a organizadora do livro — dá
testemunho aturado desta mudança. O relevo concedido aos empresários reforça o
papel dos pequenos comércios que marcam distintivamente o novo “espírito de
cidade”. Aqui, MM faz lembrar Robert Park, que ousou um dia definir a cidade como um
“estado de espírito” para surpresa de todos. Está MM a dizer, bem entendido, que além
das ações de arquitetos, urbanistas e decisores políticos, as cidades são feitas da
realidade humana e da sua quotidianidade que importa trazer para o desenho ajustado
do futuro urbano e sociocultural desta cidade. Aprecio esta forma quase militante como
o texto introdutório assume a “descoberta” do potencial estratégico que a diversidade
cultural representa para Lisboa. Não podendo ser “romantizado”, este potencial
aproxima Lisboa de outras cidades, cujo sucesso depende de conexões geoculturais
complexas, como bem assinalou Anthony King quando fez notar que a história da
Manchester industrial estava inscrita em Bombaim, o que tornava impossível
compreender uma cidade sem se entender a outra… A Lisboa de hoje encontra na teia
imperial as raízes da sua modernidade e o que ela é, e há de ser no futuro, deve-o a
outras paragens e a outras (cumpli)cidades… A Luanda e a Bissau, à Praia e a Maputo, a
Goa, mas também ao Brasil e à China…
10 Mas há outras “geografias” críticas pertinentes para a leitura deste livro. Entre elas,
sobressaem as que ensinam a ver uma cidade sem os limites e as fronteiras espaciais
(psicológicas?) que subjazem a categorizações tantas vezes desajustadas e erróneas.
Algumas referem-se ao binarismo das linguagens académicas recheadas de “centros” e
“periferias”, de “nortes” e de “suis”, de “ocidentes” e “orientes”. Estes pares de mundos
diversos nunca estiveram tão próximos e tão íntimos. O raper Edson Silva dos Força
Suprema, angolano residente há mais de 20 anos na região metropolitana de Lisboa,
afirma-o com eloquência (Ípsilon, 12/06/2015): “Gostamos da Linha de Sintra. Dá para ir
ao Fórum Sintra e sentirmos que estamos na Europa e dá para ir à Damaia e comprar
mandioca na rua. Somos desses dois mundos!”
11 Ser destes dois mundos é uma implicação da condição urbana e democrática de hoje.
Atravessá-los sem impedimentos é hoje um direito. A diversidade cultural atravessa a
cidade sem limites a toda a hora, por toda a parte. Anytime/anywhere, como dizia de
Niro do Taxi Driver de M. Scorcese, parece ser o lema de tudo o que hoje se move,
incluindo os novos fluxos migratórios e étnicos que Lisboa regista.
12 No seu Fronteiras Perdidas — Contos para Viajar, a páginas tantas J. Eduardo Agualusa
relata o episódio em que o assaltante, de bons modos e viajando num carro de grande
estilo, se dirige ao jovem objeto do assalto: “Também dizem que nós destruímos este
país. Destruir? Estamos simplesmente a reajustá-lo a África, aos nossos hábitos
culturais. Luanda, por exemplo, era uma cidade europeia, um corpo estranho
relativamente ao resto do país. Foi preciso corrompê-la para a libertar”. Este livro,
como que replicando o bandido, ensaia devolver a Lisboa a imagem de uma condição
estrutural que só na escavação histórica e antropológica da usurpação do outro se pode
compreender no seu atual reajustamento.
13 Como evoluirá no futuro a multiculturalidade lisboeta abordada neste livro? O livro não
nos responde. Que Lisboa teremos em resultado dessa evolução? Uma Lisboa mais
diversa, mais plural, mais democrática? Ou antes uma Lisboa regressiva, cosmopolita
sim, mas conservadoramente cosmopolita que atende às reivindicações dos turistas mas
não dos imigrantes… mais fechada e segregadora? Receosa dos outros que a procuram
como refúgio ou como espaço de oportunidade e emancipação?
14 “Os ares da cidade libertam”… diziam os subjugados camponeses alemães que rumavam
às cidades em busca da sua medieval libertação. Esse era um dramático grito que,
paradoxalmente, volta a ecoar hoje, lancinante, por toda a região mediterrânica
europeia. Sabemos que outrora os ares da cidade não libertaram como se esperava. E
sabemos também que, por aqui, à vista das vagas mediterrânicas, os ares europeus
continuam quase tóxicos e irrespiráveis. Temos de continuar a limpá-los. Sem
esmorecer. Este livro pode ser visto como uma metafórica higienização do ar que
respiramos. Em Lisboa e fora dela. A leitura liberta! — apetece dizer. Daí o meu
convencimento de que este livro vai ser lido por gente jovem em busca de ares límpidos
de uma cidadania plural e diversa, como aqueles que brotam das reflexões postas neste
Lisboa Multicultural.
NOTAS
1. Recupera-se parcialmente o texto de apresentação pública do livro (8 de julho de 2015).
AUTORES
CARLOS FORTUNA
Professor de Sociologia, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais, Universidade de
Coimbra. Av. Dias da Silva, 165, 3904-512 Coimbra. E-mail: [email protected]
REFERÊNCIA
Eduardo Duque (2014), Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências
da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva Comparada, Vila Nova de Famalicão,
Edições Húmus
optar por modelos simples de análise, de causalidade linear. Esta opção também se
justifica pela aspiração do autor a analisar a realidade religiosa de várias perspetivas,
expressas no elevado número de objetivos, sumarizáveis no seguinte: caracterizar a
religiosidade dos portugueses, compará-la com os países católicos europeus e
compreender a influência dos fatores sociais e culturais na mesma. Com a mudança
sociocultural em curso abre-se caminho para reconfigurações do religioso que importa
analisar, tanto na perspetiva a jusante, do religioso em si, como a montante, das
transformações sociais e culturais. Além disso, a comparação com países com a mesma
matriz histórica e religiosa possibilita situar Portugal no contexto europeu.
3 Para implementar estes objetivos, o autor aposta na metodologia quantitativa,
recorrendo ao inquérito por questionário como instrumento de trabalho. O EVS,
porventura a base de dados internacional mais indicada para o estudo da religião, pela
variedade e adequabilidade dos indicadores disponíveis, foi usado exaustivamente e na
maioria das vezes de forma longitudinal. Desdobrando-se em dimensões, indicadores e
análises, o autor disponibiliza dados e informação em abundância, numa área pouco
estudada no nosso país. A tese de doutoramento de Oliveira (1995), com pontos
convergentes com a de Duque, concorreu no seu tempo para aumentar o conhecimento
da realidade religiosa portuguesa, pela análise do contexto social, como pela
caracterização minuciosa da população portuguesa em termos religiosos. No entanto,
para além da sua perspetiva sincrónica, encontra-se relativamente desatualizada.
Resumidamente, o contributo valioso de Duque com este livro, para além da atualidade,
da diacronia e da comparação internacional, passa pela caracterização extensiva da
religiosidade (desenvolvendo índices, analisando dimensões e cruzando variáveis) e
pelo estudo da relação dos fatores socioculturais com a religiosidade.
4 Passemos agora a olhar para cada capítulo. Após justificar a pertinência do seu estudo
no capítulo primeiro (introdução), o autor faz o enquadramento teórico no capítulo
segundo. Começa pela definição de religião, cuja dificuldade, que o autor menciona e
discute, se coloca habitualmente nos estudos desta área. Seguindo Berger, Duque
considera que a definição tem de ser construída em função de determinada pesquisa,
pois a validade universal das definições torna-se impossível devido à enorme variedade
de objetos religiosos. A sua definição parece oportuna, tanto pelos autores escolhidos
(por exemplo, Durkheim ou Luckmann), como pelo ajustamento à realidade estudada.
De seguida, o autor desenvolve a sua narrativa sobre a evolução da razão na
modernidade, na secularização e no desencantamento do mundo como sua
consequência, o que demonstra bem a influência de Weber. Como refere Duque, não
estando consumada a modernidade, na pós-modernidade tudo se torna possível,
nomeadamente o retorno do religioso, porventura renovado e consolidado, mas agora
marcado pela subjetividade, pela abertura e pela contingência. Talvez a “arte” pudesse
ser mais explorada. Sobre a secularização, os trabalhos de síntese de Dobbelaere ou
Tschannen, os contributos de Bruce, Davie ou Taylor poderiam ser lembrados; Martin e
Casanova poderiam ser referidos não só em notas de rodapé, mas no corpo do texto.
Autores como Hervieu-Léger, Heelas ou Woodhead poderiam ser bastante úteis para
melhor definir a religiosidade pós-moderna, indo ao encontro do pretendido por
Duque. As recomposições religiosas, a religião à la carte, a bricolage são assuntos centrais
em Hervieu-Léger, enquanto a dicotomia religião/espiritualidade é discutida por Heelas
e Woodhead. Para terminar o enquadramento teórico Duque desenvolve e explora as
três teorias que subjazem à mudança sociocultural atual e que são testadas diretamente
BIBLIOGRAFIA
Duque, Eduardo (2008), El Fenomeno Religioso y Sus Influencias Sociales. Perfiles y Tendencias del
Cambio Religioso en Portugal, Madrid, Universidade Complutense de Madrid, tese de doutoramento
em Sociologia.
Oliveira, Carlos (1995), Atitudes e Comportamentos Religiosos dos Portugueses na Actualidade, Évora,
Universidade de Évora, tese de doutoramento em Sociologia.
Teixeira, Alfredo (2013), “A eclesiosfera católica: pertença diferenciada”, Didaskalia, XLIII (1/2),
pp. 115-205.
AUTORES
JOSÉ PEREIRA COUTINHO
Investigador, Númena. Taguspark — Núcleo central, 379, 2740-122, Porto Salvo. E-mail:
[email protected]
REFERÊNCIA
Chloé Froissart (2013), La Chine et Ses Migrants. La Conquête d’une Citoyenneté,
Rennes, Presse Universitaires de Rennes
Estas representam algumas das etapas indispensáveis, referidas por Froissart, de forma
a readquirir a confiança dos migrantes face a um estado de partido único (p. 209).
9 No capítulo seguinte, Chloé Froissart prende-se na importância do compromisso do
mundo académico e na sua capacidade na construção de um novo ideal de cidadania.
São, essencialmente, estas entidades que fazem “sobressair as migrações como
legítimas, mostrando que os agricultores não podem fazer outra coisa senão migrar, e
que a razão se deve diretamente à política de desenvolvimento maoista…” (p. 227).
Assim, a autora focaliza a passagem de uma “sociologia dogmática” a uma “sociologia
empírica” (p. 228). Ao interessar-se pelas causas históricas e sistemáticas da condição
dos trabalhadores, os estudos sociológicos colocam em evidência a responsabilidade do
estado através das suas políticas públicas, nomeadamente as reformas empreendidas
sob o reino de Jiang Zemin entre 1993 e 2002. Este capítulo interessa-se ainda pela
emergência de um número crescente e cada vez mais heterogéneo de atores sociais e
políticos (académicos, médias, membros de ONG, artistas, etc.), capazes de mobilizar um
novo discurso em favor da proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes, sob a
forma de um militantismo patriótico (pp. 245, 247). No entanto, a autora não se esquece
de revelar a ambiguidade do novo discurso do Partido Comunista Chinês (PCC) acerca
da cidadania e da forma como a questão dos migrantes foi politizada, quando
estipularam que o início do ano de 2000 permitiu uma mudança ideológica e
estratégica, ainda que esta mudança continue a representar apenas uma mudança
simbólica: os trabalhadores migrantes veem-se transformados em “novos heróis que se
sacrificam pela pátria, para os outros, para o bem comum” (p. 244). Chloé Froissart
defende de forma argumentada, no desenvolvimento deste capítulo e dos anteriores, as
razões que forçam o estado de partido único a adaptar as suas políticas e ideologias no
que concerne a presença dos mingong nas zonas urbanas. Estes motivos resumem-se
principalmente numa estratégia: perseguir o desafio de uma economia de mercado que
impõe a sua presença, com o objetivo de frustrar as suas capacidades de auto-
organização e, consequentemente, deixar-se influenciar pelas crescentes pressões
sociais.
10 Se, até agora a autora acentua a dimensão global da situação dos migrantes, na quarta
parte do seu livro, a mesma destaca, em particular, o plano local, focando-se mais
precisamente na cidade de Chengdu. Ao longo da segunda metade da década de 1990, o
desenvolvimento económico de Chengdu e as estratégias de reorientação das migrações
intraprovinciais transformaram esta cidade num polo de imigração popular (p. 255).
Nesta região, a migração aumenta em resposta ao crescimento substancial de vários
setores, como a manufatura, a construção, a restauração e a venda por grosso e/ou a
retalho, encorajada pelo estado, com o objetivo de reequilibrar o desenvolvimento das
regiões costeiras e oeste do país, para outras províncias no interior. Nesta parte, Chloé
Froissart analisa em particular a reforma do sistema de hukou, a segurança social, o
sistema de educação e a forma como os mesmos contribuem “certamente para uma
integração parcial dos trabalhadores em zonas urbanas, mantendo, no entanto, uma
desigualdade com os urbanos” (p. 21). No que diz respeito à reforma do hukou, o
exemplo da cidade de Chengdu permite reforçar a ideia de que, mesmo se algumas
modificações são feitas graças à flexibilização das condições do estatuto de urbano,
novas disparidades em função de critérios socioeconómicos têm tendência a ser criadas.
A título de exemplo, no que concerne a segurança social, novas discriminações tendem
a aparecer e a beneficiar uma categoria social mais favorecida, dando forma a uma
“estratificação piramidal no interior da categoria dos migrantes entre a pequena elite
que foi integrada no regime social dos urbanos, e outros, mais numerosos, que estão
cobertos por um regime específico aos migrantes, e a grande maioria daqueles que não
têm possibilidades para se assegurarem.” (p. 278). A reforma da educação, tal como
acontece com a do hukou e a da segurança social, tende também a beneficiar uma
população estável e financeiramente mais “segura”. No entanto, esta última,
contrariamente às anteriores, permite o acesso de indivíduos pertencentes a uma “elite
de migrantes” a beneficiarem do mesmo direito à educação que os habitantes urbanos e
a um serviço público verdadeiro.
11 Finalmente, na quinta e última parte do seu livro, Chloé Froissart apresenta, em duas
etapas, a forma como os migrantes se tornaram ativos e como estes, com a ajuda de
intelectuais, organizações não governamentais (ONG), redes de ajuda mútua,
especialistas, entre outros, iniciaram negociações e “uma resistência com base na lei”
(p. 355). A fim de explorar esta questão, o capítulo 11 é dedicado inteiramente ao caso
Sun Zhigang.3 Este caso é analisado enquanto episódio denunciante “do nascimento de
uma cidadania universal nas representações (os urbanos identificando-se aos
migrantes)…” (pp. 328, 21). Esta história, permite testemunhar de forma argumentada
os tumultos atuais, que poderiam vir a modificar o funcionamento da sociedade civil na
China. Por último, o capítulo 12, último capítulo do livro, examina mais profundamente
a natureza do “movimento para a proteção dos direitos”, revelando a questão do papel
das ONG chinesas. Aqui, a natureza das relações que algumas destas ONG mantêm com o
poder, a repressão constante à qual estão sujeitas e o seu baixo grau de autonomia face
às estratégias do PCC são evidenciadas. No entanto, Froissart enfatiza a importância que
estas têm no desenvolvimento técnico, moral e social em relação aos migrantes,
acautelando sobre o papel ambíguo e limitado, principalmente através da promoção de
uma “mudança na continuidade” (p. 371). O argumento central deste capítulo é que as
ONG incentivam os migrantes a apoiarem-se em leis “imperfeitas” para defender a sua
mobilização e, assim, contribuirem para o reforço da legitimidade do regime. Este
argumento é bastante desconcertante, porém, poderia efetivamente revelar-se
autêntico no que diz respeito às ONG chinesas patrocinadas pelo governo. 4 Não
obstante, atualmente, outras ONG que se encontram numa estratégia mais civil e sem
relação com o governo tendem a surgir. Obviamente, o grau de influência que estas
organizações têm ainda deverá ser investigado no futuro, mas a questão que aqui surge
é, precisamente: a qual tipo de ONG a autora faz referência nas suas observações?
Froissart, num artigo mais recente de 2014, demonstra, claramente, que o apolitismo
exibido por algumas associações promove a evolução de formas de representação, de
gestão de conflitos e de renegociação dos modos de exercício do poder do regime
autoritário chinês (Froissart, 2014).
12 Em relação à teoria, esta encontra-se solidamente construída e argumentada pela
autora, especialmente a nível empírico, não só com informações de primeira mão,
coletadas a partir de entrevistas e observações etnográficas feitas entre 2002 e 2007 em
Chengdu, Shenzhen e Pequim, mas também pela extensa literatura produzida na China,
com relatórios de especialistas comandados pelas autoridades e de numerosos
trabalhos universitários (e.g., documentos do Conselho de Assuntos Estaduais,
Municipais). Assim, nada pode ser dito em detrimento da autora. Torna-se básica e
exclusivamente na razão pela qual este livro se revela uma fonte de informação
amplamente fascinante e estimulante.
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Weiping Wu, e Wang Guixin (2014), “Together but unequal: citizenship rights for migrants and
locals in urban China”, Urban Affairs Review, 50 (6), pp. 781-805.
NOTAS
1. Por exemplo sobre as cidades de Xangai e Pequim: Wu Weiping (2014).
2. Palavra russa para “permissão de residência temporária”. Este sistema foi oficialmente
instituído durante o período soviético, em 1932, quando a utilização de passaportes internos se
tornou obrigatória, de forma a regular o movimento populacional por meio da fixação de pessoas
em seus locais de residência permanente. (N. da A.)
3. Sun Zhigang, um estudante de 27 anos, graduado das Belas-Artes é levado, no dia 17 de março
de 2003, para um “centro de detenção e investigação”, isto é, um centro de detenção para
imigrantes, onde morreu três dias depois. As circunstâncias da morte do jovem estiveram na
origem de uma mobilização social e de uma indignação coletiva. Esta mobilização levou ao
cancelamento deste tipo de centros de detenção pelo sistema chinês. (p. 325) (N. da A.)
4. Também conhecidas pelo nome de GONGO (organização não governamental orientada pelo
governo). (N. da A.)
AUTORES
VIRGINIE ARANTES
Virginie Arantes. Doutoranda em Ciências Políticas e Sociais no Centro de Estudos da Vida
Política (Cevipol), Faculté de Philosophie et Sciences Sociales, Université Libre de Bruxelles,
Chaussée de Namur, 105, 5537 Anhée, Bélgica. E-mail:[email protected]