BOLD a Cena Perfeita Apostila
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Objetivo da cena
Sua história tá seguindo, pegando fôlego. O arquivo está aberto, aquela folha em
branco e um cursor piscando, esperando que seus dedos façam a mágica acontecer. É um
momento delicioso e apavorante. Antes de começar a escrever, no entanto, vale a pena
pensar: qual é o objetivo desta cena?
Uma cena pode ter muitos tipos diferentes de objetivos. O principal é sempre
mover a trama para frente, mas existem muitas maneiras de fazer isso. Uma cena pode:
revelar uma informação sobre a trama, dar pistas do passado de um personagem,
aprofundar o relacionamento (bom ou ruim) entre personagens, criar um cliffhanger ou
um plot twist. Tudo depende de onde ela se encaixa na história e das necessidades de cada
história.
Uma cena é uma mini história em si; ela conta uma pequena história que, com as
outras cenas, formam a história maior. Deve ter um começo, meio e fim. O começo monta
o palco; define o ponto de vista, a ambientação, cria um cenário ao redor dos personagens.
O meio desenvolve o propósito da cena, escalando a tensão, aprofundando a atmosfera.
O fim é brusco, para deixar o leitor ávido pela próxima cena. Sua história é como um
quebra-cabeças, e cada cena é um pedaço.
Então, vamos partir desta pergunta: qual é o objetivo desta cena? E outras perguntas que
podem ajudar a definir o que você vai escrever:
• O que precisa acontecer nesta cena?
• Qual personagem é mais afetado pelos eventos da cena?
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POV
Quando você planejou sua história, escolheu a melhor voz narrativa para ela.
Uma história pode ser contada em primeira, segunda ou terceira pessoa. Mas a escolha de
voz narrativa vai muito além disso. Cem anos atrás, você provavelmente escolheria o
narrador em terceira pessoa, onisciente e onipresente para ter maior “controle” e narrar
com mais alcance, certo? Hoje em dia isso seria um terrível erro.
Poucas narrativas com esse narrador dão certo em 2022. Por quê? Ela não é
imersiva. Ela é um obstáculo entre o leitor e a história, gerando narrativas distantes, frias
e impessoais. Poucos autores conseguem quebrar essa barreira. Se quiser conferir quem
soube fazer bem, leia “A Visita Cruel do Tempo”, da Jennifer Egan.
Quais são as vozes narrativas mais imersivas e melhores para o leitor moderno?
A terceira pessoa limitada e a primeira pessoa.
Mesmo quando você escolhe um ou outro, ainda há diversas coisas para definir
antes de começar:
Exemplos:
- Eu vejo Paulo caminhando até mim, ele não parece feliz. (Primeira pessoa, presente)
- Eu vi Paulo caminhando até mim, ele não parecia feliz. (Primeira pessoa, pretérito)
- Sandra vê Paulo caminhando até ela, ele não parece feliz. (Terceira pessoa, presente)
- Sandra viu Paulo caminhando até ela, ele não parecia feliz. (Terceira pessoa, pretérito)
Só isso? Não mesmo. Escrever com “deep POV”, ou seja, ponto de vista profundo,
requer prática e estudo. O ideal é que cada cena tenha apenas um ponto de vista, e para
isso, é fundamental que seja um personagem que estará na cena do começo ao fim, e
também o personagem mais afetado pelos eventos daquela cena.
Tudo o que acontece na cena é narrado pelo personagem POV, não importa a
escolha de voz narrativa. A experiência do leitor é a experiência daquele personagem.
Tudo o que é narrado é pelo ponto de vista dele. Os sentimentos e pensamentos são dele.
Lembre-se: você não pode colocar uma informação nessa cena se o personagem não está
ciente dela. Não pode descrever o que há por trás de uma porta, se o personagem POV
não sabe.
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1 – Sergio se acomodou num banco contra a parede, para ter uma vista completa
do amplo salão pintado com tinta alto brilho em amarelo e vermelho. Os olhos
dele investigavam as dezenas de pessoas que naquele horário, se aglomeravam em
filas, estudando o cardápio nas telas de LCD. Ele não se deixou distrair pela
cacofonia de crianças exigindo brinquedos, atendentes berrando pedidos para a
cozinha e bandejas batendo nas mesas de fórmica. Estudou as possíveis saídas,
planejou uma rota de fuga caso a transação desse merda. O estômago reclamou de
fome quando o cheiro de carne invadiu suas narinas, mas ele comeria depois –
quando a mala com os milhões de dólares que o libertariam estivesse em suas
mãos. Só mais cinco minutos, pensou, de olho na porta.
2- Eu e mamãe entramos numa das filas e eu esperava que ela não dissesse não
desta vez. Às vezes, quando ela estava triste ou estressada ela dizia não, reclamava
que o brinquedo custaria mais caro e ainda me dava um sermão, falando que eu já
tinha brinquedos demais e algumas crianças não tinham nenhum. Eu não queria
deixar ela nervosa, mas precisava tentar; meus amigos todos estavam levando
bonecos da nova coleção para a escola e eu também queria brincar.
— Mãe, hoje pode ter brinquedo no meu lanche?
Ela não olhou para mim, mas resmungou:
— Tá, tudo bem.
Eu sorri e apertei a mão dela para mostrar que estava feliz. Senti o cheirinho de
hambúrguer no ar e percebi que estava com muita fome.
No seu planejamento, o próximo passo é definir quem será o personagem POV da cena.
Ambientação
Uma das coisas mais importantes quando você planeja uma cena é a ambientação,
mas pouquíssimos autores pensam nisso. O lugar onde uma cena se passa é muito mais
do que um cenário; ele dá o tom da cena. Para um clímax, escolhemos um lugar perigoso
(um penhasco, um barco cercado de tubarões etc), por exemplo.
Para escolher o lugar ideal, devemos levar em conta algumas perguntas. Qual é o
clima, a atmosfera que você quer criar? O que você quer que seu personagem esteja
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Quando você escolhe esse ambiente, está planejando. Mas na hora de escrever,
não pode se esquecer que criar a ambientação sensorial é de extrema importância. E essa
ambientação deve ser mais carregada no começo da cena.
Lembre-se que descrever bem não é descrever muito. Não é o propósito deste
workshop, portanto recomendo que faça muitas aulas sobre descrição sensorial (módulo
2 do curso BOLD) e pratique muito, para que suas descrições fiquem cada vez mais
criativas, precisas e vívidas.
“Atmosfera”
A atmosfera de uma cena é criada em conjunto com sua ambientação, claro, mas
não é apenas isso. A atmosfera tem a ver com a sensação que você quer criar. Um pôr-
do-sol pode ser romântico ou aterrorizante, dependendo do que você quer passar.
Algemas podem ser sensuais ou uma sentença de morte, assim como cordas.
Como você cria atmosfera? Com o uso sábio e premeditado dos verbos. Um objeto
pode “raspar” contra a pele de alguém, mas também pode “deslizar”. Esse uso dos verbos
vai ajudar muito na hora de criar as sensações que deseja no leitor.
Por isso, a pergunta que cabe na hora do planejamento é:
- O que eu quero que meu leitor sinta?
Bancos de palavras
Uma vez que você definiu a atmosfera da cena, faça uma lista de palavras
relacionadas a essa atmosfera. Vamos supor que nosso desejo é que os personagens se
sintam aconchegados e protegidos numa casinha que encontraram enquanto fugiam.
Escolhemos essa ambientação porque essa é uma cena de respiro, com o objetivo de forçar
a intimidade entre dois personagens e fazer com que um confie no outro e revele seu
trauma de infância, antes de prosseguirmos para a próxima cena.
Minha lista pode ser puramente instintiva, só com palavras que para mim,
remetem a aconchego e conforto. Ex:
• Vermelho
• Útero
• Baunilha
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• Lareira
• Vela
• Cookie
• Chá
• Calor
• Algodão
• Cobertor
• Sopa
• Bolo
• Xícara fumegando
• Plantas
• Cigarras
• Xadrez
Tenha essa lista por perto na hora de escrever. Isso não significa que você vai usar
todas as palavras – a lista é uma fonte de inspiração. A lista acima foi feita por
livre associação, mas você pode focar, por exemplo, em adjetivos, ou verbos.
Veja:
• Afagar
• Aconchegar
• Aninhar
• Acobertar
• Colher
• Cochilar
• Inspirar
• Submergir
No final, você terá uma lista boa, e irá ajudar você a escolher palavras e a criar a atmosfera
da cena.
Um dos erros mais comuns cometidos por autores iniciantes é não saber quando
começar a cena e quando terminá-la. O resultado são cenas longas e cansativas, ou
fragmentadas e confusas, que fazem o leitor ter a sensação de estar “patinando” na
história, e acabar frustrado. São cenas em que os personagens ficam transitando entre
muito ambientes, onde o foco é confuso, onde o tempo se passa de forma estranha...
enfim, uma cena “bagunçada”.
POV: Marcos.
Resumo da cena:
Abordagem 1:
Abordagem 2:
Marcos está no restaurante. Um garçom pergunta o que ele vai pedir, ele diz que
está esperando alguém. Então, Marcos começa a se lembrar da primeira conversa que teve
com Mônica, das mensagens que trocaram, de como o tom foi ficando picante. Ela chega,
e ele fica surpreso com sua beleza. Conversam, pedem a comida, e quando estão bebendo
vinho, Mônica convida Marcos para ir ao seu apartamento.
Comparativo:
O tamanho ideal
Qual é o tamanho ideal de uma cena? Bom, depende da história que a cena quer
contar. A cena muito longa pode cansar o leitor, mas o que seria uma cena muito longa?
Tudo depende da execução do autor, mas um bom parâmetro é 1-3 mil palavras. Isso
significa que uma cena não pode ter menos de mil palavras? Não. Ou que uma cena não
pode ter mais de 3 mil palavras? Também, não. Mas são parâmetros para que você possa
se questionar se sua cena não ficou muito pequena ou muito longa.
Vale a pena lembrar, também, que uma cena muito pequena ou longa, de vez
enquanto, não constituem nenhum problema. O que talvez atrapalhe é seu livro ter muitas
cenas curtíssimas, criando um ruído, uma narrativa tão fragmentada que não proporciona
imersão, ou no segundo caso, tantas cenas imensas que o ritmo da narrativa é prejudicado
e a leitura se torna um esforço.
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Topografia emocional
A topografia emocional de uma obra pode ser justamente o que define seu sucesso.
Se você já viu a aula sobre topografia emocional no módulo 2, conhece bem o exemplo
das topografias emocionais idênticas de Cinquenta Tons de Cinza e O Código da Vinci,
dois bestsellers mundiais.
É claro que isso não vai acontecer cena-a-cena. Imagina que cansativo ler um livro
onde numa cena os personagens estão todos felizes, na próxima, tristes, e na próxima,
felizes de novo. Todos os momentos de pico (vitória) e queda (derrota), precisam ser
construídos aos poucos, durante diversas cenas.
Veja um exemplo:
Capítulo 1
Cena 1: Marcos está feliz pois finalmente está se encontrando com Mônica, num
restaurante, eles conversam e se dão bem, decidem ir para a casa dela.
Cena 2: Marcos acorda com o sol no rosto, na cama de Mônica, onde passou a
noite. Ele se lembra com um sorriso da noite de amor que tiveram. Levanta-se e procura
por ela, mas não encontra. Fica apreensivo. Encontra um bilhete que diz: obrigada por
tudo e quando procura seus documentos, não os encontra.
Cena 3: Mônica está caminhando até o bunker secreto. Tira o cartão de Marcos da
bolsa e passa pelo scaner: as portas se abrem. Ela entra no bunker, onde se depara com
três homens, atira em todos, um por um, na cabeça. Pega um telefone e o coloca contra a
orelha e diz: “estou dentro”.
Nessas três cenas, que compõem um capítulo de abertura de um livro, contam uma
história: a do roubo, premeditado, de documentos que dão acesso a um bunker. Elas são
contadas por dois pontos de vista cuidadosamente escolhidos. As primeiras duas cenas
não poderiam ser narradas pelo ponto de vista da Mônica, caso contrário, não haveria
surpresa alguma. O momento de “vitória” de Mônica cresce inversamente proporcional
ao momento de vitória de Marcos.
Entendeu?
Como fica a topografia do livro inteiro? Isso também depende do arco do seu
protagonista. Num arco neutro, a jornada não ensinou nada ao prota e ele não se alterou
durante a trama. Esse seria um caso raro, mas é comum com personagens icônicos, como
Jack Reacher. Uma topografia mostrando isso seria mais ou menos assim:
Uma topografia trágica, onde o personagem não aprendeu sua lição ou escolheu
ignorá-la, ficaria mais ou menos assim:
É sempre assim? Não. Tramas podem ter infinitos desenhos. Ela só não pode ser
plana. Se ela for plana, sua história não tem variações emocionais e portanto, não tem
graça nenhuma. O importante é que ela tenha esses picos e quedas, construídos
gradualmente.
Aqui temos 3 cenas, uma de informação e tensão crescente, uma de ação e uma
de respiro.
Nas cenas de informação, podemos focar nas questões da trama em si, no conflito
da trama, nos detalhes, em como os personagens falam e reagem e raciocinam.
Nas cenas de ação, podemos dar ao leitor muita emoção e tensão, focando na
trama, no conflito externo e em como os personagens agem e suas personalidades.
São regras? Não, apenas diretrizes para você começar a praticar. Quando se sentir
mais à vontade e com mais prática, aprende a misturar elementos.
Exercício:
Cenas de respiro
Alguns bons lugares para ambientar cenas de respiro são hospitais, hotéis,
esconderijos etc. Elas podem estar nas curvas ascendentes ou descendentes da topografia
emocional.
Casal encontra uma nova pista para o mistério, mas os bandidos estão em seu
encalço. Troca de tiros. O casal consegue fugir e se esconder num apartamento
abandonado. Lá, eles contam suas histórias e fazem amor pela primeira vez.
Casal encontra uma nova pista para o mistério, mas os bandidos estão em seu encalço.
Troca de tiros. O homem é baleado. Eles encontram um lugar para ficar num apartamento
abandonado. Lá, eles contam suas histórias enquanto o homem sangra, às lágrimas. Ele
entrega a pista para ela e faz ela prometer que não desistirá, antes de morrer em seus
braços.
Cliffhangers (e sinker)
Todo autor sabe o que é e para que serve um cliffhanger, mas poucos sabem
desenvolvê-los. Em primeiro lugar, vamos lembrar das diferenças entre um gancho e um
cliffhanger.
Gancho: todas as cenas devem terminar com um gancho, ou seja, uma indicação
de algo interessante que está por vir. O gancho serve para que o leitor queira continuar
lendo. É claro que o gancho, por si só, não salva uma história desinteressante com
personagens entediantes.
Agora, mais importante do que o cliffhanger é o que vem depois. Ou seja, a cena
seguinte.
Do que adianta ter um cliffhanger e interromper a cena, se ela continua assim que
o leitor virar a página? Nada, né?
Imagina que seu cliffhanger é seu protagonista amarrado a uma cadeira numa sala,
com uma bomba prestes a explodir, os números chegando perigosamente perto do 00:00.
dela. Ela diz “te ligo depois” e desliga, segurando o plástico, “o que é isso, Jones?” e
Jones explica que o laboratório encontrou traços de Semtex, um explosivo, no hospital
onde o prota foi visto pela última vez. A namorada arregala os olhos: “eu sei para onde
eles foram!”
Sinker é uma cena que já começa altamente imersiva. Ela não é construída aos
poucos, ela já começa com diálogo e ação. Por quê? Você estabeleceu um grau alto de
tensão com seu cliffhanger, e seu dever agora é manter a tensão lá no alto. Se, nas cenas
entre o cliffhanger e sua continuação, você afrouxar demais, vai ser quase impossível
recuperar o efeito desejado.
Portanto, a essa altura da sua história, você não deve estar mais apresentando
personagens, conflitos ou ambientes. O leitor já conhece as pessoas envolvidas, já sabe o
que está em jogo, e quer que a história avance. Aqui, temos mais ação, diálogos e
conflitos. Portanto, comece sua sinker de forma dinâmica, mantendo a corda da tensão
esticada até retomar seu cliffhanger.
Ficha:
Qual é o objetivo da cena? _____________________________________________
POV: _____________________________________________________________
Atmosfera: _________________________________________________________
Informações novas: __________________________________________________
Personagens presentes: ________________________________________________
Ambientação: _______________________________________________________
Topografia emocional: curva ascendente ( ) pico ( ) curva descendente ( ) queda ( )
Resumo da cena: _____________________________________________________
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Erros comuns
• Ter diálogos que não são intercalados com ações, pensamentos, descrição etc;
• Ter apenas um ponto de vista, mas não imersivo;
• Ter muitos cenários diferentes;
• Personagens demais lutando por espaço na cena, tornando-a confusa;
• Cena reflexiva: personagem está pensando na vida, mas nada acontece. Se você
precisar ter uma cena assim, pelo menos termine com o personagem tomando uma
decisão (gancho);
• Cena termina e a próxima cena é uma continuação dela, sem quebra de
POV/espaço ou tempo;
• Promessa do autor no final da cena: “mal sabia Frank que essa seria a última vez
que veria Valentina”;
• Cena que tem muita gordura no começo ou no fim;
• Cena igual a uma cena anterior, por outro ponto de vista;
• Cena que não move a trama para frente.
Material de estudo sugerido: