UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
FÁBIO ANTÔNIO DIAS LEAL
O MUNDO PELA LENTE DA POESIA: O ENIGMA LITERÁRIO NA OBRA DE
GUIMARÃES ROSA
Porto Alegre
2022
FÁBIO ANTÔNIO DIAS LEAL
O MUNDO PELA LENTE DA POESIA: O ENIGMA
LITERÁRIO NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito parcial para obtenção do título
de Doutor em Letras.
Área de concentração: Estudos de Literatura –
Teoria, crítica e comparatismo.
Orientadora: Profa. Dra. Kathrin Lerrer Rosenfield.
Coorientadora: Profa. Dra. Regina da Costa da
Silveira
Porto Alegre,
2022
FÁBIO ANTÔNIO DIAS LEAL
O MUNDO PELA LENTE DA POESIA: O ENIGMA LITERÁRIO NA OBRA DE
GUIMARÃES ROSA
Tese de Doutorado de Fábio Antônio Dias Leal apresentada como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Letras pela banca examinadora constituída por:
Profa. Dra. Kathrin Lerrer Rosenfield
(Orientadora - UFRGS)
____________________________________
Prof. Dr. Antônio Marcos Vieira Sanseverino
(Examinador - UFRGS)
__________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho
(Examinador - UFRJ)
__________________________________
Profa. Dra. Susana Kampff Lages
(Examinadora – UFF)
__________________________________
Observação: A banca recomenda a tese para publicação.
Porto Alegre, 2022
Concluí minha primeira tese de doutorado no outono de 2019. O
trabalho deixava transparecer as minhas suspeitas, mesmo
pessoais, de que as noções de tempo, espaço e identidade
servem mais à nossa percepção das coisas do que propriamente
representam um real que nos escapa. Dediquei o texto ao
Jeremy, ao Gordo e à Marie, com quem – e muito a propósito do
tema da pesquisa -, dizia eu à época, confundiam-se os meus
próprios limites pessoais e, por quem eu já padecia, segundo as
minhas palavras, a “antecipação da saudade”. Mal poderia eu
imaginar que, poucos meses depois, a saudade da Marie
deixaria de ser uma antecipação e se encarnaria nessa estranha
que, sem pedir licença, entrou em minha casa, sentou-se em
meu sofá, e aqui permanece a medir o meu desalento. Este
segundo trabalho, naturalmente, seria dedicado ao Jeremy e ao
Gordo, que fizeram de mim a luz de seus olhos e desejaram
estar comigo a cada fração do tempo que partilhamos nos
últimos 14 anos. Outra vez eu não pude me lembrar desse
estranho destino que parece rir-se de nós por detrás das portas
e jamais poderia imaginar que o Gordo decidiria dar a sua
cambalhota cinco dias após a disposição do ponto final deste
ensaio. O meu devir, agora, é a própria vertigem do abismo da
falta. Este ensaio é, portanto, para o Jeremy e para o Gordo.
AGRADECIMENTOS
À professora Kathrin Rosenfield, minha orientadora neste trabalho,
que de forma tão generosa colocou ao meu dispor o seu admirável
conhecimento e contribuiu, assim, de modo decisivo , para a minha
formação;
Aos professores, Antônio Marcos Vieira Sanseverino , Leny da Silva
Gomes e Rejane Pivetta de Oliveira , que compuseram a banca de
qualificação e contribuíram de forma tão acertada e respeitosa para o
aperfeiçoamento deste trabalho;
Em especial à memória da professora Leny da Silva Gomes, que,
mais do que contribuir para o desenvolvimento deste ensaio, ajudou a
formar-me como pesquisador e a forjar a forma como percebo o mundo
e o mundo pelas lentes da arte;
Também especialmente à professora Rejane Pivetta de Oliveira,
por acompanhar-me, de forma tão cuidadosa, desde o princípio da minha
trajetória acadêmica;
À professora Erica Andrade, que um dia me enxergou em meio a
uma multidão de meninos e talvez tenha sido a primeira a me ensinar
que a ternura é o maior gesto de coragem;
À minha irmã Luciana e à minha sobrinha Rebeca , por partilharem
comigo os seus mundo s e por me ajudarem a resguardar o sentido de
família;
À professora Regina da Silveira que , mais do que orientar -me,
acolheu-me e me deu sua amizade ao longo dos últimos 10 anos, além
de acolher também , de domingo a domingo – incluídos os períodos de
férias e os feriados – e a qualquer horário o meu entusiasmo – quase
juvenil! – de pesquisador;
À Thays, que continua escolhendo dividir comigo o seu tempo e
dedica a mim o melhor dos seus afetos ;
A todos vocês os meus mais ternos agradecimentos!
RESUMO
Este ensaio busca analisar a ocorrência de enigmas literários na obra do escritor
mineiro, João Guimarães Rosa, e sugere que tais ocorrências cumprem um papel
estruturante na obra do autor. Examina a natureza lúdica dos enigmas literários,
segundo a concepção de Johan Huizinga, e propõe uma revisão da hierarquização,
estabelecida pelo autor, que subordinaria os enigmas e a poesia ao jogo. À sequência,
analisa a poética de Guimarães Rosa como expressão da estética barroca, conforme
sugerem Sant’Anna e Benjamin, e aproxima diversos expedientes literários próprios
do autor dos elementos caracterizadores do Barroco. Apresenta-se então o primeiro
esboço de um estatuto do enigma literário, embasado pela incursão de Heidegger
pelas origens do pensamento ocidental, e aponta-se o conto “A terceira margem do
rio” como paradigma do enigma literário. Propõe-se, por conseguinte, o trabalho à
investigação do enigma a partir das perspectivas específicas de cinco elementos
recorrentes na obra de Guimarães Rosa, a saber, o espelho, a individuação, o amor,
a linguagem e o salto. Apresentam-se, assim, ocorrências de espelhamentos
constitutivos da obra do autor, que se submetem ao pensamento de Goethe,
Sant’Anna, Umberto Eco e Deleuze. Apresenta-se então uma descrição do esquema
constitutivo do espelho enquanto enigma literário e aventa-se a possibilidade de que
o conto “O espelho”, de Primeiras Estórias articule uma ligação entre o livro que o
contém e Tutaméia: Terceiras estórias. Investigam-se as representações da
individuação, como expressas na obra literária de Guimarães Rosa, com base nas
concepções de Buber, Heidegger e Paz, com vistas a demonstrar como a constituição
da identidade do Eu, na obra do autor, se mostra fluida e mesmo contraditória.
Apresentam-se ainda os índices da identidade do autor ocultas como enigmas em seu
texto e sugere-se, por meio de um exame da noção de alteridade, serem os
ocultamentos características próprias do Eu em sua constituição íntima. Investigam-
se, à sequência, os enigmas relacionados às múltiplas concepções do amor na obra
do autor, partindo da noção de recolhimento, como concebida por Heidegger, e
passando pelos ciframentos da palavra amor na obra de Rosa, pelas referências à
busca de um retorno a uma idealização do feminino e ainda pelas referências eróticas
de teor jocoso que o autor ocultou em seu texto, para se chegar, por fim, à abordagem
do grande enigma de Riobaldo, o seu amor por Diadorim. Empreende-se então uma
análise do mecanismo linguístico dos enigmas literários, que revela afinidades
constitutivas com o ordenamento da adivinha, como descrito por Andre Jolles. Analisa-
se o enigma de base linguística sob a perspectiva do jogo e sugere-se, por meio do
pensamento de Gregory Nagy, uma alternativa ao arranjo proposto por Huizinga.
Sugere-se então ser o pensamento o movimento do espírito provocado pelo enigma
de base linguística, que fomenta associações entre elementos e categorias
descontínuos para a almejada produção de sentido. Diante das descontinuidades,
sensíveis e simbólicas, apresenta-se o salto como alternativa de travessia e discorre-
se, então, sobre a concepção de uma estética da descontinuidade ou, ainda, uma
estética do nada; revelam-se também as ocorrências de pulos e cambalhotas
assinalados sob aparência despretensiosa no texto de Guimarães Rosa, além de
imagens recorrentes do sublime, como recurso diante das descontinuidades fatais da
existência, e concebe-se o salto - movimento do espírito – como via de ascensão do
sujeito. Conclui-se, ao final, que o enigma literário compreende influxos de
atravessamento de fronteiras identitárias e representa, ele próprio, uma convergência
para o que se pode entender como um grande enigma geral da existência, de forma
que, por fim, tudo deságua em um homem consciente de sua própria finitude e da
brevidade de sua existência.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa; Enigma Literário; Espelho; Salto; Martin
Heidegger.
ABSTRACT
This essay studies the occurrence of literary puzzles in the work of the writer, João
Guimarães Rosa, and suggests that such occurrences have a structuring role in the
author's work. We examine the playful characterization of literary puzzles, according
to the conception of Johan Huizinga, and propose a review of the hierarchy, as
established by the author, which would subordinate puzzles and poetry to “the game”.
Next, we analyze the poetics of Guimarães Rosa as an expression of the Baroque
aesthetics, as suggested by Sant'Anna and Benjamin, and make an approximation
between several literary devices of the author and the characterizing elements of the
Baroque. The first draft of a statute of “the literary puzzle” is then presented, based on
Heidegger's incursion into the origins of Western thought, and the short story “The third
bank of the river” is pointed out as a paradigm such “literary puzzle”. In this work we
propose, therefore, the investigation of the “enigma” from specific perspectives: there
are five recurrent elements in the work of Guimarães Rosa, which are the mirror
individuation, love, language and “the leap”. Thus, we present constitutive mirroring of
the author's work, which relate to the thinking of Goethe, Sant'Anna, Umberto Eco and
Deleuze. We, then, makea description of the constitutive scheme of the mirror as a
literary puzzle and raise the possibility that the short story “The mirror”, by Primeiras
Estórias, link the book which contains it and Tutaméia: Terceiras estórias. We
investigatethe representations of individuation, as expressed in the literary work of
Guimarães Rosa,as to demonstrate how an identity of the Selfis fluid and even
contradictory in the author’s work. We also present the indices of the author's own
identity hidden as puzzles in his text and we suggest, through an examination of the
notion of alterity, that the concealments are characteristics of the Self in its intimate
constitution. Subsequently, we investigate the puzzles related to the multiple
conceptions of love in the author's work, starting from the notion of recollection, as
conceived by Heidegger, and passing through the ciphers of the word “love” in Rosa's
work, through the references to the search for a return to an idealization of the feminine
and also by the erotic references of a jocular content that the author hid in his text, to
finally reach the approach of the great enigma of Riobaldo, his love for Diadorim. We,
then undertake an analysis of the linguistic mechanism of literary enigmas, through
which constitutive affinities with the ordering of riddles (as described by Andre Jolles)
seem to be revealed. The linguistic-based puzzle is analyzed here from the perspective
of the game and, through the thought of Gregory Nagy, we suggest an alternative to
the arrangement proposed by Huizinga. So, it is suggested that thought is precisely
the movement of the spirit provoked by the linguistic-based puzzle, which promotes
associations between discontinuous elements and categories for the desired
production of meaning. Faced with the sensitive and symbolic discontinuities, the jump
is presented as an alternative crossing and, then,we discuss the conception of an
aesthetics of discontinuity or even an aesthetics of nothingness. The occurrences of
jumps and somersaults seem to be also revealed in an unpretentious way in
Guimarães Rosa's text, as well as recurrent images of the sublime, as a resource in
the face of fatal discontinuities in existence, and the leap - movement of the spirit - is
conceived as a way of subject ascension. We conclude, in the end, that the literary
enigma comprises influxes of crossing identity boundaries and represents, itself, a
convergence to what can be understood as a great general enigma of existence, so
that, everything finally flows into a man conscious of his own finitude and the brevity of
his existence.
Keywords: João Guimarães Rosa; Literary Puzzle; Mirror; Jump; Martin Heidegger.
RESUMEN:
Este ensayo busca analizar la ocurrencia de enigmas literarios en la obra del escritor
João Guimarães Rosa y sugiere que tales ocurrencias juegan un papel estructurante
en la obra del autor. Examina el carácter lúdico de los rompecabezas literarios, según
la concepción de Johan Huizinga, y propone una revisión de la jerarquía establecida
por el autor, que subordinaría los rompecabezas y la poesía al juego. A continuación,
analiza la poética de Guimarães Rosa como expresión de la estética barroca, sugerida
por Sant’Anna y Benjamin, y reúne varios dispositivos literarios propios del autor a los
elementos característicos del Barroco. Luego se presenta el primer borrador de un
estatuto del enigma literario, basado en la incursión de Heidegger en los orígenes del
pensamiento occidental, y se señala el cuento “A Terceira Margem do Rio” como
paradigma del enigma literario. El trabajo propone, entonces, la investigación del
enigma desde las perspectivas específicas de cinco elementos recurrentes en la obra
de Guimarães Rosa, a saber, el espejo, la individuación, el amor, el lenguaje y el salto.
Así, se presentan ocurrencias de espejo constitutivo de la obra del autor, que se
someten al pensamiento de Goethe, Sant'Anna, Umberto Eco y Deleuze. Luego se
presenta una descripción del esquema constitutivo del espejo como enigma literario y
se plantea la posibilidad de que el cuento “O espelho” de Primeiras Estórias, articule
un vínculo entre el libro que lo contiene y Tutaméia: Terceiras estórias. Se investigan
las representaciones de la individuación, expresadas en la obra literaria de Guimarães
Rosa, a partir de las concepciones de Buber, Heidegger y Paz, con el fin de demostrar
cómo la constitución de la identidad del Yo, en la obra del autor, es fluida e incluso
contradictoria. También se presentan los indicios de la identidad del autor ocultos
como enigmas en su texto y se sugiere, a través de un examen de la noción de
alteridad, que los ocultamientos son características del Yo en su constitución íntima.
A continuación, se investigan los enigmas relacionados con las múltiples
concepciones del amor en la obra del autor, partiendo de la noción de recogimiento,
tal como la concibe Heidegger, y pasando por las cifras de la palabra amor en la obra
de Rosa, por las referencias a la búsqueda de una vuelta a una idealización de lo
femenino y también a las jocosas referencias eróticas que el autor escondía en su
texto, para llegar, finalmente, al planteamiento del gran enigma de Riobaldo, su amor
por Diadorim. Luego se emprende un análisis del mecanismo lingüístico de los
rompecabezas literarios, que revela afinidades constitutivas con el ordenamiento de
las adivinanzas, tal como lo describe Andre Jolles. Se analiza el rompecabezas de
base lingüística desde la perspectiva del juego y, a través del pensamiento de Gregory
Nagy, se sugiere una alternativa al arreglo propuesto por Huizinga. Se sugiere,
entonces, que el pensamiento es el movimiento mismo del espíritu provocado por el
enigma de base lingüística, que promueve asociaciones entre elementos discontinuos
y categorías para la deseada producción de sentido. Frente a las discontinuidades
sensibles y simbólicas, el salto se presenta como una travesía alternativa y, luego, se
discute la concepción de una estética de la discontinuidad o incluso de una estética
de la nada; las ocurrencias de saltos y volteretas también se revelan de manera nada
pretenciosa en el texto de Guimarães Rosa, así como imágenes recurrentes de lo
sublime, como recurso frente a las discontinuidades fatales de la existencia, y se
concibe el salto -movimiento del espíritu - como una forma de ascensión del sujeto.
Se concluye, al final, que el enigma literario comprende afluencias de cruce de
fronteras identitarias y representa, en sí mismo, una convergencia a lo que puede
entenderse como un gran enigma general de la existencia, para que, finalmente, todo
fluya hacia un hombre consciente de su propia finitud y de la brevedad de su
existencia.
Palabras clave: João Guimarães Rosa; Enigma Literario; Espejo; Salto; Martín
Heidegger.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO: .................................................................................................... 16
1.1 PROLEGÔMENOS ............................................................................................. 16
1.2 GUIMARÃES ROSA: EM ENIGMA E EM ESPELHO ........................................ 17
1.3 JOHAN HUIZINGA, HOMO LUDENS: O JOGO COMO ELEMENTO DA
CULTURA ........................................................................................................... 20
1.4 O JOGO DAS FORMAS: ANAMORFOSES CRIATIVAS DE GUIMARÃES
ROSA .................................................................................................................. 23
1.5 A PALAVRA POÉTICA É PURO SURGIMENTO (MAS AMA OCULTAR-SE...)
............................................................................................................................. 28
1.5.1 Os fragmentos que ocultam uma ordem insuspeita (de uma construção
orgânica e não emendada...) .................................................................................. 32
1.5.2 A doutrina (multívoca) do logos: os esboços primeiros do estatuto do
enigma literário........................................................................................................ 35
1.6 RIO ABAIXO, RIO A FORA, RIO A DENTRO – A TERCEIRA MARGEM DO
SENTIDO
.................................................................................................................................. 36
1.7 O ENIGMA LITERÁRIO: SEUS LIMITES, SUAS MARGENS ............................ 39
CAPÍTULO 2. O ENIGMA DO ESPELHO ................................................................ 46
2.1 GOETHE E OS ESPELHOS DA NATUREZA ................................................... 51
2.1.1 Espelhos deformantes .................................................................................. 53
2.1.2 Um designador rígido no seio da experiência humana ............................. 56
2.2 A ESTRUTURA DO ESPELHO LITERÁRIO ...................................................... 59
2.2.1 Séries de paradoxos: a lógica do espelho .................................................. 59
2.3 OS ESPELHOS DE ROSA ................................................................................ 61
2.3.1 O enigma do espelho de Tutaméia: Terceiras Estórias .............................. 64
2.3.2 Uma casa sem portas nem janelas (que espelha o universo!) .................. 68
2.4 OS LIMITES DOS ESPELHOS; A ANALOGIA COMO VISÃO ESPELHADA DO
MUNDO .................................................................................................................... 71
CAPÍTULO 3. O ENIGMA DA INDIVIDUAÇÃO ....................................................... 75
3.1 POR SOB AS MÁSCARAS DA IDENTIDADE: O QUE NUNCA DECLINA ...... 78
3.2 O EU EM SI E SUAS CONTRADIÇÕES ............................................................ 81
3.2.1 O autor oculto no texto ................................................................................. 85
3.3 SUJEITO E OBJETO: O PARADOXO DA CISÃO DO SER ............................. 88
3.4 FRONTEIRAS DA ALTERIDADE: OS LIMITES DO HUMANO ........................ 91
3.5 O EU, QUE AMA OCULTAR-SE ....................................................................... 93
CAPÍTULO 4. O ENIGMA DO AMOR ...................................................................... 99
CAPÍTULO 4.1 AS METAMORFOSES DO AMOR ............................................... 102
CAPÍTULO 4.1.1 O sagrado feminino: “Tudo, para mim, é viagem de volta” .. 105
CAPÍTULO 4.1.2 O riso do menino, oculto por sob o verniz do diplomata ...... 108
CAPÍTULO 4.2 O NOME (OS NOMES) DO AMOR – A PALAVRA CIFRADA ...... 113
CAPÍTULO 4.2.1 O nome do amor de Riobaldo: A palavra mágica ................... 119
CAPÍTULO 4.3 OS (DES)LIMITES DO AMOR ....................................................... 122
CAPÍTULO 5. O ENIGMA DA LINGUAGEM ......................................................... 127
CAPÍTULO 5.1 LINGUAGEM: JOGO E ENIGMA ................................................. 133
CAPÍTULO 5.1.1 O estilo espavorido de uma estória exata, composta de tantas
outras incorretas ................................................................................................... 136
CAPÍTULO 5.2 TUTA E MEIA: O ENIGMA DAS FORMAS SIMPLES ................. 138
CAPÍTULO 5.2.1 Um brevíssimo ensaio sobre o mecanismo linguístico do
enigma literário...................................................................................................... 143
CAPÍTULO 5.3 ANALOGIA: METÁFORA E METONÍMIA – OS LIMITES DOS
ENIGMAS VERBAIS .............................................................................................. 149
CAPÍTULO 6. O ENIGMA DO SALTO .................................................................. 157
CAPÍTULO 6.1 OS ABISMOS DA EXISTÊNCIA E A POÉTICA DO SALTO (PARA
OS CRESCERES DA ALMA) ............................................................................... 162
CAPÍTULO 6.2 UM SALTO DO GROTESCO AO SUBLIME (SEM PASSAR PELO
MEIO!) .................................................................................................................... 169
CAPÍTULO 6.2.1 Um pulo do cômico ao excelso: o chiste ............................... 175
CAPÍTULO 6.3 O ENIGMA DA (DURAÇÃO DA) VIDA: O SALTO SOBRE O
ABISMO INEVITÁVEL ........................................................................................... 176
7. CONCLUSÃO: O ROSTO MONSTRUOSO DA ESFINGE DESVELADO ......... 181
REFERÊNCIAS: .................................................................................................... 194
16
1. INTRODUÇÃO:
O que Tarquínio o Soberbo pretendia designar com as
papoulas do seu jardim, compreendeu-o o filho, não o
mensageiro. (Kierkegaard)
1.1 PROLEGÔMENOS:
I
Eu sou o que ficou perplexo. Era uma noite do outono de 2017. Eu dirigia de volta para
casa, tarde da noite, após uma aula de Escrita criativa destinada aos alunos de
primeiro semestre dos cursos de Letras e Pedagogia. Levava em meu íntimo uma
desconfortante inquietação decorrente do que experimentara minutos antes, na aula
que acabara: eu havia selecionado para a leitura da turma o conto “A terceira margem
do rio”, de Guimarães Rosa; o desconforto vinha da constatação de que, para minha
surpresa, eu não houvera conseguido dizer quase nada sobre o conto. Eu não era
capaz de estimar quantas vezes havia lido o conto nos anos anteriores. Eu já podia
declarar-me um especialista na obra do autor, com uma dissertação defendida sobre
ela. Ainda assim, não pude ajudar meus alunos a amenizar a perplexidade da leitura
do conto. Cheguei em casa perguntando-me sobre o que poderia ter acontecido.
II
Lembrei-me de que soubera da disponibilidade de um programa da TV Cultura em
que o professor José Miguel Wisnik analisa o conto “A terceira margem do rio”, que
eu havia reservado para assistir em um momento oportuno. O momento de assistir ao
vídeo, naturalmente, havia chegado. Assisti-o e, ao fim, minha perplexidade havia
aumentado: Wisnik teceu comentários sobre o conto ao longo de mais de quarenta
minutos -, seus comentários, porém, apenas reafirmavam o texto e não logravam ir
além de uma reinterpretação da materialidade das frases. O consagrado professor
desenvolveu comentários elaborados sobre o conto, mas não respondeu nenhuma
das perguntas que lançaram meus alunos em perplexidade.
III.
Depois de assistir ao programa da TV Cultura, apresentado pelo consagrado professor
José Miguel Wisnik, suspeitei estar diante de um problema maior, um problema que
17
eu poderia ainda inscrever na mesma linha da pesquisa que eu já desenvolvia sobre
Guimarães Rosa e que já investigava os enigmas que o autor houvera tramado em
sua obra, mas qual seria o enigma de “A terceira margem do rio”?
IV.
Um tempo depois conclui que talvez não houvesse um enigma de “A terceira margem
do rio”. Algo atraiu minha atenção para a pergunta fundamental que palpitava no
íntimo da mãe do narrador, que, com efeito, não buscava compreender por que razão
o marido decidira meter-se naquela canoa, mas, antes, indagava-se sobre as razões
pelas quais ele se matinha naquela condição e não partia de forma definitiva e nem
se arrependia e retornava para casa. Compreendi que o conto “A terceira margem do
rio” representava propriamente um paradigma do enigma literário.
1.2 GUIMARÃES ROSA: EM ENIGMA E EM ESPELHO
João Guimarães Rosa despertou o interesse da crítica literária, tão logo
publicou sua primeira obra, o que, por si, já representa um fenômeno incomum.
Setenta e cinco anos após essa primeira publicação, o autor segue interessando
pesquisadores que estudam sua criação sob a perspectiva dos mais diversos temas
e áreas de conhecimento1. Destacam-se entre esses estudos as tentativas de dar
conta dos sentidos velados que o autor engendrou em seus escritos, tentativas essas
que exigiram de seus intérpretes esforços que levam a hermenêutica, conforme a
conhecemos, a uma condição limite, e reclamam, talvez, um novo estatuto de
interpretação. Curiosamente, os empreendimentos que chamamos esforços
interpretativos não lograram alcançar o status de categoria própria ao lado de outras
vertentes consagradas dos estudos da obra de Rosa, como, estudos de linguagem,
estudos temáticos sobre cultura popular e investigações sobre misticismo
religiosidade, dentre tantos outros. Inscrevemos, assim, este ensaio em uma categoria
que se serve de todas as áreas anteriormente relacionadas e que passaremos a
chamar de estudos dos enigmas da obra de Guimarães Rosa.
1 No dia sete de outubro de 2021, o Banco de Dados Bibliográfico da USP, sobre o autor, reunia as
referências de 619 livros, 1513 partes ou capítulos de livros, 16 prefácios, estudos introdutórios,
posfácios e apresentações, 2795 textos de periódicos jornalísticos ou acadêmicos, 716 teses ou
dissertações, 334 trabalhos publicados em anais de eventos e 39 textos publicados em sites da web,
totalizando, assim, 6032 registros.
18
Embora as investigações dos enigmas do autor mineiro não tenham constituído
uma categoria de estudos distinta, não podemos afirmar que os críticos não tenham
se dedicado ao tema. O crítico e filósofo Benedito Nunes notabilizou-se como um
importante analista da obra de Guimarães Rosa e dedicou-se aos sentidos que o autor
ocultou em sua obra. Para ele,
À maneira dos escritores cabalistas, que conseguiam harmonizar os
elementos literal, alegórico e simbólico dos textos que compunham,
introduzindo nesta e naquela palavra, sob a forma cifrada, a chave da
interpretação global que se lhes devia dar, Guimarães Rosa gostava de
esconder, em frases triviais, como um signo oculto e dissimulado, o indício,
imperceptível ao mais atento hermeneuta, do significado profundo da
narrativa. (2013, p. 241)
A obra de Guimarães Rosa, para Benedito Nunes, representa uma intricada trama de
planos de sentido que se sobrepõem, se interpenetram e juntos compõem uma
narrativa, naturalmente, também dotada de múltiplas camadas de sentido. Nessa
perspectiva, Benedito Nunes define o enigma rosiano como uma mensagem,
mensagem essa que se furta e se oculta por inserir-se e aprofundar-se em uma outra
mensagem.
A noção de uma mensagem que se aprofunda em outra, como proposta por
Nunes, parece consonar com a maneira como Kathrin Rosenfield percebe a poética
de Guimarães Rosa. A autora também admite a natureza enigmática da criação de
Rosa e sugere que “a narrativa rosiana desenvolve, como círculos concêntricos,
os episódios de uma ação que emana do seu centro oculto - melhor: ocultado -
de intensidade lírica.” (2006, p. 76, grifos nossos). O modelo evidenciado por
Rosenfield, com efeito, é francamente adequado às preferências de Rosa, que tantas
vezes confessou seu gosto por uma poética que se desse “a modos de couve-flor ou
bucho de boi, e em mosaicos” (2005, p. 118), uma criação que se fizesse segundo a
perspectiva do abismo, mise en abyme (GIDE, 2009).
Foi, parece-nos, no entanto, o crítico literário Antônio Houaiss quem melhor
testemunho deu do caráter enigmático do autor, Guimarães Rosa, e de sua obra em
seu “Prefácio dispensável”, que apresenta o livro Recado do Nome, de Ana Maria
Machado. Em seu prefácio, Houaiss compara o escritor a uma Esfinge, que propõe
enigmas e desafia (ameaça?) seus leitores: “Tudo se passa como se em sua obra
Guimarães Rosa dissesse: ‘Dou-te, leitor, um enigma; dou-te também a chave;
decifra-o, se quiseres devorar-me’” (HOUAISS, 2013, p.11). Houaiss, assim, parece
colocar-se ao lado dos críticos que sugeriram a projeção de leitores idealizados por
19
parte de Rosa, leitores exigentes, para os quais o autor acenava com seus segredos
literários.
Não nos parecerá um exagero sugerir, inclusive, que Rosa tenha acenado para
seu leitor ao longo de toda a sua obra. Considerados os complexos planos de sentido
que se atravessam para compor a trama textual do autor, esses acenos ganharão
singulares perspectivas, na medida em que, por vezes, serão depreendidos de
estruturas explicitas do texto, por outras, se darão a ver a partir do enredo, e, ainda
por outras, dependerão de um contexto de ligações intertextuais ou, muito
comumente, de relações intratextuais. Riobaldo sugere, em Grande Sertão: Veredas,
que “O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.”
(2001, p. 646, grifos nossos). Destacamos ainda que vários elementos que compõem
os enredos das narrativas rosianas se comportam como chamarizes. O conto
“Sequência”, que integra o livro Primeiras Estórias, constrói uma pequena aventura
de cavalaria sertaneja, ao fim da qual o herói cavaleiro encontrará sua bem-amada,
confluência mediada por uma vaca que se põe em fuga ao longo de todo o conto. A
perspectiva criada pelo autor se coloca, parece-nos, nas raias do absurdo – e nisso
encontra seu valor! –, na medida em que a vaca é apenas um despistamento,
despistamento esse que se dispõe ao centro do foco narrativo 2. Também na novela
“A estória de Lélio e Lina”, o enredo introduzirá um cachorrinho, o cachorrinho Formôs,
que se colocará ao centro da narrativa, quando cumpre, na verdade, o papel de
conduzir Lélio até Lina, seu par na narrativa. Ainda na mesma novela – e a propósito
do incomum pareamento entre os dois personagens que dão nome ao texto -,
destacamos que a novela está imbuída de uma erótica peculiar, na medida em que
Lélio projetará os seus amores em um largo número de mulheres, mas permanecerá
ao lado de Lina, uma mulher idosa em quem, quando de seu primeiro encontro, Lélio
vislumbrou uma mocinha (ROSA, 2001d, p. 232). Os devaneios amorosos de Lélio
serão, no entanto, sempre mediados por uma musa: um despistamento -, a moça do
Paracatú, que, para desapontamento do leitor, ele nunca encontrará.
Tais estratégias esquivas, que acenam para o leitor ao mesmo tempo em que
despistam sua atenção, esse diálogo furtivo, podem, no entanto, encaminhar-nos a
uma compreensão mais refinada de nosso objeto; Benedito Nunes chamou tais gestos
2A propósito do absurdo de se colocar em destaque algo que representa apenas um despistamento,
Jacques Derrida (1991, p. 36-37) considera que as rasuras podem destacar aquilo que obliteram. Nos
ocuparemos desse pensamento, com melhor detalhamento, na sequência deste trabalho.
20
insinuantes de mensagens cifradas e comparou a recepção de Rosa à de obras
barrocas que se valiam de expedientes semelhantes:
Quando conhecemos essas mensagens cifradas, sentimo-nos, diante da
obra de Guimarães Rosa, como aquele que num quadro de Holbein, “Os
Embaixadores”, há longo tempo contemplado, descobre, olhando-o através
de um espelho, uma caveira ao longo e abaixo da mesa [...]. Um elemento
alegórico sobressalente oculta-se no retrato realista: sobressalente, digo,
porquanto isso acrescenta ao valor representativo da pintura uma noção de
contraste [...]. (NUNES, 2013, p. 180).
Cumpre destacar que a criação de mensagens cifradas, que se furtam e se
aprofundam em mensagens outras, deve estar necessariamente sujeita a regras. Uma
investigação sobre o estatuto das regras desse expediente criado pelo autor nos
conduzirá, naturalmente, à noção de jogo. Se ainda encontramos alguma dificuldade
para relacionar os jogos ao fazer poético, o historiador holandês Johan Huizinga nos
lembra que o fato de o jogo encerrar um sentido implica a necessária presença de um
elemento não material em sua essência (2014, p. 4). Para além da consideração de
que os jogos estão investidos de propriedades que respeitam ao espírito, Huizinga
não vê problema em aproximá-los da atividade poética, na medida em que, para o
pensador, toda a poesia antiga estaria investida de um valor ritual que não prescindiria
das noções de divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria,
adivinhação, profecia e, por fim, de competição (2014, p. 134).
As apreciações de Johan Huizinga que referenciamos não são, contudo,
fortuitas, inopinadas: o autor desenvolveu um denso ensaio sobre o jogo como
elemento essencial da cultura que nos parece necessário tomar em conta em nossa
análise, na expectativa de que o regimento proposto por ele contribua para o
estabelecimento das regras que compõem o estatuto do nosso objeto de estudos, o
enigma literário.
1.3 JOHAN HUIZINGA, HOMO LUDENS: O JOGO COMO ELEMENTO DA
CULTURA
Johan Huizinga publicou em 1938 uma de suas mais importantes obras, Homo
ludens: o jogo como elemento da cultura, obra que propõe, desde o título, uma
desconcertante ousadia antropológica, ao passo que apresenta um deslocamento na
constituição do humano: do animal que sabe, para o animal que joga. A inquietação
resultante do trabalho de Huizinga se fundaria, pensamos, na compreensão de que a
essência lúdica represente um rebaixamento. O autor, por sua vez, tomaria a
21
perspectiva oposta para considerar que a simples constatação de que o jogo
representa um elemento essencial da cultura confirmaria a natureza supralógica da
condição humana (2014, p. 6).
Huizinga, contudo, não poderá desenvolver sua análise sem antes delimitar o
lugar do jogo em separado de todas as demais atividades humanas. Mais do que isso,
seus estudos dependerão de uma precisa definição de jogo, o que o autor faz com
aparente exatidão; para ele,
o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da "vida quotidiana". (2014, p. 33)
A caracterização proposta por Huizinga impressiona pela exatidão: 1. Um jogo só será
jogo se a adesão dos participantes for voluntária; 2. O jogo se circunscreve a um lapso
de tempo e de espaço, por isso mesmo; 3. O jogo não se confunde com os eventos
da vida quotidiana; 4. O jogo difere da vida ordinária pela orientação a um objetivo
próprio, bem definido e por se fazer acompanhar de um sentimento relativo de tensão
e alegria, e, por último; 5. O jogo se sujeita a um conjunto de regras de livre
consentimento, que são, sem prejuízo da liberdade de adesão, essencialmente
necessárias.
Segundo a concepção de Huizinga, portanto, o hábito de Guimarães Rosa de
ocultar elementos em sua obra, a prática de tramar sentidos velados que servirão de
recompensa a um leitor perspicaz, todos esses acenos e despistamentos
constituiriam, assim, uma espécie de jogo. Como já mencionamos anteriormente, para
o historiador holandês, não há conflito na aproximação entre o fazer poético e a
ludicidade. Huizinga nos lembra que a poesia arcaica também se dava na forma de
competições e que, sob esse aspecto em especial, não se distinguia com clareza das
antigas competições por enigmas (2014, p. 148) –, seriam jogos, portanto. Ademais,
para o autor, a linguagem poética seria, essencialmente, um jogo que se faz com as
palavras, ao passo que: “Ordena-as de maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada
uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma.”
(2014, p. 149).
Ao aproximar o jogo e a poesia, Huizinga, como que de maneira natural, faz
ainda uma segunda ligação fundamental para o nosso trabalho: 1. o fazer poético é
um jogo, 2. o fazer poético dispensa enigmas:
22
Nunca se perderam inteiramente as íntimas relações entre a poesia e o
enigma. Nos skalds islandeses o excesso de clareza é considerado uma falha
técnica. Os gregos também exigiam que a palavra do poeta fosse obscura.
Entre os trovadores, em cuja arte a função lúdica é mais patente do que em
qualquer outra, são atribuídos méritos especiais ao trobardus — o que à letra
significa "poesia hermética". (HUIZINGA, 2014, p. 150) 3
O fazer poético é, assim, um tipo de jogo que compreende enigmas. Faz-se
necessário, porém, um ajuste: Em sua obra, Homo ludens, Johan Huizinga propõe
uma hierarquia clara: há poesia e há enigma, precisamente porque, antes, há jogo. O
autor se dedicará a investigar variadas manifestações da cultura, das mais diversas
áreas de atuação humana, e circunscreverá todas elas ao jogo, do qual serão, todas
essas manifestações – direito, guerra, conhecimento, poesia, filosofia etc. – apenas
variações. A forma como Huizinga subordina ao jogo todas essas áreas, com todo o
valor de que cada uma delas se reveste para a constituição da cultura, em seu sentido
mais amplo, confessamos, preocupa-nos, de forma que este ensaio propõe-se a
sugerir uma revisão desse equilíbrio de forças.
Interessa-nos descobrir o estatuto do enigma literário, e, se não o fizermos com
a precisão com que Huizinga definiu o estatuto do jogo, buscaremos ao menos
assentar as suas bases. Interessa-nos, ainda, definir o caráter dos enigmas
formulados por João Guimarães Rosa: se o autor engendra e dispensa enigmas, de
que tipo são eles? Como se caracterizam? Em que medida seus enigmas se
assemelham aos que o antecederam na história da literatura? Responder todas essas
perguntas com a exatidão que a atividade crítica requer certamente excederá os
propósitos desse trabalho. Podemos, no entanto, afirmar que os enigmas de Rosa
primam pela complexidade dos arranjos que fazem com os elementos – elementos
estéticos, elementos de sentido. Seus jogos verbais compreendem o engendramento
de partes que, muitas vezes, compreenderão o encadeamento de outras menores, ao
passo que representam, juntas, uma imagem maior, em uma constituição francamente
estrutural. Tomada em separado a perspectiva do enigma do texto de Rosa, podemos
dizer ainda que ela conduz a uma construção mesmo vertiginosa. O crítico e escritor
Affonso Romano de Sant'Anna, no entanto, destacará o rebuscamento estético da
obra de Guimarães Rosa e inscreverá o autor, sua poética e, naturalmente, seus
enigmas em uma categoria particular que servirá aos propósitos desse trabalho.
3
A propósito do necessário obscurantismo da palavra grega, como sugerido por Huizinga, tomaremos
o tema com melhor detalhamento mais adiante, ainda no primeiro capítulo deste ensaio.
23
1.4 O JOGO DAS FORMAS: ANAMORFOSES CRIATIVAS DE GUIMARÃES ROSA
Os enigmas literários criados por Guimarães Rosa naturalmente se
desenvolvem e se aprofundam através dos múltiplos planos de sentido sugeridos por
Benedito Nunes: daí a referida vertigem do arranjo. Guardadas as proporções dos
níveis de segredo, sugerimos que a rebuscada – por vezes retorcida! - sintaxe do autor
já constitua um primeiro nível de enigma. Um devido afastamento dará a ver, portanto,
um arranjo poético complexo, que harmonize a tensão de forças contrárias e
estabeleça um delicado concerto entre os elementos pareados na estrutura, que,
tantas vezes se faz entre coisas que são e seus correspondentes: coisas que parecem
ser. Atento a essas características, Affonso Romano de Sant’Anna sugerirá que
Guimarães Rosa é um “autêntico exemplar do barroco moderno, tanto em sua forma
cultista quanto conceitista, tanto no rebuscamento da frase e reinvenção de palavras
quanto na montagem labiríntica dos grandes planos de sua narrativa.” (2000, p. 76-
77).4 Para o autor, Guimarães Rosa também se valia costumeiramente de um
expediente comum aos artistas barrocos: inscrever-se, de maneira cifrada, na própria
obra. Assim, Sant’Anna sugere que Rosa, ao promover a alteração na ordem dos
contos de Tutaméia, que inscreve suas iniciais, JGR, no índice do livro, porta-se como
Johannes Van Eyck: João Guimarães Rosa esteve aqui. (2000, p. 77) 5.
O suposto anacronismo da inscrição de Rosa como artista barroco, assim como
feita por Sant’Anna, não surpreende: em sua singular obra Barroco: do quadrado à
elipse, o autor investiga a gradual – e, por vezes, controversa! – transformação do
quadrado renascentista na elipse barroca, para sugerir a constituição de uma estética
que, para além de um movimento histórico, representa uma forma – e uma forma
perpétua - de se ver o mundo. A propósito das visões de mundo, o pensamento
barroco consagrou pensadores e teorias que fundamentaram o desenvolvimento da
4 Embora não constitua um elemento estruturante para este trabalho, não queremos eximir nosso leitor
de uma pitoresca observação de Sant’Anna: tradicionalmente, esperava-se dos embaixadores –
ocupação formal que Guimarães Rosa desempenhou ao longo de quase toda a sua vida adulta – que
fossem experimentados em enigmas: “O sucesso de uma embaixada anamita em Pequim podia por
vezes depender do talento do embaixador para a improvisação em verso. Todos os membros das
embaixadas precisavam ser constantemente preparados para toda a espécie de perguntas, e saber as
respostas para as mil e uma charadas e enigmas que ao Imperador ou a seus mandarins apetecia
perguntar. Era a diplomacia sob forma lúdica.” (SANT’ANNA, 2014, p. 141)
5 Sant’Anna refere-se propriamente ao caso do quadro “O Casal Arnolfini”, do pintor flamengo Jan van
Eyck, que oculta a mensagem “Jan van Eyck esteve aqui”.
24
obra de outros pensadores, aos quais Guimarães Rosa francamente se filiou 6.
Sant’Anna recorda as suspeitas dos precursores da ciência moderna – Copérnico,
Kepler, Galileu, e Descartes – de que o livro da natureza se escrevesse com
caracteres matemáticos (2000, p. 48)7. Se por um lado somos impelidos a relevar a
suspeita de tão ilustres pensadores - prejudicados por precederem as descobertas da
linguística moderna -, por outro lado dela nos servimos para observar que tal suspeita
nos leva a duas conclusões bastante curiosas: 1. para os antigos pensadores, a
natureza oferecia ao homem um enigma; 2. o enigma da natureza oculta, nele próprio,
a passagem indistinta entre o natural e o simbólico, (con)funde a passagem entre as
palavras e as coisas. A propósito desses ocultamentos, para Sant’Anna, a elipse
barroca é a própria representação do enigma:
Na retórica a elipse é uma figura do discurso que pressupõe que algo não foi
dito, que algo está faltando, que algo está oculto.
Na elipse, um eclipse. O ocultamento de uma letra, de um signo. Uma camada
de sombra.
Ler um discurso elíptico, portanto, é extrair-lhe os significados, desvelar,
lançar luz. Achar, enfim, aquela recém-nascida figura que se esconde na
voluta que se expõe na fachada. (2000, p. 22-23).
Em sua apreciação da obra de Rosa, Sant’Anna destaca dois livros do autor
como expoentes da referida estética barroca: Tutaméia e Primeiras Estórias – e, sobre
a obra magna do autor, Sant’Anna sugere:
obra-prima do barroquismo ficcional moderno brasileiro Grande Sertão:
veredas, que se refaça a tradição e que essas veredas sejam o desenho do
enorme labirinto onde Diadorim e Riobaldo têm que enfrentar o Grande Cão,
o Minotauro, que é “Hermógenes mór Maldito”. Do liso do Sussuarão ao
rodopio do duelo no meio da rua, o arrebatamento labiríntico da alma barroca
entre o bem e o mal, o amor e a morte.” (SANT’ANNA, 2000, p. 73).
Mas talvez seja mesmo nos – e entre os – livros Primeiras Estórias e Tutaméia:
Terceiras Estórias que se inscrevam os principais enigmas estruturais de Guimarães
Rosa, como testemunha Rosenfield ao descrever a composição de tríades (tríades de
contos) estruturantes em Primeiras Estórias8 (2006, p. 160). As organizações
6 Guimarães Rosa relacionou para seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, os autores de sua preferência
filosófica – que se confunde, por vezes, com preferências espirituais. Retomaremos com maior
detalhamento essa confissão – e essas preferências – na sequência deste trabalho.
7 Destacamos que, se a ideia de um gênio matemático da natureza não encontra acolhida no
pensamento de Guimarães Rosa, especialmente no que se deva à perspectiva cartesiana da lógica
formal, a ideia de uma inteligência oculta, que desafie o homem com enigmas fundados na linguagem,
parece consonar com suas ideias.
8 Rosenfield (2006, 31-33) também evidencia o caráter estrutural de Grande Sertão: veredas, ao
demonstrar que o romance se organiza segundo uma arquitetura própria: embora não se divida em
capítulos ou não se marque por qualquer recurso gráfico que sugira separações, para a autora, o livro
se dividiria em duas partes relativamente simétricas, a segunda delas, ainda, tripartida.
25
propostas para o livro de 1962 fundamentam-se, quase todas, no valor estruturante
que se atribui ao conto “O espelho”, disposto inequivocamente ao centro do livro. Em
um capítulo posterior, nos dedicaremos mais demoradamente e com maior
detalhamento a este aspecto particular do conto, mas, por ora, destacamos que o
conto se faz marcar, em especial, por uma imagem poética que sobrenadará sobre os
planos de sentido do texto, e sobre a superfície do espelho em que, no enredo, o
narrador busca ver a própria imagem; falamos da imagem furtiva de um rosto de um
menino: “qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que:
rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só.” (ROSA, 2005, p. 120, grifos
nossos). Curiosamente, para Sant’Anna, as misteriosas volutas barrocas também
podem revelar, justamente, um rostinho de menino que se projeta aos olhos do
expectador, de um expectador, no entanto, que deverá antes pôr-se em movimento
para desvelar o enigma das formas:
Mas as volutas da fachada da Gesù guardam um símbolo que não aparece
nas fotos que a retratam apenas de frente e que não se oferecem ao olhar do
espectador apressado. Se as fitarmos de viés, por outro ângulo, veremos que
debaixo das volutas superiores e menores existe uma figura esculpida. É a
cabeça de um anjo menino. Há, portanto, algo no seio da voluta algo que
nasce de suas dobras e que é necessário trazer à luz fazendo girar nosso
olhar em torno da obra barroca.
Ver a elipse.
Ter a elipse (nos olhos). (2000, p. 21)
Em sua primorosa análise, Sant’Anna relacionará e analisará os principais
índices da estética barroca, sempre relacionando-os aos exemplos com que se
manifestam nas obras dos artistas - do período barroco à contemporaneidade - que o
autor inscreve como barrocos. Dentre esses índices, destaca-se que a estética
barroca se fez marcar pelas projeções de círculos e quadrados, formas tantas vezes
utilizadas para circunscrever – de forma explícita ou furtiva -, a cruz, símbolo máximo
da fé cristã:
Esses desenhos baseiam-se numa projeção de círculos sobre quadrados,
buscando extrair dessas figuras geométricas, tidas como símbolo da
perfeição, outras consequentes harmonias. [...] O quadrado representa a
terra, é símbolo da manifestação dos quatro ângulos ou letras de Deus: J H
W H. Para os platônicos refere-se à materialização da ideia. O quadrado,
além do mais, corresponde à forma do homem. O círculo representa o infinito,
o eterno. (SANT’ANNA, 2000, p. 28)
26
Coincidentemente, Guimarães Rosa inscreveu de forma enigmática as duas formas –
o círculo e o quadrado -, no sétimo conto de Tutaméia, “Curtamão”9. Em um livro para
o qual o autor confessou haver almejado a perfeição 10, no conto de número sete,
número que representa a perfeição, o autor inscreveu as formas que representariam
esta mesma perfeição: “Revenho ver: a casa, esta, em fama e ideia. [...]. Dizendo,
formo é a estória dela, que fechei redonda e quadrada.” (ROSA, 2009, p. 67, grifos
nossos), forma que pode ocultar uma referência irônica do autor ao problema da
quadratura do círculo, ironia que não dispensará a sua porção de ingenuidade, tão
tipicamente ao gosto de Rosa. Mais à frente, no mesmo conto, o autor parece
aventurar-se em uma radicalização dessa simbologia que levará as figuras
geométricas (bidimensionais) à espacialidade dos volumes sólidos (tridimensionais):
“todo ovo é uma caixinha?” (p. 71, grifos nossos). E isso ainda não é tudo: Vera Novis
(1989) dispõe “Curtamão” entre os contos metalinguísticos de Tutaméia: a misteriosa,
mutável, a casa anímica que o construtor se propõe construir representaria a própria
obra do autor, Guimarães Rosa.
Os demais símbolos da estética barroca que Sant’Anna reunirá são
surpreendentes e consonam, todos, com o desenvolvimento deste trabalho: volutas,
projeções de formas quadradas e circulares, espelhos, labirintos... O ponto que
atingimos em nossa análise talvez proponha uma radicalização própria do espírito
barroco: a arte barroca constrange o expectador a mover-se, a inscrever-se como
parte da própria obra. Para ver a obra como um todo, o expectador deverá mover-se,
até mesmo ziguezaguear, ou caminhar de maneira errática, por outras vezes. Quem
almejar o afloramento dos mistérios velados deverá mover-se em busca da única
perspectiva sob a qual os enigmas se desvelarão. A concepção do labirinto como
enigma está particularmente imbuída dessas peculiaridades que chamamos radicais:
o jogo de entrar e sair é um jogo corporal – o sujeito deve experimentar o jogo, deve
percorrer as ruas do labirinto. Mais do que um jogo de sentidos, os labirintos
9 A editora Nova fronteira parece haver se dado conta da importância desta simbologia ao ponto de
havê-la inscrito na capa que desenvolveu para a oitava edição de Tutaméia, capa que traz a imagem
de um círculo em que aparecem circunscritos quadrados nos quais se veem as formas de quatro
cabeças humanas.
10 “Em conversa comigo (numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes, enriquecedoras e
provocadoras que tanta falta me hão de fazer pela vida fora), deixando de lado o recato da
despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como
um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes
havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu
exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar
o conjunto.” (RÓNAI, 2009, p. 15)
27
representam a própria via de acesso ao suspense e à surpresa inerentes à narrativa,
o que caracterizaria uma experiência de presença (GUMBRECHT, 2010). A noção da
experimentação do labirinto poderá nos levar a um aprofundamento da radicalização
que propomos. O período barroco marcou-se pelo estabelecimento de uma nova visão
de mundo, abalo ideológico inseparável da descoberta da perspectiva. Sant’Anna, em
sua obra, cita Lewis Munford para sugerir que a descoberta da tridimensionalidade da
perspectiva foi a base das mudanças que fundaram a queda das muralhas medievais
e prepararam, assim, o novo planejamento das cidades renascentistas (2000, p. 43).
Sant’Anna estabelece ainda uma curiosa analogia entre o desbravamento dos mares
no renascimento e o extravasamento dos então conhecidos limites da arte, quando da
descoberta da perspectiva:
Assim como o homem renascentista havia desvendado outros espaços pelas
descobertas, extravasando-se no horizonte dos mares, internando-se nas
florestas do Novo Mundo, também as linhas reais e imaginárias das telas
criavam mais do que um perspectivismo -, criavam perspectivas ilimitadas.
Os Navios de Vespúcio, Colombo, Vasco da Gama, e Cabral, na verdade,
traçavam linhas sobre os mares, construindo o “ponto de fuga” sobre o
horizonte histórico. (2000, p. 42)
Desse modo, as perspectivas da arte e os espaços reais, em certa medida,
confundem-se e o mundo todo é visto como um imenso labirinto.
A noção de um corpo que se põe em jogo com a arte também fundamenta uma
terceira radicalização: o pensamento barroco se faz marcar pela constituição de
cosmologias próprias. Affonso Romano de Sant’Anna relaciona o Triunfo Eucarístico,
espetáculo de fé que se praticava em Minas Gerais, no século XVIII, como um dos
índices da estética barroca (2000, p. 24). Cumpre destacar que tal espetáculo, a
propósito do que mencionamos, representava uma cosmologia e, mais do que isso,
uma cosmologia de presentificação (GUMBRECHT, 2010) em que o público e o
espetáculo se integram, confundem-se em um carnaval sagrado que, por si, consiste
em uma representação – um espelhamento - do universo.
A cosmologia barroca pode, no entanto, circunscrever o próprio labirinto
enquanto símbolo, na medida em que um jogo que se joga com o próprio corpo pode
ser relacionado como o enigma da vida. Sobre a poética barroca, Sant’Anna afirma:
Para se ter uma compreensão dessa produção textual, é preciso acentuar
que a presença do labirinto nessa época, assim como seu retorno em outras
– inclusive na nossa, com Kafka, Borges e García Márquez -, está presa a
uma visão de mundo: o mundo como labirinto, o homem perdido, buscando
um sentido, uma saída para seus passos diante do Minotauro, da morte ou
do monstruoso absurdo da própria vida. (2000, p. 70)
28
O autor nos lembra ainda que “em seu sentido original, o labirinto tem uma conotação
iniciática” (2000, p. 69) e que “quem o percorre realiza uma ‘viagem’ ou ‘prova’, que o
leva (como no caso de Teseu ao enfrentar o Minotauro) a um certo poder.” (2000, p.
69). Vencer o labirinto, portanto, compreende a necessidade de retorno desta viagem,
a necessidade de sair dele, o que parece um motivo caríssimo a Guimarães Rosa, um
autor tão afeito à circularidade narrativa: “Tudo, para mim, é viagem de volta” (ROSA,
2009, p. 41).
Rosa pode ser classificado como um artista barroco, dado o rebuscamento de
sua criação, que tantas vezes evidenciou-se labiríntica. Rosa também revelou muitas
vezes a sua ambição por uma arte que se confundisse com a vida, ambição essa que
encontra paralelo outra vez no barroco, com suas cosmologias próprias. Ademais, o
autor se notabilizou pelos ocultamentos, despistamentos e acenos para o leitor que
engendrou em sua obra, expedientes que encontram lugar na arte barroca, que pode
ser entendida como uma arte do enigma, uma vez que pressupõe ocultamentos.
Precisamos, no entanto, compreender, de maneira mais específica, como se
constituem tais ocultamentos e qual é a sua essência, na tentativa de constituirmos
um estatuto do enigma literário.
1.5 A PALAVRA POÉTICA É PURO SURGIMENTO (MAS AMA OCULTAR-SE...)
João Guimarães Rosa, em conversa com seu tradutor para o Italiano, Edoardo
Bizzarri, fez uma rara – e direta, explícita – confissão de suas preferências teóricas,
filosóficas e religiosas. Um leitor desavisado não se confunda: as preferências
filosóficas de Guimarães Rosa, de acordo com essa confissão, são, quase que
essencialmente, religiosas: “Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com
os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff –
com Cristo, principalmente.” (2003b, p. 90). O roteiro pessoal que Rosa fornece à
crítica, por meio dessa confissão, por vezes se mostra bastante acertado: para a
tradição do Tao, uma das filosofias preferidas de Guimarães Rosa11, o valor das
palavras se funda justamente no sentido que elas ocultam; por outras, não... O roteiro
estabelecido por Rosa parece exercer grande poder de influência sobre seus críticos,
na medida em que constantemente é tomado como uma lista das referências exatas
para os estudos do autor. As nove referências da lista, mesmo se resguardada a
11Em carta a seu tradutor para o italiano, Guimarães confessa sua alegria por saber que o título de
Grande Sertão: Veredas constaria na capa das edições estrangeiras sem o til (ROSA, 2003b, p. 150).
29
amplitude dos nomes, ou ainda o valor enciclopédico que encerram, não parecem dar
conta das leituras de Guimarães Rosa, de modo que, mesmo nesse particular, as
referências apontadas pelo autor também podem ser consideradas enigmáticas, uma
vez que podem levar pesquisadores a se perder. Além disso, seria um erro pueril
centrar a poética de Rosa na perspectiva exclusiva do espírito do autor, sem levar em
conta a perspectiva interacional do texto (KOCH; ELIAS, 2010), de forma que não
podemos negligenciar o universo de autores que Rosa não elegeu como seus, ou
mesmo os autores que ele nem tenha chegado a conhecer.
Para Affonso Romano de Sant’Anna – como verificamos no tópico anterior -, a
elipse barroca subentende um ocultamento necessário e nisso reside, assim
entendemos, o seu valor enigmático. Pois será em uma linha filosófica que não consta
no cânon de Guimarães Rosa que encontraremos a fundamentação precisa para a
essência dos ocultamentos da estética barroca e da poética do autor.
Nos anos finais de sua vida, o filósofo alemão Martin Heidegger dedicou-se a
investigar as origens de um dos conceitos mais importantes da filosofia, um conceito
sobre o qual se funda o pensamento ocidental: falamos do conceito de logos. Para
Heidegger, as noções de razão, pensamento racional, linguagem e explicação, que
normalmente se atribuem ao logos, já representam um falseamento do sentido original
do conceito, que já estaria corrompido desde a filtragem cultural que se estabelece a
partir de Platão e Aristóteles. Ao pensador interessaria o conceito original do logos,
que ele vai buscar em Heráclito. O trabalho de Heidegger a que nos referimos
consagra-se com a publicação, em 1970, da obra Heráclito: A origem do pensamento
ocidental. A empreitada do autor, como ele a desenvolve nessa obra, é singular:
Heidegger empreende um trabalho de resgate etimológico de fôlego, que vai buscar
fundamentos na tradição e na cultura e, tantas vezes, se vê nas raias da discussão
do fazer da tradução. A dificuldade que se impõe, com efeito, é incalculável, se
consideramos que se vai buscar o fundamento do conceito de logos em um filósofo
pré-socrático cuja obra se perdeu, ou, com mais exatidão, um pensador de cuja obra
restaram apenas 131 fragmentos.
O pensamento de Heidegger, especialmente no que respeita à sua incursão
linguística, conduz uma reflexão que ganha sentidos singulares na língua portuguesa:
o termo que consagramos para as noções de desencobrimento, divulgação, aparição,
a palavra revelação, ocultaria o sentido de um segundo velamento a partir do prefixo
30
“re”. Heidegger, curiosamente, retomará a noção de aletheia, uma das acepções
gregas para “a verdade”, para desenvolver a noção de desvelamento - ou
desencobrimento -, mais exata para o sentido que buscamos para a abertura dos
segredos dos enigmas literários; a essência humana, para o autor, é
fundamentalmente enigmática, ao passo que, para ele, “O estranho e enigmático
esconde-se inteiramente na essência do próprio homem." (1998, p. 324). Ainda sobre
os mistérios humanos essenciais, Heidegger afirma que:
"O enigmático da essência humana assumida pelos gregos é muito mais
misterioso do que podemos supor. Isso se deixa comprovar, por exemplo,
quando descobrimos não saber nada sobre a verdade poética da poesia
trágica de Ésquilo e Sófocles, desde o momento em que retiramos as
interpretações posteriores, deixando de lado o entendimento psicológico do
homem." (1998, p. 324)
Em seu trabalho de tradução e de arqueologia etimológica, Heidegger aproximará –
especialmente no âmbito do pensamento de Heráclito -, os conceitos de logos – seu
objetivo primeiro – e de físis para sugerir que a físis é puro surgimento (1998, p. 114),
melhor dizendo, "A palavra φύσιϛ significa: o que a partir de si mesmo surge para o
aberto e o livre e que, nesse surgimento, permanece e aparece, doando-se para o
livre no aparecimento" (1998, p. 39). Tal surgimento, no entanto, amarra em si uma
ambiguidade insolúvel, dado que "O surgimento propicia o encobrimento, a fim de
que vigore na própria essência do surgimento. O encobrir-se vigora, no entanto, ao
favorecer o surgimento para ‘ser’ surgimento." (1998, p. 144, grifos nossos). A tensão
dos contrários, como proposta pela linha de pensamento que se funda em Heráclito,
parece mesmo, por vezes, insuportável para a lógica formal. Heidegger, contudo, nos
lembrará que a própria noção de verdade, para os gregos, comporta uma negação:
des-encobrimento (1998, p. 109) -, e se vale de seus esforços – por vezes às raias do
poético -, para pacificar a ambiguidade que introduz, para justificar que o surgimento
comporta em si um encobrimento:
O que aconteceria se a fonte que surge à luz da terra ficasse sem as águas
que acorrem subterraneamente? Não seria fonte. Ela precisa pertencer às
águas escondidas. Esse pertencer diz que, em sua essência, toda fonte se
mantém protegida pelas águas escondidas na terra, só sendo fonte a partir
delas. (1998, p. 148)
Assim, os termos que Heidegger aproxima em sua busca pela origem do logos12
parecem servir com justeza à nossa busca pelo mecanismo do enigma literário. Mais
12Heidegger afirma que logos, harmonia, físis e cosmos dizem o mesmo, mas "a cada vez numa outra
determinação originária de ser" (1998, p. 188).
31
do que isso: o pensamento de Heráclito inscreveria o estatuto do enigma na própria
ordem geral das coisas, medida em que tudo o que se mostra guarda em si o próprio
velamento:
O que haveria, então, de suceder com o surgir, desprovido de todo e
qualquer relacionamento com o encobrir-se? O surgir não teria nada a partir
do qual pudesse surgir, e nada que se abrigar-se no surgimento. Mesmo que
pudéssemos entregar o surgir para si mesmo, apreendendo-o como o que
acabou de acontecer, o surgir ainda teria que escalar e esquivar-se do que
garante um surgimento, ou seja, do fechamento, para logo ou imediatamente
dissolver-se no nada, no agora da separação. O surgir não vigora como aquilo
que vigora se, primeira e continuamente, não estiver contido e resguardado
no encobrimento. (HEIDEGGER, 1998, p. 148)
A propósito da arqueologia de Heidegger, e ainda da forma como o autor
retoma a noção de aletheia, Kathrin Rosenfield nos lembra que a antiguidade clássica
não opunha o verdadeiro ao falso, como o mundo ocidental consagrou; antes,
contrapunha a verdade ao esquecimento, àquilo que se tributa ao Lethe. Aletheia,
portanto, “significa o verdadeiro, o franco, o que se realiza efetivamente, o que é real
em oposição aos engodos ilusórios” (ROSENFIELD, 2002, p. 106), contudo, só é
verdadeiro na medida em que nega o esquecimento, afinal, “O saber verdadeiro, a
verdade, é, literalmente aquele fundo ‘não-esquecido’ – alethés – que se conserva na
memória literal como também na obtusa memória corporal, de forma que o Tempo
poderá reintegrá-lo na consciência dos homens.” (ROSENFIELD, 2002, p. 111).
Nessa perspectiva, a poética de Rosa também se distingue por um trabalho de
desencobrimento que caracteriza a verdade como concebida pela antiguidade grega,
na medida em que o autor busca remover o velo, trabalha por resgatar do
esquecimento as palavras da língua que caíram em desuso e, muito especialmente,
as imagens sertanejas ameaçadas pelo oblívio decorrente da desenfreada expansão
urbana.
Ainda no que respeita ao nosso objeto de estudos, a obra de Guimarães Rosa,
retomemos a já referenciada prática do autor de acenar para seus leitores idealizados.
Heidegger colocará em foco uma velada referência de Heráclito sobre gestos
expedidos pelo deus Apolo para se perguntar o que seriam, em essência, os sinais e
chegará à curiosa conclusão de que os sinais descobrem, sem prescindir de um
encobrimento. Os sinais – os acenos - são essencialmente enigmáticos, portanto:
O que é um sinal? Algo que se mostra, que se descobre. O que se descobre
é de tal modo que indica um não-mostrado, um não-aparente, um encoberto.
Dar sinais significa: descobrir alguma coisa que, em aparecendo, indica um
encobrimento, encobrindo e dando cobertura, ou seja, deixando surgir a
32
cobertura ou abrigo como tal. A essência do sinal é um encobrimento
descobridor. (HEIDEGGER, 1998, p. 189)
O mergulho de Heidegger no rio de Heráclito justifica e embasa nossa análise
sob diversos aspectos. A propósito da religiosidade de Rosa13, o pensador alemão
nos lembra que a essência dos deuses, de acordo com o pensamento grego,
compreende a noção de um extraordinário que se expõe na dimensão do ordinário
(1998, p. 24), uma essência enigmática, portanto. A própria concepção grega de
divindade é, para Heidegger, essencialmente enigmática, uma vez que a relação dos
gregos com os seus deuses compreenderia um saber em lugar da habitual noção de
fé, especialmente no sentido de pregações autoritárias que determinam suas
verdades (1998, p. 30). Há, no entanto, um aspecto particular do pensamento de
Heráclito – especialmente como mediado por Heidegger – a que queremos nos
dedicar com mais profundidade: falamos da relação das partes com o todo, da noção
de fragmento14.
1.5.1 Os fragmentos que ocultam uma ordem insuspeita (de uma construção
orgânica e não emendada...)
Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário
por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem. (Schopenhauer)
Conta a tradição que, após concluir a sua obra, Heráclito, entrou no templo de
Ártemis e deixou o livro sob a proteção da deusa antes de retirar-se e desaparecer
para sempre. Falamos de um livro do qual não se tem mais registros: as inscrições
das citações de Heráclito, a partir de outras referências literárias, levantam a suspeita
de que os últimos registros de um exemplar integral da obra do filósofo remontem a
mais de 1500 anos. O drama de Heráclito, no entanto, divide as opiniões de seus
intérpretes: se há os que se surpreendem com a trágica ironia de que a deusa tenha
esfacelado o livro que o filósofo deixou sob seus cuidados, não faltam os que sugiram
13 Ao analisar a biblioteca de Guimarães Rosa, Suzi Frankl Sperber revela perplexidade ao constatar,
com base em grifos, anotações e outros sinais gráficos, a preferência do autor pelos textos religiosos
e esotéricos, mesmo por obras, muitas vezes, de pouco prestígio acadêmico.
14 Ainda no que respeita a uma possível afinidade entre a poética de Guimarães Rosa e o pensamento
de Heráclito de Éfeso, o filósofo é citado duas vezes por Rosa em Ave, Palavra, na narrativa que abre
o livro, “O mau humor de Wotan”: “Tratemos de Heráclito, de Sófocles — arre ondeia a suástica sobre
Himeto, Olimpo e Parnasso — detém ninguém o correr dos carros couraçados.” (2001, p. 33, grifos
nossos), e como epígrafe do texto “Os abismos e os astros” (2001, p. 93).
33
– sob os influxos de uma ambiguidade própria do filósofo obscuro – que foi justamente
por meio da fragmentação da obra que a deusa a protegeu.
Heidegger remontará à primitiva cultura agrária da Grécia para associar o logos
a uma noção de leitura de recolhimento: “tomaremos ‘ler’ no sentido mais amplo e
mais originário de ‘colher, recolher (respigar) da lavoura’ [...]. λέγειν, colher – λόγοϛ, a
colheita.” (1998, p. 278). Assim, para Heidegger, o logos representa um recolhimento,
ganha o sentido de uma colheita, uma colheita, contudo, que se dá segundo o limite
do braço que recolhe, que suspende do chão com o intuito de resguardar e cuidar.
Na perspectiva da colheita, ou de um recolhimento, a própria noção de
fragmento se mostra ressignificada. Heidegger retoma o fragmento 124 de Heráclito
para propor, a partir dele, uma revisão: "De coisas lançadas ao acaso, o arranjo
(ainda) mais belo, o cosmo." (1998, p. 176) – o cosmo seria, portanto, o arranjo das
partes lançadas ao acaso; mais do que isso: a beleza do cosmo viria da própria beleza
das partes arranjadas, dos fragmentos recolhidos. O filósofo alemão sugere que a
noção de coleta compreenderia, inclusive, o sentido original do logos, como “o
acolhimento desencobridor - no sentido da unidade própria da junção inoperante que
se conjuga de forma originária." (1998, p. 188), assim, “colher significa deixar
aparecer, a saber, o uno, em cuja unidade o que vigora na proximidade se re-colhe
numa coletividade, a partir de si mesmo. ‘Re-colher’ significa: permanecer contido na
unidade originária da junção." (1998, p. 188). Seria, portanto, o recolhimento do logos
que permitiria ao apanhador reunir as partes para dar a ver uma unidade que já
vigorava a partir de si mesma (HEIDEGGER, 1998, p. 160).
Podemos assim retomar o dilema da proteção da deusa Ártemis: Heidegger
sugere que se os escritos de Heráclito restaram desprotegidos e se esfacelaram, não
podemos dizer o mesmo de sua palavra, que haveria sido preservada, no
recolhimento de seus 131 fragmentos, sob os cuidados da deusa, que a protegeu
justamente por meio do esfacelamento do livro:
Achamos, porém, que se possuíssemos o texto integral, os pensamentos
desse pensador haveriam de se apresentar com maior facilidade, clareza e
transparência a partir de seu contexto. É o que achamos. Mas diversos
motivos mostram o equívoco dessa opinião." (HEIDEGGER, 1998, p. 34)
Se a sugestão de Heidegger aventa uma excentricidade lógica, ou mesmo um
absurdo, lembremo-nos de Guimarães Rosa que almejava o que ele próprio chamava
de um supra-senso (2009, p. 30) e tantas vezes referiu-se de forma jocosa à lógica
34
formal, como quando apelidou-a de “megera cartesiana” (2003b, p. 91). Parece
coerente para com a estética de Rosa – sem perder de vista o que ela tem de barroco
-, coerente ainda com o seu gosto pelos jogos que estabelece com seus leitores, a
ideia de que se possa recompor o sentido geral de Tutaméia: Terceiras Estórias a
partir da apreensão da palavra geral do autor, recolhida por meio da experimentação
e do jogo com seus fragmentos. Colocada em paralelo com a sugestão de Heidegger,
de que o esfacelamento da obra de Heráclito tenha sido uma medida necessária à
apreensão de sua palavra, a ideia de que o arranjo fragmentário de Tutaméia, com
quarenta contos, quatro prefácios e incontáveis paratextos possa dar a ver uma
unidade oculta, torna-se razoável, mesmo coerente.
A montagem de Tutaméia também pode assinalar outro índice da estética
barroca, dado que as partes que a compõem não compreendem uma natureza
dispersiva, antes, integram-se segundo uma ordenação própria, como descreve
Walter Benjamin, em sua obra de 1928, quando se ocupa da dialética que se dá a
conhecer entre as noções do unitário e do múltiplo (2013, p. 26). Com efeito, a
profusão de representações própria do Barroco não prescinde de um caráter
totalizante, como o entende Benjamin, na medida em que, para o autor, as ideias "só
ganham vida quando os extremos se reúnem à sua volta" (2013, p. 23). A essência
das representações, portanto, emanaria justamente da forma como a constelação -
que compreende as representações mais periféricas, mais particulares - articula as
suas partes para revelar uma ideia central, totalizante.
Nossa formação lógica obriga-nos, contudo, à pergunta: mas qual seria, então,
o método por meio do qual a ordem geral de um arranjo, recolhidas as suas partes,
se apreenderia? Para Heidegger, tal desvelamento não prescindiria de uma noção de
paciência, de uma noção de persistência, ao passo que, para o autor, o entendimento,
a própria aprendizagem, têm uma natureza enigmática que se desvela por um
exercício de presentificação (GUMBRECHT, 2010): faz-se necessário colocar-se
diante da recolha, colocar-se e manter-se diante do objeto recolhido, até que sua
essência se mostre:
έπίστασθαι - colocar-se e estar diante de algo de maneira que nesse colocar-
se e estar-diante-de-algo se mostre, e, na verdade, se mostre para nós
(medium). Colocar-se diante de algo significa: deixar que algo se mostre a fim
de que se possa tender para o que se mostra, segundo aquilo e como o que
se mostra é. Poder tender para uma coisa diz: entender-se com ela, e por
isso έπίστασθαι significa "entender alguma coisa". (1998, p. 211-212)
35
Assim, entender compreenderia um "entender-se com" alguma coisa; pacificar as
tensões da diferença, para que se possam ver os contornos de uma unidade
complexa. A aceitação do enigma da diferença, que se desvela quando nos
apresentamos diante de algo e entendemo-nos com ele, também dá conta da proteção
na contréa, entendida como espaço de recolhimento do logos:
Quando nos sentimos confiantes frente a alguma coisa, ela não precisa ter
descoberta a sua essência. Ao contrário. O fato de a coisa permanecer velada
em sua múltipla essência é até mesmo a condição prévia para que se
estabeleça uma confiança frente à coisa. (HEIDEGGER, 1998, p.327)
Propriedades de um logos que protege à mesma medida que põe em evidência:
alberga -, recolhe, dispondo ao alto.
1.5.2 A doutrina (multívoca) do logos: os esboços primeiros do estatuto do
enigma literário
O logos, como entendido, experimentado e repetido – quase friccionado! – por
Heidegger, vigora a partir de si mesmo e representa um puro surgimento que, sem
prejuízo dessa pulsão desencobridora, também ama ocultar-se; é também um
acolhimento desencobridor, uma proteção e um recolhimento que deixa ver a unidade
a partir da reunião de suas partes. Ademais, o logos daria conta da própria natureza
humana, naturalmente misteriosa, enigmática; não se diferenciaria também do arranjo
do cosmo, que conjuga de forma multívoca: "O universo - que em grego se diz ό
κοσμος - é, em essência, sobretudo o que se vela, e por isso a ‘obscuridade’ é
essencial." (HEIDEGGER, 1998, p. 46).
A continuidade do nosso trabalho, no entanto, a esta altura, impõe uma
pergunta: como se dá essa mediação entre o que se desvela e o que se encobre? Ou,
ainda, qual é a perspectiva do que se revela em relação ao ente que se entende com
ele? Em certa medida, o pensamento de Heidegger parece sugerir que, diante do
logos, suprimem-se as distâncias – espaciais, temporais ou semânticas -, na medida
em que o broto reafirma o ser da semente, mediados, ambos, pela mesma luz:
A essência grega da φύσιϛ não é, de forma alguma, a generalização aceita
da experiência, hoje considerada ingênua, do surgimento de grãos e frutos e
do nascer do sol. Ao contrário, a experiência originária do surgimento e
proveniência a partir do que se vela e se encobre é que constitui a relação
com a "luz", em cuja claridade são constatadas a coisa semente e a coisa
broto em seu surgimento, vendo-se, assim, o modo em que a semente "é" na
semeadura, o broto "é" na brotação." (HEIDEGGER, 1998, p. 103)
36
Além disso, no que concerne às distâncias, à espacialidade, o sentido original do logos
também não se dissocia da noção de clareira, na medida em que clareia e expande o
entorno do que protege. (HEIDEGGER, 1998, p. 32). Ademais, Heidegger sustenta
que:
o homem não se recolhe na amplidão do λόγοϛ justamente porque o λόγοϛ
humano é indicador do amplo. Tudo isso é estranho e enigmático. E não
apenas para o nosso entendimento, que em virtude de uma espécie em
incapacidade não é capaz de resolver numa concordância o que parece
irreconciliável. O estranho e enigmático esconde-se inteiramente na essência
do próprio homem. (HEIDEGGER, 1998, p. 324, grifos nossos)
O logos, que, a um só tempo, acena e é um sinal, deve, no entanto, preservar
seu potencial encobridor, pois, de acordo com o pensamento grego original, os sinais
seriam “o mostrar-se do próprio surgimento a que pertence esse mostrar-se, que deve
manter o seu sentido o mais distante possível de qualquer ‘codificação’".
(HEIDEGGER, 1998, p. 189, grifos nossos).
A incursão de Heidegger pela origem do pensamento ocidental, desimpedido
da fôrma de Platão e de Aristóteles, parece haver sido fundamental para o
desenvolvimento de nossa investigação: desobrigando-nos de assumir as
possibilidades de que a doutrina do logos se expanda por toda a natureza,
descobrimos que a origem do pensamento ocidental e, consequentemente, nossa
possibilidade de conhecer, no sentido mais amplo do termo, têm uma genética afeita
aos encobrimentos, ou, como preferiremos chamar, uma genética afeita aos enigmas.
Além disso, descobrimos também que essa essência deve assegurar a manutenção
do encobrimento que lhe é próprio, a propósito de preservar sua própria essência.
Por fim, se esse logos que é puro surgimento, mas ama ocultar-se, deve
preservar sua face encoberta, perguntamo-nos: a que distância? Partimos de duas
premissas: 1. o logos (o enigma) deve supor um encobrimento necessário; 2. o logos
deve assegurar a manutenção de sua porção recolhida. Sentimo-nos prontos para
traçar um primeiro esboço do estatuto que buscamos, uma regra geral do enigma
literário.
1.6 RIO ABAIXO, RIO A FORA, RIO A DENTRO – A TERCEIRA MARGEM DO
SENTIDO
A epígrafe que abre este capítulo introduz a história de Tarquínio, o soberbo,
como referenciada por Søren Aabye Kierkegaard, em sua obra Temor e Tremor. Conta
37
a história que Tarquínio, em resposta ao mensageiro, enviado por seu filho para
buscar as suas orientações sobre como proceder após a tomada de Gábia, esteve em
silêncio. Imaginamos a perplexidade, o constrangimento do mensageiro que, cheio de
temor, retornou a seu emissário sem a resposta ordenada. Permitimo-nos ainda
imaginar o embaraço do mensageiro ao descrever o comportamento excêntrico do
soberano que, não só mantivera-se em inquietante silêncio, como se pusera a cortar
as cabeças das papoulas de seu jardim; então... o enigma de Tarquínio,
compreendeu-o o filho, não o mensageiro: os chefes da cidade, por ordem do rei,
deveriam ser decapitados! A mensagem cifrada deve manter-se a uma distância
segura, que assegure o seu velamento, à medida que também permita o seu
desvelamento. Tal noção ambígua remete-nos ao relato que desenvolvemos nos
prolegômenos deste trabalho: em um conto da complexidade e do valor estético de “A
terceira margem do rio”, minha atenção – minha intuição, agora supomos -, fora
atraída para um ponto da narrativa que, até então, me parecera de importância
periférica – a perplexidade da família do narrador com a manutenção da condição do
pai: “ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se
condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.” (ROSA, 2005, p.
78).
Ainda não tivemos ocasião de mencionar, neste ensaio, a importância da obra
de Goethe para a constituição da poética de Rosa, bem como a influência do poeta
alemão sobre o autor brasileiro – e pretendemos fazê-lo em breve! -, mas parece-nos
oportuna uma primeira antecipação: no ato “Bosque frondoso” da segunda parte de
Fausto, Eufórion propõe ao coro um jogo curioso: um jogo de caça em que a presa,
ao fim, se irá deixar capturar. A regra do jogo, portanto, se funda na garantia de que
o jogo chegará a termo, uma vez que a caça perderá voluntariamente ao se deixar
capturar. O modelo se torna ainda mais curioso se levarmos em conta que o
velocíssimo Eufórion, com seus saltos descomunais, alcançaria a sua presa tão logo
quisesse; ele, no entanto, se manterá a uma distância segura, que não permita que a
caça se evada: ele quer, portanto, jogar com ela -, e tão logo essa distância seja
superada, o jogo terá termo. A curiosa caçada proposta por Eufórion dependerá,
portanto, da manutenção dessa distância.
Nosso esboço de uma regra geral do enigma literário sugere, portanto, que tais
construções devem assegurar o velamento de seus sentidos à medida que também
afiancem a garantia de que seus segredos se darão a ver se os obstáculos que
38
impõem forem corretamente enfrentados. O poeta e crítico literário mexicano, Octavio
Paz, também parece ater-se às regras próprias do enigma literário, como as
entendemos, em seu celebrado ensaio O arco e a lira. Em comentário sobre a arte e
sobre a linguagem, Paz sugere que:
Seu hermetismo – nunca é totalmente impenetrável, mas sempre aberto para
quem quiser se arriscar atrás da muralha ondulante e áspera das palavras –
é parecido com o hermetismo da semente. Enclausurada, dorme a vida
futura. (2012, p. 302)
O autor também destaca em sua obra - que não sem motivo faz referência a Heráclito
- a natureza enigmática da poesia, que surge na mesma medida em que encobre:
“Poema: orelha que escuta uma boca que diz o que a exclamação não disse. O grito
de tristeza ou de júbilo indica o objeto que nos fere ou nos alegra; indica, mas o
encobre” (PAZ, 2012, p. 54, grifos nossos).
Talvez ainda não tenhamos sido suficientemente claros e queremos, por isso,
retomar os exemplos mencionados. A inusitada mensagem de Tarquínio comunica
um sentido específico e bem definido. Reveste-se, no entanto, de uma natureza
enigmática, por seu caráter de ocultação e desvelamento, que assegura que a
mensagem se mantenha incompreensível para o mensageiro, mas se desvele para o
filho. Se a intrigante história de Tarquínio revela-se exemplar, o conto de Rosa,
parece-nos ainda mais singular. O hermetismo de “A terceira margem do rio” revela
que este conto pode ser tomado em si como um modelo, um paradigma do enigma
literário, à medida que fala de um enigma, tem em si um enigma e é, ele próprio, um
enigma. O enigma, portanto, deve resguardar o próprio encobrimento para que
continue a ser um enigma, mas deve também pressupor a possibilidade de ser
desvelado, deve estar suficientemente próximo de seu jogador para instigá-lo, para
aliciá-lo. Um enigma impenetrável, portanto, não é um enigma, deverá, sim,
resguardar os seus mistérios, manter-se a uma distância segura, mas não tão grande
a ponto de que o jogador se perca ou mesmo dele desista, como Eufórion, que
resguarda o próprio passo para que o coro não se distancie, tampouco se deixe
capturar, como o pai que não se deixa nunca perder de vista: não desembarca da
canoa, mas também não vai definitivamente embora, o que o filho chega a considerar
o mais correto!
A propósito do estranho jogo de Eufórion, queremos lembrar que seu valor
lúdico é semântico, circunscrito ao enredo criado por Goethe. Como forma poética,
porém, constitui a imagem literária de um enigma. Tal paradoxo nos servirá para mais
39
um esclarecimento. Na obra em que investiga a poética paradoxal de Lewis Carroll e
a forma como, nela, os sentidos se produzem, Gilles Deleuze considera que a criação
de Carroll propõe jogos singulares, que "parecem não ter nenhuma regra precisa e
não comportar nem vencedor nem vencido." (2015, p. 61), curiosos tipos de jogos
que, parece-nos, reclamam uma revisão das proposições de Huizinga, dado que, para
o pensador holandês, os jogos devem estar, necessariamente, circunscritos a um
intervalo de tempo e de espaço e os jogos de Carroll, além de radicalizarem as noções
de espaço15, por não carecerem de vencedores e vencidos, também confundem em
si a noção de seu fim, uma vez que os jogadores poderão continuar a jogá-los se
assim o quiserem. Os supostos jogos de Carroll, parecem, com efeito, inscrever-se
com mais exatidão no estatuto dos enigmas literários. Ajudam-nos, assim, a delinear
um possível traço distintivo dos enigmas em relação aos jogos: se os enigmas são
jogos, eles são jogos que, embora afiancem a possibilidade de seu desvelamento,
também subentendem o intuito de não acabar, por mais paradoxal que isso pareça.
O nosso pai, que embarca misteriosamente em sua canoa para nunca mais voltar,
permanece ao alcance dos olhos, pode, a qualquer momento desembarcar e voltar
para o seio de sua família, pode também, tão logo queira, seguir o curso das águas e
desaparecer para sempre, mas não faz, nem uma coisa, nem outra: antes mantém-
se em suspenso – permanentemente; na terceira margem, a margem que não tem
fim.
1.7 O ENIGMA LITERÁRIO: SEUS LIMITES, SUAS MARGENS
É possível que a vida peça para ser decifrada como um criptograma. (André
Breton)
Nosso pai, paradigma do enigma literário, deverá, como dissemos, manter-se
em suspenso: à margem – terceira. Octavio Paz sugere, de forma desconcertante, em
sua obra, que é a palavra poética que nos faz saltar para a outra margem 16. Paz
15 Queremos considerar que os jogos de Carroll chegam mesmo a revestir-se de um caráter
cosmológico, uma vez que um grande número de participantes assumem papéis complexos demais
para os jogos a que estamos habituados, como podemos ver na Quadrilha da lagosta, ou mesmo
porque as noções de espaço se confundem, como demonstra o jogo de croqué da rainha, em que os
acessórios do jogo – bolas, tacos e metas -, são, na verdade, seres animados – respectivamente
ouriços, flamingos e cartas/soldados da rainha.
16 Octavio Paz publicou gradualmente os textos que viriam a compor as versões finais de O arco e a
lira. A obra começa a vir à luz em 1956, onze anos, portanto, antes da morte de Guimarães Rosa. As
primeiras versões do livro de Paz não constam nas relações de que dispomos da biblioteca de Rosa, o
que representa – mais uma! – falta notável, dado que as semelhanças entre o capítulo “A outra
margem”, de O arco e a lira, e o conto “A terceira margem do rio” são surpreendentes. Desconhecemos
40
também admite a natureza enigmática da poesia e sugere que, ao fim do influxo
criativo, o poeta descobre, com assombro, que o texto intricado que acabou de criar
guarda uma coerência secreta (2012, p. 165). A lógica da margem, no entanto, para
o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, é a sua contraditória negação:
O que obriga não apenas a ter em conta toda a lógica da margem, mas a tê-
la numa conta totalmente diferente; a relembrar sem dúvida que para além
do texto filosófico não há uma margem branca, virgem, vazia, mas um outro
texto um tecido de diferenças de forças sem nenhum centro de referência
presente [...]. (1991, p. 25).
Derrida fará ainda uma aproximação etimológica entre as palavras "marcha" e
"margem", o que dará a ver o quanto essa noção tem de dinâmica, o quanto poderá
ter de controversa (1991, p. 26).
Foi Goethe, no entanto, quem elevou a ideia de margem à noção de invólucro,
de limite, o que garante a perspectiva de recolhimento, a dimensão enigmática do
modelo: "toda atividade vital demanda um invólucro que a proteja contra o rude
elemento exterior" (2019, p. 28). Seria então uma condição essencial dos seres vivos,
para Goethe, compreender esse limite – essa margem - que estabelece um primeiro
dualismo, entre o que está dentro e o que está fora: “Esse invólucro pode então
aparecer como casca, pele ou tegumento, e tudo o que entra em cena para a vida,
tudo o que deve atuar de maneira vivente precisa ter invólucro." (GOETHE, 2019, p.
28). Nossa referência a Goethe, como havíamos antecipado, é insuspeita. Leitor
contumaz – com facilidade de acesso a textos em diversos idiomas -, profundo
conhecedor da história da literatura, Guimarães Rosa notabilizou-se por não
evidenciar suas referências literárias e por, naturalmente, não prestar-lhes louvor, o
que, para a crítica, pode haver sido um sinal da conhecida vaidade do autor, vaidade
que ele, segundo o testemunho de amigos próximos, tomava como um fardo 17. Para
Kathrin Rosenfield, Rosa valeu-se mesmo de seu gênio criativo para atenuar marcas
de influência em seu texto:
Rosa sempre fabrica suas obras com materiais historicamente pré-moldados,
fazendo sempre desaparecer os rastros de suas fontes de inspiração graças
a uma poderosa sensibilidade e... um ardiloso manejo de variadas técnicas.
(2006, p. 81)
qualquer registro biográfico de encontros entre os autores ou de correspondência entre eles (a falta do
nome de Rosa nos índices remissivos de um autor enciclopédico, como era Octavio Paz, é outro abismo
que grita!). O engajamento dos dois autores em eventos literários internacionais, bem como a
coincidência de ambos haverem exercido funções diplomáticas, torna improvável que um não fosse,
no mínimo, bem informado sobre o outro.
17 Paulo Dantas (1996) testemunha haver encontrado Guimarães Rosa chorando enquanto carregava
uma enorme cruz pelos corredores de seu escritório, no Itamaraty, como forma de penitenciar-se por
sua vaidade, evento que parece colocar-se nas raias de uma narrativa ficcional.
41
Há, no entanto, uma exceção: Goethe -, autor a quem Rosa se referia com
entusiasmo, como quando, por exemplo, celebrou a publicação da tradução de
Grande Sertão: Veredas em alemão, referindo-se ao idioma como a língua de Goethe.
Rosenfield (2006, p. 101) chega mesmo a sugerir que a própria identidade artística de
Rosa deriva-se da poética de Goethe, e, ainda, da empiria intuitiva que o autor
defendia contra a crescente especialização dos métodos científicos e mesmo contra
o que chamaremos uma filosofia matemática – como a dialética hegeliana – que já
não deixava margens para as surpresas das exceções, dos casos singulares e das
experiências únicas da vida cotidiana, em seu sentido mais comum.
Em fala relatada pelo chanceler Friedrich von Müller, Goethe parece sugerir
entender o enigma como a própria essência da experiência humana:
Por mais que a terra, com seus milhares e milhares de fenômenos, atraia o
ser humano, ele não deixa, contudo, perscrutando e anelando, de levantar os
olhos para o céu, que se fecha em abóboda sobre ele em espaços
incomensuráveis, porque ele sente em seu íntimo, de maneira profunda e
clara, que é um membro daquele reino espiritual, ao qual não podemos
recusar a nossa crença. Nesse pressentimento reside o segredo da eterna
aspiração rumo a uma meta desconhecida, é como que o elemento
impulsionador do nosso meditar e perscrutar, o delicado laço entre poesia e
realidade. (2011, p. 629)
Em uma das cartas de sua velhice, mais especificamente em um exemplar dirigido a
Carl J. L. Iken, em 1827, Goethe admite também se valer do componente enigmático
como princípio estético de sua criação:
Como muita coisa em nossa experiência não pode ser pronunciada de forma
acabada e nem comunicada diretamente, há muito tempo elegi o
procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento por meio de
configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo se
espelham umas nas outras. (2014, p. 23)
A noção de enigma, para Goethe, compreende uma perspectiva mais transcendente,
como se os enigmas da arte se originassem de um gênio próprio da natureza, uma
perspectiva que nos parece mais adequada ao gosto de Guimarães Rosa, dada a sua
afeição à religiosidade e ao esoterismo:
O verdadeiro, idêntico ao divino, jamais se deixa apreender por nós de
maneira direta. Nós o contemplamos apenas como reflexo, como exemplo,
símbolo, em fenômenos particulares e afins. Nós o percebemos como vida
incompreensível e, contudo, não podemos renunciar ao desejo de
compreendê-lo. Isto vale para todos os fenômenos do mundo apreensível.
(GOETHE, 2011, p. 44)
A dimensão transcendente, naturalmente, não é uma exclusividade de Goethe;
ademais, separá-la de uma concepção religiosa, não é mesmo uma tarefa simples.
42
Borges sugere, em sua História da eternidade, que a necessidade de explicar a
trindade, “um caso de teratologia intelectual” (2010, p. 22), após o advento do cristo,
terminou por consagrar o mistério na cultura do ocidente. Octavio Paz, por sua vez,
aproxima a experiência poética da experiência religiosa. A concepção do poeta,
inclusive, também advoga em favor de uma natureza humana essencialmente
enigmática, dado que tal experiência revela a condição original do homem, ao passo
que também concorre para mantê-la encoberta:
a experiência do sagrado é uma revelação da nossa condição original,
mas [...] também é uma interpretação que tende a ocultar-nos o sentido
dessa revelação. Reação ao fato fundamental que nos define como homens:
ser mortais e sabê-lo e senti-lo, a religião é uma resposta à condenação de
vivermos a mortalidade que todo homem é. Mas é uma resposta que
encobre exatamente aquilo que, em seu primeiro momento, revela.
(2012, p. 152, grifos nossos).
Para Paz, a palavra poética não comenta a condição do homem, antes, ela é
responsável por revelá-la. (2012, p. 155). Para dar conta das ambiguidades que regem
a multívoca experiência poética, o poeta mexicano tomará o exemplo de São João da
Cruz, que nos parece um modelo singular da coexistência dos contrários e, também,
parece representar uma síntese do enigma.
São João analisa o próprio poema místico, "Canções da alma", com o principal
objetivo de pacificar as tensões da ambiguidade que reside no fato de que as trevas
representariam o próprio abraço de Deus. O poema faz diversas referências a
segredos, mistérios e velamentos, ideias consonantes com o tema geral, a noite
escura, que é, por sua vez, um enigma. O autor explica, especialmente, as referências
ao segredo da escada e ao disfarce da mesa, como expressos na segunda estrofe do
poema:
é preciso saber que disfarçar-se não é outra coisa senão dissimular-se e
encobrir-se, sob outro traje e figura, diferentes dos de costume; seja para
esconder, com aquela nova forma de vestir, o desejo e pretensão do coração,
com o fim de conquistar a vontade e agrado de quem se ama, seja para
ocultar-se aos seus êmulos, e assim poder melhor realizar seu intento.
Tomará então alguém os trajes que melhor interpretem e signifiquem o afeto
de seu coração, e graças aos quais possa mais vantajosamente esconder-se
dos seus inimigos. (2014, p. 165, grifos nossos)
A referência do poeta ao traje – ao invólucro, ao encobrimento -, é singular: atrai, na
mesma medida que repele; expõe, sem prejuízo do ato de ocultar – é puro surgimento,
mas favorece18 o encobrimento.
18Vimos referenciando o trecho de Heráclito, como traduzido por Heidegger, por meio do verbo “amar”
- ama ocultar-se. Heidegger analisará, contudo, a variante do verbo “favorecer”, que nos levará a
43
O filósofo austríaco Martin Buber afirma que todas as religiões têm em comum
a propriedade de lidarem com algum tipo de revelação (2017, p. 124). Em suas
reflexões sobre a condição humana, Buber parece, na verdade, descrever o enigma,
como o temos concebido:
Eis aqui toda a substância ignea de minha capacidade de vontade em um
formidável turbilhão, todo o meu possível girando como um mundo em
formação, como uma massa confusa e indissolúvel, eis os olhares sedutores
das potencialidades flamejando de todas as partes; o universo como
tentação, e eu, nascido em um instante, as duas mãos imersas numa fornalha
para apanhar o que aí se esconde e me procura: meu ato. Pronto! eu o tenho.
(2017, p. 83)
Neste primeiro capítulo de nosso ensaio, retomamos as considerações da
crítica sobre os enigmas da obra de Guimarães Rosa, que concebemos como
despistamentos e acenos para um leitor idealizado, o que, naturalmente,
aproximamos da noção de jogo, mais precisamente, um jogo que se joga com o leitor.
Buscamos em Johan Huizinga o estatuto do jogo e as relações dos jogos com a
linguagem e com a literatura, estatuto esse que, em quase todos os seus pontos,
fundamenta o objeto de nossa análise, o enigma literário, e que, portanto, orientou a
nossa busca por um estatuto próprio. À sequência, investigamos o que o aspecto
enigmático de Guimarães Rosa tem de particular e destacamos a natureza barroca
de sua poética, considerada a estética barroca como uma tendência essencialmente
enigmática, que se funda sempre em um ocultamento. Encontramos na busca de
Heidegger pela origem pré-socrática do conceito de logos um fundamento para a
substância do enigma literário, que também nos conduziu à noção de margem e nos
deu, assim, a base para um primeiro esboço de um estatuto próprio do enigma
literário: o enigma deve compreender uma margem – uma distância - que resguarde
o próprio encobrimento, para que continue a ser um enigma, mas que também
pressuponha a possibilidade de que seus mistérios sejam desvelados. Por fim,
exploramos os limites da noção de enigma, na forma como se confunde com o
pensamento religioso ou cosmológico e encontramos em Goethe um expoente que
certamente haverá influenciado nosso autor, Guimarães Rosa.
Este trabalho, portanto, busca evidenciar a importância dos enigmas para a
constituição do texto de Guimarães Rosa, observados no âmbito da semântica dos
textos individuais e, ainda, em um âmbito mais amplo, que circunscreva as relações
“favorece o encobrimento”. A segunda forma, e suas consequências interpretativas, será melhor
avaliada no quarto capítulo deste ensaio.
44
intratextuais entre diferentes textos do autor, em uma perspectiva coerente com a
ideia de uma obra orgânica, como se apresenta em Tutaméia: Terceiras Estórias. Tem
o objetivo, assim, de demonstrar a importância estrutural que o enigma literário
assume na obra de Guimarães Rosa e tenta dar conta ainda do que é o enigma
literário em si mesmo. A fundamentação dos objetivos expostos passa pela exposição
dos elementos poéticos, próprios da criação de Rosa, que constituem objetivos
específicos desta investigação, a saber: entender a importância da simbologia do
espelho como enigma e apontar seu lugar na estrutura maior da obra de Rosa; sugerir
um argumento que justifique o mistério da ausência das segundas estórias na obra do
autor. Advertimos nosso leitor ainda que esta análise, mesmo que reconheça o valor
estrutural de alguma obra de Guimarães Rosa, ou ainda que proponha arranjos
estruturais entre elas, não se circunscreve a nenhuma obra em particular, ou a
nenhum período específico da criação do autor, antes, recolhe os enigmas que se
distribuem ao longo de toda a obra de Rosa e perpassam mesmo as suas publicações
póstumas. Tal análise, portanto, subentende o conhecimento prévio de toda a obra do
autor e pode mesmo causar desconforto a quem não a conheça, ou mesmo a leitores
que não disponham de uma leitura recente.
Nosso método se funda no desenvolvimento de leituras insistentes de toda a
obra literária de João Guimarães Rosa, de forma que as evidências das relações
criadas pelo autor se deem a ver, seja no que concerne às relações intratextuais, seja
no que respeita às projeções da cultura em seu texto. Organizaremos essa
investigação a partir de cinco elementos recorrentes em toda a obra do autor, que
tomaremos como eixos de análise e nomearão os capítulos subsequentes: o enigma
do espelho; o enigma da individuação; o enigma do amor; o enigma da linguagem e,
por fim; o enigma do salto. A determinação prévia dos eixos de análise poderá
fundamentar-se pelo método comparativo de Georges Dumézil (1958), segundo a
ideia de que o caminho metodológico se dará a ver ao final, quando também se
colocará à prova.
Por fim, a propósito do que demonstramos no conto “A terceira margem do rio”,
conto que assumimos como paradigma do enigma, na obra de Guimarães Rosa, o
enigma literário parece, por vezes, não atender a nenhum propósito que não o de ser
um fim em si mesmo. Poderíamos dedicar todas as páginas restantes deste ensaio, e
incontáveis outras, à enumeração de exemplos, mas reservamo-nos apenas dois, que
envolvem um mesmo motivo indistinto: o problema do narrador do conto “Intruje-se”,
45
que menciona onze boiadeiros para, em seguida, relacionar doze, embora, analisadas
as referências do enredo, o número possa chegar a quatorze!19; uma segunda
confusão envolvendo o mesmo algarismo, por parte do narrador do conto
“Pirlimpsiquice”: “Éramos onze, digo, doze.” (ROSA, 2005, p. 83). Sustentamos ainda
que a própria obra magna do autor, o romance Grande Sertão: veredas, se desenvolva
a partir de um enigma estrutural, que chamaremos a ética de Riobaldo. O ex-jagunço
desenvolverá sua narrativa sobre um tema central, evidente mesmo no primeiro plano
de sentido da narrativa: o pacto com o diabo. Riobaldo se valerá, como é próprio da
criação poética de Rosa, de um extenso léxico para designar o maligno: o Sujo, o
Ocultador, o Tristonho etc. Um dos nomes, no entanto, se apresentará em destaque:
o Demo - sempre cuidadosamente acompanhado do artigo masculino "o". A
designação, portanto, oculta a referência à sua inversão perfeita: o medo. Rosa
propõe, assim, uma alternativa à ética que consagrou a polaridade universal entre o
bem e mal. Riobaldo propõe então, em enigma, um novo equilíbrio para a polaridade
universal entre a coragem e o medo: quem tem "o demo" (o medo) faz o mal; o bem,
por sua vez, seria fruto da coragem que o devir exige de cada indivíduo: o que "ela",
a vida, em seu devir, quer de cada indivíduo, é a coragem (ROSA, 2001a, p. 402).
Assim, o enigma literário, em Guimarães Rosa, assume o curioso estatuto de um fim
em si mesmo, valor que evoca a Esfinge, símbolo do enigma por excelência: a esfinge
propõe um enigma, que determina a vida e a morte, quando ela própria é um enigma.
Por sua vez, Édipo, ao desvendar o enigma da Esfinge, desvela o homem, uma vez
que o próprio homem é a chave do enigma que, nessa perspectiva, iguala Édipo e o
monstro mítico, coloca Édipo diante do espelho. O enigma é o homem, ou, antes, o
projeto do homem, uma cabeça humana que busca elevar-se acima de sua porção
animal.
19Dedicamo-nos ao problema da contagem dos vaqueiros no conto “Intruge-se” em nosso trabalho de
mestrado, “O que não se arrazoa nem se intruge: uma travessia pelos campos mínimos de Tutaméia”,
tornado público em 2014.
46
CAPÍTULO 2. O ENIGMA DO ESPELHO
O espelho é a natureza, o espelho é a coisa mais transparente! Olha para ele e te delicia, eis a
questão!
(Dostoiévski, Crime e castigo)
Nítido ora, ora no éter se espalhando, Imbuindo-o de aromático frescor.
Vês a ânsia humana nele refletida;
Medita, e hás de perceber-lhe o teor:
Temos, no espelho colorido, a vida.
(Goethe, Fausto, segunda parte)
João Guimarães Rosa nunca escondeu a sua aspiração por uma obra que se
revestisse de um caráter transcendente, uma obra que se colocasse para além da
representação, que fosse mais do que o que até então se entendesse por ficção. Ao
crítico alemão Günter Lorenz, o autor disse esperar que Grande Sertão: Veredas um
dia o levasse à meta final (apud LORENZ,1973). A despeito, no entanto, de tudo o
que representou - tanto para a recepção de sua obra, por parte do público e da crítica,
quanto para o próprio autor – o seu único romance, Grande Sertão: Veredas, destaca-
se, dentre os demais livros a última publicação que o autor fez em vida, o seu livro de
contos Tutaméia: Terceiras Estórias, sobre o qual Rosa fez singulares confissões,
testemunhadas por Paulo Rónai, crítico e amigo pessoal do autor: “as palavras todas
eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou
alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto.” (2009, p.
15). Tais aspirações de Rosa, por incomuns que sejam, não constituem, contudo, uma
exclusividade do autor: parecem encontrar paralelo nos desígnios de Mallarmé que
idealizou uma obra total. O nome do poeta simbolista francês, é verdade, não
constava entre os títulos que compunham a biblioteca de Guimarães Rosa
(SPERBER, 1976). A ausência de um autor da importância de Mallarmé nas estantes
da biblioteca de Rosa é, no entanto, uma lacuna absurda; uma lacuna que, supomos,
por isso mesmo, se enche de sentido20.
20Para alguns críticos, Guimarães Rosa houvera dado sinais de que tinha consciência de que seus
arquivos pessoais seriam acessados no futuro e, por isso, organizava-os também por essa perspectiva;
a minuciosa organização de tais inventários seriam uma mostra disso. Na mesma medida, também nos
parece claro que Rosa antecipava a investigação de sua biblioteca, o que envolve questões que
resistem a uma análise simplista, baseada em esquemas redutores. Sperber (1976) observa que a
47
Stéphane Mallarmé, como revelou em cartas a seus amigos, intentou construir
aquela que seria a grande obra de sua vida, O livro, como chamava-o o autor, dotado
de características singulares: pretendia-se infinito, como queria o autor, posto que se
disporia no limite que se deita entre o simbólico e o mundo por ele representado. O
intento do poeta, com efeito, não prescindia de um caráter de espelhamento:
“Mallarmé se referiu várias vezes a uma escrita ideal em que as frases e as palavras
se refletiriam umas às outras e, de certo modo, se contemplariam ou leriam” (PAZ,
2012, p. 279). A curiosa ocorrência de frases e palavras que se correspondam de
maneira reflexiva parece recorrer na poética de Guimarães Rosa, como podemos
destacar em um de seus escritos mais herméticos: falamos de seu discurso de posse
na Academia Brasileira de Letras, três dias antes de sua morte. O discurso de Rosa,
intitulado “O verbo & o logos”, se faz marcar por construções verbais, por vezes
arcaicas, que o levam quase às raias da ininteligibilidade; a maior parte das vezes, no
entanto, o hermetismo parece dever-se a exageros formalistas; em outros momentos,
ainda, o texto dá lugar a construções pueris, que remetem mesmo a jogos de
linguagem infantis. A penúltima frase do discurso parece-nos um bom exemplo: “Mais
eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo
buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico.”
(ROSA, 1999, p. 513). O que são fortes gerais estrelas? Qual devir bovino faria do
buriti um coqueiro mugibundo? O que enuncia esta construção como um todo em seu
contexto? Um intérprete atento aos acenos de Rosa, notará, contudo, alguns sinais
inequívocos da criação dos seus enigmas, como a aparentemente despretensiosa
repetição da palavra buriti, que sinaliza um eixo de simetria no trecho. A propósito dos
intentos de espelhamentos verbais de Mallarmé, a delimitação de blocos de sentido,
simetricamente dispostos na construção de Rosa, pode produzir efeitos notáveis:
manutenção de alguns volumes pode ter-se devido à cortesia do autor, que preservou muitos dos
presentes que recebeu de amigos (muitos deles autores dos livros presenteados, inclusive). Alguns
nomes, no entanto, soam-nos como supressões deliberadas do autor que, por um motivo ou outro,
parece não haver querido se ver associado a eles eu, talvez, tenha querido mesmo pôr em dúvida seu
conhecimento sobre a obra em questão.
48
Cumpre destacar que o eixo de simetria que evidenciamos, no trecho de Rosa que
pusemos em destaque, pode ser considerado, sem dúvidas, um eixo de
espelhamento entre as partes simétricas. No que respeita ao buriti, duplamente
referenciado na sentença destacada, queremos ainda lembrar que esta palmeira
representa – não nos parece um exagero afirmar - talvez o símbolo mais importante
de toda a poética de Guimarães Rosa21; destacamos também que o buriti, conforme
sugere essa mesma poética, especialmente aqui no que guarda de anímica,
compreende uma natureza necessariamente espelhada, dado que a planta “escolhe
crescer” ante o espelho das águas: “Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água
– carece de espelho.” (ROSA, 2001, p. 392).
Outra modalidade de partes simétricas que se dispõem de forma espelhada
pode constituir-se a partir de um segundo expediente linguístico muito ao gosto de
Guimarães Rosa: os palíndromos -, construções enigmáticas que se distribuem
21Recordamos o poema “Um chamado João”, com que Carlos Drummond de Andrade homenageou
Guimarães Rosa três dias após sua morte: “Tinha pastos, buritis plantados / no apartamento? / no
peito?” (2009, p. 10).
49
furtivamente pelo texto do autor, como podemos evidenciar em trechos curtos,
recolhidos de Grande Sertão: Veredas - “São se só as coisas se sendo por pretas”
(p. 229, grifos nossos); “Aquilo passou, embora, o ró-ró.” (p. 314, grifos nossos); “a
bala:bá!...” (p. 447); “Ele – o Dado, o Danado” (p. 525, grifos nossos). Supõe-se ainda
que a alteração que Rosa operou no eixo geográfico de seu sertão, ao situar no
Mutum o seu arquétipo de menino - o menino Miguilim, de “Campo geral” -, deveu-se
justamente à grafia do nome do lugar, que compreende um palíndromo perfeito, ou,
ainda, um espelhamento a partir da letra “T” central.
No entanto, sem prejuízo dos palíndromos e de outras formas espelhadas, a
simbologia do espelho, na obra de Guimarães Rosa, está dotada de características
particulares, que buscamos entender, e assume formas ainda mais singulares, que
queremos destacar neste capítulo: tal expediente pode construir-se a partir de uma
perspectiva puramente semântica, que não se restrinja, portanto, a uma construção
verbal. O modelo mais notável, parece-nos, foi descoberto por Consuelo Albergaria,
conforme divulgou-o em seu livro, Bruxo da linguagem no grande sertão, publicado
em 1977. Segundo a autora, o conto “O Espelho”, na organização do livro, estaria em
espelho: dividiria Primeiras Estórias ao meio, formando pares entre os contos,
segundo a ordem em que os textos se dispunham diante do espelho. Assim, é fácil
perceber que o menino que viaja com os tios no conto que abre o livro, “As margens
da alegria”, reaparece no último conto, “Os cimos”, em nova viagem, agora
acompanhado somente por seu tio; da mesma forma, o conto “A terceira margem do
rio” poderia ser rebatizado com o nome do conto que se dispõe de forma simétrica a
ele: “Partida do audaz navegante”, na medida em que o nosso pai, que um dia se mete
em uma canoa para nunca mais desembarcar, poderia ser tomado como um
navegante audaz22.
22 Podemos igualmente identificar a marca da ausência do pai no conto “Partida do audaz navegante”
e reconhecer que as referências da narrativa desenvolvida por Brejeirinha se adequem ao pai de “A
terceira margem do rio”: “Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...”
(ROSA, 2005, p. 155); devemos essa descoberta ao nosso aluno Pedro Dias que, no primeiro semestre
de 2017, dedicou-se à leitura dos contos de Guimarães Rosa em nossas aulas de literatura infantil.
Além disso, algumas passagens da narrativa de Brejeirinha parecem mesmo descrever cenas de “A
terceira margem do rio”: “O navio foi saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava
as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos.” (ROSA, 2005, p.
155).
50
O conto “O espelho”, que na nossa perspectiva de análise também é o espelho
do livro Primeiras Estórias, desenvolve uma narrativa em primeira pessoa, de fundo
francamente filosófico, em que o narrador se dirige ao leitor com referências a uma
série de experiências a que o “induziram, alternadamente, séries de raciocínios e
intuições.” (ROSA, 2005, p. 113). Em meio a tantas experiências insólitas, relatadas
pelo narrador do conto, destacamos dois eventos, parecem-nos, de maior importância:
1. Em dado momento, o narrador perderá a capacidade de ver refletida no espelho a
própria imagem; 2. Posteriormente, a imagem do narrador, então desaparecida, se
recomporá - de forma gradual, porém -, e dará a ver não a sua imagem própria, atual,
mas o esboço de um “rostinho de menino” (ROSA, 2005, p. 120). Rosenfield destaca
a recorrência da temática do espelho na tradição literária ocidental, frequentemente
associada às representações da infância, e considera que, em Rosa, essa tradição
encontra uma culminância: “Sua idealização do (re)encontro com meninos cujos olhos
são espelhos e cujos gestos guias para o homem adulto parece ter fechado um ciclo.”
(2006, p. 119). A propósito do que já havia indicado para Grande Sertão: veredas,
Rosenfield também evidencia uma arquitetônica particular para o livro de contos
Primeiras Estórias alinhada ao conto “O espelho”, a partir do qual formam-se as
curiosas imagens especulares de substância verbal. Mais do que isso, Rosenfield
considera que os contos “As margens da alegria” e “Os cimos”, que abrem e fecham
o livro, mediados pelo conto “O espelho”, constituem uma tríade que, ao lado de uma
outra, composta pelos contos “A terceira margem do rio”, “Nada e a nossa condição”
51
e “A benfazeja” - sexto, décimo segundo e décimo sétimo contos, respectivamente -,
formará “um ‘esqueleto’ forte, que sustenta as demais estórias” (2006, p. 160).
O gosto por espelhos e por espelhamentos em geral, contudo, não representa
um gosto ou uma escolha original de Guimarães Rosa: os jogos de espelhos podem
mesmo ser tomados como estruturantes para a poética de Goethe, herói literário do
autor. Podemos mesmo dizer que toda a obra de Goethe se faz marcar por índices do
mundo sensível que remetam ou, mais comumente, espelhem o universo infinito. Mais
do que produzir estruturas reflexivas, no entanto, Goethe pensou sobre o papel que
as construções simétricas desempenhariam em sua obra e falou aberta e
deliberadamente sobre elas.
2.1 GOETHE E OS ESPELHOS DA NATUREZA
Em carta dirigida a Johann Gottfried von Herder, em abril de 1787, Goethe fala
das suas suspeitas – ou da sua idealização? - da existência de uma planta-originária,
uma planta modelo, pela qual, inclusive, ele diz haver buscado em suas incursões
naturalistas (GOETHE, 2019, p. 12)23. A crença na existência dessa planta zero, a
partir da qual todas as outras se haveriam originado, constitui a base para a crença
de Goethe na ocorrência de espelhismos naturais, na medida em que todas as plantas
constituiriam reflexos de uma planta ideal. Além disso, a própria visão goetheana da
natureza se fundaria na noção de uma polaridade fundamental pela qual se regem
todas as manifestações da natureza. A morfologia goetheana, com efeito, se
fundamentaria na ideia de uma razão natural, de uma inteligência da natureza, daí a
sua aversão à noção de uma natureza destrutiva, à genese explicada por cataclismos,
o que também explica a sua perplexidade com as descobertas de Humboldt. Para
Goethe, portanto, a natureza é espelhada, e esconde sempre uma inteligência,
mesmo quando sua razão nos escape: "a Natureza é sempre igual a si própria,
mesmo que nos possa parecer frequentemente, por um defeito necessário da
observação, que discorda de si mesma" (GOETHE, 2019, p. 103, grifos nossos).
23 Goethe, curiosamente, cita a tamareira como exemplo de seus estudos (2019, p. 39): a tamareira,
com efeito, é um índice importante para a construção das mensagens cifradas de Guimarães Rosa,
que se valeu da simbologia do tamarindeiro (tâmara da Índia). Além do tamarindeiro, a tamareira nos
levará, por uma análise etimológica, a um dos símbolos mais importantes da poética do autor, o buriti:
- Tamareira / tamar indi / tamarindo (jubaí) - Tamareira / datileira / buriti (CUNHA, 2010).
52
Goethe considera mesmo, em trecho que já havíamos citado no primeiro
capítulo deste ensaio, que a essência divina da natureza - que também se
manifestaria na arte - só se permitiria apreender de forma indireta: "Nós o
contemplamos apenas como reflexo, como exemplo, símbolo, em fenômenos
particulares e afins.” (GOETHE, 2011, p. 44) - e, contudo, não renunciaríamos nunca
ao desejo de compreender os mistérios de tal essência. Como mostra indiscutível de
sua fé no gênio da natureza, Goethe, naturalmente, buscou alinhar sua poética a ele,
certo de que, reproduzindo em sua criação a lógica da natureza, poderia melhor
comunicar os sentidos que queria veicular. Assim, o poeta alemão escolhera – de
forma consciente e deliberada - valer-se de estruturas espelhadas:
Como muita coisa em nossa experiência não pode ser pronunciada de forma
acabada e nem comunicada diretamente, há muito tempo elegi o
procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento por
meio de configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo
tempo se espelham umas nas outras." (GOETHE, 2014, p. 23).
A composição espelhada, no trabalho de Goethe, se faz evidente em sua obra mais
conhecida, Fausto, que se divide em duas partes, elas próprias investidas de
correspondências e simetrias: para a musa da primeira parte, Margarida, estará posta
Helena, na segunda parte; à emblemática Noite de Valpúlgis, corresponderá, na
segunda parte, a Noite de Valpúrgis clássica etc. Para além da constituição estrutural,
a simbólica do espelho estará presente, naturalmente, em toda a obra, de forma
explícita ou velada: na cena "Diante da porta da cidade", por exemplo, a fala da jovem
burguesa contém uma referência à Noite de Santo André, que se caracteriza
justamente pelos jogos com espelhos e outras superfícies reflexivas onde
acreditavam-se ocorrer aparições alucinatórias estigmatizadas e, naturalmente,
condenadas pela igreja (GOETHE, 2014, p. 91).
Octavio Paz reconhece a natureza espelhada da obra de Goethe e considera
que o mito fáustico seria uma espécie de imenso monólogo do espírito ocidental,
refletindo-se interminavelmente em suas próprias criações: “tudo é espelho.” (PAZ,
2012, p. 223). Para o poeta mexicano, inclusive, a arte, como espelho das coisas reais,
estaria investida de uma essência naturalmente transformadora: "Se a arte é um
espelho do mundo, esse espelho é magico: muda o mundo." (2013, p. 69).
A noção de um espelho da natureza, ainda que compreenda a sabedoria
pressuposta por Goethe, não poderá, no entanto, prescindir de uma tensão, de uma
dimensão de luta em seu âmago: o homem – o enigma fundamental - é a cabeça que
53
se projeta de um corpo ainda animalizado. A natureza, portanto, é um berço acolhedor,
que resguarda também em si, e sem o prejuízo de sua primeira acepção, a dimensão
de um campo de luta.
2.1.1 Espelhos deformantes:
No primeiro capítulo de nosso ensaio, relacionamos o pensamento de Affonso
Romano de Sant’Anna, que reconhece Guimarães Rosa como um autêntico
representante da arte barroca, por suas formas rebuscadas e, especialmente, pelo
caráter enigmático de sua obra. Apontamos ainda os símbolos da estética barroca
relacionados por Sant’Anna, ao lado dos enigmas, dentre os quais inscrevem-se os
espelhos. Se os espelhos são responsáveis pela projeção de imagens em uma
perspectiva favorável à apreensão humana, Sant’Anna nos lembra que a palavra
imagem apareceu pela primeira vez nos dicionários do século XVII definida,
justamente, como “reflexo no espelho” (2000, p. 177). O autor ainda aproximará, de
forma surpreendente, a pintura barroca de uma noção de espelho, dado que “Na
pintura, desde o Renascimento e progressivamente no Barroco, os retratos passam a
ser espelhos denunciadores dos personagens.” (SANT’ANNA, 2000, p. 178).
Para a estética barroca, no entanto, o espaço da representação e a própria
realidade, se misturam, o que se sugere pelas formas poligonais dos espelhos que
surgem nas pinturas barrocas, poligonais como o eram as plantas das igrejas desse
período (SANT’ANNA, 2000, p. 179); o espelho, assim, pode ganhar uma dimensão
mesmo cosmológica. O autor também lembrará a ideia de Leibniz, de que Deus
dispusera na alma do homem um princípio representativo, para justificar os esforços
conjuntos de cientistas, religiosos e artistas para dar forma a essa representação de
uma alma que fosse um espelho do universo (2000, p. 130).
O espelho barroco, no entanto, em sua mediação da realidade, investe-se de
uma singularidade que, sem dúvidas, contribui para a constituição de seu caráter
enigmático, dado que ele estaria investido da propriedade de distorcer a realidade, de
deformá-la: falamos aqui nas marcantes anamorfoses barrocas. Para o autor,
inclusive, a pintura barroca criou um exercício de perspectivismo levado ao extremo,
um jogo labiríntico cuja interpretação conduz o espectador a entradas e saídas falsas
(2000, p. 46); nessa medida, diante da ameaça de uma superfície que mente sobre a
realidade, ou melhor, que põe em dúvida a própria percepção do mundo, o espelho
poderá ser compreendido como um enigma:
54
Mas aqui surge um aspecto curioso que pode ser tido como um limite na
passagem do Renascimento para o Barroco, tomando-se a imagem do
espelho como limiar e metáfora epistemológica. Ou seja, o quadro
renascentista que espelha a realidade é diferente do quadro barroco, porque
o que aqui se espelha já não são necessariamente a simetria e a
verossimilhança. (SANT’ANNA, 2000, p. 43)
Diferente do que se poderia imaginar em um primeiro momento, no entanto, o espelho
enquanto enigma não oferece uma captura estável das imagens do mundo, antes,
reveste-se de poderes anímicos que conferem movimento: o espelho/enigma anima o
mundo:
Assim como as colunas da Piazza de San Pietro parecem dançar quando o
observador se movimenta, em muitas obras barrocas ocorre um tumulto na
superfície lisa, que deixou de ser espelho ou lago plácido para ser reflexo de
agitação, sinuosidades e dramas que expõem o interior dos personagens e
não apenas sua tranquila face, muitas vezes angelical, como nos quadros de
Da Vinci, Bellini, Rafael e Boticelli, regulados por invisíveis círculos,
quadrados e triângulos que propiciavam a repousante sensação de harmonia.
(SANT’ANNA, 2000, p. 43).
A superfície reflexiva, então, subverte a propriedade objetiva de que originalmente se
revestia; passa então a produzir anamorfoses:
O espelho barroco, então, ao invés de simetria, passa a reproduzir
tortuosidades; ao invés da objetividade, subjetividades. O espelho se
converte em lente. O quadro já não é, como o queria Da Vinci, um vidro
transparente, uma janela sobre o real. Ele havia dito nos seus cadernos de
anotações: “A perspectiva não é senão uma visão de um objeto atrás de um
vidro liso e transparente, na superfície do qual poderão ser assinaladas todas
as coisas que estão atrás do vidro; essas coisas aproximam-se do olho sob
forma de diversas pirâmides que o vidro corta.” (SANT’ANNA, 2000, p. 43)
O espelho barroco, com suas tortuosidades, também poderá, no entanto, ser
compreendido como uma lente, mais do que isso, como a lente mais adequada de
que se possa dispor para ver e compreender um mundo naturalmente tortuoso. No
que tange às relações com o espaço, Sant’Anna nos lembra que o tópos das viagens
“vinha se cristalizando desde outras épocas e, no Barroco, converte-se em uma forma
angustiosa e mística de peregrinar no labirinto do mundo.” (2000, p. 67). De forma
ainda mais surpreendente, a espacialidade compreendida no enigma dos espelhos –
que, naturalmente, projetam imagens – não poderá prescindir também da dimensão
do tempo, uma vez que os relógios de sol e de água (clepsidra) eram percebidos, no
passado, como imbuídos dos poderes mágicos da natureza que se refletiam em um
aparelho, magia essa que só se perderia no momento em que o homem domasse os
poderes da natureza para criar os primeiros relógios mecânicos (SANT’ANNA, 2000,
p. 138) -, os antigos relógios, portanto, compreendiam o curioso caráter de espelhos
de tempo. Tal concepção também não seria estranha para Deleuze, já que, para o
55
pensador francês, a experiência do presente também configura um espelhamento do
tempo, na medida em que "Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado
e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada
presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo."
(2006, p. 6).
No que respeita à obra de Guimarães Rosa, em particular, Affonso Romano de
Sant’Anna evidenciará diversas ocorrências de espelhos e construções espelhadas.
O autor também discorrerá sobre o conto “O espelho”, que, para ele, “tem um valor
estrutural e também está no meio do livro. Aqui também o que digo deve ser visto
paralelamente ao que apontamos sobre a perspectiva, os espelhos e as
anamorfoses.” (2000, p. 78). Se ao discorrer sobre o conto central de Primeiras
Estórias Sant’Anna não inova, o autor nos causará grande surpresa ao atribuir um
caráter espelhado a outro livro, um livro a que, normalmente, não se imputa esse
caráter, falamos de Tutaméia: Terceiras Estórias, “uma obra sintomática do modo
espelhado de composição. O tópico do labirinto entra em contraponto com o tópico
do espelho, entrelaçando observações feitas em capítulos anteriores e em capítulos
futuros.” (2000, p. 77, grifos nossos). Destacamos a perspicácia de Sant’Anna, mas
nos perguntamos: o autor reconhece a natureza espelhada de Tutaméia ou sugere
que o espelho de Tutaméia se represente pela disposição labiríntica das narrativas?
Talvez exista mesmo uma perspectiva que conjugue as duas hipóteses: para o autor,
é um livro que “se dobra sobre si mesmo” (2000, p. 78). A repetição do sumário de
Tutaméia, ao fim do livro, é também, para o autor, um índice do espelhamento da obra,
ao passo que Rosa “separa os quatro prefácios, colocando-os em um só bloco, como
a dizer claramente ao leitor que este é um livro em que a teoria e a prática se mesclam
indissoluvelmente num jogo de espelhos.” (2000, p. 78, grifos nossos). A inovadora
hipótese de Sant’Anna, que admite a possibilidade de uma construção espelhada para
Tutaméia: Terceiras Estórias, compreende uma solução para o problema – o enigma?
– mais comumente atribuído ao livro: o seu caráter segmentado. Pois é justamente a
perspectiva de uma construção espelhada de Tutaméia que fundamentará a noção da
unidade de uma obra que, tantas vezes, foi dada como fragmentária: o livro, seus
quarenta contos, quatro prefácios e incontáveis paratextos representam imagens:
“Épica, dramática ou lírica, condensada numa frase ou desenvolvida em mil páginas,
toda imagem aproxima ou acopla realidades opostas, indiferentes ou afastadas entre
si. Isto é, submete a unidade à pluralidade do real.” (PAZ, 2012, p. 104).
56
A hipótese de que Tutaméia: Terceiras Estórias seja uma obra espelhada é um
problema. É um problema, no entanto, convergente para com os intentos deste
trabalho. A questão que se apresenta requer de nós um maior aprofundamento no
nosso objeto imediato, a saber, o espelho como enigma literário. Demonstramos a
importância dos espelhos e das construções espelhadas para a poética de Guimarães
Rosa e conseguimos indicar a origem genética desta tendência em Goethe, principal
referência literária de Rosa; demonstramos também a natureza barroca dos
espelhamentos e dos próprios espelhos. Duas perguntas parecem se impor neste
ponto de desenvolvimento de nossa análise: 1. Existe um estatuto próprio do espelho,
como enigma literário? (e, se existe, qual é ele?); a pergunta proposta, naturalmente,
nos levará à segunda, mais elementar, contudo: 2. O que é um espelho em si mesmo?
Principiaremos nossa investigação pela segunda pergunta.
2.1.2 Um designador rígido no seio da experiência humana
O escritor Italiano Umberto Eco publicou em 1985 um ensaio que, conforme o
próprio nome revelará, não poderemos dispensar para a realização de nosso trabalho:
“Sobre os espelhos”. Eco, reconhecido por seu trabalho como semiólogo, principiará
sua análise perguntando-se se imagens refletidas em espelhos são signos, pergunta
que norteará o estudo em questão. Sugerirá, então, que o espelho é um fenômeno-
limiar que representa uma "encruzilhada estrutural", afinal, se o espelho nos dá, por
simetria invertida, a noção da amplitude dos nossos corpos, ele é a porta de entrada
para uma nova percepção da experiência, o que marcaria uma virada do eu especular
para o eu social (ECO, 1989, p. 13). A experiência do espelho, para o autor, representa
um nó inextricável que amarra percepção, pensamento, linguagem e consciência da
própria subjetividade em uma relação cuja origem não se dá a conhecer facilmente
(1989, p. 12).
Umberto Eco definirá, inicialmente, então, um espelho como “qualquer
superfície regular capaz de refletir a radiação luminosa incidente" (1989, p. 13) e
discorrerá, à sequência, sobre os diferentes tipos de espelhos, planos ou curvos: tipos
de espelho que, por sua relação com as diferentes imagens que produzem,
conduzirão análises diferentes, que, também, e naturalmente, levarão a conclusões
distintas.
57
No que tange às relações do espelho com a cultura, Eco sugerirá que somos
propriamente animais de espelho, ou animais catóptricos24, "que elaboram a dupla
atitude de olha para si mesmos (o quanto possível) e para os outros, tanto na realidade
perceptiva quanto na virtualidade catóptrica." (1989, p. 16). Para o autor, se somos
experimentados no uso do espelho, objeto que manejamos com desenvoltura, é
porque as regras de interação catóptrica já foram bem introjetadas por nós (1989, p.
17). Para fazermos a experiência do espelho, no entanto, precisamos, antes de tudo,
saber-nos em frente a um; partimos então do princípio de que ele nos diga a verdade,
e ele diz na medida em que não reverte a imagem, como faz a foto: o espelho não
traduz as imagens (ECO, 1989, p. 17) -, e dizer sempre a verdade é uma propriedade
que consagramos aos espelhos: é justamente a natureza desumana, impiedosa dos
espelhos, que nos faz confiar neles! (Eco, 1989, p. 17).
A propósito da destacada recorrência da temática do espelho, associada a
representações da infância, na tradição literária ocidental (ROSENFIELD, 2006), Eco
recorre à noção do estágio do espelho, como proposto por Lacan, para sugerir que
Entre os seis e os oito meses, a criança se defronta com a própria imagem
refletida no espelho. Numa primeira fase confunde a imagem com a realidade,
numa segunda fase percebe tratar-se de uma imagem, numa terceira
compreende que a imagem refletida é sua. Nesse estado de júbilo, a criança
reconstrói os fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, mas o corpo
é reconstruído como alguma coisa de externo e - diz-se - em termos de
simetria inversa. (1989, p. 12)
O espelho compreenderia, assim, dois usos pelos humanos, usos esses que, por si,
compreendem dois momentos muito distintos: 1. Usado como prótese, pelos adultos,
ou pelas pessoas que já houveram desenvolvido a sua noção do simbólico; 2. Um uso
único, irrepetível para a ontogênese, pela criança narciso (ECO, 1989, p. 13). Os
espelhos, portanto, são próteses: "Uma prótese, no sentido exato, é um aparelho que
substitui um órgão que falta [...] mas, num sentido lato, é todo aparelho que aumenta
o raio de ação de um órgão." (1989, p. 17).
A noção do espelho como prótese o colocará, assim, em lugar particularmente
importante para a experiência e para a condição mimética humanas, na medida em
que se constitui como exotopia (BAKHTIN, 2011) do órgão da visão. O ato de ver
subentende um afastamento necessário, e a cada indivíduo está dada a propriedade
de ver os rostos de todos os seus semelhantes, exceto o seu, próprio, posto que
24Chamamos catóptrico àquilo que é relativo à catóptrica, termo originário do grego, katoptrikē, e que
designa, por sua vez, o ramo da óptica que se ocupa do estudo do fenômeno da reflexão da luz em um
espelho.
58
nossos olhos não estão dotados do necessário afastamento para vermos as nossas
próprias faces, afastamento, esse, que conquistamos pela perspectiva que nos dá o
espelho. Cabe ao sujeito que olha, no entanto, direcionar o foco de uma só e mesma
mirada:
A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-intrusividade
não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também ver-nos como
nos veem os outros: trata-se de imagem experiência única, e a espécie
humana não conhece outras semelhantes. (ECO, 1989p. 18)
A experiência diária, no que tem de ordinário, poderá, muitas vezes, obstar
experiências essenciais, que passam a ser tomadas como obviedades:
negligenciadas, portanto - em situações particulares, a imagem refletida no espelho
pode ser compreendida como sintoma: o sintoma da existência da fonte emissora de
um sinal – o objeto refletido existe!, afirma-nos o espelho (ECO, 1989, p. 18).
Na busca por um possível valor semiósico dos espelhos, Umberto Eco traçará
um paralelo entre as imagens refletidas e a linguagem verbal. Para o autor, se as
imagens projetadas em uma superfície reflexiva se comparassem às palavras, elas
corresponderiam aos pronomes pessoais: "Se o espelho "nomeia" [...], ele nomeia um
só objeto concreto, um de cada vez, e sempre e somente o objeto que está na sua
frente." (1989, p. 21) -, de nossa parte, emendamos a proposição de Eco, sugerindo
que, se os espelhos falassem, eles falariam à moda dos vedas, sempre uma e a
mesma coisa: tu és isto! Tomada em si mesma, no entanto, a imagem do espelho,
para o autor italiano, corresponde a um nome próprio absoluto, na medida em que, no
que respeita à iconicidade, ela é um ícone absoluto (1989, p. 22).
Ao fim de sua análise, Umberto Eco concluirá que os espelhos não produzem
signos, justamente porque compreendem a afirmação de uma presença necessária:
"A relação entre objeto e imagem é a relação entre duas presenças, sem nenhuma
mediação." (1989, p. 25). A conclusão, contudo, só valerá, na opinião do autor, para
os espelhos planos, uma vez que todos os demais espelhos são deformantes e, assim,
comprometem a afirmação tautológica de duas presenças. Os espelhos deformantes,
portanto, para Eco, propiciam uma experiência alucinatória, que corresponde, sim, a
um evento semiótico (1989, p. 26-27). No entanto, devemos considerar que, embora
as imagens especulares produzidas por espelhos planos não tenham valor de signo,
o espelho, enquanto canal, pode ser manipulado para produzir efeitos semiósicos.
Assim, embora as imagens em si continuem a dizer a verdade a respeito delas
próprias, a manipulação do canal pode conduzir uma experiência simbólica (ECO,
59
1989, p. 30). Além disso, não se deve deixar de considerar que os próprios signos,
mesmo se tomados como verdadeiros, também podem ser usados para mentir sobre
o mundo (ECO, 1989, p. 24).
Faz-se necessário, para a finalização desta seção, delimitar precisamente o
âmbito do nosso trabalho em relação à cuidadosa análise de Umberto Eco: se apenas
os espelhos de superfície curva respondem pela dimensão semiósica, podemos
concluir que nossa análise, em sua totalidade, inscreve-se no âmbito do simbólico, ao
passo que todas as representações com que lidamos passam pela deformação – ou
pela reforma! – fatal da arte, espelho que mostra o mundo, na medida em que o
transforma em outra coisa.
2.2 A ESTRUTURA DO ESPELHO LITERÁRIO
Recordo-me especialmente da experiência de ler pela primeira vez o texto – de
gênero inclassificável! – “Do diário em Paris III”, que integra o livro Ave, Palavra, de
Guimarães Rosa, ocorrida no início do ano de 2013. Já não consigo me lembrar, é
verdade, se a prévia constatação da falta do segundo fragmento, “Do diário em Paris
II”, análoga à discutida falta das Segundas Estórias na obra do autor, foi o que induziu
a descoberta que eu estava prestes a fazer, ou se só vim a me dar conta da
descontinuidade do diário posteriormente. Uma mensagem disposta na longa série de
sentenças, relacionadas pelo texto, chamou minha atenção para um enigma: “Aviso:
as sombras todas se equivalem.” (ROSA, 2001, p. 339). Ocorreu-me uma intuição: o
aviso sobre a equivalência das sobras era a sentença de número vinte. Fiz rápidos
cálculos mentais: para que a minha hipótese estivesse certa, as sentenças deveriam
totalizar trinta e nove. Perplexo, contei-as e recontei-as, antes mesmo de proceder a
montagem do quebra-cabeças que eu havia descoberto: eram mesmo trinta e nove
mensagens.
Percebi algumas coisas com a minha descoberta, dentre as quais agora
destaco duas: 1. O famoso espelho que refletia os contos de Primeiras Estórias não
era o único espelho da obra de Guimarães Rosa; 2. Eu havia descoberto o estatuto
básico da estrutura dos espelhos literários.
2.2.1 Séries de paradoxos: a lógica do espelho
Em sua obra Lógica do sentido, originalmente publicada em 1969, Gilles
Deleuze empreende uma incursão pelo pensamento estoico, na tentativa de criar uma
60
teoria do sentido, que o autor dará a ver por meio de uma obra famosa justamente por
seu caráter de não-senso: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Para tanto,
Deleuze se dedicará aos paradoxos de Carroll que, conforme demonstra o autor,
desenvolvem-se em séries.
Em seu projeto de reversão do platonismo, Deleuze afirma o simulacro. Tal
afirmação cria uma nova perspectiva, adequada à análise dos paradoxos de Carroll:
a dimensão das séries -, séries essas que se constroem segundo uma hierarquia
singular, uma hierarquia que se destaca pela equidade de valor dos fragmentos
seriados:
Tais sistemas, constituídos pela colocação em comunicação de elementos
díspares ou de séries heterogêneas, são bastante ordinários em um sentido.
São sistemas sinal-signo. O sinal é uma estrutura em que se repartem
diferenças de potencial e que assegura a comunicação dos díspares; o signo
é o que fulgura entre os dois níveis da orla, entre as duas séries
comunicantes. (2015, p. 266)
Para Deleuze, portanto, os paradoxos tramados por Lewis Carroll compreendem
regras específicas: ao introduzir seus paradoxos, o autor parece descrever um
espelhamento em que as séries que os compreendem se correspondem. Os
paradoxos de Alice, assim, estão investidos de uma lógica própria e expressam-se
em séries naturalmente espelhadas:
É uma instância de dupla face, igualmente presente na série significante e na
série significada. É o espelho. É, ao mesmo tempo, palavra e coisa, nome e
objeto, sentido e designado, expressão e designação etc. Ela assegura, pois,
a convergência das duas séries que percorre, com a condição, porém, de
fazê-las divergir sem cessar. É que ela tem como propriedade ser sempre
deslocada com relação a si mesma. (DELEUZE, 2015, p. 43, grifos nossos)
A propósito da estrutura que busca descrever, Gilles Deleuze fará um recuo
teórico para estabelecer uma fundamentação ainda mais elementar e descreverá,
com uma clareza pouco comum, a estrutura, como proposta por Levy Strauss;
determinará, então, com muita objetividade, as condições mínimas para a
configuração dessa estrutura que, para o autor, com efeito, são três: 1. Necessita-se
de "pelo menos, duas séries heterogêneas, das quais uma será determinada como
‘significante’ e a outra como ‘significada'’' (2015, p. 53), 2. As séries devem se
constituir de termos que não existam, senão pelas relações que estabelecem uns com
os outros (2015, p. 53) e, 3. As duas séries heterogêneas devem convergir para um
elemento paradoxal que configura um "diferenciante" (2015, p. 53). Deleuze reforça
que este terceiro elemento diferenciante é um "princípio de emissão de
singularidades" (2015, p. 53), que não pertence a nenhuma das séries, na medida em
61
que pertence às duas a um só tempo (2015, p. 53). Esse terceiro elemento - natural
e essencialmente ímpar (em sentido numérico!) - é o espelho, assim como o
entendemos, enquanto enigma literário25.
O espelho, associado às suas séries, às quais corresponde, mas das quais se
destaca, deve compreender um número ímpar. Umberto Eco, em sua análise sobre
os espelhos, já havia chegado a uma conclusão interessante, justamente sobre essa
particularidade da montagem das séries dispostas diante de um espelho: propõe um
exercício no qual um observador, colocado em um ponto A, avista um objeto situado
em um ponto B, com a ajuda de espelhos, sem os quais o observador não conseguiria
avistar o objeto colocado em B. O crítico italiano considera que, para que essa
experiência aconteça, o número de espelhos deve ser sempre ímpar, sob pena de
que a imagem se mostre invertida, ou, mais exatamente, não se mostre como o
observador a veria imediatamente refletida em um espelho posto à sua frente. (1989,
p. 22).
O espelho, como enigma literário, portanto, é ímpar: emite singularidades
diante das séries pareadas que se ordenam a partir dele. Dispomos já de uma base
para a fundamentação de nosso estatuto: podemos agora voltar aos espelhos de
Guimarães Rosa.
2.3 OS ESPELHOS DE ROSA
A análise de Deleuze justifica nossa experiência com o texto “Do diário em Paris
III”, que marcou o momento em que vislumbramos a estrutura do espelho como
enigma literário: suspeitamos que a mensagem “Aviso: as sombras todas se
equivalem.” (ROSA, 2001, p. 339) fosse o alerta de que as sentenças, aparentemente
fragmentárias e de sentido vago, se correspondessem como sombras e constituíssem
duas séries pareadas. Seria natural supor que o aviso, por sua natureza divergente,
fosse o emissor de singularidades: que fosse o espelho das séries, portanto. Assim,
1. O conjunto deveria compor um número ímpar: eram 39 sentenças; 2. A sentença
25 Deleuze ofereceria ainda um argumento de valor para os que se frustram com a dificuldade para se
remontar o quebra-cabeças do espelho de Primeiras estórias: os encaixes, para o autor, poderiam ser
"furtivos": "Se os termos de cada série são relativamente deslocados, uns com relação aos outros, é
porque primeiramente, em si mesmos, eles têm um lugar absoluto, mas este lugar absoluto se acha
sempre determinado por sua distância deste elemento que não para de se deslocar relativamente a si
mesmo nas duas séries. Da instância paradoxal é preciso dizer que não está nunca onde a procuramos
é, inversamente, que nunca a encontramos onde está." (2015, p. 43)
62
espelho deveria ser a mediana: era a décima nona -, dividia ao meio as duas séries
de 19 sentenças supostamente correspondentes. Faltava-nos, assim, juntar as partes
para experimentar o enigma que delas adviria. A reunião dos fragmentos de “Do diário
em Paris III”, simetricamente dispostos resulta assim:
Aviso: as sombras todas se equivalem.
1. Também os defeitos dos outros são horríveis O que seria um epitáfio: Neste tempo e lugar, repousa 39.
espelhos. o amigo da harmonia.
2. A queda do Homem persiste, como a das cachoeiras A noite não é o fim do dia: é o começo do dia que vem. 38.
3. Nós todos viemos do Inferno; alguns ainda estão Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de 37.
quentes de lá. todas as fontes.
4. A alma insuflada no barro não cessa de trabalhar seu Se a semente tivesse “personalidade”, nem a árvore 36.
invólucro, numa tremenda operação química. nasceria.
5. Os santos foram homens que alguma vez acordaram Forte é a onda — que se deixa a empuxo e vento. 35.
e andaram os desertos de gelo.
6. O Inferno é o Céu mesmo, para os que para o Céu Pode a própria semente ser sua necessária terra? 34.
não estão preparados?
7. Somos cegos transparentes. Que vamos, que vamos, até os ponteiros estão 33.
afirmando.
8. As velhas pedras influem, como os astros; mas só as A coerência da pedra, na consistência da forma! 32.
árvores convivem com a terra impunemente.
9. A memória nem mesmo sabe bem andar de costas: o A duna, a lama e o mar são fins igualmente 31.
que ela quer é passar a olhar apenas para diante. improváveis.
10. O azul sugere e recorda. Mas só do nenhum verde é O fundo de todas as coisas é além e aquém do azul. 30.
que saem as vivas aparições.
11. Saudade é ser, depois de ter Só as pessoas não morrem: tornam a ficar 29.
encantadas.
12. Tudo é sentinela. Rebela-se o pouco de lua. 28.
13. Preso na praça de Deus, como peixe em nenhuma Mas a Deus só se pode dar uma coisa: alegria. 27.
rede.
14. É a do escopro, e não a do martelo, a mão que dirige Levantar os braços para Deus pode ser tocar as mãos 26.
o mármore. na tristeza.
15. Mas ir buscar o mármore na montanha O mundo aumenta sempre, mas só com o fictício de 25.
muros de espelhos.
16. Ou a loucura legal do entusiasmo Eu quero a paz, e pago-a, com um fervor de guerra. 24.
17. Também os dias vão como escada, para não se Sendo que aproximar-se é se afastar. 23.
descer nem subir
18. Não ter medo: o mar não se destrói com nenhuma Precaução contra Júpiter: — Primeiramente, não 22.
tempestade. enlouqueças!
19. O quanto da matéria embaça e encapota: as almas se O bom da água encontrada e do pão por esforço. 21.
adormecem no monturo ou sobre o ouro.
A junção de diversos pares, aparentemente desconexos, produzem sentidos
coerentes, como se pode observar com a reunião das sentenças 1 e 39: Também os
defeitos dos outros são horríveis espelhos. / O que seria um epitáfio: Neste tempo e
lugar, repousa o amigo da harmonia; 4 e 36: A alma insuflada no barro não cessa de
trabalhar seu invólucro, numa tremenda operação química. / Se a semente tivesse
63
“personalidade”, nem a árvore nasceria; 8 e 32: As velhas pedras influem, como os
astros; mas só as árvores convivem com a terra impunemente. / A coerência da pedra,
na consistência da forma!; 10 e 30: O azul sugere e recorda. Mas só do nenhum verde
é que saem as vivas aparições. / O fundo de todas as coisas é além e aquém do
azul.; 11 e 29: Saudade é ser, depois de ter / Só as pessoas não morrem: tornam a
ficar encantadas; 13 e 27: Preso na praça de Deus, como peixe em nenhuma rede. /
Mas a Deus só se pode dar uma coisa: alegria; e 17 e 23: Também os dias vão como
escada, para não se descer nem subir / Sendo que aproximar-se é se afastar. A
reverberação de motivos semelhantes sugere-nos, também, que as sentenças,
segundo uma ordem oculta, possam recompor um texto original que as ordene em
sentido; abrir esse enigma, contudo, é tarefa que não subestimamos e que excede os
objetivos deste trabalho. Destacamos, contudo, a evidência de um possível erro na
disposição de uma das seguintes sentenças: 2, 3, 37 ou 38 -, dado que, como estão
dispostas, a sentença 2 parece corresponder, na verdade, à de número 37: A queda
do homem persiste, como a das cachoeiras. / Só na foz do rio é que se ouvem os
murmúrios de todas as fontes. Lamentamos, portanto, que Paulo Rónai, responsável
pela organização da publicação póstuma, também já não esteja entre nós para
comentar a alteração que propomos, que pode muito bem dever-se a um equívoco do
próprio autor, ou, ainda, tributar-se a mais um de seus mistérios...
O espelho de “Do diário em Paris III” parece-nos, indiscutivelmente, mais um
espelho de Guimarães Rosa; dizemos mais um em clara referência a seu espelho
amplamente conhecido: o de Primeiras Estórias. Ambos obedecem a um mesmo
estatuto: 1. Compreendem uma sequência de número ímpar; 2. Organizam-se a partir
de um emissor de singularidades central que; 3. Divide duas séries simétricas. A
ocorrência, é claro, desperta nossa atenção para a existência de outros espelhos,
ocultos na obra de Rosa, além dos dois que já conhecemos. Queremos retomar,
assim, a proposição de Affonso Romano Santana que tanta surpresa nos causou,
falamos da sugestão de que Tutaméia compreenda um modelo espelhado de
composição, a despeito do caráter fragmentário que tão comumente se atribui ao livro;
queremos, ainda, repetir – e desenvolver -, as perguntas que desejamos propor ao
autor:
Sant’Anna sugere que Tutaméia disponha de uma natureza espelhada ou
sugere que o espelho de Tutaméia se represente pela disposição labiríntica das
narrativas?
64
Quando o autor menciona a natureza espelhada de Tutaméia, ele fala de uma
natureza necessariamente simétrica?
Sant’Anna sugere uma correspondência entre Tutaméia e Primeiras estórias?
Sabemos que muitos autores escreveram sobre “O espelho” de Rosa enquanto
espelho do livro, Primeiras Estórias, mas Sant’Anna impressiona por referenciar os
espelhos de uma forma muito semelhante à que descrevemos, consciente da
necessidade de um número ímpar ordenando as séries; descreve com precisão a
estratégia da construção do espelho como um elemento de poética:
Como em Tutaméia, onde o livro se dobra sobre si mesmo, o conto “O
espelho” divide a obra em metades rigorosamente espelhadas, uma vez que
é precedido de dez contos e seguido também de dez contos, e os temas
da primeira metade espelham-se nos contos da segunda metade. Isso, em
uma leitura periférica, transformaria essa obra em obra esférica e circular. No
entanto ela é elíptica, primeiro porque o autor, praticante de numerologia,
trabalha com números ímpares e faz com que haja dez contos de cada
lado; “O espelho” é o número 11, perfazendo-se o total de 21. (2000, p. 78-
79, grifos nossos).
Se o autor vislumbra uma estrutura notável e dá mostras de compreender a estrutura
das séries pareadas, por outro lado introduz um problema, talvez insolúvel,
especialmente por colocar-se em conflito com o estatuto que definimos. Se por um
lado Tutaméia apresenta sinais de um possível espelhamento, por outro lado, e em
princípio, o livro não poderia dispor de um espelho, dado que constitui-se de um
número de contos par e excluiria, assim, a possibilidade de um elemento ordenador,
emissor de singularidades.
2.3.1 O enigma do espelho de Tutaméia: Terceiras Estórias
Nossa descoberta de um segundo espelho na obra de Guimarães Rosa,
associada às minuciosas e incansáveis leituras de Tutaméia, levou-nos à constatação
de que o misterioso livro compreenderia sinais evidentes de pareamento. O enigma
do livro, no entanto, mostrava-se infinitamente mais complexo do que o de seu
análogo, Primeiras Estórias, dado que o número de peças do quebra-cabeças literário
era muito maior, que não conseguíamos identificar um elemento ordenador e que , o
que tornava tudo muito pior, as peças não se organizavam de forma linear e
progressiva, como em Primeiras Estórias, de forma que bastaria ao intérprete associar
os textos equidistantes, no índice, em relação ao conto central. Podemos, então,
explicitar uma divergência em relação à maior parte dos analistas da obra de
Guimarães Rosa: não acreditamos nas hipóteses propostas para explicar a desordem
65
provocada por Rosa no índice de Tutaméia. Sant’Anna, inclusive, especula sobre as
razões que levaram Rosa a inserir suas iniciais no índice do livro. Nenhum dos
enigmas do autor, contudo, nos parece tão superficial e supomos mesmo que Rosa
quis apenas criar um despistamento. Se há um enigma geral em Tutaméia, ele pode
ser aberto por pelo menos dois caminhos: 1. Encontrar as correspondências exatas
entre os contos, ou; 2. Descobrir a ordem exata do índice (que, consequentemente,
desvelará o pareamento dos contos). Assim, por trás de um gesto dissimulado que
nos soaria mesmo como uma vaidade infantil (no que, naturalmente, não
acreditamos!), Rosa tornou mais difícil a ordenação dos contos, ou, então, forneceu-
nos uma pista de como poderíamos recompô-la! Assim, a tantas vezes discutida
ordenação alfabética de Tutaméia: Primeiras Estórias deve-se, segundo a
entendemos, a um esforço de ocultar a ordem exata segundo a qual as estórias se
organizam.
Devemos a esta altura reconhecer que ambicionávamos, para este trabalho,
encontrar os pareamentos dos contos de Tutaméia, o que também revelaria a ordem
oculta do índice do livro, mas ajustamos nossos objetivos ao longo do percurso por
entender que os objetivos que assumimos se mostrariam mais adequados e, também,
admitimos, por reconhecer a dificuldade que encontraríamos para o desígnio inicial.
Decidimos, contudo, juntar aos anexos deste ensaio as nossas descobertas e as
hipóteses, mesmo preliminares, na esperança de que a investigação tenha
continuidade e o enigma futuramente se abra, ainda que pela mão de outro
pesquisador. Não podemos também nos furtar a demonstrar os pareamentos
inequívocos que encontramos entre os contos de Tutaméia: Terceiras Estórias.
Os primeiros pares que identificamos se dispõem de forma simétrica na
publicação, a saber, o primeiro e o quadragésimo (último) contos do livro,
“Antiperipléia” e “Zingaresca”, e, também, o terceiro e o trigésimo oitavo contos, “A
vela ao diabo” e “Umas formas”:
66
Antiperipléia (1) Zingarêsca (40)
Há o cego e o seu guia Há o cego e o seu guia
O guia cogita ir para a cidade: A dupla vem da cidade:
“E o senhor quer me levar, distante às cidades? “Retornavam para sertões, comum que o dinheiro
Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta”; “Cidade corre é nas cidades?”
grande, o povo lá é infinito”.
“Mesmo eu assim, calungado, corcundado, “o guia – rebuço de menino corcunda, feio como um
cabeçudão.” “...não via que eu era defeituoso feioso.” caju e sua castanha”.
Há ciúme e traição no enredo. Há ciúme e traição no enredo.
O guia é acusado do assassinato do cego, precipitado O guia: “Pois dizem que matei um homem,
de um barranco. precipitado”.
Há suspeita de roubo, no enredo. Há suspeita de roubo, no enredo.
A vela ao diabo (3) Umas formas (38)
O ambiente penumbroso da igreja é importante para A narrativa se dá à noite, em uma igreja mal iluminada.
a narrativa.
A personagem feminina que “atenta” Teresinho é A personagem feminina que “atenta” o padre é Dídia
Dlena Doralena (Doralena).
“Reenchia-se a lua, por aqueles dias”. “Dez da noite e lua nova”.
“Mal e nada no escuro viu, santo muda muito de “...ignóbil animal vulto”; “Maçom e sacristão não tinham
figura”. parecer; de que valiam lanterna e revólver?”. “...viam o
que tresviam. Sombração”; “A porca preta!”.
Encontramos ainda um terceiro par, esse constituído por contos que não se
dispõe simetricamente no índice do livro, o décimo e o trigésimo sexto contos, “Esses
Lopes” e “Tresaventura”:
Esses Lopes (10) Tresaventura (36)
“Eu era menina, me vestia de flores”. “A menina, mão na boca, manhosos olhos de tinta
clara”.
“Eu queria me chamar Maria Miss”. “De ser, se inventava: - Maria Euzinha...”
“A maior prenda que há é ser virgem. Maria Euzinha está se tornando “mocinha”.
[...] Mocinha fiquei, sem da inocência me destituir.”.
A protagonista contempla o seu rosto refletido em uma A protagonista contempla o seu rosto refletido em
água suja: “linda eu era até a remirar minha cara na uma água suja: “A poça de água cor de doce-de-
gamela dos porcos”. leite, grossa, suja, mas nela seu rosto limpo, límpido,
se formava”.
Repulsa às representações masculinas: “me pegou, Repulsa às representações masculinas: “O mal-
com quentes mãos e curtos braços”. assombro! Uma cobra grande!”.
67
“Lopes nenhum me venha, que às dentadas escorraço”. “Atirou-lhe uma pedrada paleolítica [...] a cobra
largara o sapo, e fugia-se assaz”.
Referência ao dinheiro poupado: “Eu tinha três vinténs, Referência ao dinheiro poupado: “Devia fazer o
agora tenho quatro...”. ninho no bolso velho do espantalho!”.
Nossas descobertas podem conduzir-nos à dúvida que nos parece
fundamental: a simetria dos contos deve ou não ser observada? – uma vez que
encontramos dois pares simétricos e um terceiro, que não observa a simetria.
Entendemos que a observância da simetria nos primeiros contos, especialmente entre
o primeiro e o último sejam, na verdade, um sinal do autor, de que existem as relações
entre os contos.
Julgamos haver demonstrado evidências de espelhamento em Tutaméia:
Terceiras Estórias, mas persiste o problema que já apontamos anteriormente: como
falar de espelhamento em uma obra constituída por elementos de número par? E,
ainda: seria razoável supor que as terceiras estórias estariam espelhadas, sem,
contudo, ordenarem-se por um espelho, tendo em vista que as Primeiras Estórias
ordenam-se perfeitamente por um emissor de singularidades que projeta duas séries
simétricas? Ocorre-nos, então uma hipótese ainda mais ousada, que justifica a última
pergunta que projetamos para Affonso Romano de Sant’Anna: As primeiras e as
terceiras estórias se correspondem de forma contínua? Consideramos então a
hipótese de que a resposta seja afirmativa. Assim, então, encontraríamos uma
solução para o espelho de Tutaméia, ou, melhor dizendo, para o problema de sua
aparente falta: o conto “O espelho”, de Primeiras Estórias, seria também o espelho de
Tutaméia - os quarenta contos de Tutaméia compreenderiam uma composição de
quatro grupos de dez contos, que representariam os reflexos externos dos dois grupos
de dez contos de Primeiras Estórias. Sugerimos, inclusive, que a recorrência de
temas, signos e símbolos, nos dois livros, insinuem relações de continuidade: a canoa
avariada que chega ao jovem Lioliandro, em “Ripuária”, pode ser um sinal do naufrágio
do canoeiro Hetério, de “Azo de almirante”, mas também pode chegar ao jovem pelas
águas do mesmo rio em que navegava o pai do narrador de “A terceira margem do
rio”. A propósito dessas correlações, já chegamos mesmo a desenvolvê-las em um
trabalho dedicado exclusivamente a um suposto espelhamento entre os contos “A
benfazeja”, de Primeiras estórias, e “Sinhá secada”, de Tutaméia: Terceiras Estórias,
publicado em 2018. As hipóteses que levantamos parecem-nos relevantes, mesmo
68
da maior importância, mas excedem em muito os nossos objetivos: deixamo-las para
um investigador curioso que as recolha.
2.3.2 Uma casa sem portas nem janelas (que espelha o universo!)
Há, contudo, em Tutaméia: terceiras estórias, ainda outra modalidade de
espelho que não podemos nos furtar a mencionar: um espelho curioso, cuja simetria,
em seu aspecto sensível, nos escapa. Já mencionamos a disposição do conto
“Curtamão” na sétima posição do índice do livro, posição essa que assinala a
perfeição almejada pelo autor; mencionamos também a inscrição da narrativa entre
os contos metalinguísticos do livro por Vera Novis, dado que a insólita casa que o
narrador edifica aponta para a própria obra do autor, Guimarães Rosa. O autor, no
entanto, talvez sugira que esta casa poética, a despeito de tudo o que tem de particular
– me omnia -, e de forma francamente ambígua, não rejeita um caráter universal, como
podemos depreender da absurda fala do narrador: “a casa sem janelas nem portas —
era o que eu ambicionava.” (ROSA, 2009, p. 70). A disparatada construção guardará,
certamente, uma referência, algo jocosa, de Guimarães Rosa à Monadologia de
Leibniz, que apresenta a noção de uma substância simples e sugere que a menor
porção de coisas discernível na natureza já compreende em si um código do universo,
do qual a Mônada é um espelho:
Ora, esse corpo de um vivente ou de um animal é sempre orgânico, pois,
sendo toda Mônada um espelho do universo, a seu modo, e achando-se o
universo regulado numa perfeita ordem, tem de haver também uma ordem no
representante, ou seja, nas percepções da Alma, e, por conseguinte, no
corpo, por intermédio do qual o universo está representado [na Alma].
(LEIBNIZ, 2009, p. 37).
Para além do ambicioso projeto, Leibniz consagrou ainda às mônadas a curiosa noção
de uma estrutura impenetrável, uma casa sem portas nem janelas: “As Mônadas não
possuem janelas através das quais algo possa entrar ou sair.” (2009, p. 37). A casa
levada da breca, representada em “Curtamão”, é, portanto, uma unidade que
compreende um espelhamento de uma estrutura muito maior: a obra literária de
Guimarães Rosa26 -, em um plano de sentido mais amplo, pode compreender mesmo
26 Não caberá a este trabalho apontar os índices que fundamentam a ideia de que “Curtamão”
represente a obra de Rosa como um todo, relacionamos, contudo, quatro exemplos que, esperamos,
satisfaçam, pelo menos provisoriamente, a curiosidade de nossos leitores: 1. A disposição da casa “de
costas para o rual” (2009, p. 70) pode ser uma referência ao desprezo do autor pelos críticos de sua
época; o próprio nome do antagonista, Requincão, pode representar outro índice do desprezo pelos
69
uma representação do cosmos, pois o universo poético criado pelo autor, e aqui
referimo-nos ao seu Sertão, sem prejuízo de ser todo o universo existencial, é,
também ele, uma Mônada, como sugere Riobaldo, “O sertão não tem janelas nem
portas. (ROSA, 2001, p. 614).
A monadologia de Leibniz, a despeito do tom jocoso, tantas vezes adotado pelo
autor, assume um papel estruturante em sua poética, dado que representa a ponte
possível entre a parte e o todo, relação tantas vezes referenciada na obra de Rosa;
assume papel ainda mais importante em Tutaméia, dado que a própria obra se
distingue pelo caráter das coisas mínimas, como define o autor em seu glossário que
tanto tem de arbitrário: “tutameia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta,
quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia.” (2009,
p. 233). O livro, portanto, se define e caracteriza justamente pelo assinalamento das
coisas mínimas, dos quase-nadas, das tutaméias, das Mônadas, argumento que pode
mesmo justificar o formato mínimo dos contos, sem prejuízo do projeto que os unifica
no agenciamento de um corpo maior.
Outro índice de que se compõe o livro também reclama a nossa atenção e pode
representar outra brincadeira enigmática do autor. Quando submetemos nossa
memória ao absurdo da proposta de uma casa que se queira sem portas nem janelas,
somos obrigados a ceder a um exemplo que nos ocorre, exemplo fundante para a
cultura humana universal, que pode, sim, representar a ideia de uma casa que não
disponha de portas nem de janelas; tal exemplo, naturalmente, destaca-se
essencialmente pelo que guarda de misterioso e enigmático, falamos das pirâmides
do Egito. A ideia, por sua vez, em sua associação a Tutaméia, não se restringe ao
hermetismo próprio da edificação, antes, encontra outras relações com o livro de
Guimarães Rosa: lembramos que um dos três elementos que se repetem em
Tutaméia são, justamente, os ciganos – gypsies – cuja origem, a despeito de qualquer
incerteza histórica, a tradição consagrou ao Egito, como confirma o próprio autor, em
um dos contos dos ciganos, “Faraó e a água do rio”, que remonta mesmo à suposta
críticos, requintados cães... (ROCHA, 2011); os quatro jagunços responsáveis por proteger a obra e
cavar os alicerces do edifício, Borba, Lamenha, Nhãpá e Dés, fariam referência a quatro idiomas que
o autor considerava especialmente importantes para a sua própria constituição literária, português,
alemão, tupi e francês (Un coup de dés) (ROCHA, 2011), 4. o destino final da casa representaria as
projeções (e os desejos!) do autor para o futuro de sua obra, uma obra que se oferece aos estudos
acadêmicos: “prédio que o Governo comprou, para escola de meninos” (2009, p. 67) e que recusa uma
exploração religiosa (que o autor, pelo visto, previa possível): “até, para igreja, o lugar o padre cobiçou”
(2009, p. 70).
70
origem egípcia dos ciganos. Além disso, ao avistar as barracas dos ciganos, no conto
“O outro ou o outro”, o narrador parece vislumbrar as próprias pirâmides, como atestou
Novis (1989).
Jacques Derrida confere às pirâmides um estatuto de enigma equivalente ao
da própria Esfinge, dado que tais construções também se marcam por um dualismo
essencial, como também destacou Hegel (1993), ao considerar que tais edificações
compreendiam uma dupla arquitetura, composta de uma parte visível, sobre a terra, e
outra invisível, constituída de passagens, labirintos e galerias sob a terra. No que
respeita a linguagem, Derrida aproxima, de forma surpreendente, o formato da letra
“A” – característica de sua différance – em sua forma maiúscula, dos contornos
materiais de uma pirâmide: a marca da diferença verbal, para o autor, é um enigma -
uma pirâmide - que, a despeito de toda a sua solidez, representa o desmoronamento
do edifício do simbólico. (DERRIDA, 1991, p. 35). Assim, não nos parece absurda a
sugestão de que o livro, Tutaméia: terceiras estórias, represente, ele próprio, uma
pirâmide, no que ele encerra de enigmático, e no que concerne ao agenciamento das
múltiplas pirâmides – Mônadas – que a obra organiza. Podemos destacar também a
dupla arquitetura, própria das pirâmides, para levar adiante a representação do
enigma engendrado por Rosa: em outro importante conto metalinguístico, que
também representa a obra do autor como um todo, o conto “Pirlimpsiquice”, o narrador
assume como única saída possível da apoteótica peça de teatro que encena com os
amigos a cambalhota que o arrojará para fora do palco: “Tremeluzi. Dei a cambalhota.
De propósito, me despenquei. E caí.” (ROSA, 2005, p. 91). A pirâmide de Rosa
representa, portanto, um enigma que compreende a dupla arquitetura de uma peça
de teatro que amarra, em tensão, a dimensão dos palcos e, também, a vida ordinária
que transcorre fora deles, compreende a sua criação poética, mas não dispensa a
vida prática com todas as suas particularidades, com todos os pormenores que a
caracterizam; e sair de cena não será outra coisa que não dar a cambalhota, o grande
salto para o “crescer da alma” (ROSA, 2005, p. 120), sair de cena não será outra coisa
que não sair da vida. O livro, Tutaméia, conforme o entendemos, compreende um
curioso espelho que revela, por meio de suas imagens verbais, os contornos da vida
prática.
71
2.4 OS LIMITES DOS ESPELHOS; A ANALOGIA COMO VISÃO ESPELHADA DO
MUNDO
Não podemos encerrar esse capítulo sem investigar algumas concepções
liminares dos espelhamentos, que poderão, por sua vez, orientar a continuidade de
nosso trabalho. Uma visão espelhada de mundo poderá, com efeito, ser entendida
como uma visão analógica: para o poeta Octavio Paz, a poesia moderna constituiu,
em sua origem, uma reação à própria modernidade, que se fez por meio da antiga
tradição da analogia: "visão do universo como um sistema de correspondências e [...]
visão da linguagem como um duplo do universo." (2013, p. 10). Para Paz, portanto, a
analogia é o princípio, anterior ao cristianismo e aos demais princípios, diferente da
razão e da filosofia, que ganha forma no poema: “Se a analogia faz do universo um
poema, um texto feito de oposições que se convertem em consonâncias, também faz
do poema um duplo do universo. Dupla consequência: podemos ler o universo,
podemos viver o poema." (2013, p. 63). Assim como proposta por Paz, a concepção
da analogia abre perspectivas arrojadas, que podem mesmo compreender
aprofundamentos semânticos: o poema não apenas representa um espelhismo, como
se constitui a partir da perspectiva do abismo, mise en abyme (GIDE, 2009), na
medida em que esse poema é, ele mesmo, um espelhismo, um duplo do universo, e
contém em si um segundo espelhismo, as oposições que se convertem em
consonâncias.
O espelhismo da analogia, como entendido por Octavio Paz, estaria na base
da nossa concepção de subjetividade e, também, fundamentaria as metalinguagens
da arte:
É verdade que nem todo teatro moderno condena o mundo em nome da
subjetividade. O mesmo pode ser dito do romance. Mas quando não
condenam, negam e dissolvem o mundo num jogo de espelhos. Do
mesmo modo que a poesia lírica se torna poesia da poesia em Hölderlin, o
teatro se desdobra e se transforma numa vertiginosa representação de si
mesmo. Esses jogos de reflexos que culminam em Strindberg, Synge e
Pirandello têm início no renascimento: Cervantes faz romance do romance,
Shakespeare, crítica do teatro no teatro, Velázquez se pinta pintando. O
artista se debruça sobre a obra e não vê nela senão o seu próprio rosto, que,
atônito, o contempla. (PAZ, 2012, p. 223, grifos nossos)
Paz destaca que a analogia, a partir do renascimento, assume, no ocidente, o caráter
de uma espécie de religião secreta, expressa por meio das práticas da cabala, do
gnosticismo, do ocultismo e do hermetismo (2013, p. 75), afinal, "A ideia da
correspondência universal é provavelmente tão antiga quanto a sociedade humana.
Isso é compreensível: a analogia torna o mundo habitável." (2013, p. 74). A noção de
72
analogia, com efeito, compreende, também ela, uma dimensão cosmológica, dado
que o mundo, segundo a visão da analogia, é
um teatro feito de acordes e reuniões em que todas as exceções, mesmo a
de ser homem, encontram seu duplo e a sua correspondência. A analogia é
o reino da palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimi-las, reconcilia
as diferenças e as oposições. (2013, p. 74-75)
A propósito de uma visão analógica de mundo, ainda nos convém lembrar da
obra seminal de Michel Foucault, de 1966, em que o autor se investiga os intricados
limites que separam As palavras e as coisas, e que examinaremos mais detidamente
em nosso capítulo intitulado “O enigma da linguagem”. Podemos, no entanto, desde
já, observar, que a análise de Foucault encontra muitos pontos de contato com o
desenvolvimento deste ensaio, à medida que o imaginário medieval e pré-científico,
como proposto pelo autor, funda-se em uma noção de analogia universal cujos traços,
muito naturalmente, persistirão na modernidade como sinais de sua herança cultural.
Ademais, Foucault insiste no aspecto enigmático do quadro de Velázquez, “As
meninas”, que chega mesmo a tomar como um espelho (2016, p. 8) que,
consequentemente, não se pode deslindar de todo o mundo circundante, do qual é
parte inextricável: “o quadro como um todo olha a cena para a qual ele é, por sua vez,
uma cena. Pura reciprocidade que manifesta o espelho que olha e é olhado”
(FOUCAULT, 2016, p. 17).
A concepção cosmológica da analogia nos levará de volta a Goethe, que
expressava um ideal francamente analógico ao propor relações de continuidade entre
a parte e o todo. Para o polímata, “Todas as flores que se desenvolvem a partir dos
olhos devem ser tomadas por plantas inteiras, que se encontram sobre a planta-mãe
tal como essa sobre a terra.” (2019, p. 57). Se é verdade que Goethe reconheceu a
influência de Espinosa sobre o seu trabalho (a mais importante ao lado de
Shakespeare), queremos sugerir que, em Goethe, o panteísmo espinosano assume o
caráter singular de um espelhamento fundamental, na medida em que os entes são
reflexos de uma matriz comum (2019, p. 71).
Encerramos nossa incursão final pelos limites – mesmo periféricos – da
simbologia, naturalmente enigmática, do espelho com um aspecto fundamental, do
qual ainda não nos ocupamos: a importância do espelho para a constituição do eu,
ou, do enigma do eu, preferimos dizer. Disse Borges, em sua “Arte poética” que a arte
é um espelho; precisamente o espelho dotado da propriedade de revelar-nos o nosso
próprio rosto. O rosto oculto que a arte nos revela, poderá, no entanto, ser o rosto de
73
Heráclito, refletido nas águas do rio que flui continuamente (2008, p. 151). Ao
investigar a noção original de homologia expressa por Heráclito, Heidegger
considerará também a hipótese de um espelhamento27: "dizer o mesmo que um outro
diz" (1998, p. 262). Tal hipótese, no entanto, segundo a compreensão do autor, poderá
ser uma aproximação demasiado simplista, de modo que Heidegger conduzirá um
aprofundamento dessa analogia e nos levará, assim, a uma refinada concepção de
alteridade, uma concepção que reúna as convergências e afinidades sem prescindir
da diferença:
ὁμολογεῖν, dizer o mesmo que o outro diz, não significa somente que um quer
dizer o mesmo que um outro, de maneira que num dado momento e num
dado lugar podem surgir duas opiniões iguais. ὁμολογεῖν diz, porém, afirmar-
se diante do que um outro diz, con-firmá-lo e, assim, manter-se na firmeza
frente ao que um outro diz. [...] O entendimento não reside no fato de a
mesma opinião viver e surgir num e noutro, mas de que um homem e um
outro, enquanto diferença que são, convirem que ambos reafirmam o mesmo
como tal em questão. [...] Toda igualdade, e sobretudo a igualdade da
ὁμολογία, funda-se numa diferença. Só o diverso pode ser igual. O diverso
só é igual em virtude de sua referência ao mesmo." (1998, p. 262)
O espelho, responsável pela dimensão da identidade, compreenderá,
também, de modo inextricável, e, sobretudo, de forma paradoxal, a dimensão da
diferença: mostra-me, confundidos em meu próprio rosto, os traços de Ulisses e
Heráclito (BORGES, 2008). Paz considera que o diálogo compreende uma dimensão
contraditória, fundada na ideia de que, quando falamos com os outros, também
empreendemos um curioso “monólogo em que nunca sou eu, e sim outro, quem ouve
o que digo a mim mesmo.” (2012, p. 267), afinal, para o poeta, “o homem é apetite
perpétuo de ser outro.” (2012, p. 274). Mefistófeles sussurra, ao fim de sua fala, no
ato “A cozinha da bruxa”: “Com esse licor na carne abstêmia,/Verás Helena em cada
fêmea" (GOETHE, 2014, p. 214), sugere então a confusão da identidade de Helena
em todas as mulheres. O enigma do espelho revela, portanto, a imagem do outro,
27Em sua tentativa de remontar à origem do pensamento ocidental e de caracterizar, portanto, a lógica,
Heidegger sugere haver não uma lógica, mas duas: uma lógica do pensamento e um lógica das coisas
pensadas - instâncias que queremos entender como espelhadas: "Existe, portanto, uma "lógica" dupla,
uma lógica do pensamento que diz como o pensamento segue e sucede corretamente às coisas, e
uma lógica das coisas que mostra o fato e a medida em que as coisas possuem, dentro de si mesmas,
uma sequência correta. [...] Nosso pensamento fica, no entanto, sem sustento e oscilante se ele não
se vir primeiramente convocado pelas coisas e não permanecer sob essa exigência provocadora. É
estranho com, aqui, a lógica das coisas e a lógica do pensamento, como o pensamento e as coisas
encontram-se numa mutualidade recíproca em que um se volta para o outro, em que um se vê
provocado pelo outro." (1998, p. 208) - para o autor, essa relação encerra um enigma: "Tudo se torna
enigmático quando essa exigência provocadora recai sobre as coisas e sempre já se colocou para os
homens, mesmo que o homem não preste atenção à chegada dessa provocação e, muito menos, à
sua proveniência." (1998, p. 208)
74
em quem elidimos o abismo da individuação para recolhermo-nos na unidade: somos
todos um. O enigma do espelho revela-nos, por fim, o problema da nossa
individuação, que também tomaremos como um enigma estruturante na obra de
Guimarães Rosa.
75
CAPÍTULO 3. O ENIGMA DA INDIVIDUAÇÃO
Nam tua res agitur, paries cum proximus ardet28.
(Horácio)
A investigação do espelho enquanto enigma poderá revelar, por sua vez, um
aprofundamento, à medida que indica um segundo enigma intrínseco, ajustado à mise
en abyme (GIDE, 2009), que parece mesmo constituir a estrutura central da poética
de Guimarães Rosa: se o espelho é, como demonstramos, em si mesmo, um enigma,
sua superfície sinaliza um outro enigma, quiçá maior, a imagem de um sujeito que se
individualiza. Ao lado dos espelhismos, o problema da individuação é tema recorrente
na obra de Rosa, obra essa que, mais que expor a questão da individuação, parece
colocá-la em dúvida, como podemos perceber por meio das saudosas divagações de
Riobaldo sobre Siruiz, quando o ex-jagunço, ao ser informado de que o sertanejo
houvera sido morto a tiros, parece ponderar sobre a possibilidade de que ele mesmo
o houvesse matado, além de aventar a desatinada ideia de que Siruiz fosse seu
parente (ROSA, 2001a, p. 232). Um enigma da individuação, portanto, não se disporá
em paralelo com o enigma do espelho na obra de Guimarães Rosa, dado que as duas
instâncias se relacionam semanticamente, mesmo do ponto de vista da causalidade,
como sugere Rosenfield, para quem o enigma do espelho conduz-nos
necessariamente a um segundo enigma, o grande enigma da identidade, na medida
em que: “A perplexidade diante da própria imagem que aparece como alheia serve de
ponto de partida para uma burlesca divagação sobre o enigma da identidade.” (2006,
p. 155, grifos nossos). Para um ente que se dispõe diante do espelho, coloca-se,
portanto, a questão do Ser, matéria caríssima a Rosa que tramou-a, inclusive, no título
de sua obra magna: sertão – ser tanto, ser Tao.
A compreensão do enigma de um ente que ganha contornos individuais não
poderá, portanto, prescindir de seus opostos: a estética barroca, a que tantas vezes
recorremos neste ensaio, define-se, inclusive – e especialmente -, pelas tensões entre
o ser e o parecer, tensões essas que poderão, muitas vezes levar o homem que
experimenta o mundo a se perder. As anamorfoses barrocas, “jogos visuais
28“Pois está em perigo a tua casa, quando a parede do vizinho pega fogo” (Tradução de Paulo
Rónai).
76
deformadores e enigmáticos, que tiram a perspectiva e o ponto de fuga da frente ou
do fundo do quadro, colocando-os nas laterais.” (SANT’ANNA, 2000, p. 27), colocam
em questão a identidade do sujeito que se apresenta. Contudo, o que separaria a
mensagem explícita do enigma que se furta em uma anamorfose seria apenas a chave
da perspectiva, acessível a qualquer expectador suficientemente atento, dado que,
segundo um ponto de vista específico, oferece-se ao expectador uma imagem que ele
supõe confiável, o que sugere ser a perspectiva o delgado limite que separa o belo do
monstruoso.
Para dar conta do problema da identidade na estética barroca, Affonso Romano
de Sant’Anna recorre ao exemplo de Don Juan:
numa das cenas, Isabel desesperada indaga: “Oh! Céus! quem é tu?”, e Don
Juan responde: “Quem sou eu? Um homem sem nome” Ele, que colecionava
nomes de mulheres conquistadas e de homens mortos em duelos, revela o
seu não-nome, o vazio de sua procura.” (2000, p. 205).
O esforço retórico de Sant’Anna é notável: o autor amarra a identidade de Don Juan
à daqueles com quem o herói se relacionou de maneira (in)tensa, interpenetrados pelo
seu falo – pênis ou adaga (GUMBRECHT, 2010)29 -, o autor iguala ainda o excesso
de identidade a uma despersonalização: Don Juan é todos na mesma medida em que
não é ninguém. O modelo proposto por Sant’Anna para Don Juan também explica a
anteriormente mencionada angústia de Riobaldo em relação a Siruiz, a despeito de
apresentar-se sob uma ótica invertida: se a identidade de Don Juan concentra a de
uma multidão de rivais, a de Riobaldo dispersa-se por uma turba de jagunços que
engloba, inclusive, o único indivíduo responsável por acionar o gatilho da arma que
matou Siruiz -, seria essa mesma dispersão da identidade de Riobaldo a responsável
por alargar seu parentesco até compreender Siruiz como um homem de seu próprio
sangue.
A concepção de uma identidade furtiva, que compreenda a dimensão da
aparência, evocará a simbologia das máscaras, que Johan Huizinga relacionará, em
seu ensaio sobre o jogo como elemento da cultura, como um índice que compreende
dois enfoques fundamentais para a nossa análise: os aspectos de enigma e de
identidade. Para o autor:
A capacidade de tornar-se outro e o mistério do jogo manifestara-se de modo
marcante no costume da mascarada. Aqui atinge o máximo a natureza "extra-
29Gumbrecht (2010) sugere que são quatro as formas pelas quais o homem pode se apropriar do
mundo, dentre as quais o autor relaciona a ação de penetrar o mundo.
77
ordinária" do jogo. O indivíduo disfarçado ou mascarado desempenha um
papel como se fosse outra pessoa, ou melhor, é outra pessoa. Os terrores da
infância, a alegria esfusiante, a fantasia mística e os rituais sagrados
encontram-se inextricavelmente misturados nesse estranho mundo do
disfarce e da máscara. (HUIZINGA, 2014, p. 16)
Foi, no entanto, o filósofo austríaco, Martin Buber, quem escreveu uma das
mais importantes páginas sobre o problema da individuação: falamos de seu ensaio,
Eu e Tu, originalmente publicado em 1923. O autor sugere em sua obra um intricado
entrelaçamento entre o homem e sua outridade e sugere que o espírito não estaria no
Eu, mas se disporia, justamente, entre um Eu e um Tu: "Ele não é comparável ao
sangue que circula em ti mas ao ar que respiras." (2017, p. 74-75) -, concepção
ajustada ao pensamento de Rosa, como demonstraremos neste capítulo30.
Para Martin Buber, toda a experiência de mundo se fundaria sobre a
individuação: "esta é a sua delícia, pois, só assim é permitido o conhecimento mútuo
daqueles que são diferentes” (2017, p. 115); a individuação, para o autor, além de
fundante, estabelece ainda os limites da experiência, ao passo que impede o perfeito
reconhecer, tanto quanto o perfeito ser-reconhecido (2017, p. 115). A despeito da
limitação imposta pela experiência individual, Buber sugere que a relação entre o Eu
e o Tu se revista de um caráter de perfeição, dado que “o meu Tu engloba o meu si-
mesmo, sem no entanto, ser o si-mesmo; o meu reconhecimento limitado se expande
na possibilidade limitada de ser reconhecido." (2017, p. 115). Além disso, a concepção
de identidade, ou de atualidade da identidade, do autor também se mostra apropriada
ao pensamento que permeia a obra de Rosa, como expresso por Riobaldo, para quem
o belo do mundo é que “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas” (ROSA, 2001a, p. 48); para Buber, a individuação compreende uma
dimensão de latência:
Toda relação atual no mundo realiza-se numa permuta de atualidade e
latência, todo Tu individual deve transformar-se em crisálida do Isso para que
as asas cresçam novamente. Mas, na verdadeira relação, a latência não é
mais que a pausa da atualidade onde o Tu permanece presente. O Tu eterno
é, segundo sua essência, um Tu; é nossa natureza que nos obriga a inseri-lo
no mundo do Isso e na linguagem do Isso. (2017, p.115)
Ademais, Buber defende que o homem não é uma coisa entre outras, "Ele não é um
simples Ele ou Ela limitados por outros Eles ou Elas, um ponto inscrito na rede do
30Guimarães Rosa dispunha em sua biblioteca de dois títulos de Martin Buber, dentre os quais figurava
a segunda edição de Eu e Tu, publicada em inglês (I and You), em 1955, pela editora Charles Scribner’s
Sons, conforme relaciona Sperber (1976, p. 165).
78
universo de espaço e tempo." (2017, p. 55), antes, ele seria "Tu, sem limites, sem
costuras, preenchendo todo o horizonte." (BUBER, 2017, p. 55). Assim, o enigma do
ente individuado compreende, ele também, um espelho, o espelho em que o Eu se
olha e reconhece a face do Tu, sua outridade, cifrada em enigma.
O pensamento de Martin Buber, a despeito de colocar-se na zona fluida da
alteridade, não prescinde, contudo de uma qualidade ontológica, na medida em que
ser-com-o-outro é a condição própria do Ser, uma vez que, para o autor, “A pessoa
toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como um ente.”
(2017, p. 91). A dimensão ontológica da individuação, por sua vez, nos levará de volta
a Heidegger, que, na busca de recobrar o sentido original do logos, propôs sentidos
que aproximavam o conceito da noção de natureza, de verdade e, também, de ser:
Se nenhum homem pode manter-se encoberto face ao que nunca declina,
então é no que nunca declina que deve fundamentar-se o fato de que cada
homem, isto é, o homem como homem, o homem segundo sua essência, o
homem como núcleo essencial de seu ser-homem, encontra-se a descoberto
a ponto de ser o que não pode se encobrir na relação e por meio do que
nunca declina. (1998, p. 66)
Se o homem não pode manter-se encoberto diante do logos – que nunca declina -,
talvez devamos buscar também nele os fundamentos que dão base aos mistérios da
individuação.
3.1 POR SOB AS MÁSCARAS DA IDENTIDADE: O QUE NUNCA DECLINA
Em seu ensaio sobre a origem do pensamento ocidental, Martin Heidegger
denuncia o "esquecimento do ser" pelo homem histórico (1998, p. 76), e atribui
justamente a esse esquecimento as múltiplas crises da contemporaneidade que,
embora não compreendam o foco de sua investigação, o autor relaciona ao longo de
seu texto. O Ser, contudo, reveste-se, segundo Heidegger, de toda a ambiguidade
própria do pensamento de Heráclito, dado que é o mediador da totalidade, sem
prejuízo de propiciar a singularidade: permite assim que Riobaldo integre em si todos
os jagunços do sertão e seja, ainda, apenas o Tatarana, ou, mais tarde, o Urutú
Branco. A ambiguidade do pensamento original, como a temos tomado, mais do que
um influxo de discordâncias, compreende uma harmonização das tensões contrárias,
sempre mediadas pelo logos:
Pois, se também "oλόγοϛ" interpela com propriedade o homem, o homem não
pode ser interpelado enquanto ente isolado. Pois o homem é homem somente
79
em virtude do λόγοϛ humano, e no modo próprio de estar sempre, de algum
modo, assumindo um comportamento frente ao ente na totalidade. Ao ser
interpelado pelo λόγοϛ, o λόγοϛ humano sempre interpela a totalidade dos
entes na totalidade, e, na relação do homem com a totalidade dos entes,
sempre vigora a o presente do λόγοϛ na totalidade dos entes." (HEIDEGGER,
1998, p. 340).
Particularizar um ente, destacá-lo da noção de totalidade, representaria, assim,
segundo sugere Heidegger, um absurdo para a lógica original - anterior a Platão e
Aristóteles -, muito embora a lógica que se consagrou sugira o contrário e fale em
favor da individuação. Funda-se então a noção da univocidade do Ser, na justa medida
em que um ente só É com o outro.
Para Heidegger, portanto, o Ser fundamenta a essência do homem, inclusive
em sua dimensão histórica, e compreende em si uma natureza reflexiva que não exclui
um caráter poético, posto que "A palavra em que a essência do homem histórico se
apreende com propriedade é a palavra do ser. Essa palavra originária se preserva
na poesia e no pensamento." (1998, p. 190, grifos nossos). O pensamento do Ser,
em sua essência, tenderia, assim, para a profundidade do próprio pensamento, ao
passo que se entreabre para esse aprofundamento (HEIDEGGER, 1998, p. 222) e
põe outra vez em questão o problema da individuação, dado que, em direção
contrária, o pensamento, como vulgarmente se concebe, não seria mais que “uma
variação bastarda da reflexão, isto é, da reflexão da subjetividade, aquela em que o
homem gera a si como sujeito que se coloca sobre si mesmo, deixando valer todo
ente somente como ‘objeto’ e como o meramente objetivo." (HEIDEGGER, 1998, p.
221). O pensamento, em sua forma mais pura, seria, então, a um só tempo o corpo
que cai e o abismo que a ele se oferece (como sua salvação!); compreenderia ainda
a noção de presença, como pensada por Gumbrecht (2010), uma vez que não
subentende um ato – um encontro, um acoplamento – isolado, mas antes compreende
um estar com persistente:
O pensamento não seria, absolutamente, uma atividade de correr e circular
em torno de si, que precisa toda vez encontrar uma coisa para anunciar como
seu objeto, a fim de encontrar sustento e solo. Todos esses solos firmes que
o objetivo oferece aos sujeitos não passariam de faces, superfícies que
escondem do homem a profundidade em que o pensamento se abre como
pensamento porque, como pensamento, é em si mesmo e não ulteriormente
que se refere, que é conferido e referido pelo mais profundo. (HEIDEGGER,
1998, p. 222-223)
O pensamento da subjetividade individuada, representaria, assim, uma severa
limitação do pensamento, agravada pela condição de – sob o endosso da lógica formal
80
- propiciar a ilusão de ser ele o pensamento genuíno, o pensamento exato do que se
supõe a realidade. Ainda no que concerne a uma presentificação, Heidegger sugere
uma perspectiva diferente para a investigação da origem do logos, que encerre uma
projeção do sujeito no cerne do próprio logos almejado, pois "pensar o que é o λόγοϛ
não diz encontrar um conceito sobre o λόγοϛ, mas perguntar a partir do próprio Λόγοϛ,
colocar-se em seu percalço, a fim de alcançar uma referência possível do Λόγοϛ para
nós." (1998, p. 283); perguntar sobre as coisas, portanto, demandaria uma experiência
radical, na medida em que requer um encarnar-se na coisa, um devir outro para o
conhecimento dessa alteridade que se apresenta.
O resgate do pensamento original, como proposto por Heidegger, poderá
mesmo levar o homem moderno à vertigem, posto que toda a base do ideário proposto
se concebe como, não nos pareceria um exagero afirmar, uma aberração lógica. O
conflito, no entanto, se intensifica ainda mais quando o autor põe em questão os
limites dos entes, como percebidos na experiência sensível e subverte as relações
que se estabelecem entre a parte e o todo, uma vez que, se no mundo há diferenças,
essas diferenças se fundam em relações inalienáveis: "como coisas desprovidas de
relação poderiam estar separadas umas das outras? O ‘à parte de outra’ é sempre e
necessariamente a relação ‘de uma com a outra’" (HEIDEGGER, 1998, p. 343). O
problema das fronteiras dos entes não excluiria, é claro, os seres vivos, dentre os
quais destacamos o homem; o Ser, para o pensador, não se limita às fronteiras da
experiência sensível: "Nenhum ser-vivo tem fim nos limites de sua superfície corpórea.
Esta não é o limite do ser-vivo." (1998, p. 312). O problema da individuação, portanto,
se justificaria, segundo Heidegger, por uma longa tradição que consagrou a noção de
um ser que se relaciona consigo mesmo enquanto sujeito e enquanto ego, em
detrimento de uma noção que subentende um ser vivo que se relaciona consigo
mesmo e com outro (1998, p. 310).
A concepção de um indivíduo que experimente o mundo por entre as fronteiras
do que é com a sua outridade não dispensa, é claro, a noção subjetiva de um voltar-
se para si, afinal, para os gregos, a noção de surgimento a partir de si mesmo, em seu
sentido original, da forma como se compreende a fisis, subentende, sempre, um
"retorno para si mesmo", (HEIDEGGER, 1998, p. 290), afinal, "O traço fundamental
da φύσιϛ e da ζωή é o surgimento que se dá a partir de si mesmo, que é ao mesmo
tempo um retorno para si mesmo, um fechamento." (1998, p. 307) . A ideia do
81
homem que se fecha em si mesmo – e especialmente nessa perspectiva – condiciona
a indagação de Heidegger: o que é o homem? A individuação, confundida pelo ego
que se coloca no lugar da outridade, condiciona a objetivação do mundo e acomoda
uma dimensão de conflito:
Mas, se é assim, o que somos? Mas se é assim, o que é o homem? Aquele
ser que está aberto para o aberto e que somente em virtude dessa abertura
pode, de algum modo, fechar-se para o aberto e tomar o que lhe vem ao
encontro como simples objeto, espreitando-o para aprisioná-lo em seus
cálculos e planejamentos. Se uma pertinência originária de sua essência o
determina para a atenção e se toda dissonância resulta da desatenção, o que
é o homem? Estas questões devem nos perseguir. (HEIDEGGER, 1998, p.
258).
No âmbito da poética do Sertão de Guimarães Rosa - e respeitosamente restritos a
este âmbito particular -, permitimo-nos responder a Heidegger: o homem é aquele que
está aberto para o aberto, mas, por medo do seu diferente, fecha-se para o aberto
com grossas roupas de couro e não só toma o que lhe vem ao encontro como objeto,
como arma-se com punhais e carabinas contra sua outridade, a quem combate de
forma encarniçada na secura do Sertão.
O aspecto da individuação, na poética de Rosa, pode, com efeito, ganhar
contornos mesmo contraditórios e, talvez, nisso se fundamente o seu aspecto
enigmático, como estruturante dessa mesma poética, em que pese que a
subjetividade do Eu, como vimos em Heidegger, já é naturalmente enigmática. Alguns
personagens do autor podem precisamente representar paradigmas das contradições
do Eu e, por isso, queremos nos dedicar a eles.
3.2 O EU EM SI E SUAS CONTRADIÇÕES
Conta o crítico Benedito Nunes que Guimarães Rosa houvera confessado a ele
o seu apreço por uma das mais antigas narrativas de que temos registro na cultura
humana universal, narrativa essa que Rosa tomara como uma narrativa ideal, e cujo
enredo o autor revelou desejar traduzir para a atmosfera sertaneja: falamos do livro
de Jó, que integra o velho testamento da bíblia cristã. Nunes assim relata a
experiência de seu encontro com Guimarães Rosa:
Depois de haver lido o livro de Jó, um dos mais belos da Bíblia, sem prejuízo
do Cântico dos Cânticos, disse-me ele, deu-me vontade de traduzi-lo. Por
exemplo, o Senhor pergunta a Satanás: “Tu que andaste por toda terra, viste
por lá o meu servo Jó?” Minha tradução ficaria assim: “num alpendre de uma
casa de fazenda (podia ver tudo na imaginação como num filme), o dono
82
indaga a um de seus homens que se aproxima: Andaste por toda terra etc.
etc.” (2013, p. 258-259).
Antes de nos lamentarmos pelo infortúnio de que a morte prematura do autor o tenha
impedido de levar a cabo o seu intento – por não reconhecer tal narrativa entre os
livros publicados por ele -, atrevemo-nos a afirmar que Guimarães Rosa adaptou, sim
– ou traduziu, como ele mesmo sugeriu – a ancestral história de Jó para a cena
sertaneja. Afirmamos também que o autor cumpriu seu intento quando tramou a
narrativa de “Mechéu”, conto que integra o seu último livro publicado em vida,
Tutaméia: Terceiras Estórias.
Vera Novis, em sua obra Tutaméia: Engenho e Arte, busca identificar um
elemento unificador, que permita sistematizar o livro, Tutaméia, e observa que o único
traço comum a todas as narrativas é a aprendizagem – no sentido mais amplo da
palavra – a que os personagens do livro estão submetidos:
De fato, as estórias de Tutaméia focalizam um momento de transformação
nos personagens. Essa transformação tem sempre uma direção
ascendente, e portanto um sentido positivo, de passagem de um estado
de carência para um estado de plenitude, ou de completamento. [...] Nesse
caso a existência do homem aqui na terra, a própria vida humana, é apenas
aprendizagem; e o que se aprende é o reconhecimento da vida como
passagem para o conhecimento absoluto. (1989, p. 26, grifos nossos).
Parece-nos fácil identificar, no discurso de Novis, o pudor próprio do fazer acadêmico,
especialmente para lidar com uma noção valorativa de natureza tão subjetiva quanto
a que a autora confere ao termo aprendizagem. Pois se para o estatuto da pesquisa
institucional é tão difícil conferir rigor e exatidão à ideia de um indivíduo que evolui
enquanto pessoa, o senso comum não tem o menor problema em fazê-lo e parece
mesmo que é esse o sentido almejado pelo autor, Guimarães Rosa: mais do que
aprender, os personagens de Tutaméia e, atrevemo-nos a dizer, de toda a obra do
autor, dispõem-se em uma escala valorativa que mensura e revela a condição de seu
refinamento como indivíduos, o que nos pareceria, com efeito, razoável para um autor
que tantas vezes revelou seu apreço pela religiosidade e pelas questões morais. No
que respeita a essa aprendizagem, ou, como nos parece melhor, a essa evolução –
em tudo o que o termo guarda de subjetivo -, se conservamos pudores de sugerir que
o personagem Mechéu é um dos piores personagens do livro, afirmamos sem muito
receio que ele constitui um dos melhores paradigmas do homem em sua condição
83
mais grosseira, mais atrasada, ou, como sugeriria Novis, que ainda carece de um
maior aprendizado.
O conto “Mechéu” se intitula pelo apelido de seu protagonista, Hermenegildo,
um homem ressentido a ponto de caminhar uma grande distância com o intuito de
buscar uma espingarda para fuzilar um toco em que tropeçara quando levava comida
no campo para trabalhadores rurais; recalcado a ponto de culpar a cozinheira pela
perda da comida, devorada pelos animais, quando ele se ocupou da arma, ou ainda
a ponto de culpar o homem que lhe emprestara uma camisa pelos pêlos em seu peito,
quando, na verdade, tal empréstimo nunca tenha ocorrido; covarde a ponto de manter
perto de si um idiota com a franca intenção de tê-lo por menos e, assim, sentir-se
melhor. O mau comportamento de Mechéu, contudo, não passa despercebido:
observa-o o dono da fazenda, o fazendeiro Sãsfortes, que descreve seu
comportamento de forma antecipada e minuciosa para insólitos visitantes que
observam Mechéu do alpendre da casa, que representa justamente o plano superior
onde, na história de Jó, Deus debate com o diabo sobre os homens da terra, e de
onde, na tradução de Rosa, o todo-poderoso-fazendeiro observa, de uma posição
privilegiada, os seus empregados. Os visitantes, referidos no conto como os moços
de fora, constituem, contudo, personagens de contornos insólitos, diáfanos; falam
apenas duas vezes no conto, quando introduzem ainda maior estranhamento na
narrativa: “Será já em si o ‘eu’ uma contradição?” (ROSA, 2009, p. 138), diz um deles,
frase digna do gênio e do humor de Rosa, que parece ocultar uma antinomia da
máxima ontológica: o ser em si – o eu em si.
A referência ao eu, em “Mechéu”, por certo, reveste-se de um valor egóico, ao
passo que a narrativa sugere ser o apego ao eu o grande pecado de Mechéu; “Ele faz
demais questão de continuar sendo sempre ele mesmo..” (ROSA, 2009, p. 137),
observa um dos moços de fora, imediatamente após o narrador, que define, “Mechéu,
o firme.” (ROSA, 2009, p, 137). O protagonista do conto, no entanto, não escapará da
aprendizagem fatal sugerida por Novis, de modo que o próprio narrador reconhecerá,
nas últimas linhas do conto, após as duras provações que recairão sobre o
personagem: “Estava bem diferente, etc., esperando um tudo diferente.” (ROSA,
2009, p. 139). Mechéu enquadra-se com justeza na definição de Martin Buber para o
egótico, dado que aferra-se à identidade do seu eu e, consequentemente, distancia-
se do Ser:
84
A pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com,
como um ente. O egótico toma consciência de si como um ente-que-é-assim
e não-de-outro-modo. A pessoa diz: "Eu sou", o egótico diz: "Eu sou assim".
"Conhece-te a ti mesmo" para a pessoa significa: conhece-te como ser. Para
o egótico: conhece o teu modo de ser. Na medida em que o egótico se afasta
dos outros, ele se distancia do Ser. (2017, p. 91)
Mechéu quer ser assim, justo como é, - faz demais questão de continuar sendo
sempre ele mesmo...” (ROSA, 2009, p. 137) -; Buber parece mesmo inscrevê-lo no
que define como uma autocontradição: "Quando o homem não põe à prova, no
mundo, a prioridade da relação, efetivando e atualizando o Tu inato no Tu que ele
encontra, então ele se introverte." (2017, p. 95). O apego à individuação do eu é,
portanto, justamente o que leva o sujeito a perder-se do Ser; o que também se justifica
na narrativa de Rosa por um índice que não escapou a Vera Novis: o nome Mechéu
aproximaria designações do eu em diferentes línguas – Me (inglês) / ich (alemão) / eu
(português)31, expediente que Rosa já houvera confessado, a seu tradutor italiano,
haver usado para compor o nome de outro personagem, o boiadeiro Moimeichego,
presente em “Cara-de-Bronze”: “Bem, meu caro Bizzarri, por hoje, já exagerei.
Encerro. Apenas dizendo ainda a Você que o nome MOIMEICHEGO é outra
brincadeira : é : moi, me, ich, ego (representa ‘eu’, o autor...) Bobaginhas.” (ROSA,
2003, p. 95).
Apegar-se aos pormenores do eu, é, portanto, a maneira exata de perder-se do
Ser. Na escala valorativa que, conforme a definimos, mensura e revela a condição de
refinamento dos personagens de Rosa, a evolução compreende justamente um
necessário desapego do eu, dos traços identitários mais ordinários, afinal, para Buber,
“Não há Eu em si, mas apenas o Eu das palavras-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-
princípio Eu-Isso." (2017, p. 51), pois, o eu não seria uma realidade em si própria,
antes é apenas “relacional. Não se pode falar em Eu sem mundo, sem Isso ou sem o
Tu." (BUBER, 2017, p. 37).
A despeito de todo desenvolvimento que empreendemos, parece-nos ainda
importante apontar com mais objetividade em que medida a noção do eu em si é
contraditória, especialmente como observada na obra de Guimarães Rosa. Antes,
31 Em uma palestra sobre o enigma na obra de Guimarães Rosa, que integrou a semana acadêmica
de Letras do Centro Universitário UDF, em outubro de 2020, fui interpelado no chat por um curioso
participante que identificou-se apenas como Marcelo e nos contou que a designação mech, em árabe,
compreende um termo de negação, de forma que, assim, Mechéu designaria, em enigma, não-eu. Mais
tarde pude atestar a veracidade da informação.
85
porém, parece-nos indispensável tratar de outra particularidade das representações
do eu na obra do autor, falamos das representações cifradas de sua própria identidade
em suas narrativas.32
3.2.1 O autor oculto no texto
Em sua busca por encontrar um elemento comum, que permita sistematizar os
contos de Tutaméia e, ainda, dê um sentido geral à obra, Vera Novis observa que são
poucos os elementos que se repetem no livro. Tais elementos, se por um lado se
mostram pouco numerosos, por outro, enchem-se de sentidos, justo por apontarem
correspondências em uma obra tão misteriosa, que sugere, a um leitor desavisado,
um caráter tão dispersivo. De maneira cabalística – tão ao gosto de Rosa -, três
elementos se repetem em Tutaméia, cada um deles, ocorrendo, também, três vezes:
1. Os ciganos; 2. O boiadeiro Ladislau (sempre acompanhado de seu cão amarelo);
e, por último, 3. O patrão de Ladislau, Seo Drães33. O misterioso livro, no entanto,
talvez se faça marcar por ocultar, tão repetidas vezes, a identidade do autor como um
enigma geral da obra, como bem sugeriu Affonso Romano de Sant’Anna ao evocar o
exemplo do emblemático quadro de como Johannes Van Eyck, “O casal Arnolfini”, e
emendar “João Guimarães Rosa esteve aqui.” (2000, p. 77), em referência à
desordem, arquitetada pelo autor, para inscrever suas iniciais, JGR, no índice de
Tutaméia34. A assinatura, para os críticos, seria devida à identificação do autor com o
livro, que representaria, para ele, uma espécie de inventário pessoal, o que se poderia
depreender do próprio título da obra: Tutaméia – tutta mia - mea omnia (ROSA, 2009,
p. 233).
Um dos traços mais marcantes de Tutaméia talvez seja, no entanto, a mistura
de gêneros que o livro compreende, responsável, quem sabe, por aturdir bibliotecários
e confundir críticos, na medida em que o autor não se mostra fiel à caracterização de
tais gêneros – e não precisaria mesmo, como ficcionista, guardar fidelidade a essa
32 O tópico seguinte compreende ideias que já desenvolvi em meu trabalho de mestrado, em 2014,
publicado sob o título “O que não se arrazoa nem se intruge: uma travessia pelos campos mínimos de
Tutaméia”, quando reuni os traços da identidade do autor, Guimarães Rosa, dispersos e ocultos em
Tutaméia: Terceiras Estórias. Temi retomar essas questões aqui, sob pena de soar repetitivo, mas, ao
fim, achei que o desenvolvimento do trabalho atual se mostraria incompleto sem essa abordagem.
33 Vera Novis aventa a possibilidade de uma quarta ocorrência de Ladislau, oculto no conto “O Outro
ou o outro”.
34 Já confessamos, em um capítulo anterior, suspeitar desse expediente como mero despistamento de
um enigma mais importante.
86
caracterização! Tutaméia reúne, sem dúvidas, narrativas de ficção – os próprios
contos -, mas apresenta ainda textos que fluem entre a crítica literária, o ensaio
filosófico e a autobiografia, sempre pontuados por artimanhas que introduzem, sem
critério preciso, a criação poética por entre os relatos de fatos de precisão
documental35. Rosa consegue dificultar ainda mais o trabalho de seu intérprete por
recorrer a fatos históricos pouco conhecidos e quase inverossímeis, que levarão seu
leitor a suspeitar de que justo esses não tratariam de eventos reais, como a morte de
Plínio, o velho, durante uma erupção do Vesúvio, ou a deglutição do Bispo Sardinha
por índios Caetés (ROSA, 2009, p. 209). Há, contudo, sem dúvidas, um caráter
biográfico oculto em Tutaméia. O início do conto “João Porém, o criador de perus”,
personagem homônimo do autor, conta com exatidão o episódio da escolha do nome
de Guimarães Rosa:
Agora o caso não cabendo em nossa cabeça. O pai teimava que ele não
fosse João, nem não. A mãe, sim. Daí o engano e nome, no assento de
batismo. Indistinguível disso, ele viçara, sensato, vesgo, não feio, algo gago,
saudoso, semi-surdo; moço. (ROSA, 2009, p. 118).
Sobre o fato biográfico, Vilma Guimarães Rosa, filha do autor, atesta em seu livro de
memórias:
Bisavó Chiquinha se orgulhava de ter feito o parto da neta, sua xará:
Francisca, de apelido Chiquitinha, mãe de Joãozito. Este, pelo gosto paterno,
se chamaria Ladislau. Mas prevaleceu o João, escolha em honra de São
João, que nascera três dias antes... (1999, p. 333).
A referência é clara e não deixa margem a dúvidas: pelo gosto de seu pai, Guimarães
Rosa deveria se chamar Ladislau, em honra do santo do dia de seu nascimento – o
santo da folhinha, segundo a tradição mineira -, São Ladislau, rei da Hungria, por
escolha da mãe, no entanto, homenageou-se São João, celebrado três dias antes do
nascimento do autor. O boiadeiro Ladislau, portanto, pode ser tomado como um alter
ego de Guimarães Rosa: assim como Riobaldo, é um personagem médio – encontra-
se a meio caminho em seu processo de aprendizagem; Ladislau representa não o que
35 Eu mesmo fui vítima das armadilhas do autor, quando tomei, em meu trabalho de mestrado, a
referência do autor a seu Tio Cândido como um dado biográfico real. Mais tarde suspeitei de que o
personagem seja apenas uma referência ao Cândido de Voltaire (2013), cujo tema dialoga com o
prefácio de Tutaméia em que ele está inserido, “Sobre a escova e a dúvida”, remete, de forma indireta,
às mônadas de Leibniz, desafeto de Voltaire, e termina por sugerir uma dedicação ao próprio – e insólito
– jardim.
87
o autor efetivamente é, mas o que ele seria36. O próprio boiadeiro nos conduzirá a
outros traços da identidade do autor, oculta em Tutaméia.
Não nos parece um equívoco considerar que os elementos que se repetem em
Tutaméia são apenas três, quando o cachorro de Ladislau, sempre mencionado nos
três contos em que o boiadeiro aparece, poderia ser contado como uma quarta
ocorrência. O cão amarelo não é um elemento destacado, antes, compreende com
seu dono, a quem é capaz de acordar sem rosnar ou latir (ROSA, 2009, p. 113), um
amalgama. O cão de Ladislau é dele e é ele: Eu-Meu – reúne em seu nome o pronome
pessoal eu e o pronome possessivo meu – compreende, portanto, um paradigma
singular do que poderíamos conceber como a contradição do eu-em-si. Podemos
ainda sugerir que o cachorro que pertence a Ladislau, sempre destacado por sua cor
amarela, caberia bem a Rosa, que de maneira insólita proferiu, em seu discurso de
posse na Academia Brasileira de Letras: “Eu gosto do amarelo.” (1999, p. 493), sem
qualquer relação cotextual37.
Ladislau relaciona-se diretamente ainda com outro elemento que se repete em
Tutaméia, o seu patrão, Seo Drães, personagem que assume um caráter diáfano –
traço comum a outros grandes personagens do mesmo arquétipo na obra do autor,
dentre os quais destacamos Joca Ramiro e o compadre Quelemém – dono da
Fazenda-do-Vau38, que encarna o arquétipo, comum na obra de Rosa, do fazendeiro
que, embora rico e poderoso, faz-se justo e bondoso e, por isso, é alvo da admiração
e do respeito da comunidade da qual é, ao fim e ao cabo, um protetor. Se Ladislau é
o que o autor seria, Seo Drães é, portanto, o que ele almeja ser. Indagamo-nos ainda
sobre o nome do personagem: qual seria o verdadeiro nome do personagem,
designado por uma alcunha tão incomum? Parece-nos razoável que Drães seja
apenas um apelido derivado do seu nome próprio, oculto nas narrativas, e não nos
lembramos de nenhum outro nome conhecido que contenha a terminação “ães”,
comum na língua portuguesa, além do próprio sobrenome do autor, Guimarães39. O
36 Ana Maria Machado desenvolveu um brilhante trabalho sobre o enigma dos nomes dos personagens
na obra de Rosa, Recado do nome (2013). Em seu livro, Machado considera que, na obra de Rosa, o
nome próprio assume a natureza de um verbo que se conjuga conforme o devir do personagem por ele
nomeado. Assim, Ladislau seria o futuro do pretérito do autor.
37 Destacamos a exatidão de nossa referência ao cotexto. As relações contextuais nos parecem
plausíveis, como as desenvolvemos em nosso ensaio.
38 Consideramos, em nosso trabalho de 2014, que a Fazenda-do-Vau pode guardar uma referência
velada a uma Fazenda-do-Tau, ou, como preferiria o autor, Fazenda-do-Tao.
39 A propósito do sobrenome, destacamos também em nosso trabalho de 2014 a confissão de
Guimarães Rosa a Günter Lorenz, de que a origem etimológica de seu sobrenome, Guimarães, guarda
88
boiadeiro Ladislau, seu cachorro cor de sebo, Eu-Meu, e o fazendeiro Seo Drães,
compreendem, portanto, projeções do eu do autor, Guimarães Rosa, inscritas como
enigmas em Tutaméia: Terceiras Estórias40.
3.3 SUJEITO E OBJETO: O PARADOXO DA CISÃO DO SER
Os pensamentos de Martin Heidegger e de Martin Buber revelam-se bastante
convergentes, especialmente quando consideram que uma experiência egóica, que
não tome em conta a outridade, compreenderá um distanciamento do Ser, experiência
essa que se funda na concepção, consagrada pela lógica formal, que distingue com
exatidão as instâncias do sujeito e de seu objeto. Para Heidegger, é a relação do Ser
com a essência humana que deve estar no fundo da relação sujeito-objeto, em todas
as dimensões que, contudo, não se deixam apreender de forma metafisica (1998, p.
306); o logos, contudo, é, para o autor, necessariamente, coletividade, e, mais que
isso, "é coletividade originária, o ser dos entes na totalidade. O λόγοϛ humano é, em
sentido próprio, o recolher-se para e na coletividade originária." (HEIDEGGER, 1998,
p. 317). A perspectiva proposta pela lógica formal, como única experiência possível,
é, no entanto, limitadora e, por fim, impede uma experiência humana essencial:
as nossas representações ficam entaladas na perspectiva estabelecida pela
relação sujeito-objeto. A interpretação da essência do homem como sujeito
impede a experiência originária do humano do homem, porque aquilo que
determina o homem tal, a solicitação do ser que encontra o homem e o próprio
ser, só se deixa pensar a partir do sujeito como "objeto" ou, no máximo (no
caso de Kant), como condição do objeto como tal, como objetividade.
(HEIDEGGER, 1998, p. 388)
De sua parte, Buber parece sugerir que assumir a outridade na intricada relação com
o Ser não dispensa a decisão, ou, em termos mais adequadamente rosianos, a
coragem de um comparecimento a si mesmo, ao que completaria Heidegger:
"apresentar-se inclui a apresentação de outro: re-presentação. O ente propriamente
dito é o representante, o re-apresentador de todos e por todos." (1998, p. 391).
uma referência ambígua ao cavalo combatente e a seu cavaleiro. Consideramos ainda que o insólito
cavalo do conto “Retrato de Cavalo”, por fim, será creditado a Seo Drães, quando, em uma reviravolta
surpreendente da narrativa, os personagens decidem depositar a foto do cavalo – verdadeiro objeto de
disputa do conto – na portentosa casa do fazendeiro. Consideramos assim que o cavalo inominado e
Seo Drães constituem o centauro nominativo de Guimarães Rosa.
40 Além das ocorrências eu citamos como exemplos dos ocultamentos do autor em seu texto, já são
conhecidos os anagramas que Guimarães Rosa criou para o próprio nome com o intuito de divulgar
poetas por ele mesmo inventados e que, por isso mesmo, compreendem, na verdade, pseudônimos do
autor. As referências aos poetas inventados estão reunidas em Ave, Palavra: Soares Guiamar (p. 86),
Meuriss Aragão (p. 125), Sá Araújo Segrim (p. 153) e Romaguari Sães (p. 301).
89
Apresentar-se com o outro não prescindiria, é claro, de uma escuta obediente, que já
se projeta na outridade que fala, mesmo quando se busca escutá-la: "O λόγοϛ é a
coletividade originária que a tudo resguarda. O λόγοϛ humano é o recolhimento na
coletividade originária. O recolhimento humano na coletividade originária acontece no
ὁμολογέῖν." (HEIDEGGER, 1998, p. 323). A escuta do logos, como proposta por
Heidegger, pode condicionar uma passagem para a analogia que se dispõe no cerne
da alteridade, como pensada por Octavio Paz, na medida em que celebra a identidade,
justo com base no reconhecimento das diferenças e assinala a analogia como o
espelho em que os entes se descobrem como partes de um contínuo:
A analogia é a ciência das correspondências. Mas é uma ciência que só vive
graças às diferenças: exatamente porque isto não é aquilo é possível fazer
uma ponte entre isto e aquilo. A ponte é a palavra como ou a palavra é: isto
é como aquilo, isto é aquilo. A ponte não suprime a distância: é uma
mediação; tampouco anula as diferenças: estabelece uma relação entre
termos diversos. A analogia é a metáfora em que a alteridade se sonha
unidade e a diferença se projeta ilusoriamente como identidade. Com a
analogia, a paisagem confusa da pluralidade e da heterogeneidade se
organiza e se torna inteligível; a analogia é a operação por meio da qual,
graças ao jogo das semelhanças, aceitamos as diferenças: ela as redime,
torna possível sua existência. Cada poeta e cada leitor é uma consciência
solitária: a analogia é o espelho em que se refletem. (PAZ, 2013, p. 80)
Paz relaciona ainda a crítica do sujeito, como se fizera desde o romantismo até a
poesia moderna. Para o autor, as expressões poéticas contemporâneas podem
combinar, mais do que textos, os seus próprios produtores (2013, p. 162), dado que o
poeta não seria apenas um autor, como tradicionalmente se concebe, mas, mais do
que isso, “um momento de convergência das diferentes vozes que concluem num
texto. A crítica do objeto e a do sujeito se entrecruzam nos dias de hoje: o objeto se
dissolve no ato instantâneo; o sujeito é uma cristalização mais ou menos fortuita da
linguagem." (PAZ, 2013, p. 162). Para além dos sujeitos, Paz vai buscar uma voz,
uma voz por traz da qual o poeta perderia o vulto:
O poeta desaparece atrás de sua voz, uma voz que é sua porque é a voz da
linguagem, a voz de ninguém e de todos. Seja qual for o nome que demos a
essa voz - inspiração, inconsciente, casualidade, acidente, revelação -, é
sempre a voz da outridade. (PAZ, 2013, p. 163)
Paz reconhece, assim, na voz de um poeta individuado, a voz de todos os poetas e,
de forma ainda mais ampla, a voz de todos os homens. O ser unívoco, portanto, é voz,
depreende-se pela linguagem:
A univocidade do ser não significa que haja um só e mesmo ser: ao contrário,
os existentes são múltiplos e diferentes, sempre produzidos por uma síntese
90
disjuntiva, eles próprios disjuntos e divergentes, membra disjuncta. A
univocidade do ser significa que o ser é Voz, que ele se diz em um só e
mesmo "sentido" de tudo aquilo de que se diz. Aquilo de que se diz não é, em
absoluto, o mesmo. Mas ele é o mesmo para tudo aquilo de que se diz. Ele
ocorre, pois, como um acontecimento único para tudo o que ocorre às coisas
mais diversas, Eventum tantum para todos os acontecimentos, forma extrema
para todas as formas que permanecem disjuntas nela, mas que fazem
repercutir e ramificar sua disjunção. (DELEUZE, 2015, p. 185)
Reconhecer a voz do outro na própria voz, ou, mais que isso, ser o outro sem perder
de si a própria identidade do eu, compreende um enigma que a lógica formal,
pensamos, não logrará dissolver. Deleuze, contudo, parece conseguir iluminar o
tema de forma surpreendente – sem prejuízo do que também tem de vertiginosa -,
em seu ensaio sobre Klossowski:
Em uma bela análise como a que fez de Nietzsche, Klossowski interpretou o
"signo" como rastro de uma flutuação, de uma intensidade e o "sentido" como
o movimento pelo qual a intensidade visa a si mesma ao visar o outro,
modifica-se a si mesma ao modificar o outro e volta, enfim, sobre seu próprio
rastro. O eu dissolvido abre-se a séries de papéis, porque faz subir uma
intensidade que já compreende a diferença em si, o desigual em si e que
penetra todas as outras através e nos corpos múltiplos. Há sempre um outro
sopro no meu, um outro pensamento no meu, uma outra posse no que
possuo, mil coisas e mil seres implicados nas minhas complicações: todo
verdadeiro pensamento é uma agressão. Não se trata das influências que
sofremos, mas das insuflações, flutuações que somos, com as quais nos
confundimos. Que tudo seja tão complicado, que Eu seja um outro, que algo
de outro pense em nós numa agressão que é a do pensamento, numa
multiplicação que é a do corpo, numa violência que é a da linguagem, é esta
a alegre mensagem. (2015, p. 306)
A noção de um outro, que o sujeito individuado toma por objeto, consagra-se,
contudo, por uma visão necessariamente redutora, que não tome em conta as
particularidades da outridade; para Octavio Paz, a poesia moderna representou uma
resposta contrária a esse reducionismo, uma vez que a ambiguidade romântica “exalta
os poderes e faculdades da criança, do louco, da mulher, do outro não racional, mas
os exalta a partir da modernidade." (PAZ, 2013, p. 90) – A concepção de Paz parece
criar uma nova perspectiva para a prática, consagrada em Rosa, de dar voz a
crianças, bêbados e loucos, essa porção marginal da sociedade que, talvez,
justamente por estar tão à margem, passa a constituir o grande outro: “Nas aventuras
dos personagens de Guimarães Rosa, a inferioridade (do animal, do analfabeto, da
criança, do ignorante) sempre propicia um certo olhar oblíquo que permite penetrar
nos segredos opacos ou nos enigmas insolúveis na perspectiva superior.”
(ROSENFIELD, 2006, p. 41).
91
Guimarães Rosa, sempre deu voz, em sua obra, à porção deixada à margem
da sociedade patriarcal: o louco, o bêbado, o analfabeto, a criança, a mulher.
Rosenfield considera mesmo que a inferioridade, ou, melhor dizendo, a inferiorização,
representa uma chave para os enigmas que não poderiam ser acessados pela
perspectiva da centralidade, e pode compreender, pensamos, uma via de acesso aos
mistérios do eu, dado que conferem o afastamento necessário para o seu
reconhecimento, ou a sua exotopia (BAKHTIN, 2011). A poética de Rosa, contudo,
compreende um índice singular que pode representar um convite a um ensaio ainda
mais ousado em nossa investigação sobre os limites da alteridade: sua obra encontra-
se atravessada por recorrentes e repetitivas representações dos animais, que
configuram mesmo um pilar estrutural da poética do autor.
3.4 FRONTEIRAS DA ALTERIDADE: OS LIMITES DO HUMANO
Talvez não exista mesmo nenhum outro elemento tão importante para a
caracterização da poética de Guimarães Rosa quanto as representações dos
animais41. O primeiro herói, de seu primeiro livro, é justamente um sábio burrinho,
desprezado por todos devido à sua idade avançada, que, ao fim da narrativa, salvará
de uma inundação os que estiverem no seu entorno; o mesmo livro de estreia
compreenderá uma narrativa singular, precisamente por compreender uma refinada
reflexão sobre as relações entre humanos e animais, justo da perspectiva dos animais:
falamos de “Conversa de bois”, oitavo conto de Sagarana. No que respeita à
identidade do autor, oculta (ocultada) em sua obra, destacamos o seu alter ego, o
boiadeiro Ladislau, que tem, por sua vez, como alter ego, um cachorro, um cachorro
que é dele e é ele, seu cachorro amarelo, Eu-Meu; mencionamos ainda, em nossas
notas, a referência de Rosa a seu sobrenome, Guimarães, que guarda, em sua
etimologia, uma referência ambígua a um “’cavaleiro combatente’ ou ‘cavalo de
combate’” (ROSA, 2003a, p. 325), em que reconhecemos uma referência ao
hibridismo de um centauro. O animal, portanto, justamente por não ser humano,
41 Em sua entrevista a Günter Lorenz, Rosa confessou: “Tudo isso é verdade, mas não se esqueça de
meus cavalos e de minhas vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um
museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos
outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com
isto, compreenderá certamente o que quero dizer.” (apud LORENZ,1973).
92
compreende uma perspectiva que confira ao home a distância necessária para olhar
para si.
Dispor o animal da fronteira do humano compreende a perspectiva de uma
alteridade radical que evoca o memorável encontro do filósofo franco-magrebino,
Jacques Derrida, com o seu gato, quando, nu, deixa o banheiro de sua casa, como
relatado no terceiro colóquio de Cerisy, que resultou em sua obra O animal que logo
sou. Derrida narra em seu livro a perplexidade decorrente desse encontro trivial que
revelou-se perturbador, especialmente por seu efeito reflexivo, dado que o autor
revela haver ficado perplexo não somente pelo encontro fortuito, mas justamente por
perceber-se constrangido pelo olhar perquiridor de seu gato(a)42, que resultou para
ele em uma inigualável experiência de alteridade: "nada me terá feito pensar tanto
sobre essa alteridade absoluta do vizinho ou do próximo quanto os momentos em que
eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato." (DERRIDA, 2002, p. 28). O animal,
portanto, como propõe Derrida, revela os limites do humano:
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito "animal"
me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do
homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa
se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se
dar. (2002, p. 31)
O pensamento de Derrida, que toma o animal como alteridade absoluta do
homem, ganha contornos especiais na obra de Guimarães Rosa e poderá, ainda,
levar-nos a uma síntese surpreendente. Uma das experiências de animalidade mais
impressionantes dentre todas as que podemos encontrar na obra do autor será,
certamente, o impetuoso devir animal experimentado pelo narrador do conto “Meu tio
o Iauaretê”. O onceiro que se metamorfoseia no conto, com efeito, guarda sangue
indígena e poderá, assim, abrir-nos uma perspectiva arrojada que corrige o
preconceito recorrente, segundo os quais se atribui animalidade aos índios. De modo
contrário, A etnografia amazônica revelou, como bem atesta o perspectivismo de
Eduardo Viveiros de Castro (2002), que os povos originários da região projetam a
própria humanidade em toda a natureza, de forma que o índio humaniza o mundo em
vez de se animalizar:
Teríamos então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência
antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência
corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um
42 Jacques Derrida, em seu relato, de forma deliberada, preserva o mistério acerca do sexo de seu
animal, referindo-se a ele de maneira ambígua.
93
atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. (CASTRO, 2002, p.
351).
A animalidade dos animais seria, assim, apenas um disfarce que encobriria a sua
natureza, essencialmente humana e o devir onça, experimentado pelo narrador do
conto, “Meu tio o Iauaretê”, portanto, mais do que um desvelamento, pressupõe um
desnudamento, dado que o disfarce concebido pelos povos indígenas ganha um
caráter de roupa: roupa de anta, roupa de macaco, roupa de sucuri, roupa de onça
que reveste uma verdade humana:
Em suma, os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção
está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada
espécie é um envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana,
normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres
transespecíficos, como os xamãs. (CASTRO, 2002, p. 351)
Os índios amazônicos, portanto, revelam uma perspectiva oposta à que o senso
comum consagrou e, naturalmente, convida a uma revisão de pressupostos
antropológicos que tomamos como verdades, na medida em que visões de mundo
análogas ao perspectivismo podem abarcar outros povos43. Assim, os índios projetam
sua humanidade em toda a natureza que encobre a sua verdade – o seu enigma –
essencialmente humano.
3.5 O EU, QUE AMA OCULTAR-SE
Não poderíamos mesmo, de qualquer maneira, ceder à vaidade pueril de
pretender dar uma resposta que se quisesse objetiva sobre o enigma da individuação;
pensamos, no entanto, haver ensaiado diversos pontos de vista da questão - os jogos
de identidade; o aspecto ontológico; as particularidades dos entes e seu aspecto
identitário; a identidade do autor, Guimarães Rosa, cifrada no seu texto; o problema
da relação sujeito/objeto; a concepção dos animais como uma alteridade limite; e, por
fim, a dispersão da identidade do gênero humano por toda a natureza segundo a ideia
do perspectivismo (CASTRO, 2002). Nosso ensaio, pensamos, se não responde com
objetividade o problema da individuação, percorre algumas de suas fronteiras e dá a
ver como seus limites podem se revelar imprecisos, quiçá, moventes. A qualidade
43Destacamos também as referências de Euclides da Cunha, em Os Sertões, ao homem sertanejo
pensado como uma espécie de animal híbrido sertanejo, o que também representaria uma alternativa
ao perspectivismo, na medida em que ambos versam sobre um intercâmbio entre o homem e o animal.
94
própria do eu que, tanto buscamos, quanto se mostra multifacetada, também foi
destacada por Goethe, a quem temos apontado como uma das mais importantes
referências para o nosso autor, Guimarães Rosa:
Nenhum vivente é um singular, mas uma pluralidade. Mesmo quando se nos
aparece como indivíduo, permanece, contudo, uma coleção de seres vivos
independentes, os quais, segundo a ideia, segundo a circunstância, são
iguais, mas no surgir podem ser iguais ou semelhantes, desiguais ou
dessemelhantes. Em parte, tais seres já são originariamente conectados, em
parte se encontram e reúnem-se. Eles se cindem e se buscam de novo e,
assim, efetuam uma produção infinita de todas as maneiras e por vários
aspectos. (2019, p. 26)
Segundo o pensamento de Goethe, e mesmo de tantos dos seus intérpretes
modernos, a distinção que a lógica formal propõe com tanta clareza e exatidão para
os entes não passa mesmo de um equívoco, não é mais do que uma ilusão 44. Em sua
análise da estética barroca, estética naturalmente enigmática, que o autor atribui a
Guimarães Rosa, Affonso Romano de Sant’Anna introduz uma longa – e singular! –
citação do filósofo luso-brasileiro, do século XVIII, Matias Aires, que versa sobre a
vaidade dos homens; nela, Aires destaca, a despeito das particularidades, uma
natureza essencialmente encobridora – enigmática -, que velará, justamente, a
identidade por sob as minúcias particulares:
Os homens mudam tôdas as vêzes que se vestem; como se o hábito
infundisse uma nova natureza: verdadeiramente não é o homem o que muda,
muda-se o efeito que faz em nós a indicação do hábito. Debaixo de um
apresto militar concebemos um guerreiro valoroso, debaixo de uma vestidura
negra, e talar, o que se nos figura, é um jurisconsulto rígido, e inflexível;
debaixo de um semblante descarnado, e macilento, o que descobrimos, é um
austero anacoreta. O homem não vem ao mundo mostrar o que é, mas o que
parece; não vem feito, vem fazer-se; finalmente não vem ser homem, vem
ser um homem graduado, ilustrado, inspirado; de sorte que os atributos, com
que a vaidade veste ao homem, são substituídos no lugar do mesmo homem;
e êste fica sendo como um acidente superficial, e estranho: a máscara, que
encobre, fica identificada, e consubstancial à coisa encoberta; o véu que
esconde, fica unido intimamente à coisa escondida; e assim não olhamos
para o homem; olhamos para aquilo que o cobre, e que o cinge; a guarnição
é a que faz o homem, e a êste homem de fora é a quem se dirigem os
respeitos, e atenções; ao de dentro não; êste despreza-se como uma coisa
comum, vulgar e uniforme em todos. A vaidade, e a fortuna são as que
44Eximimo-nos de examinar em nosso ensaio o pensamento de Schopenhauer, para quem as coisas
no mundo sensível não passam de representações da vontade, ou, como na tradição hindu, em que o
autor se houvera inspirado, ilusões do véu de Maya. Schopenhauer, contudo, a despeito de não figurar
entre as referências do cânone pessoal de Guimarães Rosa, terá, certamente, sua importância para o
autor, especialmente no que concerne aos seus enigmas. Lembremo-nos de que as epígrafes que
abrem e fecham Tutaméia, como orientações veladas para o leitor, são de autoria do filósofo e que,
tanto Tutaméia, quanto a obra máxima do pensador, “O mundo como vontade e representação”, têm
organizações quartais. Além disso, para Schopenhauer, o grande desafio do homem é justamente
superar os influxos da individuação, da qual emana o sofrimento humano.
95
governam a farsa desta vida; cada um se põe no teatro com a pompa, com
que fortuna, e a vaidade o põem; ninguém escolhe o papel; cada um recebe
o que lhe dão.
Os principais autores em que nos referenciamos para analisar o problema da
individuação, já dissemos, mostram-se bastante convergentes. O pensamento de
Buber parece mesmo ser uma curiosa alternativa ao de Paz: onde o mexicano afirma
"eu sou o outro", Buber corrige, "eu e o outro somos"; se o pensamento de um e de
outro autor revela o contorno de particularidades, todos eles comungam, contudo, na
ideia de que a voz do Ser se faz ouvir na coletividade. De forma ambígua, o singular
se reconhece no coletivo em que se recolhe, como se fosse o próprio conjunto o
definidor de sua identidade:
No todo da constituição essencial do colher, o curioso é que aquilo que é só
pode ser em si à medida que não apenas ajunta coisas que se acham dadas,
mas se "concentra" em si mesmo, em todas as suas fases, naquilo que o
colher e o coletar já determinaram previamente. (HEIDEGGER, 1998, p. 297)
A propósito do problema de que tratamos neste capítulo, Jacques Derrida discorre
sobre as noções de margem e de limite, em seu ensaio “Tímpano” (1991). Para o
autor, uma margem não configura necessariamente um limite, e só pode ser tomada
como tal na medida em que for um limite móvel, dado que está sujeita a
transbordamentos. Nesse particular, a esfinge, símbolo do enigma por excelência,
reapresenta o problema da animalidade no homem, mas na medida em que o humano,
no caso, compreende o transbordamento de um ser sem fronteiras. A figura, de uma
cabeça humana que se ergue de um corpo animal, sustenta também a ideia de que
um vir a ser é a própria afirmação do enigma. Hegel (1993) sugere que a passagem
da cultura egípcia para a Grécia e a natural decifração dos hieróglifos representa uma
dimensão mais ampla de uma tomada de consciência pelo mundo grego,
representada precisamente pela figura de Édipo que destrói a esfinge ao decifrar-lhe
o enigma. A figura da esfinge, neste ponto do desenvolvimento de nosso trabalho,
reveste-se de uma significação especial e passa a compreender mesmo uma síntese,
um ponto de convergência de tantas tensões distintas: a esfinge propõe um enigma,
na mesma medida em que é, ela também, um enigma, na mesma medida em que é,
ainda, a resposta do próprio enigma que propõe: o homem. O homem é o enigma:
respondê-lo, com efeito, será condição determinante para a vida e para a morte. O
transbordamento humano que se ergue como resposta é a afirmação de uma
presença, não admite abstrações: é Édipo, é Laio, é Jocasta -, não, a resposta do
96
enigma ressoa diante do espelho da alteridade: é o homem -, abarcado em sua
coletividade.
Se Guimarães Rosa tramou de forma singular o enigma da individuação, de
forma discursiva, formulado mesmo como argumento, na voz de um de seus
personagens, que pergunta, “Será já em si o ‘eu’ uma contradição?” (2009, p. 138),
em outro trecho de sua obra, o autor cria uma imagem poética surpreendente para
dar conta da mesma questão, falamos do conto “Nenhum, nenhuma”, que integra o
livro Primeiras Estórias45. O conto compreende uma atmosfera onírica, em que
consciências e memórias reclamam seus limites; personagens diáfanos movem-se
por uma casa de fazenda que, por vezes, compõe mesmo um ambiente que se sugere
imaterial, de forma que chegamos a suspeitar dos limites de tempo e espaço e, ainda
mais, dos próprios limites identitários de cada personagem:
Dentro da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias e
recomeçadas distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente,
irreversos grandes fatos – reflexos, relâmpagos, lampejos – pesados em
obscuridade. A mansão, estranha, fugindo, atrás de serras e serras, sempre,
à beirada da mata de algum rio, que proíbe o imaginar. Ou talvez não tenha
sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem tão longe? Não é
possível saber-se, nunca mais. (ROSA, 2005, p. 93).
Não nos parece um exagero sugerir que o conto “Nenhum, nenhuma” represente um
dos textos mais herméticos dentre todos já criados por Guimarães Rosa, de forma
que é mesmo difícil estabelecer as linhas gerais de um enredo, ou, ainda, as
propriedades dos principais personagens, designados por expressões, as mais
genéricas: o Menino, o Moço, a Moça, o Homem velho e, a única personagem
dignificada por um nome próprio, a Nenha, velhíssima. Uma estratégia comum: a
quebra do eixo temporal da narrativa -, pode conduzir os esforços interpretativos, de
modo que poderíamos supor que o Menino amadurecerá para tornar-se o Moço,
representado, na velhice, pelo Homem velho, do mesmo modo como a Moça possa
compreender a juventude da Nenha. O autor, no entanto, empreenderá uma ruptura
muito mais radical do que a própria desconstrução de um eixo temporal, ao qual
confira movimento e fluidez, Guimarães Rosa colocará em questão as fronteiras da
individuação: dissolve-se o eu e as identidades dos personagens passam a se
45 A personagem Maria Euzinha, protagonista do conto “Tresaventura”, de Tutaméia: Terceiras
Estórias, também introduz uma referência digna de nota no que respeita ao que temos chamado as
contradições do eu, quando se dirige ao irmão mais velho com a insólita reclamação: “Você não é você,
e eu queria falar com você...” (ROSA, 2009, p. 246); além do mais, o próprio nome da personagem
compreende um índice notável: Euzinha.
97
interpenetrar: “Atordoado, o Menino, tornado quase incônscio, como se não fosse
ninguém, ou se todos uma pessoa só, uma só vida fossem ele, a Moça, o Moço,
o Homem velho e a Nenha, velhinha – em quem trouxe os olhos.” (2005, p. 99,
grifos nossos). Ao fim do conto, atordoado pela descoberta que fizera, o Menino
mesmo se questionará sobre os limites do eu, sobre as fronteiras que separam o ser
ninguém do ser todas as pessoas e vislumbrará uma perspectiva pela qual a sua
existência possa se dispersar e fluir por todos os seus semelhantes.
Sem prejuízo da incursão que fizemos, por entre imagens poéticas e ensaios
metafísicos, Gilles Deleuze nos chama à consciência com um argumento que
representa uma responsabilização fatal. Não há acontecimentos privados, diz o autor;
todo ente é inalienável de sua experiência e deve responder por ela, o que não exclui
a sua outridade, muito pelo contrário, responsabiliza-o, inclusive, por ela:
não há acontecimentos privados e outros coletivos; como não há individual e
universal, particularidades e generalidades. Tudo é singular e por isso
coletivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem
universal. Qual guerra não é assunto privado, inversamente qual ferimento
não é de guerra e oriundo da sociedade inteira? (2015, p. 155).
Conforme mencionamos, a experiência do ser compreende, para Heidegger,
um recolhimento na coletividade. Não dispensa, portanto, uma dimensão afetiva, ao
passo que é uma colheita que se faz segundo o limite de um braço que suspende algo
do chão com o intuito de resguardar. Se a essência do Ser é um recolhimento, e se o
Ser é, naturalmente, ser-com-o-outro, ser-na-(re)coletividade, a experiência do Ser
compreende um salvar que é, por fim, um salvar-se: "Colher é salvar. [...] Colher é
salvar o que se mostra. [...] Como é possível que alguém recolha e sustente em
conjunto, se ele mesmo não estiver recolhido ao que se recolhe?" (HEIDEGGER,
1998, p. 400). “Natureza ama ocultar-se” (2012, p. 129), diz o fragmento 123, de
Heráclito (a natureza – a físis – o logos), o puro surgimento favorece o encobrimento,
corrige Heidegger em seu resgate etimológico (1998, p. 143) (favorecer – amar), a
colheita que reúne o Ser não dispensa o caráter de um acolhimento, e o puro
surgimento, afirma o autor, compreende as dimensões de favorecimento e
acolhimento:
O surgimento propicia o encobrimento, a fim de que vigore na própria
essência do surgimento. O encobrir-se vigora, no entanto, ao favorecer o
surgimento para "ser" surgimento. Na φύσιϛ vigora o favor. Não qualquer
favor e favorecimento. Mas o favor no sentido do favorecimento que nada
mais favorece do que o acolhimento, a propiciação e a preservação do que
vigora no surgimento. (HEIDEGGER, 1998, p. 144)
98
Não nos parece um exagero sugerir que, ainda mais do que uma arqueologia das
origens do pensamento ocidental, Martin Heidegger introduz uma geografia
(metafísica!) do logos, dado que preocupa-se em delimitar o lugar, o entorno da ideia
que consagramos como um conceito. Se o logos, puro surgimento, comporta uma
dimensão de acolhimento, o filósofo ocupa-se em falar de uma região46, introduz-se a
ideia do refúgio do logos, a sua contréa - zona de acolhimento e proteção: "Por contréa
entendemos a região aberta, o amplo em que alguma coisa pode encontrar morada
(demorar-se), de onde pode ir, vir, dar-se ao encontro." (1998, p. 342).
O enigma da individuação de um eu que é puro surgimento comporta a
dimensão de um recolhimento na coletividade; esse recolhimento, por sua vez, não
dispensa a perspectiva da preservação daquilo que surge. A essência do ser-com-
outro compreende uma noção de refúgio, uma noção de proteção. O que surge a partir
de si mesmo (e nunca declina) ama/favorece o recolhimento. Estamos na fugidia
dimensão de uma amorosidade: fugidia no que essa noção terá de enigmática -, já
estamos nos planos do enigma do amor.
46Márcia Sá Cavalcante Schuback criou o neologismo contréa, que derivou do francês e do italiano,
para traduzir a palavra gegend, do alemão, que designa região.
99
CAPÍTULO 4. O ENIGMA DO AMOR
"De certo Eros se deixa adivinhar como o primeiro dos deuses."
(Parmênides)
"Quando um homem está intimamente unido a sua mulher, estão envolvidos pelo sopro das colinas
eternas"
(Martin Buber)
Ao unir dois, se reveste
De delícia humana o amor; Mas para êxtase celeste
Molda um três encantador.
(Goethe, Fausto, segunda parte)
Pensar uma natureza própria do amor, afeita ao enigma em tudo o que tem de
mais peculiar, será uma tarefa difícil apenas para quem não se dispuser a
desembaraçar-se do senso comum. De modo contrário, supomos que a essência
enigmática deste multifacetado sentimento – talvez o mais importante para a cultura
universal -, seja mesmo uma obviedade, como sugere o próprio mito fundante para a
cultura ocidental, segundo o qual a condição essencial, categórica, imposta pelo amor
é o velamento de seu rosto, a preservação do enigma de sua identidade. Nessa
medida, desvelar os mistérios do amor representa uma transgressão que irá feri-lo:
sua identidade será, sim, descoberta, o que compreende a exata medida de sua
perda47. As flechas do amor, com efeito, também estão dotadas da propriedade de
borrar fronteiras, de modo que o objeto amado passa a ser, a um só tempo, o fim e os
meios; assim, o amor é o que oblitera, e é também o que acolhe e abarca, é o abismo
que se oferece ao corpo que cai, para o qual o único problema é mesmo o fim do
abismo. Do seio de seu sertão, Riobaldo verbaliza pela primeira vez o seu sentimento
diante do corpo morto – desvelado – de Diadorim: “E eu não sabia por que nome
chamar; eu exclamei me doendo: – ‘Meu amor!...’” (ROSA, 2001, p. 739); no meio da
travessia, contudo, a voz de Riobaldo responde aos gregos: “Diadorim é a minha
neblina...” (ROSA, 2001, p. 50), na medida em que o jagunço amado é o amor, sem
prejuízo de ser tudo o que o mascara. Confundem-se as fronteiras, esgarça-se a
causalidade: “Amor vem de amor.” (ROSA, 2001, p. 50), sentencia o ex-jagunço.
47 Referimo-nos, é claro, ao mito grego de Eros e Psiquê.
100
Disposto no âmago das virtudes consagradas pela equívoca tradição judaico-
cristã do ocidente, ao amor atribuem-se sentidos francamente distintos, derivados
naturalmente de conceitos diferentes – philos, Eros, ágape etc – que insistimos em
abarcar sob um único conceito, naturalmente insuficiente para dar conta da
pluralidade de sentidos própria das concepções originais, pluralidade essa, que, antes
de representar um problema, será fundamental para o desenvolvimento de nosso
ensaio, dado que a maior parte das faces do amor aparece cifrada na poética de
Guimarães Rosa, como pretendemos demonstrar neste capítulo. A propósito, muito já
se tratou do amor, especialmente em seus aspectos ético/valorativos, como expressos
na obra de Guimarães Rosa. Destaca-se, entre os textos que se desenvolveram sobre
essa temática, o célebre ensaio de Benedito Nunes, “O amor na obra de Guimarães
Rosa” (2013). A nosso trabalho, contudo, interessa o amor sob seu aspecto
enigmático em específico, e, ainda, as estratégias – as mais variadas - de que se
valeu o autor para engendrar enigmas a ele relacionados.
Chegamos aqui, no entanto, conduzidos por uma nuance menos comum do
amor, derivada por Heidegger de um sentido mais original que o filósofo buscou para
o logos, que, para ele, compreende um favorecimento próprio e necessário, “Não
qualquer favor e favorecimento. Mas o favor no sentido do favorecimento que nada
mais favorece do que o acolhimento, a propiciação e a preservação do que vigora no
surgimento." (HEIDEGGER, 1998, p. 144). O logos, em sua concepção original,
portanto, favorece tudo o que vigora a partir de si mesmo e, mais do que isso,
compreende uma noção de acolhimento, acolhimento esse que se dá no seu entorno,
ou, como chamou-o Heidegger, na sua contréa. A perspectiva de Heidegger, não
exclui, no entanto, a concepção do amor como um jogo de mostrar-se e esconder-se,
como já referenciamos:
O surgimento favorece o fechamento no sentido de que propicia àquele a sua
essência, preservando desse modo a si próprio no favor de sua própria
essência, propiciada pelo surgimento. Pode-se chamar de φύσιϛ o que vigora
como a simplicidade do favor próprio do surgimento que se vela. (1998,
p.145)
A noção do amor, tomado como uma forma de jogo, não será estranha a Johan
Huizinga, dado que, para o autor, o amor, assim como o conflito, também implica
rivalidade ou competição, o que fundamentaria a sua natureza lúdica (2014, p. 148).
O amor, especialmente como representado na literatura, compreende, para Huizinga,
101
uma noção de jogo, que concentra em si, ainda, uma dimensão naturalmente
enigmática:
Na grande maioria dos casos, o tema central da poesia e da literatura é a luta
— isto é, a tarefa que o herói precisa cumprir, as provações por que ele tem
que passar, os obstáculos que ele precisa transpor. Já é suficientemente
esclarecedor o uso da palavra "herói" para designar o personagem principal.
A tarefa será extraordinariamente difícil, aparentemente impossível. Em
geral, ela é empreendida em consequência de um desafio, de uma promessa
ou de um capricho da pessoa amada. Todos estes temas nos conduzem de
volta ao jogo agonístico. Uma outra série de motivos de tensão assenta no
disfarce da identidade do herói. Ele se apresenta incógnito quer por estar
deliberadamente ocultando sua identidade, ou por ele próprio a desconhecer,
ou ainda, porque é capaz de mudar sua aparência conforme sua vontade. Em
outras palavras, ele usa uma máscara, aparece sob um disfarce, é portador
de um segredo. Uma vez mais nos encontramos próximo do velho jogo
sagrado do ser oculto que se revela apenas aos iniciados. (2014, p. 148)
Para além do aspecto lúdico, do qual já havíamos tratado no primeiro capítulo
deste trabalho, os enigmas de Eros envolvem também outros aspectos já investigados
neste ensaio48; para Octavio Paz, é precisamente a questão da individuação, o grande
mistério desse outro que sempre nos escapa (1994, p. 58), o que fundamenta o
enigma do amor: “Há uma pergunta que se fazem todos os apaixonados e que
condensa em si o mistério erótico: ‘Quem é você?’” (PAZ, 1994, p. 12). O amor se
funda, portanto, no mistério e no enigma, compreende, com efeito, uma curiosa lógica
segundo a qual ama-se primeiro, para descobrir/conhecer-se depois: “o
descobrimento da pessoa amada, geralmente desconhecida; a atração física e
espiritual; o obstáculo que se interpõe entre os amantes; a busca da reciprocidade;
enfim, o ato de escolher uma pessoa entre todas as que nos rodeiam.” (PAZ, 1994, p.
97). O amor, com efeito, não pode prescindir de um objeto: inalienável, insubstituível
-, requer, portanto, exclusividade, atributo que Octavio Paz estabelece como um dos
traços definidores do amor; característica essa que também dá a ver como a natureza
enigmática do amor é complexa, multifacetada, de forma que seus enigmas
constitutivos se aprofundam em outros: “Ninguém jamais pôde esclarecer esse
enigma, a não ser com outros enigmas, como o mito dos andróginos em O
48Ainda no que concerne ao enigma do espelho, tema do segundo capítulo de nosso ensaio, Paz cita
Freud para sugerir que o amor é um jogo de espelhos (1994, p. 98) e, além disso, relaciona diretamente
o enigma do amor ao enigma do espelho: “Os espelhos e sua réplica: as fontes aparecem na história
da poesia erótica como emblemas da queda e ressureição. Como a mulher que nelas se contempla, as
fontes são água de perdição e de vida; ver-se nessas águas, nelas cair e voltar à superfície é voltar a
nascer.” (PAZ, 1994, p. 33)
102
banquete. O amor único é uma das facetas de outro grande mistério – a pessoa
humana.” (1994, p. 107, grifos nossos).
A exigência de exclusividade, não é, contudo, a única característica definidora
do amor; o mais celebrado sentimento de nossa cultura, conforme hoje o entendemos,
passou por transformações históricas que Octavio Paz buscou descrever em um
ensaio capital para este assunto, obra de sua madurez, o livro A dupla chama: amor
e erotismo.
4.1 AS METAMORFOSES DO AMOR
Para Octavio Paz, as mudanças e metamorfoses pelas quais a história do amor
cortês passou compreenderiam a própria formação da história da civilização no
ocidente (PAZ, 1994, p. 91). O amor, da forma como hoje o entendemos,
compreenderia, para Paz, uma natureza sincrética, que amarra em si tendências
culturais improváveis, seria, assim, produto da disseminação da noção do amor
platônico pelo mundo, inclusive pelo mundo árabe, onde influenciou poetas e filósofos
que o forjaram com a forma pela qual hoje o conhecemos. Em sua investigação sobre
as origens do amor, o crítico e poeta mexicano busca definir as noções de sexo e
erotismo com o fim de estabelecer as distinções entre essas noções e a noção de
amor, e, é claro, também compreender quais são as relações que se podem observar
entre as três concepções. O erotismo, para Octavio Paz, seria uma manifestação da
cultura, investida da finalidade de “domar o sexo e inseri-lo na sociedade.” (1994, p.
17), finalidade indispensável, visto que “Sem sexo não há sociedade.” (PAZ, 1994, p.
17). Para o autor, contudo, os animais estariam dotados do sexo, na mesma medida
em que o homem está dotado do erotismo, assim, Octávio Paz elabora uma síntese
de seu pensamento sobre o amor ao sugerir que o erotismo é a sublimação do sexo,
da mesma forma que o amor é um refinamento do erotismo, produto de uma segunda
sublimação do sexo.
O interesse do autor pelo amor e pelo erotismo não se justifica apenas pela sua
notável curiosidade geral, que levou-o a produzir ensaios sobre uma ampla gama de
assuntos: Octávio Paz foi um poeta, interessado sobretudo no fazer poético, na crítica
literária e na linguagem -, o autor, dessa forma, assinala as relações entre o erotismo
e a poesia, que se dão na medida em que o erotismo é uma metáfora da sexualidade
e a poesia, por sua vez, é uma erotização da linguagem: “A relação entre o erotismo
e a poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal
103
e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar.”
(PAZ, 1994, p. 12). Para aquém da poesia, contudo, Eros já faria sentir a sua presença
ainda nas prosaicas manifestações de linguagem:
A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias
corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente [...]; o
erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O
erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. (PAZ, 1994, p. 12)
Pela poesia, contudo, Eros avançaria para além do vestíbulo dos amantes: “A imagem
poética é abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a
linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo.”
(PAZ, 1994, p. 12)
Além da referida relação coma linguagem, o autor sempre colocou em
evidência a natureza enigmática da poesia e do amor, representado na figura
misteriosa de Eros: para um pensador das ambiguidades, como o é Octávio Paz, Eros
– o amor – representa a pacificação das tensões contrárias: é, sobretudo, um
mediador - “Para a tradição filosófica Eros é uma divindade que comunica a
obscuridade com a luz, a matéria com o espírito, o sexo com a ideia, o aqui com o
além.” (PAZ, 1994, p. 26-27). Paz ainda destaca o aspecto enigmático de Eros quando
discorre sobre a ambiguidade de sua natureza: solar e noturno, motivo pelo qual todos
podem senti-lo, na mesma proporção em que estão impedidos de vê-lo; invisível por
excesso de luz, como o sol em pleno dia (1994, p. 27). Para o autor, deve-se a este
duplo aspecto de Eros a consagração da imagem poética da lâmpada acesa na alcova
dos amantes (PAZ, 1994, p. 27).
Há, contudo, um traço distintivo do amor, identificado por Octavio Paz, que
resultará, talvez, nas mais profundas transformações históricas decorrentes da
consolidação do ideal do amor romântico, traço esse que também será indispensável
à análise que empreendemos neste ensaio; para o autor, a pedra de fundação do
amor, no entanto, seria “a liberdade: o mistério da pessoa.” (PAZ, 1994, p. 97). O
amor, portanto, não pode, em absoluto, prescindir de um ideal de liberdade, posto que
representa uma redenção do reducionismo da individuação, de sua natureza
objetificante. O amor, assim, funda-se na noção de uma servidão voluntária, paradoxo
que “se apoia em outro mistério: a transformação do objeto erótico em pessoa o
converte imediatamente em sujeito dono de livre-arbítrio. O objeto que desejo se torna
sujeito que me deseja ou me rejeita.” (PAZ, 1994, p. 113). O amor, portanto, harmoniza
as tensões entre o sujeito e o objeto: “Alquimia erótica: a fusão do eu e do mundo, do
104
pensamento e da realidade, produz um relâmpago: a iluminação, labareda súbita que
literalmente consome o sujeito e o objeto.” (PAZ, 1994, p. 187).
Talvez ainda não tenhamos sido de todo claros com respeito às transformações
históricas a que nos referimos; a servidão voluntária, consagrada pelo sentimento de
amor que se cristalizava na cultura, levou o par amoroso a uma condição inédita: o
amante, e aqui nos referimos ao amante do sexo masculino, a quem se chamava “meu
senhor”, também desejou, com base na liberdade consagrada pelo sentimento
emergente, referir-se à sua amada, pela primeira vez, como “minha senhora”. Octávio
Paz aponta, inclusive, em sua obra, uma ocorrência singular que assumirá especial
valor em nossa análise: a obra do poeta romano Propércio, que antecipa, em mais de
mil anos, o ideal de liberdade do amor. Paz cita particularmente a elegia de Cíntia, em
que a heroína, tomada de ciúmes, ousa, com muita naturalidade, agredir o amante:
Propércio decide se vingar e organiza uma pequena brincadeira em lugar
retirado. Enquanto se diverte com duas cortesãs apanhadas em lugares
suspeitos – completam o quadro um flautista egípcio e um anão que
acompanha a música batendo palmas – Cíntia irrompe, despenteada e
furiosa. Batalha campal, arranhadas e mordidas, fuga das duas intrusas
e reclamações dos vizinhos. (PAZ, 1994, p. 59-60, grifos nossos).
O exemplo de Propércio, contudo, encontra curiosíssimo paralelo na obra de
Guimarães Rosa, autor que, conforme temos descoberto, cultivava o gosto por
reescrever histórias clássicas, tantas vezes corrigindo – segundo seu juízo pessoal -
erros históricos, ou atribuindo melhores desenlaces às narrativas de heróis que
encontraram finais trágicos: Rosa, entendemos, reescreveu, ou, como preferiria o
autor, traduziu a elegia de Propércio para o universo sertanejo, como podemos
constatar na última narrativa de Tutaméia, o conto “Zingarêsca”, em que, tomado de
ciúmes, o sitiante Zepaz espanca a mulher, mas para escândalo – e divertimento! –
dos presentes, passa a ser surrado por ela: “Zepaz, deixou trancada a mulher, pelo
dinheiro vem, depois vai terminar de bater. Não. Zepaz torna a entrar, e gritos, mas,
então: sovava-o agora a cacete era a mulher, fiel por sua parte, invesmente.” (ROSA,
2009, p. 265). No conto também está presente o flautista egípcio, representado na
figura dos ciganos: “Dinhinhão [...] furtou um flautim dos ciganos” (ROSA, 2009, p.
264), presente, também está o anão, “Era o anão Dinhinhão.” (ROSA, 2009, p. 262).
A aclamação do amor romântico, portanto, fundamentou historicamente os princípios
de liberdade da mulher, princípios que também se apresentam, tantas vezes de forma
velada, na obra de Guimarães Rosa.
105
4.1.1 O sagrado feminino: “Tudo, para mim, é viagem de volta”
Examinamos, no terceiro capítulo deste ensaio, a noção enigmática de um eu
que se constitui sujeito, contra todos os influxos de sua outridade. Parece-nos natural,
portanto, a ideia de que nas sociedades que se notabilizaram por um ideal masculino,
a mulher constitua a noção de um grande outro, como ficou mesmo evidente com a
consolidação da ideia dos múltiplos descentramentos do sujeito, da forma como os
experimentamos na modernidade.
Octavio Paz aponta o ideal de liberdade, próprio da essência do amor
romântico, como o desencadeador dos movimentos de luta pela liberdade da mulher,
mas considera com surpresa que, em uma sociedade predominantemente
homossexual, como era o círculo de Platão, a doutrina do amor seja atribuída a uma
mulher, assim considera que a escolha de Diotima se deva mesmo a uma
reminiscência, no próprio sentido platônico da palavra: “uma descida às origens, ao
reino das mães, lugar de verdades primordiais. Nada mais natural que uma profetisa
anciã seja a encarregada de revelar os mistérios do amor.” (PAZ, 1994, p. 42). Esse
recuo às origens, essa volta às verdades primordiais, especialmente no que terá de
mítico, constitui uma tônica estruturante na poética de Guimarães Rosa, tônica essa
que, naturalmente, não se oferece aos olhos, antes, vela-se, como é próprio das
estruturas, ou ainda como se espera das escolhas de um autor afeito aos enigmas,
como é Rosa: em uma obra marcada pela brutalidade de um ideal masculino,
representado por bravos jagunços e hábeis vaqueiros, ocultam-se, em enigma, as
representações do feminino, expressas, nos planos de sentido mais superficiais,
propriamente por mulheres.
Assim, dizíamos, a obra de Guimarães Rosa está pontilhada de personagens
femininas que se apresentam de forma desfocada na narrativa, dado que não se
referenciam na mesma proporção da importância de que se revestem. O melhor
exemplo certamente será a identidade feminina do jagunço Diadorim, desvelada ao
final de Grande Sertão: Veredas, exemplo a que dedicaremos, posteriormente, maior
atenção, mas, por ora, destacamos as mulheres-damas, a dupla de prostitutas que
constituem o poder central do povoado do Verde-Alecrim (ROSA, 2001, p. 649), ou
ainda outro par de prostitutas, Conceição e Tomázia, que regem o masculino universo
dos vaqueiros, a partir de sua casinha retirada, em “A estória de Lélio e Lina” (ROSA,
2001). As prostitutas, com efeito, sempre encontraram lugar destacado na esfera
narrativa de Guimarães Rosa, espaço em que gozam de um status de respeito e
106
mesmo de virtude, como bem atesta Riobaldo: “Renego não, o que me é de doces
usos: graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais
nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades.” (ROSA, 2001,
p. 303). Poderíamos seguir relacionando uma extensa lista de mulheres desfocadas
na obra de Guimarães Rosa, como a misteriosa Maria Exita, de “Substância”, que
conquista o amor do dono da fazenda, ou a mãe de Miguilim, que contra todas as
imposições morais de seu tempo, sempre buscou, de maneira paciente e furtiva, o
afeto que não encontrava no marido; será, contudo, no vórtice do amor, no sertão de
Rosa, que encontraremos os melhores exemplos de tais mulheres, dispostas
justamente ao lado das mais expressivas representações do masculino: falamos do
livro Noites do sertão, e, ainda mais especificamente, da novela “Buriti”, que pode
mesmo representar um balé erótico que se ordena e se desenvolve em redor do
grande falo, o buriti-grande, odiado por Dona-Dona, que guardava ânsias de abatê-lo
com um machado: “— ‘Ave, essa é parece até uma palmeira do capêta...’” (ROSA,
2001, p. 145). A novela compreende uma curiosa falofória que se desenvolve mesmo
pelos múltiplos planos de sentido da narrativa49. No primeiro plano, no plano do
enredo, trata-se do desejo ardente que se deflagra quando caem as luzes do dia e se
estabelecem as noites do sertão: o incandescente desejo de Maria da Glória por
experimentar o amor; a volúpia ressentida de Lalinha, a Afrodite sertaneja do buriti-
grande; o ciúme de ambas pelo pai, Iô Liodoro, modelo de moral inabalável durante o
dia, mas que, ao anoitecer, revela inesgotável vigor sexual, vigor esse que dedica,
alternadamente, às suas duas principais amantes. As amantes com quem o
fazendeiro vela suas noites, contudo, não serão as únicas: no limite de seus conflitos
morais, Iô Liodoro tomará para si a mulher do Inspetor, adoecido por um resignado
ciúme, e, após um jogo erótico minucioso e sufocante, também amará a própria nora
a quem houvera protegido, a sedutora Lalinha. As duas principais moradoras da casa
da fazenda, serão, com efeito, as duas sacerdotisas da falofória sertaneja: Lalinha,
49 A propósito de nossa referência a uma falofória rosiana, não podemos deixar de destacar a insólita
referência de Riobaldo ao Rio São Francisco no último parágrafo de Grande Sertão: Veredas: “O Rio
de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme...”
(ROSA, 2001, p. 749). Se podemos admitir – não sem algum esforço! - a semelhança de um rio com
um pau, por suas proporções longilíneas, afirmamos que a sugestão do ex-jagunço é absurda porque
um rio não pode, em absoluto, se assemelhar a um pau erguido. Se a brincadeira de Rosa, contudo,
escapou aos olhos da crítica, não podemos dizer que tenha resistido à argucia de Caetano Veloso,
que, no documentário A sede do peixe, sorri jocosamente ao falar da associação que fez entre o trecho
final de Grande Sertão: Veredas e a narrativa de “A terceira margem do rio”, em sua canção que leva
o mesmo nome do conto.
107
que se entregará aos amores do sogro e da cunhada, e a própria afogueada Maria da
Glória, cortejada pelo grande herói de Corpo de Baile, o menino Miguilim/veterinário
Miguel, mas que se entregará de forma antecipada ao guloso Gulaberto, fazendeiro
que gozava mesmo da confiança de seu pai. No plano das representações simbólicas,
a festa da fertilidade da novela de Rosa se desenvolverá por meio da sutileza própria
das metáforas e dos símbolos: o incansável fazendeiro, que trabalha de dia e ama de
noite, é uma projeção da própria palmeira descomunal – ele próprio é o buriti-grande,
o grande falo adorado: Iô Liodoro – lhe adoro. Ocultado pelo autor até próximo do
meio da narrativa, o sobrenome da família do poderoso fazendeiro será então
revelado: o celebrado falo pertence à família Faleiros.
O vórtice do amor na poética de Rosa situa-se, portanto, na contréa da grande
árvore, o falo adorado. Mencionamos a contréa em alusão a Heidegger, tantas vezes
por nós referenciado neste ensaio. O acolhimento do logos, na poética de Rosa,
contudo, talvez não represente apenas um entorno, uma região, mas constitua, de
forma mais apropriada, um aprofundamento. Faz-se marcar, portanto, a despeito das
personagens desfocadas, a ausência de uma representação que corresponda ao
grande falo: revela-se uma ausência, um eclipse, um enigma – não encontramos, em
nossa investigação, um modelo que corresponda à grande vagina, a feminina concha
em que Sant’Anna situa os enigmas barrocos:
A elipse é barrocamente uma concha. E a concha está na origem etimológica
da palavra barroco, pois é de uma pérola deformada, feia, irregular, extraída
do interior da concha que viria a origem da palavra barroco, termo que,
espiralando semanticamente seu significado, chegaria às artes e à cultura em
geral. (2000, p. 23)
A referência à concha primordial – ou a marca de sua falta! - não é, é claro, um traço
exclusivo da poética de Rosa: Octavio Paz destaca a passagem final de Ulisses,
quando Bloom e Stephen retornam à casa de Bloom, onde são esperados por Molly:
“A mulher de Bloom é todas as mulheres ou, melhor dizendo, é a mulher – a fonte
perene, a vulva abissal, a montanha mãe, nosso começo e nosso fim.” (PAZ, 1994, p.
32). A ausência da grande concha pode ser mesmo tomada como um enigma
estrutural na obra de Guimarães Rosa, dado que esse feminino primordial é a falta
para a qual tudo aponta: é a noite escura (JOÃO DA CRUZ, 2014) – através da qual
se busca o acolhimento essencial. O próprio narrador do primeiro conto de Tutaméia
revelará o projeto Rosiano na primeira frase do livro: não importam as distâncias, a
grande travessia se faz aqui, ao alcance do braço – é o enigma do ato amoroso: “E o
108
senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de
volta.” (ROSA, 2009, p. 41, grifos nossos). O grande périplo, a grande aventura
sertaneja, é uma antiperipléia: é o enigma do amor, revelado no ato de amor carnal –
a viagem de volta para o acolhimento da grande mãe, o caminho do útero.
Sugerimos assim que, na poética de Guimarães Rosa, tudo é uma viagem de
volta, tudo aponta para o enigma do amor. A própria obra magna do autor se organiza
em torno de um grande enigma amoroso: a despeito de todos os seus muitos conflitos,
Riobaldo tem, sim, um problema principal – as flexas do amor fizeram dele, um bravo
jagunço macho, um cativo do amor de um outro jagunço, seu companheiro, o Jagunço
Reinaldo, que houvera revelado a ele o seu nome secreto: Diadorim. Muito já se falou
dos provérbios e ditos populares, evocados e recriados por Guimarães Rosa – e falar
deles não é o objetivo deste ensaio -, mas precisamos destacar que Grande Sertão:
Veredas se constrói em torno de um provérbio, que representa propriamente a sua
síntese: Deus escreve certo por linhas tortas, ou, melhor dizendo, Deus escreve reto
por veredas tortas. O problema de Riobaldo, portanto, poderia ser tomado como um
problema de fé: “todas as coisas já estão nos seus devidos lugares” – sugere o fiel
ideal; e se Riobaldo tivesse fé suficiente, tomaria o seu amor em seus braços e
descobriria que seu problema estaria resolvido – estaria resolvido porque sempre
estivera! – e presenciaria então o milagre da metamorfose do Jagunço Reinaldo em
uma formosa mulher.
O caminho de volta – o caminho do amor -, que orienta a obra de Guimarães
Rosa, contudo, não se revela apenas por meio de sublimes criações poéticas, como
as que temos buscado evidenciar: o tema do amor carnal é, notadamente, um tabu
para a civilização ocidental. Justamente por ser tabu, muito comumente se apresenta
na cultura associado ao gracejo, referido por meio dos chistes. Guimarães Rosa, por
óbvio, era muito sensível a esta realidade, que ganha significação especial nos
fenômenos de linguagem que compreendem o falar jocoso. Ademais, ao que nos
parece, Guimarães Rosa gostava de brincar...
4.1.2 O riso do menino, oculto por sob o verniz do diplomata
Em seu memorável ensaio sobre Tutaméia: Terceiras Estórias, publicado no
jornal O Estado de São Paulo, quatro meses após a morte de Guimarães Rosa, Paulo
Rónai, crítico que também houvera se tornado amigo pessoal do autor, faz uma
curiosa confissão; conta que, em seu encontro com o autor, quando também lhe foi
109
apresentado o original de Tutaméia, Rosa divertiu-se por tê-lo atraído a uma cilada e,
conta então o crítico, dispensou sua risada de menino grande (RONAI, 2009, p. 16,
grifos nossos). A propósito, no ensaio de Rónai, as Referências ao Rosa menino
totalizam três ocorrências.
No vigésimo nono conto de Tutaméia, “Rebimba, o bom”, o narrador busca
recompor suas memórias e situa, em suas mais antigas lembranças, a reminiscência
– talvez já algo esgarçada – da referência a um misterioso benfazejo, Rebimba, o
bom, cuja existência real é mesmo posta em dúvida pelo relato. A entidade, contudo,
será evocada pelo narrador em todos os momentos adversos de sua vida, quando,
sugere-nos o texto, seu favor talvez se tenha feito providencial. A prova da existência
de Rebimba será dada ao final do conto, quando, no relato de sua passagem pelo Rio-
do-peixe, o narrador diz haver descoberto que os festejos que vira pelo povoado
compreendiam as exéquias de seu misterioso benfeitor. A natureza insólita, quase
vertiginosa, do conto, “Rebimba, o bom”, não representa uma novidade se o
colocamos ao lado das demais narrativas de Tutaméia, igualmente insólitas. Alguns
traços sutis, contudo, podem nos conduzir a sentidos que convergem para a nossa
análise. Uma leitura minimamente atenta revelará a recorrência de marcas verbais
que sugerem a ideia de repetição no texto, dentre as quais destacamos o prefixo “re”,
cinco vezes repetido apenas no primeiro parágrafo, inclusive para compor
neologismos: recerto, realça, reclara, refiro, reconheço50 (ROSA, 2009, p. 183). O
segredo central de “Rebimba, o bom”, contudo, foi descoberto por Regina da Costa
da Silveira, quando a autora se dedicou à análise da composição do nome do
personagem:
O termo bimbar [...] pode ser interpretado em seu processo de derivação
prefixal, uma vez que é registrado no dicionário da língua portuguesa como
verbo e significa fazer com que uma coisa bata forte sobre outra; e, mais, o
substantivo bimba, sem o prefixo que originou o nome próprio “Rebimba”,
significa pênis de criança [...]. (2011, p. 173)
Rebimba, portanto, oculta o sentido de um movimento repetido que se faz com o pênis:
é, portanto, uma referência velada à masturbação. Tal referência, no que terá de
velada, compreenderá, com efeito, uma natureza jocosa, representa um influxo do
menino que se esconde no autor: “Ou para rir, da graça que não se ache, do modo do
50 A representatividade das recorrências só terá relevância, é claro, se tomado em conta o tamanho do
trecho em que ocorrem. Destacamos, assim, que o parágrafo em que o prefixo “re” se repete no conto,
na edição de Tutaméia, publicada pela editora Nova Fronteira, em 2009, compreende apenas seis
linhas.
110
que cabe no oco da mão, pingos primeiros em guarda-chuva.” (ROSA, 2009, p.
183, grifos nossos). O conto se fará marcar ainda por outras referências jocosas, de
natureza fálica, produtos de diferentes estratégias de construção de sentido,
empregadas pelo autor, como “Só se a gente tem dentro de si uma cobra grossa”
(ROSA, 2009, p. 186-187), ou ainda como o período composto de um único verbo,
“Refalo.” (ROSA, 2009, p. 187), além de outras referências sutis, que ganham sentido
em associações contextuais51.
O expediente que evidenciamos em “Rebimba, o bom” não representa um
evento isolado na obra de Guimarães Rosa, para a surpresa de leitores incautos que
associam o autor mineiro apenas a delicadas construções poéticas, referendadas pela
figura sisuda e reservada do autor diplomata a quem atribuem a equívoca ideia –
falamos, é claro, da ideia, e não do autor – de uma virtude moral e não o imaginam
capaz de cifrar mensagens que se dispõem no limite do vulgar. Essa espantosa
vulgaridade, é claro, se mostra ressignificada quando a atribuímos ao ímpeto de uma
rebeldia juvenil contra as tantas proibições do mundo adulto, ao típico gosto infantil
pela transgressão, ou, como bem se referencia no interior do Brasil, um gosto pelo
malfeito. Se, contudo, o expediente de cifrar obscenidades em um texto poético
constitui um evento raro, podemos, por outro lado, afirmar que Guimarães Rosa não
se encontra isolado nesta seara que compreende, de forma inequívoca – outra vez! –
o seu mentor no campo das artes, Johann Wolfgang von Goethe. A obra do poeta
alemão, diferente do que podem sugerir as suas projeções históricas, também se
encontra permeada de sutis referências sexuais de natureza grosseira que, contudo,
atenuam-se pelo que também guardam de jocosas, como podemos constatar nos
versos 844 e 845 do Fausto, por meio da fala de um estudante à porta da cidade: "A
51 A compreensão de que o conto “Rebimba, o bom” se constrói sobre uma referência jocosa à
masturbação, representada no próprio título, abre a possibilidade de uma análise, merecedora mesmo
de um trabalho de fôlego, que, naturalmente, ultrapassa os objetivos deste ensaio, mas que não nos
furtamos a destacar, na esperança de servir a uma pesquisa futura. Se o caráter burlesco da narrativa
é inegável, destaca-se, contudo, a temática da memória, que representa precisamente – queremos
sugerir - o tema do conto e compreende mesmo uma alusão evidente a um dos pensadores prediletos
do autor, o filósofo francês Henri Bergson, quando o narrador afirma: “Desde aí tive duas memórias.”
(ROSA, 2009, p. 183), posto que foi o pensador quem sugeriu, em sua obra capital, Matéria e memória:
ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, que dispomos de duas memórias, uma responsável
pelas lembranças e outra “que se deposita no corpo [...].” (BERGSON, 2010, p. 88). É Bergson,
portanto, quem afiançará a improvável relação entre a estrutura jocosa da construção do conto e o seu
tema, falamos respectivamente do tópico da masturbação e da temática da memória, visto que a
masturbação, nessa perspectiva, compreende um evento singular: integra um gesto, físico, corporal,
que, isolado em si mesmo, se revela despropositado, mas ganha sentido apenas em associação com
a memória, que aciona a imaginação e mesmo as lembranças.
111
mão que a vassoura aos sábados carrega / É a que, domingo, há de melhor acariciar-
te" (GOETHE, 2014, p. 89). Na segunda parte da tragédia, poderemos mesmo – e
também aqui! – encontrar uma referência jocosa à masturbação: “Cresce ela em
minha mão, reluz, cintila!”52 (GOETHE, 2011, p. 151). Também identificamos, na obra
de Goethe, construções ainda mais sutis, posto que compreendem mesmo uma
singularíssima semiose, na medida em que sugerem, de forma apurada, e por meio
de construções verbais, gestos que se revestem sentido, no nosso caso, em particular,
revestem-se de sentido obsceno, como no gesto incógnito de Mefistófeles, apontado
no texto secundário da tragédia, que ficará mesmo a cargo da imaginação do leitor:
“E pôr termo à intuição potente... / (Com um gesto obsceno) / não me pergunte de
que jeito.” (2014, p. 280, grifos nossos). Na obra de Rosa, também encontraremos
construções sutis que sugerem, de forma velada, gestos obscenos, como podemos
ver no que chamamos a falofória rosiana, a novela “Buriti”, por meio da fala do Chefe
Zequiel em referência ao viril iô Liodoro:
e disse, a Miguel e nhô Gualberto Gaspar, indicando iô Liodoro: — “Duro,
duro...” Fazia um gesto de sacudir mão, de sova bem dada, e ele mesmo
dizia e se respondia: — “Duro, duro? — Dém-dém!” O que podia não ter
significação. Mas o Chefe admirava iô Liodoro. (2001, p. 173, grifos nossos)
De forma similar à referência ao gesto de Mefistófeles, também podemos identificar
na novela “A estória de Lélio e Lina” um incógnito gesto que sabemos obsceno pela
associação ao verbo descascar, expresso no trecho pela corruptela “cascar”, e pela
adjetivação do narrador que o toma por feio: “Mas o Canuto só se virou um momento,
cascou para o Pernambo o feio gesto, e tocou de seguida as suas altas ave-marias.”
(ROSA, 2001, p. 222-223, grifos nossos). Lembramos também que os versos,
derivados da canção de Siruiz - que serão, inclusive, adotados pelo bando de Riobaldo
como uma canção de guerra -, sem prejuízo de todas as sutis reminiscências que
evocam no espírito do ex-jagunço, também estão investidos de um sentido obsceno,
que tantas vezes divertiu os jagunços na travessia do sertão: “Olererê Baiana... Eu ia
/ e não vou mais... Eu faço / que vou / lá dentro, ó Baiana: e volto / do meio p’ra trás!”
(ROSA, 2001, p. 673)
52É a tradutora de Goethe, Jenny Klabin Segall, quem denuncia, em nota às páginas 150 e 151 da
edição de 2011, publicada pela Editora 34, que a chave, referenciada no verso anterior, “Vês esta
chave? Toma-a!” (p. 150), chave esta que, mais tarde, irá crescer, reluzir e cintilar na mão de Fausto,
representa um símbolo fálico.
112
As referências jocosas, de cunho sexual, são numerosas na obra de Guimarães
Rosa e, por vezes, tão sutis, que preferimos deixar a cargo de seus leitores a
catalogação de suas incontáveis ocorrências e queremos deixar também a seu
encargo a decisão sobre as possíveis intenções picarescas do autor. Não queremos,
contudo, nos privar de um último exemplo, especialmente pelo que ele compreende
de sutil e complexo53. A narradora do conto “Esses Lopes”, de nome Flausina,
representa outro exemplo singular do que chamamos mulheres desfocadas na obra
de Guimarães Rosa, e o desajuste do foco narrativo já se faz notar pelo título, que
referencia os Lopes em detrimento de um protagonismo que é, notadamente, dela:
inegável heroína da Narrativa. A tragédia de Flausina terá início com seu casamento
com Zé Lopes, o primeiro d’esses, segundo a narradora, contra a sua vontade. A
viuvez precoce, com a morte do primeiro Lopes, contudo, não representará a
libertação de Flausina, que se verá constrangida a casar-se, sucessivamente, com
cada um dos parentes: Nicão, Sertório, Sorocabano... Ofendida pela brutalidade de
tantos homens, Flausina desenvolverá uma odiosa aversão a tudo o que simboliza e
representa os homens e a masculinidade. As referências são veladas, sutis, e
sugerem mesmo que a protagonista matou alguns de seus maridos Lopes, ou
abreviou a morte de outros, fosse por um gradual envenenamento, fosse pela adoção
de uma dieta que ela sabia insalubre para um deles. Destacamos, contudo, uma
referência aparentemente despretensiosa à paciência de Flausina: “E o governo da
vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, custoso que nem guardar chuva em
cabaça, picar fininho a couve.” (ROSA, 2009, p. 84, grifos nossos). A suposta
referência à paciência necessária para que a hortaliça seja cortada de forma bastante
fina também oculta, contudo, um sentido jocoso, de natureza sexual: no interior do
53 Parece-nos necessário explicitar o que pode ser considerado uma falta em nosso trabalho: não
fizemos referências à novela “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)” que compreende em seu título um
espelhamento e é, ela própria, também um espelhamento da novela “Buriti”, ao lado da qual compõe a
epopeia erótica das Noites do Sertão de Rosa: a musa de “Lão-Dalalão”, de sua parte, também
representa um espelhamento do herói de “Buriti”, ela, mulher, Doralda, adorada; ele, homem, Liodoro,
lhe adoro, ambos, exemplos singulares do máximo afloramento da sexualidade. Se até agora deixamos
“Lão-Dalalão” de fora de nossa análise, foi justamente porque, diferente dos exemplos relacionados,
as referências eróticas da novela se revestem de um caráter de grande severidade, não estão dotadas
do tom jocoso que referenciamos em nossa análise, portanto. Há, contudo, uma característica da
novela que representa uma rara ocorrência da semiose a que nos referimos neste tópico de nosso
ensaio, falamos da descrição da corte amorosa dos dois personagens centrais. A novela, “Lão-Dalalão”
compreende um fortíssimo teor erótico, mas, no entanto, nenhuma palavra do campo semântico da
sexualidade é referenciada no texto, e o autor se vale de uma técnica desconcertante para sugerir, por
meio de sutis referências aos movimentos dos personagens e às posições dos corpos, as práticas
eróticas que acontecem na alcova de Doralda e Soropita.
113
Brasil, para que a couve seja picada de forma fina, enrolam-se as folhas de modo a
formar um cilindro que uma mão segura com firmeza enquanto a outra maneja a faca
para os cortes: compreende, portanto, o mesmo gesto adotado na cultura popular para
simbolizar a castração, o que representaria, com efeito, na narrativa, uma síntese da
liberdade almejada por Flausina, uma mulher oprimida pelos homens.
Sugerimos, mais de uma vez, neste tópico de nosso trabalho, que as
obscenidades e demais referências jocosas de cunho sexual podem surpreender um
leitor habituado a atribuir ao autor, Guimarães Rosa, o caráter de uma escrita amena,
no que terá de lírica e sublime, ou mesmo da inocência que comumente se atribui à
vida sertaneja. Tentamos, também, apresentar exemplos que sustentassem nosso
ponto de vista, mas buscamos, contudo, não exaurir nosso leitor com exemplos
numerosos e sugerimos mesmo que cada leitor experimente o texto de Guimarães
Rosa por essa perspectiva pouco conhecida. As referências cifradas sobre o amor e
a sexualidade, contudo – e como seria de se esperar! -, representam apenas uma das
facetas do enigma do amor na obra do autor. Guimarães Rosa, naturalmente, também
ocultou em seus textos referências ao amor que aspiraram ao sublime; dentre elas, o
próprio velamento do nome do amor, cifrado em enigma.
4.2 O NOME (OS NOMES) DO AMOR – A PALAVRA CIFRADA
A construção dos personagens de Guimarães Rosa, bem como a tipificação
adotada pelo autor, compreende um estatuto próprio que interessa a este trabalho,
especialmente no que esta tipificação encerra de sentidos velados. Os sentidos
ocultos pela caracterização dos personagens de Rosa, como seria de se esperar de
uma obra poética tão complexa, não se resumem ao conjunto das características de
cada personagem, antes, constituem-se a partir dos traços pessoais de cada um e,
muito especialmente, dos jogos de relações que se estabelecem entre todos eles. Os
personagens, portanto, se caracterizam pelo que tem de específico e, também – e a
exemplo do modelo próprio da linguística sincrônica – pelo que representam – pelo
que valem! - em oposição aos seus pares.
Dissemos, no capítulo anterior de nosso trabalho, que os personagens de
Guimarães Rosa, todos, submetem-se a uma experiência de aprendizagem, dissemos
também que a aprendizagem sugerida pela criação do autor compreende uma
dimensão moral que, pelo que tem de subjetiva, torna-se esquiva para a consagrada
114
metodologia acadêmica. Dissemos ainda que o senso comum, de sua parte, não
encontra qualquer constrangimento para lidar com a ideia de um ente que evolui. Há,
contudo, um modelo literário em que podemos nos amparar para tratarmos do devir
experimentado pelos personagens de Rosa: as crianças, as mulheres e os homens
criados pelo autor trilham um caminho de ascensão espiritual. Podemos então apontar
um primeiro traço do estatuto criado por Rosa para situar os seus personagens:
quando dispostos em uma condição média, ou, quando se dispuserem ao meio da
travessia, os personagens serão proporcionalmente mais densos, é o caso, por
exemplo, de Riobaldo, especialmente quando situado no tempo de sua narrativa, ou
seja, em seu passado, quando praticou o jaguncismo. A densidade a que nos
referimos se relaciona diretamente com o assunto do capítulo anterior, a saber, o
enigma da individuação, uma vez que é o desapego do eu o que tornará os
personagens cada vez mais leves. Assim, lembramo-nos de Hermógenes, assinalado
pela densidade do mercúrio, e mesmo do paradoxo das contradições do eu em si, o
personagem Mechéu, cujo nome – citado apenas uma vez no conto - também
compreende um despistamento do autor: Hermenegildo – Hermes – mercúrio. A
ascensão espiritual dos personagens de Rosa, por outro lado, contribuirá por extrair-
lhes a densidade: eles se tornarão, assim, e de diversas formas, segundo as
estratégias próprias da poética do autor, mais diáfanos. É o caso do grande modelo
para os jagunços em Grande Sertão: Veredas – falamos aqui de Joca Ramiro. O
grande líder sertanejo será permanentemente citado e lembrado ao longo da narrativa,
sua presença, contudo, será sempre diáfana, algo vaporosa, exceto por algumas
rápidas aparições, mesmo furtivas – Riobaldo rememora súbitas aparições do bando
de Joca Ramiro, em meio à madrugada, no tempo de sua juventude – em que o
narrador do livro poderá divisá-lo por instantes, de forma oblíqua, à meia luz. Há, é
verdade, uma exceção relevante que, antes de refutar a nossa ideia, irá, na verdade,
reforçá-la por contraste: podemos dizer que Joca Ramiro torna-se denso em um único
momento da narrativa de Grande Sertão: Veredas, momento em que o personagem,
parece-nos, se encarna, que, de forma inequívoca, dispõe-se precisamente ao centro
– no meio – do livro: a cena do julgamento de Zé Bebelo. A presentificação do líder
Jagunço está revestida de uma dramaticidade bíblica que, a se considerar o grande
julgamento que se aproxima, reveste-se mesmo de ares apocalípticos: Joca Ramiro
introduz-se montado em um imponente cavalo branco -, aponta mesmo para o
arquétipo de um cristo sertanejo que já se encontra na iminência de ser assassinado
115
à traição. Joca Ramiro, contudo, não é o personagem mais imaterial de Grande
Sertão: Veredas, há, queremos sugerir, um personagem ainda mais refinado do que
ele e que, por isso mesmo, assume também um caráter mais esgarçado, um
personagem sempre lembrado, sempre citado – quase sempre por meio do discurso
indireto, à exceção de três ou quatro frases dispersas ao longo do livro -, mas que
nunca se presentificará, o guia espiritual de Riobaldo, compadre meu Quelemém.
Situamos, por fim, nesse mesmo polo virtuoso, o modelo ideal de Tutaméia – e do
autor, Guimarães Rosa! -, o patrão de Ladislau, Seo Drães, também referenciado,
lembrado, mas que não aparece em nenhuma cena narrada, a quem não se atribuem
ações específicas, a quem não se imputa nenhuma fala ou pensamento.
A identificação desta categoria que chamamos o polo virtuoso da hierarquia
dos personagens de Guimarães Rosa, que compreende seus personagens mais
refinados - que, por isso mesmo, se apresentam de forma mais translúcida, subtraídos
de seu peso narrativo -, evidenciará outro traço característico da forma como o autor
tipifica seus personagens: se está claro o polo em que se dispõem as figuras mais
elevadas em sua ascensão espiritual, se está clara a disposição de Riobaldo e
Ladislau ao centro da travessia, se podemos mesmo situar, de forma intermediária,
personagens que se encontram muito à frente de Riobaldo e seus pares médios, como
é o caso de Zé Bebelo e Diadorim, não há uma hierarquização clara do lado maligno
da balança moral de Rosa, de forma que podemos apenas imputar a este lado os
personagens que, de forma arquetípica, encarnam modelos francamente grosseiros,
viciosos, maus, como é o caso de Hermógenes, Ricardão e Mechéu.
Apontamos ainda outra estratégia repetidamente utilizada por Guimarães Rosa
para tipificar seus personagens: a adoção de modelos pitorescos, de arquétipos
morais - virtuosos ou viciosos -, permitirá ao autor tramar despistamentos, de forma
que serão elaboradas estratégias de construção dos sentidos que, não raras vezes,
confundirão o leitor, de forma propositada, para proporcionar-lhe uma surpresa ao final
da narrativa. Falamos das tantas vezes em que Rosa atribuiu uma falsa aparência
maligna aos personagens responsáveis, ao final da trama, por proporcionar a saída
esperada para os conflitos do enredo, ou mesmo das vezes em que o autor trabalhou
por despistar as virtudes que levariam um personagem, no momento apropriado, a
apresentar-se como herói. Podemos observar esse expediente no conto “A estória do
homem do pinguelo”, que integra a obra póstuma Estas Estórias, narrativa que,
116
ousamos dizer, representa um capítulo singular da literatura brasileira, seja pela rara
ocorrência do narrador comentador, que se coloca ao lado do narrador principal, seja
pela surpreendente reviravolta que o autor imprimirá ao conto - talvez por colocar-se
no limite da racionalidade, ou, talvez, ainda, por ser demasiado simples, e, ainda
assim, inesperada -, de forma que a verossimilhança fica mesmo a cargo do gênio
poético do autor. O conto narra o admirável encontro entre Seo Cesarino e Pedro
Mourão, ambos tomados por tragédias pessoais que os dispõem em uma condição
limite: Seo Cesarino está endividado, é dono de uma venda decadente a que os
clientes já não mais visitam e cujo estoque de produtos - avariados por uma enchente
- já não tem nenhum valor para o dono; já Pedro Mourão, viajava com um gado e é
surpreendido por uma seca intensa, as reses emagrecem, morrem às dezenas pelo
caminho, todo o rebanho está sob risco. O problema de Seo Cesarino, contudo, já
haverá sido apresentado ao leitor quando, ao meio da narrativa, Pedro Mourão
introduz-se quase como um elemento externo, Deus ex machina; a apresentação do
personagem, contudo, será digna de nota... O narrador apresenta-o de forma
depreciativa, atribui-lhe um comportamento indolente, destaca com desprezo seus
atributos físicos, logo após associá-lo à imagem da morte assinalada sobre o gado
moribundo:
Era mas um dono homem, que vinha na culatra, sujeito de cara de luas,
desabado posto o chapelão. É ver que pitava, cigarro de palha, o cigarro
comprido fora de costume. Vinha sobre um burro dourado, mulo grande,
gordo feito o cavaleiro. O pró de parecer, deles dois, se sobressaía ainda
mais estúrdio, no frisfruz de movimentos daquela mazela de mau gado – que
se ia para o não adiar, por não-onde. (ROSA, 2001, p. 170).
Mais adiante, após um sobressalto de medo, o narrador projetará em Pedro Mourão
a própria imagem d’o maligno....
Simples, que o senhor gordo, que era o boiadeiro próprio, se apeou do burro,
e foi se sentou direto na beira do barranco, debaixo de um pau-d’óleo de
outroras sombras ramalhudas. Assim, todo capitão, chupando seu cigarro,
dele, de palha, seja-me Deus válido. Semelhava o Pitôrro... (ROSA, 2001,
p. 170, grifos nossos)
Assim, o personagem, que se introduz em meio ao desprezo por sua aparência, que
fuma de forma estranha e se assemelha a uma aparição do diabo – em um lugar ermo,
assinalado pela morte, sentado em um barranco, sob uma árvore de antigas espessas
sombras (seja lá o que isso for!) -, esse personagem, dizíamos, será justamente o
responsável pela reviravolta que resultará na solução dos problemas dos dois
117
personagens centrais: Mourão dirige-se à venda decadente de Seo Cesarino e, de
forma surpreendente, reconhece o seu valor, também atribui valor ao estoque de
produtos estragados e propõe, então, um negócio inimaginável: a troca de seu gado
moribundo pela venda arruinada de Cesarino. Os homens então decidem trocar de
problemas, granjeiam, assim, duas extraordinárias soluções. Destacamos ainda com
brevidade um segundo exemplo do mesmo expediente de confundir o leitor, em suas
expectativas, sobre o papel que representarão os personagens apresentados por
Guimarães Rosa, exemplo presente no mesmo livro, agora, no conto “O dar das
pedras brilhantes”: o autor introduzirá o personagem Sr. Tassara, também intitulado
Senador, sob um ar algo pedante, associado a demasiadas provisões; homem que
enuncia, por vezes, excessivo apreço pela lei. O personagem que se constrói de forma
repulsiva se revelará, contudo, virtuoso, quando, mais à frente, o desenvolvimento da
narrativa der a conhecer o seu real papel no enredo.
O estatuto segundo o qual Guimarães Rosa tipifica seus personagens, estatuto
esse a que nos dedicamos até agora, neste tópico, mostra-se inegavelmente
adequado à temática geral deste ensaio, interessado nos enigmas tramados pelo
autor, Guimarães Rosa, e no sentido que os enigmas literários podem representar
para a arte, mas talvez pareça inadequado para a análise específica que
desenvolvemos nesse tópico, quando ainda investigamos os enigmas do amor.
Precisávamos, contudo, deste longo desenvolvimento preliminar para retomar o ponto
de nosso interesse, o que fazemos agora. Os nomes dos dois personagens de Estas
Estórias que colocamos em destaque têm a mesma matriz: Mourão / Moura. No que
respeita ao segundo, Guimarães Rosa, inclusive, ocultou esta informação de seu leitor
ao longo de toda primeira parte do conto e só revelará, após quase três páginas depois
de sua aparição na narrativa, que o Senador se chama Moura Tassara. Há, com efeito,
algo no nome dos personagens que reclama nossa atenção, mas precisamos reforçar
nosso argumento com uma extensa lista de personagens, todos eles virtuosos, que
cumprem papéis importantes nas narrativas de Guimarães Rosa. Semelhanças
morfológicas ou mesmo fonéticas não serão meras coincidências. Seremos breves:
1. O dono do herói do conto “O burrinho Pedrês”, em Sagarana, o mítico burrinho
que dá nome à narrativa, é o Major Saulo, homem que, diferente de todos os
demais, reconhece o valor do animal já idoso;
118
2. No conto “Sequência”, que integra o livro Primeiras Estórias, o encontro
amoroso, conduzido pela vaquinha que foge durante toda a narrativa,
acontecerá nas terras do também Major Quitério;
3. O grande líder jagunço de Grande Sertão: Veredas, diáfano no que terá de
refinado em sua evolução espiritual, é Joca Ramiro;
4. O amor que se apresentou em horinhas de descuido para Domenha em “Barra
da Vaca”, quinto conto de Tutaméia, revelou-se na figura de Jeremoavo;
5. O amante sofredor de “Curtamão”, sétimo conto de Tutaméia, atende pelo
nome de Armininho, Armino, portanto;
6. O paciente amante de Nhemaria, em “Reminisção”, Tutaméia, por cujo amor a
grosseira mulher será redimida, chama-se Romão;
7. O inominado cavalo branco de “Retrato de Cavalo”, Tutaméia, cobiçado pela
beleza e pelo misterioso poder que encerra, pertenceu a Nhô da Moura, único
homem a quem obedeceu com docilidade;
8. O herói vaqueiro que protagoniza a terceira narrativa de Estas Estórias é o
Vaqueiro Mariano;
9. O responsável pela mudança do trágico destino de Seo Cesarino em “A estória
do homem do pinguelo” é Pedro Mourão;
10. O personagem responsável por pacificar a região de garimpo para a qual fora
enviado, em “O dar das pedras brilhantes” é Moura Tassara.
Os dez personagens relacionados são apenas os que conseguimos reunir nesta altura
de nosso trabalho e certamente não esgotam o expediente que intentamos
demonstrar. Os nomes que listamos, todos, compreendem anagramas da palavra
amor: M2A1JO3R4, RA1M2IR4O3, JER4EM2O3A1VO, A1R4M2INO3, R4O3M2Ã1O,
M2O3UR4A1, M2A1R4IANO3, M2O3UR4Ã1O.
O amor é, portanto, um enigma cuja designação Guimarães Rosa buscou cifrar
nos nomes de muitos dos seus principais personagens, e, muito especialmente, nos
nomes daqueles responsáveis por cumprir um papel de natureza amorosa que,
inclusive, compreendem o amor em muitas de suas concepções, seja ele romântico,
ou uma variante que o transcenda. Nosso leitor talvez tenha atentado para a falta de
um nome, um dos mais importantes, que, por suas peculiaridades, precisamos tratar
em especial.
119
4.2.1 O nome do amor de Riobaldo: A palavra mágica54
Nossa extensa lista de personagens importantes, que compreendem
anagramas da palavra amor em seus nomes, deixou de fora um de seus principais
representantes, falamos do grande amor de Riobaldo, o jagunço Diadorim, que
também encerra em seu nome a palavra amor de forma cifrada:
D I A1 D O3 R4 I M2.
Diadorim, com efeito, também pode ser entendido(A) como outro paradigma do
enigma literário na obra de Guimarães Rosa, como se poderia mesmo deduzir da
célebre confissão de Riobaldo: “Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 2001, p. 50) -,
representa um velamento, mas dispõe o jagunço amado na condição média que
descrevemos para o estatuto do enigma: é um velamento da visão, mas não
representa uma obliteração completa -, de modo que Riobaldo poderia ainda afirmar,
de forma diferente: Diadorim é o meu enigma.
A envolvente narrativa de Riobaldo, contudo, tantas vezes poderá conduzir a
sutis despistamentos, que, a despeito de serem sutis, poderão resultar na perda do
foco de sentidos mesmo essenciais. Dissemos, já mais de uma vez, neste ensaio, que
o grande conflito de Riobaldo, sem prejuízo de todos os outros problemas que o
envolviam, era mesmo o seu amor por um colega de bando, um jagunço do mesmo
sexo. Entendemos também que, no plano do enredo, a identidade de Diadorim é o
enigma central de Grande Sertão: Veredas. Sobre o amor de Riobaldo por Diadorim
e sobre a identidade secreta do ser amado, queremos destacar especialmente dois
pontos em particular, o primeiro, que comumente escapa a todos os leitores,
justamente por compor uma estratégia de despistamento construída pelo autor,
Guimarães Rosa; e o segundo, que sugere uma interpretação que, curiosamente, tem
escapado aos olhos da crítica por 65 anos e pode mesmo suscitar a necessidade de
reformulações importantes nas formas como temos recebido o romance de Rosa.
As repetidas referências de Riobaldo ao nome de Diadorim, especialmente
quando do relato de ações coletivas de seu bando, conduzem o despistamento dos
leitores a que nos referimos, leitores que, muito naturalmente, tantas vezes não
tomam em conta que Riobaldo fala do passado e que seu relato para o doutor que o
54O tema deste tópico já se coloca na fronteira do nosso próximo capítulo, quando trataremos do
enigma da linguagem. Escolhemos, contudo, situar a abordagem aqui, pelo que o objeto do tópico tem
de mítico (se situado na esfera da linguagem) e, naturalmente, por ainda relacionar-se com a tópica do
amor.
120
visita não é mera transcrição das falas do passado. Talvez não tenhamos sido
suficientemente claros e, por isso, vamos direto ao ponto: Riobaldo refere-se ao seu
jagunço amado com o nome Diadorim, mas este era chamado por seus companheiros,
exclusivamente, de Reinaldo, pois o nome, Diadorim, era um segredo confiado a
Riobaldo:
– “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que
esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade.
Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não
me perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas –
se diz. A vida nem é da gente...” (ROSA, 2001, p. 207)
Diadorim relembra então o seu primeiro encontro com Riobaldo, e, após uma aparente
hesitação, faz a sua confissão:
– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda este meu
segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você
deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...” (ROSA, 2001, p. 207, grifos
nossos)
As repetidas referências ao nome de Diadorim, dizíamos, muito naturalmente poderão
nos fazer esquecer que esse tratamento era exclusivo de Riobaldo, o que poderá
mesmo representar um susto para o leitor, já ao fim da narrativa, quando, tomado de
nervosismo, Riobaldo, pela primeira vez, quebrar acidentalmente sua promessa. Às
portas da iminente batalha final, Diadorim advertirá duramente Riobaldo por sua
disparatada decisão de abandonar o bando e seguir o rastro de uma imprecisa
informação sobre o paradeiro de Otacília, cena presenciada pelos Jagunços Alaripe e
Quipes, designados para acompanhar o líder em sua temerária missão. O narrador
de Grande Sertão: Veredas, contudo, notadamente em sua fase de Urutu-Branco,
torna-se especialmente cioso de sua autoridade sobre o bando; desconcertado pelo
testemunho de seus liderados, deixa então escapar: “– Diadorim é doido... – eu disse.”
(ROSA, 2001, p. 700) -, com um sobressalto, no entanto, perceberá então que houvera
traído seu amigo: “Todo me surripiei, instanteante: tanto porque ‘Diadorim’ era nome
só de segredo, nosso, que nunca nenhum outro tinha ouvido.” (ROSA, 2001, p, 700).
Há, contudo, um aspecto surpreendente, especialmente no que encerra de
singelo, que queremos destacar sobre o segredo de Diadorim, que representa a
trágica condução da mão do destino sobre seu amor. Queremos destacar que durante
toda a sua vida ao lado de Diadorim, Riobaldo apenas ouviu o nome secreto de seu
companheiro, o que não é um fato de pouca relevância. Dizemos mais, Riobaldo talvez
tenha ouvido o nome de seu companheiro apenas uma única vez em toda a sua vida:
no momento da confissão de Diadorim, ficando a seu próprio encargo – ele, o
121
interlocutor de Diadorim - o papel de repeti-lo todas as outras vezes em que o nome
foi pronunciado. Destacamos também que Riobaldo leu o nome de Diadorim pela
primeira vez após a sua morte, quando foi a Os-Porcos, outra vez ladeado pelos não
mais jagunços Alaripe e Quipes, em busca de resgatar o passado de Diadorim.
Fracassa na tentativa de recobrar a história de sua amada, mas de lá traz a sua
certidão de batismo, onde consta o nome: Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins.
Diadorim, portanto, é uma corruptela do nome real, Deodorina. Sabemos, assim, que
quando o jagunço Reinaldo se confessou a Riobaldo, este ouviu Diadorim. Queremos,
contudo, fazer a pergunta indispensável: Riobaldo ouviu Diadorim, quando Maria
Deodorina lhe disse seu nome, mas que nome, de fato, ela lhe falou? Se seu nome
era Deodorina, por que razões ela o comunicaria Diadorim? Algumas passagens da
obra sugerem mesmo a amargura de Riobaldo pela descoberta, tardia, de um trágico
desencontro, associada ainda à tristeza de Diadorim, por não ser correspondida em
seu amor:
Diadorim persistiu calado, guardou o fino de sua pessoa. Se escondeu; e eu
não soubesse. Não sabia que nós dois estávamos desencontrados, por
meu castigo. Hoje, eu sei; isto é: padeci. O que era uma estúrdia queixa, e
que fosse sobrosso eu pensei. Assim ele acudia por me avisar de tudo, e
eu, em quentes me regendo, não dei tino. Homem, sei? A vida é muito
discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras
todas do Cão, e as vertentes do viver. (ROSA, 2001, p. 625)
Perguntamo-nos então: qual foi o real aviso dado por Diadorim a Riobaldo, para o qual
ele não atinou? Respondemos, antes, nossa pergunta anterior, sobre a confissão de
Diadorim, que, naturalmente, também responde essa segunda pergunta: Riobaldo
ouviu tragicamente o nome Diadorim, nome que seguiu repetindo incorretamente ao
longo da vida, mas sua amada lhe disse: “o meu nome, verdadeiro, é Deodorina”.
Muito já discorreu a crítica sobre a ambiguidade do nome Diadorim, associada
à tipologia do andrógino: Diadorim é, sim, um nome que preserva a ambiguidade de
gênero; Deodorina, definitivamente, não. Assim, a confissão de Diadorim a Riobaldo
era muito mais do que um mero pacto de amizade. Diadorim confessou, por meio do
nome secreto, o seu grande segredo a Riobaldo; disse-lhe: eu sou mulher. O ciúme
de Diadorim, tantas vezes referido na narrativa, ganha novos contornos, fica
ressignificado: por que Riobaldo revelava tanto apreço por Otacília ou Nhorinhá e
tanto desprezo por ela, a despeito de toda indubitável afeição que havia entre eles?
Como Riobaldo poderia feri-la tanto com suas explícitas – e insensíveis - referências
às outras mulheres?
122
Diadorim – ou Deodorina -, portanto, é o nome mágico, a palavra encantada
que encerra o poder de transformar o rude corpo do jagunço Reinaldo no cândido
corpo da princesa sertaneja, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. O nome, com
efeito, guarda em si um enigma, como o enigma próprio da escritura, apontado por
Derrida (1991) – curiosamente o mesmo “A” de sua différance: Diadorim – Diadorima
– Deodorima – Deodorina. Derrida aproxima o “A” da différance à forma de uma
pirâmide: a casa dos mortos; Riobaldo só descobre a sua tragédia diante do corpo
morto de sua amada; a marca da escritura – que poderia salvá-lo! – só virá depois, na
matriz de Itacambira, repleta de mortos.
4.3 OS (DES)LIMITES DO AMOR
"Tocar o corpo de uma mulher é tocar o céu"
(Novalis)
Desacorçoado pela perda de seu amor, atordoado pela descoberta de seu
grande segredo, Riobaldo adoece. Ficará então aos cuidados de alguns dos seus
mais fiéis companheiros, fragmentos de um passado já extinto, que buscam encontrar
uma nova ordem no mundo que se abre no sertão, o mundo pós-jaguncismo. A
duração dos eventos narrados é imprecisa, confusa, de modo que, parece, até o
tempo se dissolve. Riobaldo experimenta no corpo o alvoroço de um cosmo que se
encaminha para uma nova ordem: delira, sente febres – efeitos persistentes da
dissolução alquímica que tivera início durante a batalha do paredão. Dissipa-se sua
neblina e a Riobaldo é dado ver a clareza de um mundo a que falta a imagem de
Diadorim. O amor perdido, então se dispersa, pulveriza-se; o ser amado,
desaparecido do mundo, passa então a ser encontrado em todo lugar: Riobaldo
comunga com a natureza, passa a reconhecer as formas de Diadorim nos contornos
de seu sertão:
Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas-
Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse
receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu
pensei, o pobre de mim. Eu queria me abraçar com uma serrania? (ROSA,
2001, p. 740, grifos nossos)
Para o homem ferido de amor, os limites que separam o corpo perdido e o cosmo se
esgarçam, “Chapadão. Morreu o mar, que foi.” (ROSA, 2001, p. 741), o ser amado se
recupera no delineado dos montes, nas águas, nas plantas: “Namorei uma palmeira,
123
na quadra do entardecer...” (ROSA, 2001, p. 741). Riobaldo não está só, antes,
mesmo aqui, encarna um ideal romântico que apenas reverte o consagrado
sentimento de comunhão com a natureza que se experimenta por meio da
contemplação do corpo nu do ser amado (PAZ, 1994, p. 85), concepção segundo a
qual “o corpo da mulher era um microcosmo e em suas formas se fazia visível a
natureza inteira com seus vales, colinas e florestas” (PAZ, 1994, p. 82). O amor, assim,
está imbuído de uma propriedade mesmo transubstanciadora: “o corpo se torna voz,
sentido; a alma é corporal. Todo amor é eucaristia.” (PAZ, 1994, p. 113).
Para Octavio Paz, o borramento dessas fronteiras compreenderia ainda uma
dimensão mais ampla, posto que a própria origem da concepção do amor comportaria
a noção de uma filiação dos homens com o universo, que se sugere, por exemplo,
pela “semelhança, o parentesco entre a montanha e a mulher ou entre a árvore e o
homem” (1994, p. 193). Assim, para o autor, “O amor pode ser agora, como o foi no
passado, uma via de reconciliação com a natureza. Não podemos nos transformar em
fontes ou árvores, em pássaros ou touros, mas podemos nos reconhecer em todos
eles.” (1994, p. 193), concepção que pode ser compreendida como uma leitura da
noção de analogia, proposta pelo mesmo autor:
A crença na analogia universal é tingida de erotismo: os corpos e as almas
se unem e se separam regidos pelas mesmas leis de atração e repulsão que
governam as conjunções e disjunções dos astros e das substâncias
materiais. Um erotismo astrológico e um erotismo alquímico [...]. (PAZ, 2013,
p. 75)
A poesia de Rosa, contudo, sublima o páthos de Riobaldo em um produto muito mais
complexo: as palavras animam o mundo e proclamam a extinção de todas as
fronteiras – Eros adentra a alcova e o mundo fica ao alcance da mão: “Abracei
Diadorim, como as asas de todos os pássaros” (ROSA, 2001, p. 69) -, assim, o abraço
que não houve se dá com asas de pássaros, que, com efeito, são todos os pássaros,
e já compreende em si a liberdade do amor e o voo que leva o ser amado para longe,
sempre e continuamente.
Os influxos da liberdade própria do amor, que suprimem as fronteiras entre o
sujeito e o objeto, também fazem sentir os seus efeitos para aquém da experiência
exterior, dado que “o amor é uma transgressão tanto da tradição platônica como da
cristã. Traslada ao corpo os atributos da alma, e este deixa de ser uma prisão. O
amante ama o corpo como se fosse alma e a alma como se fosse corpo.” (PAZ, 1994,
p. 116). O amor, assim, favorece uma singular experiência de completude, “atravessa
o corpo desejado e procura a alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteira.”
124
(PAZ, 1994, p. 34); contudo, especialmente no que terá de enigmático, conforma-se
segundo uma natureza francamente ambígua: identifica-se com a essência humana,
com o espírito, mas não prescinde da materialidade do corpo:
O amor é amor não a este mundo, mas sim deste mundo; está atado à Terra
pela força da gravidade do corpo, que é prazer e morte. Sem alma – ou como
queira se chamar a esse sopro que faz de cada homem e de cada mulher
uma persona – não há amor, mas tampouco ele existe sem corpo. Pelo corpo
o amor é erotismo e assim se comunica com as forças mais vastas e ocultas
da vida. Ambos, o amor e o erotismo – dupla chama – se alimentam do fogo
original: a sexualidade. Eles voltam sempre à fonte primordial, a Pã e a seu
alarido que estremece a selva. (PAZ, 1994, p. 185)
O amor, portanto, amarra em si as suas próprias contradições – os seus enigmas –, a
espada mortal que oculta por entre as suas macias plumagens (GIBRAN, 2012), a sua
afinidade secreta com a morte: “O significado da metáfora erótica é ambíguo. Melhor
dizendo, é plural. Diz muitas coisas, todas diferentes, mas em todas elas aparecem
duas palavras: prazer e morte.” (PAZ, 1994, p. 19). Octavio Paz considera mesmo que
“o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte.”
(1994, p. 117), Heidegger, de sua parte, considera que se a vida e a morte são
contrários, “o contrário é o que mais intimamente se atrai para o que contraria” (1998,
p. 32), e evoca a figura da deusa, Ártemis, portadora do arco e da lira, síntese das
ambiguidades. A imagem do amor – da vida –, que compreende em si sua parcela de
morte é, conforme o entendemos, um modelo estruturante na obra de Guimarães
Rosa, podemos vê-lo mesmo no misterioso - quase incompreensível - mote que
Riobaldo repete ao longo de toda a rememoração de sua vida, mote que o autor
planejou mesmo inscrever no próprio título de seu romance55: o diabo na rua, no meio
do redemoinho -, e apontava, de forma enigmática, para a cena fatal de toda a vida
do líder Jagunço: a imagem do luminoso Diadorim atado ao obscuro Hermógenes pelo
abraço da morte, ambos rodopiando em plena rua, cada um com o seu punhal cravado
no corpo do outro. É o rodopio do redemoinho, imagem síntese, que compreendemos
- pela narração dos fatos - como um desenho verbal do Tao, tão caro ao autor.
O enigma de um amor que oculta em seu interior um assinalamento da morte
configura, portanto, um binômio essencial para a poética de Rosa, fundamental,
também, para a pedagogia do autor: Riobaldo, em sua metamorfose final, precisará
passar pela dura prova da morte; as condições necessárias para essa travessia,
55A capa da edição de Grande Sertão: Veredas, publicada pela editora Nova Fronteira, em 2001,
apresenta o fac-símile de um original do autor que ainda apresentava o título provisório: “Veredas
mortas” -, e subscrevia o mote de Riobaldo, “O diabo na rua, no meio do redemoinho”, como subtítulo.
125
contudo, serão dadas antes, justamente por uma imprescindível experiência de amor.
Assim também acontece como o personagem que elegemos como o paradoxo do ego:
o denso Mechéu -, ao fim do conto, veremos a surpreendente – pelo que terá de
inesperada – imagem de um Mechéu transformado: “Estava bem diferente, etc.,
esperando um tudo diferente.” (ROSA, 2009, p. 139). Para atravessar sua
metamorfose, contudo, Mechéu precisará fundamentalmente de duas coisas:
primeiro, passar por uma experiência de morte -, o que ocorrerá justamente após o
acidente fatal com o seu companheiro, o Gango. Mechéu, contudo, não conseguiria
completar sua travessia sem uma segunda experiência, experiência, essa, que ele
houvera experimentado antes: uma experiência de amor. Será, portanto, a lembrança
da única ocasião em que fora acolhido, bem tratado, que conduzirá o personagem no
atravessamento de sua noite escura: “- Você é bobo não, você é bom...” (ROSA, p.
137); a redenção de Mechéu, assim, deve-se ao amor da menininha. Octavio Paz, em
sua obra, propõe a imagem poética do que seria uma planta da vida: “o sexo é a raiz,
o erotismo é o talo, e o amor, a flor. E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este
é um de seus enigmas.” (1994, p. 37), imagem que talvez sirva ao que temos chamado
a pedagogia de Rosa: o amor, antes de tudo, é uma semente -, pode ser mesmo uma
semente esquecida: não importa -, oculto sob a terra – em enigma – passará pelo fogo
da morte para propiciar o surgimento de uma nova vida, vida para a qual os influxos
que a precedem são indispensáveis e indissociáveis. O enigma – o encobrimento da
terra, o Hades, a noite escura -, assim como a poesia e o erotismo, é uma emanação
da vida: “sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno, manifestações do
que chamamos vida.” (PAZ, 1994, p. 15).
A experiência de Eros, portanto, compreende múltiplos atravessamentos que
põem em dúvida as fronteiras da experiência:
o amplo que arrodeia, resguarda, entreabre e deixa vir ao encontro lugares e
direções. Esse amplo aberto não é, contudo, o vazio de um continente de
coisas, mas o aberto que se atém e detém em muitas coisas, delimitando-se
cuidadosamente em si mesmo, e cujos limites tornam-se novas contréas,
sendo também amplos e indicadores. (HEIDEGGER, 1998, p. 342)
O amor compreende, contudo, um recolhimento que não dispensa um favorecimento,
favorecimento que se revela na liberdade do ser amado para que expresse toda a sua
potência. As asas de Eros, que podem mesmo levar-nos ao infinito, conduzem-nos,
agora a uma nova fronteira: se é o amor uma emanação da vida, em que comungam
os entes, no prazer e na morte, se caíram as fronteiras entre o sujeito e o objeto,
126
queremos agora nos indagar sobre os mistérios que se insinuam para além das coisas
do mundo sensível: interessam-nos agora os enigmas da linguagem.
127
CAPÍTULO 5. O ENIGMA DA LINGUAGEM
Os prefácios de Tutaméia reúnem uma miscelânea de aforismos, citações,
exemplos da cultura popular, registros biográficos (alguns confiáveis, outros bastante
duvidosos) e princípios de crítica que poderiam - cada um deles e no que se
relacionam com a obra e seus contextos - produzir análises minuciosas que dariam
vez a incontáveis trabalhos como este. Os quatro prefácios, assim como os quarenta
contos, também já se submeteram a exaustivos esforços de categorização, esforços
esses que, como seria mesmo de se esperar, ainda não alcançaram uma classificação
que se quisesse definitiva. Parece notório, contudo, que cada prefácio se destaque
por pelo menos um tema central. Queremos, assim, principiar este capítulo, em que
nos dedicaremos ao enigma da linguagem, com um exemplo recolhido do primeiro
prefácio, “Aletria e hermenêutica”56, que já pelo nome evidencia sua filiação à temática
da linguagem. Em uma ponderação sobre as anedotas de abstração que está a
relacionar, o autor tece um comentário que se destaca pelo que compreende de
insólito, hermético, sem prejuízo de um efeito jocoso, decorrente de sua construção:
“denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-
gis-de-prender-peru” (2009, p. 30). O autor, portanto, aproxima duas imagens que nos
parecem inconciliáveis e mesmo se opõem pelo significado: se a goma-arábica está
investida da propriedade real de manter unidas as partes por sua ação de colar, o
círculo de giz não dispõe - em si mesmo - da propriedade de prender o peru; antes,
para que o círculo prenda, é o peru que precisa acreditar-se preso: parece-nos uma
singular representação de nossa relação com a linguagem, essa curiosa mediação
entre as palavras e as coisas (FOUCAULT, 2016) segundo a qual promovemos
transformações no mundo sensível que se desencadeiam por representações
incapazes de tocá-lo. Achamo-nos, assim, no curioso vórtice que se confunde com a
própria noção de cultura, em seu sentido mais primitivo: a linguagem se constitui no
terreno do simbólico, mas, por meio dela, concebemos e modificamos todas as
representações do real. Inverte-se a perspectiva: somos o peru condenado à morte,
preso no círculo imaginário que nós mesmos criamos.
Guimarães Rosa, portanto, vale-se da goma-arábica da língua para compor
seus jogos de prender e soltar, e demonstra - embora o faça de maneira enigmática,
56 As tentativas de interpretação do título do prefácio já identificaram, além da ação interpretativa,
própria da hermenêutica, uma curiosa construção verbal, por derivação prefixal e sufixal da palavra
“letra”, que compõe o neologismo “aletria”, iniciado mesmo por um prefixo de negação.
128
lançando mão ora do humor, ora de um sofisticado eruditismo -, demonstra, dizíamos,
uma refinada consciência linguística, que se pode depreender das considerações que
o autor tece ao longo do primeiro prefácio de Tutaméia. A linguagem verbal pode
mesmo ser compreendida como o jogo das ausências, ausências essas que se
marcam pelos signos, entidades psíquicas que apontam para aquilo que eles não são.
Os signos, portanto, valem57 justamente por aquilo que não são, ao que o autor
responderia em defesa de Tutaméia: “O livro pode valer pelo muito que nele não deveu
caber.” (2009, p. 40) -, máxima que pode mesmo representar o emblema da obra,
marcada pela tensão dos formatos mínimos.
A criação poética de Guimarães Rosa em Tutaméia compreende enigmas
mesmo desconcertantes, que poderiam projetar a linguagem para além dos limites do
simbólico: abarcam em si tantos sentidos, crenças e imagens que talvez se pudessem
compreender como expressões genuínas da alegoria benjaminiana (BENJAMIN,
2013), como se pode identificar no vertiginoso jogo verbal que o autor estabelece por
meio de uma das insólitas epígrafes de “Sobre a escova e a dúvida”: “Atenção: Plínio
o Velho morreu de ver de perto a erupção do Vesúvio” (ROSA, 2009, p. 209) -, o alerta
do autor compreende os laivos de diversos provérbios, dos quais representa uma
intricada recriação e estabelece ainda a crítica desses mesmos provérbios e da
história tida como oficial, dado que a epígrafe aponta para o evento real da morte de
Plínio enquanto navegava nas imediações do Vesúvio em colapso. A crítica se
fundamenta na dúvida que se levanta sobre a figura de Plínio, como aponta Umberto
Eco em seu ensaio “Retrato de Plínio quando jovem” (1989), que sugere, diferente do
que se concebe, haver sido Plínio um homem apalermado cuja fama deveu-se, em
verdade, à astúcia de seu sobrinho, Plínio, o Moço, e que houvera morrido, nas
imediações do Vesúvio, por pura imprudência sua. Rosa sugere, portanto, que Plínio,
apesar de sua alcunha, “o Velho”, morreu jovem, justamente pela imprudência de se
aproximar demais do Vesúvio em chamas. A referência à temerária proximidade – ver
de perto -, também pode designar uma imprudente curiosidade do naturalista romano
e amarra em si - junto a todos os questionamentos que evoca: sobre a história, sobre
a perícia de Plínio e sobre a arbitrariedade do signo que compõe sua alcunha – dois
provérbios clássicos: o seguro morreu de velho, e a curiosidade matou o gato. O
57Saussure destacou em seu Curso de linguística geral (2012) a importância da noção de valor para a
estrutura da linguagem verbal, de modo que, em sua busca por sistemas análogos, foi justamente na
economia que o linguista encontrou um paralelo relevante.
129
arranjo verbal pode mesmo levar à vertigem: Plínio o Velho (que não era velho) morreu
jovem porque era curioso como um gato e não dispunha da perícia (da segurança) do
mesmo gato!
A linguagem verbal, portanto, pode ser pensada pela ótica do enigma: seu valor
está mais além - justamente no que a excede, no que não está dado de forma
imediata. É o contorno das ausências o que fundamenta o argumento de Heidegger
contra a atribuição de um caráter de incompletude à obra de Heráclito:
A palavra desse pensador está sob a proteção da deusa, a palavra como a
saga do a-se-dizer. Mas somente porque a palavra não se funda na
articulação dos vocábulos, somente porque toda articulação da palavra como
tal apenas é o que é, ecoando na palavra original e calada, somente por isso,
e mesmo quando os vocábulos se desintegram nos escritos e nos livros, é
que a palavra pode permanecer. (1998, p. 40)
A ideia da totalidade de uma obra, assegurada justamente pelo seu caráter
fragmentário, pode representar um argumento favorável à integralidade de Tutaméia;
além disso, a noção de uma palavra que resguarde em sua essência o próprio enigma
também é adequada ao projeto de Rosa: trabalhar constantemente na busca de uma
palavra originária, que seja, por isso mesmo, enigmática - uma palavra que diga e
continue dizendo, justamente por abrigar os ecos de sua origem. A propósito do
projeto rosiano, Heidegger adiciona complexidade à trama que se estabelece entre
nossas concepções das palavras e das coisas, da linguagem e do mundo, ao situar
nesse emaranhado de sentidos a noção de pensamento, além de denunciar um uso
essencialmente utilitário da linguagem58:
Ainda hoje temos de lidar com o enigmático destino ocidental de determinar
gramaticalmente - há mais de dois mil anos - a relação com a palavra, de
fundar na gramática aquilo que se chamou de "lógica" e, consequentemente,
assumir a lógica como uma - e não a - interpretação do relacionamento entre
pensamento e dizer, como a interpretação propriamente metafísica da
essência do pensamento. Tudo o que se pode dizer a respeito do
pensamento e da palavra, os seus esclarecimentos psicológicos, fisiológicos,
estéticos ou sociológicos, tudo isso está calcado, de certo modo, na estrutura
da linguagem gramaticalmente compreendida. Se observarmos, ademais,
que no mundo moderno a palavra tornou-se mera "linguagem", isto é, que
seu "valor" reside em constituir um dos instrumentos de troca, não seria de
admirar que toda meditação sobre a palavra sempre haverá de parecer uma
reflexão vazia sobre uma série de coisas denominadas "palavras", com as
quais se "ocupam" os chamados eruditos. As palavras são, assim, uma
58Contra o abandono e o esvaziamento da linguagem que se ocupa de denunciar, Heidegger situa
escritores que, segundo ele, empreendem um verdadeiro culto à técnica da escrita, de forma que, em
seus escritos, "a palavra torna-se um instrumento de caça e pesca" (1998, p. 85). O autor talvez também
denuncie aqui algo que se aproxime de um caráter comercial/publicitário; no entanto, sua observação
parece-nos digna de nota e apropriada à nossa análise dos enigmas de Guimarães Rosa.
130
espécie de coisa de uso, e o melhor que se pode fazer é entregá-las ao acaso
de um uso descomprometido. (1998, p. 84-85)
Ainda a propósito de uma natureza enigmática da linguagem, Heidegger chega a
sugerir, em sua investigação sobre a origem do pensamento ocidental, que, talvez, o
próprio logos obscureça a sua essência (1998, p. 252). Para o autor, a consagrada
concepção de que o logos signifique fundamentalmente "palavra", "discurso",
"linguagem" pode induzir ao erro: "Há dois milênios e meio esse enigma mantém-se
desapercebidamente num plano de fundo histórico bem especial." (1998, p. 252). O
erro, contudo, deve fundar-se em uma concepção simplista, que subtraia ao conceito
a sua natureza ambígua, pois "Para a lógica, o λόγοϛ é enunciado. Como enunciado,
pertence ao dizer. O dizer é discurso e linguagem. O λόγοϛ é um aparecimento da
linguagem. Por isso o λόγοϛ é verbo e palavra." (HEIDEGGER, 1998, p. 252). O logos,
portanto, em sua concepção original, para o filósofo alemão, é enigma, e enigma que
se revela por meio de um dizer: discurso, linguagem. O enigma próprio da linguagem,
com efeito, compreende ainda uma dimensão de presença, de uma relação direta com
as coisas do mundo sensível:
Escutar, por exemplo, o barulho que chega aos ouvidos. Diferente dessa
escuta, e diferente da escuta contra a vontade, é a ausculta de alguma coisa
para a qual, como se diz, somos "todos ouvidos". Ou será que a linguagem
é enigmática mais pelo fato de encobrir do que por descobrir, e costuma
dizer que somos "todos ouvidos" porque nesse momento esquecemos
"o ouvido" e as orelhas, e somente auscultamos, ou seja, porque a mera
percepção deixa de ser essencial quando o percebido nos toma em si
mesmo? (HEIDEGGER, 1998, p. 257, grifos nossos)
Segundo a concepção de Heidegger, os limites que separam o homem da linguagem
que ele produz tornam-se confusos, o que aproximaria os pontos de nossa análise,
na medida em que o enigma da linguagem também seria, de certa forma, um enigma
da individuação: para o autor, somos os que têm a palavra, e a palavra que formamos,
de algum modo, também nos forma:
Somos os que tratam da palavra. De repente, porém, mostra-se que a palavra
e o que ela nomeia é que tratam de nós, e já nos trataram antes mesmo de
nos colocarmos a caminho de seu esclarecimento. Porque na fisionomia de
uma consideração aparentemente apenas histórica de uma palavra pode dar-
se algo bem diferente - digo propositadamente "pode dar-se", e não "se dá";
é preciso ainda esclarecer o nosso posicionamento e os seus limites.
(HEIDEGGER, 1998, p. 254)
A expressão da individuação como um enigma próprio da linguagem, também
é retomada por Martim Buber que sugere:
131
Assim como a fala se torna palavra primeiramente no cérebro e em seguida
som em sua laringe - ambos não são, senão reflexos do verdadeiro
fenômeno, já que, na verdade, não é a linguagem que se encontra no homem,
mas o homem se encontra na linguagem e fala do seio da linguagem - assim
também acontece com toda palavra e com todo espírito. (2017, p. 74)
Se por um lado Buber não dá conta da complexidade da linguagem ao propor um
modelo linear, cérebro-laringe-ouvido, por outro, ele mesmo equaciona a questão na
continuidade do trecho "O espírito não está no Eu, mas entre o Eu e o Tu" (2017, p.
74, grifos nossos). Acrescentamos assim rotas de convergência e fuga ao primeiro
modelo de Buber para confirmar que a linguagem - o espírito - se dá na zona de
negociação de sentidos que se deita entre as partes que dialogam entre si.
O enigma da linguagem, portanto, é também um enigma do homem. Para
Heidegger, contudo, natureza desse enigma estaria fundada em uma perda: o
portador da palavra, o homem, haveria perdido a palavra de sua essência:
o que se mostra é que o homem, aquele que na sua essência "tem a palavra",
perdeu a palavra de todas as palavras. E a perdeu porque diz sem pensar a
palavra "ser" como o mais vazio de todos os vazios, sem, no entanto,
conseguir jogá-la totalmente fora, porque, para fazê-lo teria que perder a sua
própria essência. (1998, p. 96)
- e a exemplo do enigma da esfinge, a resposta para o enigma da linguagem é, outra
vez: o homem. Por seu lado, a linguagem, que guarda em si os seus próprios
ocultamentos, não admite, sem prejuízo de sua essência, um uso meramente
funcional, que não tome em conta todos os seus contraditórios – a língua, assim,
passa a compreender a dimensão de um espelho que revela ao homem a sua
identidade, é também a sua pátria, o feminino ventre no qual o sujeito da linguagem
se recolhe: “Essa língua não é nossa como um instrumento. Nós é que somos dela
enquanto seus protegidos ou seus expatriados." (HEIDEGGER, 1998, p. 308). Ata-se,
assim, outra ponta de nosso trabalho: é pelo discurso que o mundo surge para o
homem – enigma que sugere que o mundo, que a físis, são espelhos de um homem
que surge para si mesmo:
Podemos ainda pensar o surgir como quando o homem, concentrando o
olhar, surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o homem
e com ele se reúne a fim de que o próprio homem se revele, como o ânimo
se desdobra nos gestos, como sua essência persegue o desvelamento num
jogo, como sua essência se manifesta na simples existência. [...] dá-se um
vigor recíproco de todas as "essências", e em tudo isso o aparecimento, no
sentido de mostrar-se a partir de e dentro de si mesmo. (HEIDEGGER, 1998,
p. 101)
132
As peculiaridades da análise que principiamos neste tópico impõem-nos a
necessidade de uma revisão de nossas proposições: até aqui nos ocupamos da
importância do enigma literário como elemento estruturante da poética de Guimarães
Rosa e examinamos como os enigmas se constituem na obra do autor, assinalados
pela simbologia dos espelhos, pelo paradoxo da individuação e pelas múltiplas
representações do amor -, a linguagem verbal, contudo – e para aquém da poética de
Guimarães Rosa -, está investida de uma dimensão enigmática própria, característica
que também podemos atribuir aos espelhos, ao problema da individuação e ao amor
com todos os seus contraditórios. Este ajuste, mesmo no que possa ter de sutil,
parece-nos indispensável por fazer justiça ao autor, notabilizado pela vaidade que
mesmo custou-lhe a alcunha de “pavão misterioso” (DANTAS, 1975, p. 38), e, ainda
mais, por revelar uma singularidade de sua poética que não pode ser negligenciada:
a despeito de sua vaidade – ou a propósito de sua vaidade... –, Guimarães Rosa
confessava a seus interlocutores almejar uma poética passiva, segundo a qual o
artista busca na natureza uma harmonia de formas que já está dada; seu papel,
portanto, é apenas o de mostrar, de revelar as formas que escapam aos olhos.
Reveste-se, o poeta, portanto, das propriedades de um tradutor:
Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”,
de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das
ideias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou
falhando, nessa “tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro
idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor
quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu
desvirtuara… (ROSA, 2003, p. 99)
Assim, sugerimos que os elementos que relacionamos para nossa análise – os
espelhos, a individuação, o amor -, antes de compor meros exemplos dos enigmas
tramados pelo autor, são compreendidos em sua recolha literário-afetiva justamente
por serem elementos investidos de uma natureza propriamente enigmática. Não
podemos admitir a pretensão de remontarmos à origem do pensamento ocidental,
como o quis Heidegger. Há, no entanto, algumas peculiaridades da natureza
enigmática da linguagem, especialmente no que concerne às suas concepções
históricas. Que queremos evidenciar.
133
5.1 LINGUAGEM: JOGO E ENIGMA
Destacamos, em nossos capítulos anteriores, o pensamento de Johan Huizinga
sobre o jogo como elemento da cultura, pensamento esse que abarcou a maior parte
dos aspectos mais importantes de nossa análise, visto que o autor reconhece o valor
enigmático da poesia, dos paradoxos de identidade do sujeito e mesmo da corte
amorosa. Para aquém das formas poéticas, no entanto, Huizinga ainda reconhece o
aspecto enigmático da própria linguagem, à qual o autor também atribui um caráter
lúdico:
Deixando de lado o problema lingüístico, e analisando um pouco mais
atentamente a antítese jogo-seriedade, verificamos que os dois termos não
possuem valor idêntico: jogo é positivo, seriedade é negativo. O significado
de "seriedade" é definido de maneira exaustiva pela negação de "jogo" —
seriedade significando ausência de jogo ou brincadeira e nada mais. Por
outro lado, o significado de "jogo" de modo algum se define ou se esgota se
considerado simplesmente como ausência de seriedade. O jogo é uma
entidade autônoma. O conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais elevada
do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo
que o jogo pode muito bem incluir a seriedade. (HUIZINGA, 2014, p. 51)
Huizinga, com efeito, lida com noções algo equívocas – seriedade, positividade,
negatividade - para definir o lugar do jogo em relação a algumas manifestações mais
refinadas da cultura. Não falta, contudo, ao autor, objetividade para apontar a natureza
lúdica da linguagem:
Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa
faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente
saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão
abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim,
ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético,
ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 2014, p. 7)
Manifestamos ainda anteriormente a nossa opinião de que o pensamento de Huizinga,
a despeito da importância histórica de que está investido e de toda a argúcia do autor
em sua notável análise, talvez carecesse de uma revisão, especialmente no que
respeita à hierarquia sugerida pelo autor, segundo a qual, todas as manifestações da
cultura de que ele se ocupa - direito, guerra, conhecimento, poesia, filosofia etc –
representam desdobramentos de uma matriz lúdica à qual se subordinariam. O ponto
que atingimos em nosso desenvolvimento, contudo, permite-nos, finalmente, apontar
com maior exatidão as razões de nossa inconformidade, que se funda, especialmente,
na noção, conforme sugerida por Heidegger, de que o homem, antes de ser o animal
que joga, é aquele que tem o discurso, o portador da palavra (HEIDEGGER, 1998, p.
134
96). O problema da categorização de Huizinga, contudo, talvez se explique pela
preocupação do autor com a suposta seriedade de um conteúdo designado, o que
compreenderia outro exemplo do já denunciado uso excessivamente utilitário da
linguagem, e que mesmo não tomasse em conta as suas múltiplas funções
(JAKOBSON, 2010), para muito além de uma simples veiculação de conteúdos –
mensagens – verbais. Talvez seja mesmo a poesia, no que se despe de todo
utilitarismo, o que nos permita identificar com maior precisão o cerne de nosso
problema; Heidegger denuncia que a poesia conduz o ser a revelar-se na palavra
(1998, p. 376) e sugere que do fazer poético resulta um produto que surge na palavra
e por ela volta a se iluminar, como já concebiam os gregos (HEIDEGGER, 1998, p.
374).
Para Johan Huizinga, portanto, a linguagem - assim como a poesia que dela
emana – é jogo; ambas são manifestações da cultura que, ao lado dos enigmas,
derivam-se de uma mesma matriz lúdica:
A propósito da referência de Heidegger à antiguidade clássica, talvez seja mesmo o
filólogo húngaro, Gregory Nagy, quem venha em nosso socorro para aclarar esta
questão. Nagy principia por estabelecer uma distinção entre as noções de código e
mensagem, como pensadas pela Escola Linguística de Praga, para sugerir que a
poesia de Píndaro compreende um caráter ambíguo que, com efeito, funda-se na
noção de uma idealização: uma composição ideal, veiculada por uma performance
ideal, destinada a um público ideal (NAGY, 1990)59. A idealização proposta por Nagy,
59 “In this tripartite scheme, I have set up the distinction between code and message, with the
terminology of the Prague School of Linguistics, 1in order to drive home a point that the lyric poetry of
Pindar's ainos consistently makes about itself: namely, that the ainos is a code that carries the right
message for those who are qualified and the wrong message or messages for those who are unqualified.
By way of its self-definition, the ainos is predicated on an ideal: an ideal audience listening to an ideal
performance of an ideal composition. But at the same time it is also predicated on the reality of
135
portanto, não dispensa o que chamaremos um caráter iniciático: a poesia deve
transmitir a mensagem certa aos qualificados para recebê-la e... uma mensagem
errada para o público não qualificado! (NAGY, 1990) -, com base nas incertezas
próprias da interação entre o intérprete e o seu público. A antiga concepção lírica,
considera Nagy (1990), tinha por base um caráter ambíguo, difícil quanto à forma,
enigmático quanto ao conteúdo. A ideia de uma poética que comunique uma
mensagem exata a um público específico e confunda os demais põe-se de acordo
com a referência de Kierkegaard a Tarquínio, o soberbo: a mensagem errada – a poda
do jardim de papoulas - foi transmitida ao mensageiro, ao passo que a mensagem
correta – a decapitação dos inimigos -, chegou com exatidão a seu filho, o qualificado.
A concepção proposta por Nagy, de uma poesia que veicule mais de um sentido,
também encontra paralelo no ideal almejado por Rosa para a sua poética: a busca de
formas que comportassem múltiplos sentidos concordantes: “Tudo deve ser cacho de
acordes . Como no xadrez: a jogada boa deve ter mais de uma finalidade ou causa.”
(ROSA, 2003, p. 71)60 -, modelo que bem serviria às palavras-valise de Lewis Carroll
(2009, p. 248), ou palavras esotéricas, como preferiu chamá-las Gilles Deleuze (2015,
p. 47).
A idealização almejada pela lírica clássica, como descrita por Gregory Nagy,
ressignifica a nossa proposição para a poética de Guimarães Rosa, que ousamos
chamar poética passiva: assim como o intérprete ideal deve veicular uma mensagem
exata a uma audiência qualificada, um autor que se queira um tradutor de um alto
original (ROSA, 2003, p. 99) deve portar-se como um oráculo, também ele qualificado
para ouvir/reconhecer as formas superiores que comunicará ao seu público,
igualmente qualificado. A própria ideia de uma idealização lírica assume na obra de
Guimarães Rosa um caráter próprio, um caráter mais amplo, mais complexo, melhor
diríamos. Há, na obra do autor, um exemplo singular que, primeiro, compreende a
uncertainties in interaction between performer and audience in the context of the actual performance of
a composition: the ainos of Pindar is by its very character ambiguous, both difficult in its form and
enigmatic in its content. As a difficult code that bears a difficult but correct message for the qualified and
a wrong message or messages for the unqualified, the ainos communicates like an enigma--to use an
English word that was borrowed from and serves as a translation for the Greek ainigma (as in Sophocles
Oedipus Tyrannus 393, 1525), which in turn is an actual derivative of ainos.” (NAGY, 1990)
60 A ideia de cacho de acordes, como proposta por Rosa, é curiosa. Representa outra vez a mise en
abyme (GIDE, 2009), na medida em que projeta uma noção de coletividade dentro das unidades
compreendidas em um conjunto, dado que os cachos se constituem de acordes que, por sua vez,
reúnem notas musicais ordenadas.
136
idealização sugerida por Gregory Nagy e, depois, expande-a a um grau mesmo
vertiginoso.
5.1.1 O estilo espavorido de uma estória exata, composta de tantas outras
incorretas
Há em uma das narrativas de Guimarães Rosa um episódio que, conforme o
entendemos, dispõe-se curiosamente de forma simétrica à história da mensagem de
secreta de Tarquínio, enviada a seu filho: falamos da estratégia elaborada pelas
crianças, personagens do conto “Pirlimpsiquice”, que integra o livro Primeiras Estórias
para manter oculto o enredo da peça de teatro que encenariam na escola para
professores, colegas e parentes. O resultado da encenação, com efeito, ficaria para
sempre guardado na memória do narrador, que, muitos anos depois, rememora o dia
inesquecível enquanto se indaga sobre os destinos dos demais envolvidos:
Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que sei,
que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje
adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e
menos da desordem do que do rumor. (ROSA, 2005, p. 83)
Excitados com a novidade da peça de teatro que coube a eles representar, os
estudantes disputarão os papéis – sempre sob a mediação de padres e professores -
, farão intrigas quanto à aptidão – o quanto à falta dela... – de um ou outro para assumir
algum papel e tomarão os mais minuciosos cuidados para preservar o segredo do
enredo da peça até o dia da apresentação: os atores, assim, comprometem-se
mutuamente com a preservação do segredo e designam sentinelas para inspecionar
os integrantes que o grupo suspeita mais vulneráveis. Os cuidados dos meninos,
contudo, transitam nas raias do absurdo, o que concorre para fomentar o humor
próprio do conto: conscientes de que nem mesmo os mais fiéis ao segredo manteriam
sigilo em caso de tortura, temerosos dos colegas valentões da escola, os atores mirins
decidem criar uma estória falsa, uma versão que seria contada caso eles se
encontrassem encurralados pelos colegas mais fortes. A estratégia adotada pelos
alunos parece-nos análoga à de Tarquíno, exceto pelo fato de que – pelo menos até
aqui... – a mensagem enviada pelo rei de Roma era uma, que comportaria dois
sentidos e a das crianças – pelo menos até aqui, repetimos – compreende um segredo
resguardado por duas histórias: uma verdadeira e outra falsa. Relevada a diferença
137
da mensagem dúplice, podemos também aproximar a estratégia dos meninos de
“Pirlimpsiquice” da idealização apontada por Gregory Nagy.
A versão de Rosa, contudo, compreende uma diferença singular em relação
aos seus reflexos que faz dela, como a entendemos, uma verdadeira sublimação das
demais, dado que, na criação de Rosa, não haverá mensagens erradas, pois, ao fim,
todas estarão corretas: se reunirão para compor a rumorosa, a irrepetível história que
jamais será esquecida por aqueles que a vivenciaram, fosse do palco, fosse da plateia:
marcada por uma intensa reviravolta, a peça principiará com atores em papais
diferentes daqueles para os quais se prepararam -, o narrador do conto, locutor da
peça, assume o papel principal, o professor tutor toma lugar no elenco, ocupa o lugar
do locutor. Diante dos imprevistos os atores se veem na iminência da ameaça mais
temida por eles: as estrondosas vaias -, não conseguem principiar a representação,
mas são socorridos pelo colega que tinham por idiota, Zé Boné, que dá início à peça
com gestos improvisados e arranca os primeiros aplausos da plateia, para alívio do
elenco.
A grande surpresa dos atores – que resultará em um grande problema... -, se
dará, contudo, ao meio da peça: percebem que parte dos atos que encenam
compreendem trechos da história falsa; pior do que isso: reconhecem na própria
encenação pedaços de uma terceira história, inventada por um dos colegas curiosos,
que divulgou haver descoberto o segredo da peça, história que eles tiveram o trabalho
de refutar. A curiosa encenação torna-se vertiginosa: compreende partes da história
original, acrescidos de trechos a história falsa, somados a partes de uma segunda
história falsa, pontuados ainda por trechos das fitas de cinema que povoavam o
imaginário do desprezado Zé Boné, além de emanações dos arcaísmos que
compunham o discurso do tutor, Dr. Perdigão e dos já quase indistintos traços que
compunham o tecido da vida ordinária de cada um deles.
Os enigmas da linguagem, como concebidos na poética de Guimarães Rosa,
assumem um estatuto bem mais complexo do que o que rege os exemplos que
examinamos anteriormente: na obra do autor, as mensagens erradas – os
despistamentos – concorrerão para compor as formas originais que irão compor a sua
poética. Os enigmas, portanto, - no que orientem e no que confundem - são partes
constitutivas do todo. Não há história incorreta: se a resposta do enigma original é o
138
homem, integram a sua trama as narrativas que se confundem com a experiência
sensível, misturam-se com o tecido da própria vida.
5.2 TUTA E MEIA: O ENIGMA DAS FORMAS SIMPLES
Há no primeiro prefácio de Tutaméia, “Aletria e hermenêutica”, um elemento da
cultura popular que, se até agora temos negligenciado, talvez encontre mesmo seu
melhor lugar neste ponto de desenvolvimento do nosso trabalho; referimo-nos à
adivinha, que compreende a forma mais comum assumida pelo enigma literário na
cultura popular universal, e que, na língua portuguesa, consagrou-se pelo formato “o
que é, o que é?”61. As adivinhas são diretamente mencionadas pelo autor duas vezes
no prefácio, a primeira: “como nesta ‘adivinha’, que propunha uma menina do sertão.
— ‘O que é, o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente
morta come, e se a gente viva comer morre?’ Resposta: — ‘É nada.’” (ROSA, 2009,
p. 33); e a segunda, citada em nota de rodapé, que relaciona duas adivinhas:
Ainda uma adivinha “abstrata”, de Minas: “O trem chega às 6 da manhã, e
anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista?”
(Porque é o sol.) Anedótica meramente.
Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem: velocidade horária, pontos
de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina: — “Qual é o
nome do maquinista?” Sem resposta, só ardilosa [...]. (ROSA, 2009, p. 35)
Para além das duas referências diretas, contudo, todo o prefácio parece versar sobre
adivinhas, de modo que, com pequenos ajustes, podemos dar a exata forma de uma
adivinha a diversos exemplos da cultura popular e citações espirituosas recolhidos
pelo autor: 1. O que é, o que é, um buraco, com um pouquinho de chumbo em volta?
Resposta: é um cano (ROSA, 2009, p. 37); 2. O que é, o que é, uma porção de
buracos, amarrados com barbante? Resposta: é uma rede (ROSA, 2009, p. 37); 3. O
que é, o que é, um pozinho branco, que dá muito mau gosto ao café, quando não se
lho põe? Resposta: é o açúcar (ROSA, 2009, p. 37); 4. O que é, o que é, um fio,
desencapado na ponta: quem botar a mão ... h’m ... finou-se?! Resposta: é a
eletricidade (ROSA, 2009, p. 38).
Nossa confissão de uma possível negligência, por ainda não havermos dado a
devida atenção às adivinhas, deve-se ao fato de que o quebra-cabeças da esfinge –
61Neste ponto do desenvolvimento de nosso ensaio, já não nos pareceria um absurdo sugerir que o
âmbito da adivinha não se restrinja ao primeiro prefácio, posto que o livro inteiro, Tutaméia, também
pode ser compreendido como uma grande adivinha.
139
que representa mesmo um paradigma do enigma – assume a forma de uma adivinha:
“que animal anda com quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia e três à tarde?”
(CURY, 2011). A adivinha, contudo, compreende curiosos paradoxos: foi definida por
André Jolles como uma forma simples, ao passo em que também teve apontado pelo
autor um complexo mecanismo de base linguística.
A categoria de forma simples, conferida por André Jolles às adivinhas, em sua
obra seminal de 1930, não deve nos induzir ao erro de atribuir uma suposta facilidade
semântica a tais formas literárias: em Formas Simples, o autor buscou descrever as
formas mais gerais de manifestação literária, que constituiriam, mesmo, formas
paradigmáticas. Jolles, a propósito de nossa investigação, sugere que a adivinha
compreende a decifração de um enigma (1976, p. 112); o autor, contudo, reconhecerá
uma filiação das adivinhas aos mitos e buscará delinear as diferenças que distinguem
as duas formas:
Se compararmos a pergunta e a resposta da adivinha com as do mito, nossa
tenção será imediatamente ferida por uma diferença puramente externa: se o
mito é a forma que produz a resposta, a adivinha é a forma que mostra a
pergunta. O mito é uma resposta que contém uma questão prévia; a adivinha
é uma pergunta que pede uma resposta. (1976, p. 111)
A observação de Jolles já se mostra reveladora da matriz linguística que estrutura as
adivinhas: importam mais as perguntas do que as próprias respostas, como se poderia
naturalmente esperar de uma disposição lógica -, seu foco de atenção está centrado
na própria forma linguística, ou na mensagem, como preferiria Jakobson (2010). Se
por um lado a adivinha designa uma disposição mental semelhante à do mito, na
medida em que também se inscreve no âmbito de um saber (JOLLES, 1976, p. 111),
o conhecimento próprio da adivinha, por sua parte, compreende uma natureza
particular, dado que, diferente do mito, em que o homem indaga ao universo sobre
suas verdades mais profundas, aqui o homem dirige sua indagação a um outro homem
(JOLLES, p. 111). O saber compreendido pela adivinha, portanto, não integra uma
cosmologia, antes, tem base essencialmente linguística: uma adivinha, assim, antes
de tudo é um enigma de linguagem:
Na adivinha, o homem já não está em relação com o universo: há um homem
que interroga outro homem e de modo tal que a pergunta obriga o outro a um
saber. Um dos dois possui o saber, é a pessoa que sabe, o sábio; um
interlocutor o enfrenta e é levado, pela pergunta, a pôr em jogo suas forças,
seus recursos e sua vida, para chegar a possuir também o saber e
apresentar-se ao outro como sábio. (JOLLES, p, 111)
140
O modelo sugerido por Jolles compreende a noção de aprendizagem própria de
Guimarães Rosa, de que já tratamos anteriormente; não sem motivo, um dos
principais heróis de cavalaria sertaneja de Rosa será um vaqueiro que, mais do que
dispor das naturais habilidades de laçar e montar, será um sábio, experimentado na
arte de resolver adivinhas, que, também de forma insuspeita, será assinalado por um
nome que pode mesmo ser entendido como uma derivação do nome do enigma: o
Grivo (grifo) -, incumbido por seu misterioso patrão, o Cara-de-Bronze, da mais insólita
– e enigmática! – missão: “Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!”
(ROSA, 2001, p. 141). No que respeita à natureza enigmática das adivinhas, André
Jolles nos lembra que os gregos dispunham de duas palavras para designar a
adivinha, ainos, que corresponde propriamente a enigma e griphos (JOLLES, 1976, p.
123), palavras que, em sua origem, compreendiam sentidos diferentes: “Na primeira,
se não me engano, está implícito o fato do ciframento, ao passo que na segunda, que
significa propriamente ‘rede’ – a rede que nos aprisiona e cujos nós nos emaranham
– exprime-se a perfídia da cifra.” (JOLLES, 1976, p. 123). A rede de Jolles,
curiosamente, poderá levar-nos novamente ao herói cavaleiro de Rosa: ao fim da
novela, quando tentará abrir o enigma de sua misteriosa viagem aos curiosos
companheiros, o Grivo promoverá, em contrário, uma verdadeira multiplicação de
enigmas com suas respostas que, no que terão de poéticas, lançarão seus amigos
em profunda perplexidade; o vaqueiro relatará, então, a pergunta, elaborada com
doçura pelo patrão62, em seu leito: “Você viu e aprendeu como é tudo, por lá?” (ROSA,
2001, p, 173) -, indagação que, na verdade, apenas prepara a pergunta essencial:
““Como é a rede de moça — que moça noiva recebe, quando se casa?” (ROSA, 2001,
62 O patrão do Grivo, personagem que dá nome à novela, pode também ser inscrito, ao lado de vários
outros personagens que já relacionamos, também como um paradigma do enigma literário: a exemplo
dos personagens mais evoluídos na hierarquia da aprendizagem rosiana, o Cara-de-Bronze é sempre
mencionado, mas mantém-se oculto na maior parte do tempo, materializando-se no texto apenas ao
final da novela, e por meio de breves referências. Seu caráter, contudo, é bastante complexo, justo pelo
que tem de misterioso e enigmático: sua história é incerta e dá vez às mais variadas especulações de
seus empregados, assim como é imprecisa a grafia de seu nome: Sezisbério, Segisberto Saturnino
Jéia Velho (Filho), Segisberto Jéia, Sigisbé, Sejisbel Saturnim, Xezisbéo Saturnim, Jizisbéu, Zijisbéu
Saturnim, Jizisbéu Saturnim. Destacamos, por fim, que a biografia do misterioso personagem
compreende uma fábula recorrente na obra de Guimarães Rosa: falamos da história de um homem que
atenta contra a vida de outro e foge, certo de havê-lo matado, mas que descobrirá, tempos depois, que
a vítima sobrevivera ao ataque e que sua fuga fora despropositada. No caso do Cara-de-Bronze, os
rumores são de que, no passado, ele houvesse atirado contra o próprio pai. Esta mesma fábula será
encontrada no conto “Droenha”, de Tutaméia, em que o personagem Jenzirico fugirá para uma escarpa
inóspita, certo de haver matado o valentão Zèvasco. Ao fim do conto, o protagonista poderá abandonar
o seu esconderijo quando for informado de que seu rival não morrera por sua arma, mas já houvera
sido justiçado por outro.
141
p. 173), ao que o cavaleiro responderá: “‘É uma rede grande, branca, com varandas
de labirinto…’ (Pausa.)” (ROSA, 2001, p. 173). Como na estrutura da adivinha,
segundo a proposição de Jolles, Guimarães Rosa, em “Cara-de-Bronze”, dispõe o seu
foco na própria mensagem, em sua estrutura verbal – puro exercício de forma -, vale-
se da livre associação, que a poesia compreende dentro das séries associativas dos
signos, para aproximar o gripho – a rede do original grego - de uma rede de dormir.
Quem está com a palavra, contudo, é o Grivo, as varandas são labirintos... Anos após
a primeira leitura de “Cara-de-Bronze”, em uma pesquisa comercial, pude descobrir
que varandas de labirinto pode ser uma designação objetiva para um tipo específico
de acabamento, próprio de redes e de roupas de cama. A fala do Grivo, contudo - e
por toda a natureza insólita e inusual de seu contexto -, evoca a presença das musas:
a própria amplitude das redes sugere a possibilidade poética de se flanar por suas
varandas e, ainda, de perder-se por seus labirintos. Será o vaqueiro José Proeza
quem expressará a perplexidade do grupo com a revelação do intuito da viagem,
imediatamente após a citada confissão do Grivo: “Ara, então! Buscar palavras-
cantigas?”63 (ROSA, 2001, p. 173). A resposta que nos basta, contudo, a confirmação
de nossas impressões, virá da imediata – e estranha! - resposta do vaqueiro Adino:
“Aí, Zé, opa!” (ROSA, 2001, p. 173); resposta que, não sem motivo, também está
cifrada, posto que compreende, de forma invertida, uma aproximação da resposta
exata, dirigida aos qualificados: a poesia (apo éz ía). O gripho grego será então
retomado à sequência: “GRIVO: Eu fui... / Mainarte: Jogou a rede que não tem fios.”
(ROSA, 2001, p. 173, grifos nossos). A rede de dormir converte-se, por um vertiginoso
salto de sentido, em uma rede de pesca, própria para capturar. O herói rosiano,
portanto, é um herói dos enigmas: joga a rede – gripho – que não tem fios -, o enigma
literário; joga, antes de tudo, ele próprio: o Grivo (o grifo). Ainda no que diz respeito
ao herói rosiano, em especial no que concerne aos enigmas de seu nome, lembramo-
nos de uma curiosíssima observação de Jacques Derrida sobre a rasura que não
queremos nos permitir negligenciar. A rasura a que se refere o autor é um
assinalamento gráfico. Para Derrida, contudo, uma rasura pode deixar “ler aquilo que
63Importa destacar que a referência ao graal da viagem misteriosa do Grivo assinala palavras-cantigas
(ROSA, 2001, p. 173) e que os enigmas com que a esfinge ameaçava Tebas eram enigmas cantados:
“Bastou-te outrora entrar desta cidade de Cadmo para libertá-la do tributo que ela pagava então à
terrível Cantadeira” (SOFOCLES, 2012, p, 7, grifos nossos). Com efeito, comumente atribui-se ao livro
que contém a novela “Cara-de-Bronze”, No Urubuquaquá, no Pinhém, a temática da gênese da canção
popular, de forma inopinadamente, é claro, enigmática.
142
oblitera, inscrevendo violentamente no texto o que tentava comandá-lo do exterior”
(1991, p. 37). Assim, a rasura, a que se atribuía inicialmente o princípio de encobrir,
assume a propriedade de destacar: é um grifo (gráfico) -, e é um gripho (enigma); põe-
se de acordo com o paradigma do enigma para nosso ensaio: “Natureza ama ocultar-
se” (HERÁCLITO, 2012, p. 129), ou, como traduzido por Heidegger, o puro surgimento
favorece o encobrimento – o grifo (1998, p. 143)64.
Se o funcionamento da adivinha, contudo, se concebe por princípios
linguísticos, devemos nos perguntar sobre a forma que a linguagem assume na
adivinha. André Jolles determina, inclusive, a necessidade de estabelecer o que é uma
cifra, para, então, indagar-se sobre como uma mensagem cifrada se constrói. O autor
conclui, então, de forma surpreendente, que o mecanismo próprio da adivinha é uma
condução de uma língua especial a uma língua comum (1976, p. 124). Retomamos,
assim, a noção de uma língua idealizada, ou, melhor dizendo, reservada aos
qualificados: “A adivinha contém, de modo geral, a língua especial que é de
determinado grupo” (JOLLES, 1976, p. 123)65. Jolles considera que, primeiro, a
linguagem adotada na adivinha deve ser a linguagem própria do grupo fechado a que
o interrogado quer aceder. Parece-nos natural supor, assim, que os enigmas - as
adivinhas – próprios de Guimarães Rosa compreendem a necessidade de um tipo
particular de iniciação do seu intérprete, ou seja, esse já deve ser um conhecedor da
linguagem do autor. No entanto, o encobrimento propiciado pela língua especial, outra
vez, não pode prescindir da mediação da abertura: “A forma da Adivinha abre tudo
ao fechar-se; é cifrada de tal modo que esconde o que comporta, retém o que
contém.” (1976, p. 124, grifos nossos) – a língua especial está mediada pela língua
ordinária e, assim, ao decifrador cabe a perplexidade de descobrir-se frente a um
64 Com respeito ao destaque que temos dado em nosso ensaio para a influência de Goethe sobre a
criação de Guimarães Rosa, e a propósito dos exemplos que temos apresentado de expedientes de
ambas as obras que encontram correspondências, destacamos que na cena "Sala vasta com
aposentos contíguos", Goethe engendra no personagem Mancebo-guia uma alegoria da poesia. Assim,
Goethe cifra, de forma enigmática, a poesia, que, por sua vez, na narrativa, proporá um enigma: "Trata
de nos descrever, Já que alegorias somos, E nos deves conhecer." (2, p. 98). O personagem de Goethe
remete, naturalmente, à esfinge, na medida em que propõe enigmas - e enigmas que condicionam a
vida ou determinam a morte! - e é ele mesmo um enigma; remete ainda, naturalmente, ao Grivo,
personagem que deve abrir o grande enigma geral, o "quem das coisas" (ROSA, 2001, p. 141) e é ele
próprio um enigma: o Grivo - o grifo.
65 A língua especial, conforme observa André Jolles, pode ser, inclusive, uma linguagem picaresca,
mesmo de qualidade obscena (1976, p. 126), o que também embasaria a ideia dos enigmas de
natureza sexual, tramados por Guimarães Rosa, a que nos referimos no capítulo anterior.
143
mistério que pôde ocultar-se quando ele próprio dispunha de todos os recursos
necessários para a decifração.
A adivinha, portanto, assim como descrita por André Jolles, compreende um
caráter iniciático, uma via de acesso a uma dignidade que vincula grupos, grupos
esses que podem constituir desde as sociedades secretas, até chegar mesmo ao
âmbito da bem-aventurança dos santos, na medida em que a via de acesso é sempre
a sabedoria (JOLLES, 1976, p. 116-117). Além disso, em seu resgate histórico, Jolles
destaca a importância da adivinha como forma de manutenção da vida, sob a fórmula
“apresente uma adivinha e viverás” (JOLLES, 1976, p. 114), quebra-cabeças que o
autor filiou ao grupo que ele chamou enigmas de Ilo (1976, p. 114), segundo os quais,
pessoas condenadas à morte recebiam do juiz um enigma que poderia salvar-lhes a
vida, caso fossem capazes de respondê-lo. Abre-se então uma perspectiva singular,
de especial valor para a nossa investigação: a adivinha compreende um expediente
centrado na forma da mensagem, e não especialmente no conteúdo que ela veicula.
Assim, a resposta que assegura a vida do interrogado não é – não precisa ser –
essencialmente uma resposta exata: poderá, muitas vezes, compreender uma
proposição que conduza a um novo enigma –, é a perspectiva de um enigma que quer
manter-se, mais do que propriamente abrir-se. A via de sobrevivência que se
apresenta, portanto, pode mesmo ultrapassar os limites da experiência sensível: a
adivinha é a forma assumida pelos enigmas no âmbito da linguagem -, a salvação que
se oferece, portanto, extrapola os planos da razão: insinua-se, antes, nos domínios
da poesia.
5.2.1 Um brevíssimo ensaio sobre o mecanismo linguístico do enigma literário
Descrever o funcionamento linguístico das adivinhas compreenderia, conforme
entendemos, parte do trabalho de descrição da própria essência da poesia. Não
podemos, portanto, admitir tamanha puerilidade ao assumir para este trabalho a tarefa
de elucidar um problema tão antigo quanto os próprios registros escritos. Affonso
Romano de Sant’Anna menciona os esforços dos pensadores do século XVII, dentre
os quais destaca Leibniz e Locke, para compreender o mecanismo das línguas e faz
uma analogia entre cabalistas, numerologistas, hermetistas, mágicos, artistas e, por
fim, os filósofos, na medida em que os últimos serão os responsáveis por “decompor
o sentido criptográfico inscrito nas coisas” (SANT’ANNA, 2000, p. 109). O autor lembra
144
ainda que o espírito barroco não distinguia com clareza as fronteiras que separam
ciência, magia, religião e lógica como o faz o espírito moderno e aponta o nome do
filósofo Sextus Empíricus, do Século II, como paradigma das relações entre ciência,
filosofia e mistério: “Pois é esse Sextus Empiricus que surge um tanto
enigmaticamente em várias epígrafes desse barroco moderno que é Guimarães Rosa
em Tutaméia” (SANT’ANNA, 2000, p. 110). Se o intricado mecanismo linguístico das
adivinhas e de outras formas verbais assumidas pelos enigmas representa um desafio
que excede os propósitos de nossa investigação, há, no entanto, algumas
peculiaridades do mecanismo linguístico das adivinhas, como identificadas por André
Jolles, que podem ser de grande valor para iluminar a análise que empreendemos
neste trabalho. A estrutura da adivinha como forma simples, conforme já
mencionamos anteriormente, compreende um mecanismo que identificamos como
propriamente linguístico, posto que os elementos dados como pistas compreendem
sempre um certo grau de afastamento do objeto para o qual eles apontam;
compreendem, assim, a associação mesmo de categorias francamente diferentes,
como podemos observar no próprio enigma da Esfinge, no qual as partes do dia,
manhã, meio-dia e tarde, não representam propriamente partes do dia, mas apontam
para fases da vida do objeto cifrado: o homem. Assim, aproximam-se categorias
notadamente distintas: períodos do dia, decorrentes do movimento de rotação da
Terra, e fases da vida de um homem, decorrentes de seu amadurecimento e
envelhecimento. De forma semelhante, as patas apontam para estruturas de maior
afinidade: não são patas, são pés (JOLLES, 1976, p. 120); obedecem, contudo, a um
estatuto diferente, visto que a categorização dos elementos simbólicos não segue o
mesmo padrão. Assim, compreendemos que a adivinha concebe um intricado enigma
que engendra partes, de estatutos diferentes – embora de mesma matriz: linguística -
, mas que se unificam por alguma associação – mesmo furtiva! - com seu objeto
cifrado e, por isso, conduzem a ele. Explicamo-nos melhor: as relações de sentido que
se estabelecem por meio da adivinha não se submetem aos conceitos por ela
representados, antes, desenvolvem-se por relações exclusivamente linguísticas, que
não se restringem a um contexto enunciativo específico, antes, certamente evocarão
novos contextos.
Os esquemas linguísticos que subjazem à poética dos enigmas literários
compreendem, contudo, uma mediação entre as estratégias mobilizadas pelo autor
145
para a produção de sentidos e o papel correspondente ao leitor, que deverá recuperar
o conteúdo de forma autônoma, o que também compreende um curioso tipo de
aliciamento que não dispensa a sua porção misteriosa, dado que o suposto
aliciamento deve ser velado, antes, todo o edifício poético estaria comprometido caso
o leitor suspeitasse apenas obedecer passivamente a um protocolo ditado por outrem,
em outras palavras, uma criação desse tipo, sobre todas as coisas, se disporia
diametralmente contra a ideia da criação poética. A propósito do papel cultural do jogo,
como investigado por Huizinga – e em que nos referenciamos para nosso estudo -,
Wolfgang Iser ocupou-se especialmente do papel do leitor nessa mediação de
sentidos - a que Huizinga atribui um papel lúdico - que, não sem motivo, referencia-se
em sua obra de 1976 como O jogo do texto (1996). Iser confere à estrutura verbal um
valor arquitetônico e compara, assim, o texto - no que respeita ao papel criador do
autor - a uma edificação; o autor destaca ainda o valor imprescindível de um certo
fator de liberdade do leitor, marcado pela autonomia; assim, se o autor projeta espaços
funcionais, interligados por corredores e outras passagens, o leitor estará
condicionado a eles, mas poderá, no entanto, mover-se por essas passagens e
mesmo criar nesses espaços fundamentais para o fazer literário que Iser chamou
espaços vazios (1996). Ao movimento do leitor pela arquitetônica do texto, contudo,
Iser chamou ponto de vista em movimento, expediente que permite ao leitor situar-se
no interior do texto:
[...] o ponto de vista em movimento possibilita ao leitor desenvolver a
diversidade relacional das perspectivas textuais, as quais, como já
observamos, se realçam cada vez que o ponto de vista salta de uma para
outra. Daí advém uma rede de possibilidades de relacionamento [...]. (ISER,
1996)
O pensamento de Iser fundamenta o valor que Affonso Romano de Sant’Anna atribui
à simbologia dos labirintos, que o autor relaciona entre os índices característicos da
estética barroca; para Sant’Anna, o homem barroco tomava as narrativas como “um
xadrez intricado, um jardim com mil aleias, um edifício com muitos corredores e portas”
(2000, p. 60). A arquitetônica textual, no âmbito dos enigmas literários, portanto,
assume o feitio de um labirinto, índice que, nos domínios da poesia, ganha múltiplas
feições, como demonstra Sant’Anna, que amplia radicalmente as dimensões do
labirinto, aproximando-o de outros índices da literatura clássica: para ele, a Torre de
Babel, bem como o caminho de Dante em busca de sua Beatriz, inscreveriam
labirintos:
146
Alguns labirintos vão para o centro da terra, como o inferno de Dante, outros
são horizontais e planos, e a Torre de Babel assinala o fracasso de um
labirinto arquitetônico ascensional ao mesmo tempo em que estabelece um
labirinto linguístico e o fim da linguagem única. (2000, p. 61, grifos
nossos).
Talvez tenha sido Borges – propositadamente um admirador dos labirintos e dos livros
(dos espelhos, ainda!)66 - contudo, quem tenha criado a síntese definitiva do labirinto
literário, que, naturalmente, também respeita ao princípio linguístico básico da
linearidade da língua: "prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha reta
e que é invisível, incessante." (2007, p. 135, grifos nossos). O labirinto linguístico,
especialmente no que obriga o leitor a mover-se, também pode evocar as já citadas
anamorfoses que, a essa altura de nossa análise, assumem em nosso trabalho uma
perspectiva bastante curiosa: não nos faltam relatos de leitores que dizem haver
encontrado no texto de Guimarães Rosa uma massa disforme; não nos faltam também
trabalhos que buscaram descrever com rigor as estratégias criadas pelo autor para o
desenvolvimento de sua poética singular – parece-nos sensato, portanto, propor que
Guimarães Rosa desenvolveu intricadas anamorfoses verbais, anamorfoses essas
que obrigam o leitor a mover-se pelos espaços do texto (ISER, 1996), e a explorar as
próprias perspectivas do espírito para recuperar as imagens ideais, que não serão
outra coisa senão os sentidos da escrita. Os enigmas anamórficos requerem um olhar
paciente, um olhar que insista na mirada: as anamorfoses verbais também não
prescindem de um investimento afetivo, de uma leitura paciente e repetida que
desvele os sentidos ocultos do texto. A mediação propiciada pelos enigmas literários
compreende, portanto, o ponto de convergência de dois labirintos que se ramificam
ao infinito: um, primeiro – centrífugo -, que se expande do texto aos seus contextos, o
outro, depois – centrípeto -, que penetra a subjetividade do leitor e, através das
membranas orgânicas, conduz aos insondáveis espaços do espírito: o grande enigma
da consciência -, e se é a razão o fio de Ariadne, Teseu, aqui, só logra perder-se.
Nosso exame da proposição arquitetônica, sugerida por Iser para o jogo do
texto, com efeito, preparou-nos para o esboço de uma conclusão sobre o
funcionamento linguístico das adivinhas, decorrente ainda do pensamento de André
66 Em entrevista concedida a María Esther Vázquez, em 1973, Borges falou de sua paixão pelos
labirintos: “Eu, para expressar essa perplexidade que me acompanhou ao longo da vida e que faz com
que muitos de meus atos sejam inexplicáveis para mim mesmo, elegi o símbolo do labirinto, ou, melhor
dizendo, o labirinto me foi imposto porque a ideia de um edifício construído para que alguém se perca
é o símbolo inevitável da perplexidade.” (BORGES, 2012, p. 171)
147
Jolles, que queremos desenvolver para o final deste tópico. Já ao fim de seu capítulo
sobre a forma simples da adivinha, Jolles retoma o exemplo de um célebre enigma:
“Como se chama o cão do Rei Carlos?” (1976, p. 124), enigma que também consagrou
a célebre resposta: é assobiando que se chama o cão do Rei Carlos. Observamos,
contudo, que o exemplo pode nos conduzir a duas conclusões bastante reveladoras:
a primeira – e conforme já denunciamos - é de que o exercício da adivinha é
essencialmente linguístico e, por isso, muitas vezes estará fundado no absurdo – o
que certamente atestará a sua natureza poética. Talvez devamos nos explicar melhor:
nos parecerá bastante coerente um interrogado que estanque diante da
impossibilidade de apontar, dentre todos os nomes possíveis, o nome correto do cão
do Rei Carlos; a coerência, é claro, se justifica pelo fato de que a pergunta, obviamente
diz respeito ao nome próprio do animal e, ainda, pela certeza de que a nenhum súdito
caberá o papel de chamar pelo cão. O indagado pela adivinha, contudo, deverá saber
que a charada pressupõe a capacidade de respondê-la – por que nosso pai não
desembarca? Por que não vai definitivamente embora? -, assim, diante da
impossibilidade de saber o nome próprio do cão, o desafiado buscará uma resposta
qualquer: não é uma resposta pragmática – antes, é uma resposta de base linguística,
uma resposta poética, melhor diríamos, que, de alguma forma, sirva à pergunta. A
segunda conclusão a que chegamos, em decorrência do exemplo de Jolles, também
reforça algo que já mencionamos: a famosa resposta da adivinha mobiliza relações
entre categorias francamente descontínuas: de um lado nomes próprios – Argos,
Baleia, Cuca Pingo-de-Ouro -, de outro, ações expressas por verbos – gritando,
cantando, assobiando. A argúcia que comumente se atribui a um bom decifrador de
enigmas, com efeito, parece encontrar uma justificativa: como as adivinhas mobilizam
sentidos que se constroem entre diferentes elementos, que também se organizam
mesmo entre categorias distintas, o seu decifrador deverá mover-se com rapidez e
desenvoltura entre tais categorias para fazer associações complexas e produzir o
sentido desejado; tal movimento, contudo, representa, na verdade, uma rapidez de
pensamento: o herói da adivinha é, portanto, um herói de linguagem, que dispõe de
um pensamento ágil que lhe assegure a saída dos desafios impostos.
A célebre adivinha de Jolles encontra paralelo nos exemplos relacionados por
Rosa em “Aletria e hermenêutica”, casos em que o humor produzido pelo autor se
deverá, mesmo, à falta de habilidade dos personagens para encontrar a saída em
148
situações óbvias: são perus que se acreditam presos no círculo de giz de paredes
imaginárias, encontram-se imobilizados, diante da dura imposição da realidade, pela
goma-arábica da linguagem -, confundem, portanto, a dimensão do simbólico com o
plano das coisas práticas. É o caso do homem que se recusa a mudar do banco que
se dispõe sob uma goteira, em um ônibus vazio, justamente porque não há outro
passageiro com quem executar a troca; mistura-se, portanto, o gesto primitivo de se
mover, com o intuito de proteger-se, com a ação de trocar algo com alguém, expressa
pelo verbo que também serve ao movimento (ROSA, 2009, p. 31).
O argumento em favor de uma agilidade corporal que se projeta, por meio de
formas de base linguística, em uma velocidade de pensamento, encontra, inclusive,
acolhida em um dos autores que compõem o reservado panteão de Guimarães Rosa:
Em seu ensaio sobre a significação do cômico, O Riso, Henri Bergson sugere que a
imaginação humana atribui graciosidade às formas móveis, fluidas, ou, como as temos
chamado, às formas ágeis67:
nossa imaginação tem sua filosofia bem decretada: em toda forma humana
ela percebe o esforço de uma alma que modela a matéria, alma infinitamente
maleável, eternamente móvel, isenta da gravidade por não ser a terra que a
atrai. Essa alma comunica algo de sua leveza alada ao corpo que anima: a
imaterialidade assim transferida à matéria é o que se chama de graça. (1980,
p. 23)
De modo contrário, tornam-se risíveis as formas rígidas, às quais falta a fluidez dos
movimentos precisos, o que fundamentaria, para o autor, inclusive, o funcionamento
das caricaturas, cujo humor estaria fundamentado em um certo desengonço
decorrente de orelhas muito grandes ou de um nariz muito pronunciado:
“Automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado, são traços pelos quais uma
fisionomia nos causa riso.” (BERGSON, 1980, p. 21)
Os enigmas de linguagem, portanto, prescrevem uma agilidade que se
expressa por meio da rapidez de pensamento: o herói adivinho deverá mover-
se/pensar com rapidez e desenvoltura entre parâmetros descontínuos, que
compreendem categorias diferentes – e muitas vezes inconciliáveis - para fazer
associações entre os diferentes códigos que o enigma reúne, a fim de descobrir o
elemento unificador oculto. Tais movimentos, contudo, podem ser representados por
67Guimarães Rosa dispunha de um exemplar da edição francesa de O riso, Le Rire, publicada em 1946
pela editora PUF (SPERBER, 1976, p. 164).
149
designações muito específicas entre os estudos de linguagem, mesmo em seu âmbito
mais elementar.
5.3 ANALOGIA: METÁFORA E METONÍMIA – OS LIMITES DOS ENIGMAS
VERBAIS
Temos adotado em nosso trabalho a prática de encerrar todos os tópicos de
análise com um breve ensaio dos limites de cada tema analisado. Encerramos este
capítulo, contudo, com um alvo que, de forma ambígua, bem poderia haver
representado um ponto de partida, o que talvez seja um índice da circularidade do
tema da linguagem ou, quem sabe, de como pensamento e linguagem ainda
persistem a nos lançar em perplexidade todas as vezes em que vislumbramos
apreender qualquer elemento que os constitua, justamente por extrapolarem os limites
da lógica, dado que são fenômenos que não se deixam apreender facilmente pelos
apriorismos de tempo e espaço. O ponto de que queremos tratar ao final deste
capítulo, que bem poderia ser o ponto de partida de um desenvolvimento que queira
ocupar-se das questões da linguagem, é o problema da metáfora. Como o assunto,
contudo, constitui um dos tópicos mais elementares dos estudos de linguagem e
mesmo de arte literária, nos permitiremos dispensar toda a preleção introdutória sobre
a questão da metáfora e partir direto para as relações que interessam especificamente
a este ensaio, certos de que o nosso leitor já é conhecedor dos fundamentos da
matéria.
Já transitávamos, com efeito, pelos limites da metáfora quando investigávamos
o mecanismo linguístico das adivinhas, que estendemos aos enigmas literários de
uma forma geral: constatamos, a partir das observações de André Jolles, que a
interpretação das adivinhas concebia um movimento entre parâmetros descontínuos,
compreendidos em categorias diferentes. Um olhar mais atento às metáforas
perceberá que, para além da denotação entre elementos diferentes – e isolados -, no
jogo da língua a metáfora estabelece relações entre séries, ou, como as temos
chamado, entre categorias, como acontece quando dizemos que “um professor está
verde”: dispomos em paralelo as duas séries de sentido: etapas do desenvolvimento
de um professor e fases de amadurecimento de frutos – séries essas, francamente
descontínuas, como observou Nelson Goodman em sua obra Linguagens da arte:
150
[...] a metáfora envolve tipicamente uma mudança não apenas de domínio,
mas também de região. Uma etiqueta que juntamente com outras constitui
um esquema está com efeito separada da região original desse esquema e é
aplicada para classificar e organizar uma região estrangeira. [...] O que
acontece é uma transferência de um esquema, uma migração de
conceitos, uma alienação de categorias. (2006, p. 98-99, grifos nossos).
O intérprete dos enigmas, portanto, pode ser tomado também como um curador dos
sentidos das metáforas. O pensamento de Goodman, contudo, poderá levar-nos a
conclusões ainda mais interessantes para a análise que empreendemos,
especialmente se considerarmos que as metáforas se entrelaçam, de forma mesmo
inextricável, com alguns dos elementos mais essenciais da cultura, como sugere
Octavio Paz:
O princípio metafórico é o fundamento da linguagem, e as primeiras crenças
da humanidade são indistinguíveis da poesia. Sejam fórmulas mágicas,
ladainhas, preces ou mitos, estamos diante de objetos verbais análogos aos
que mais tarde seriam chamados de poemas. (2013, p. 59)
Se as metáforas compõem o arranjo das bases da cultura e integram o tecido da
poesia, Nelson Goodman, para melhor analisá-las, pergunta-se sobre o que elas não
são; em oposição, e por contraste, o autor se referirá às palavras literais.
Curiosamente – e mesmo para o espanto de exploradores desavisados -, Goodman
denunciará que a análise arqueológica de uma palavra literal levará a uma metáfora
e então se fará a pergunta: “Será então uma metáfora unicamente um fato jovem e
um fato unicamente uma metáfora senil?” (2006, p. 95). Assim, para o autor, os
vocábulos que tomamos como palavras de sentido literal, concreto, nada mais são do
que metáforas que perderam o vigor e que, por isso mesmo, foram acrescidas de sua
especificidade para designar as coisas do mundo sensível:
Estranhamente, contudo, ao perder progressivamente a sua virilidade
enquanto figura de estilo, uma metáfora não se torna menos semelhante a
uma verdade literal mas mais. O que desaparece não é a sua veracidade,
mas a sua vivacidade. As metáforas, como os novos estilos de
representação, tornam-se mais literais à medida que a sua novidade
desaparece. (GOODMAN, 2006, p. 95)
A constatação de Goodman é intrigante, mas não deveria nos causar surpresa. Um
leitor que tenha logrado compreender o insinuante título do ensaio seminal de Octavio
Paz, Os signos em rotação68, haverá entendido que, para além de qualquer lirismo
68O ensaio Os signos em rotação foi publicado pela primeira vez em 1965 e foi integrado, mais tarde,
à obra O arco e a lira como seu epílogo.
151
descomprometido com os rigores do pensamento, que eventualmente se queira
imputar ao poeta, Paz descreve com uma objetividade surpreendente a dimensão
sincrônica do processo a que nos dedicamos: a sintaxe opera uma violência na frase,
imobiliza os signos para que signifiquem menos e, por isso, sejam mais específicos;
a poesia libera os signos de suas amarras, amplia-lhes os significados, confere-lhes
movimento ou, como quer o autor, põe-nos para girar (PAZ, 2012). À proposição de
Paz, Goodman talvez pudesse responder, sempre retomando o eixo histórico: “Em
poucas palavras, uma metáfora é um namoro entre um predicado com um passado e
um objeto que aquiesce sob protesto” (2006, p. 96).
A inquietante ideia de que na linguagem tudo tem base nas metáforas pode
mesmo ser ainda ampliada. Queremos destacar um ponto dos tópicos anteriores que
preferimos não antecipar, por não estar, pensamos, suficientemente maduro: Iser
confere um estatuto arquitetônico ao ato da leitura – decorrente, naturalmente, do ato
da escrita – que, conforme entendemos, não retrata a realidade concreta: também é
uma metáfora. Talvez por incapacidade de explicar os processos que determinam o
pensamento – o que não é uma incapacidade de Iser, mas uma impossibilidade de
todo humano, o que outra vez afirmaria a ideia dos apriorismos kantianos –, Iser se
vale de uma outra categoria, a categoria arquitetônica, que o autor dispõe em paralelo
com a inapreensível estrutura do espírito. Assim, se aceitamos que na linguagem tudo
é metáfora, talvez possamos arriscar um passo além: para o pensamento, tudo é
metalinguagem.
A ideia de uma apreensão metafórica – ou mesmo metalinguística – do mundo
devolve-nos à concepção da analogia, como pensada por Octavio Paz. É a analogia,
inclusive, que fundamenta a ideia, em princípio absurda, de uma apreensão
metalinguística do mundo, posto que, para Paz, "A linguagem é o homem, mas
também é o mundo." (2013, p. 152). O mundo da experiência sensível, inclusive, para
o autor, não se distingue do mundo da linguagem: "O texto que é o mundo não é um
texto único: cada página é tradução e metamorfose de outra, e assim sucessivamente.
O mundo é a metáfora de uma metáfora. O mundo perde sua realidade e se
transforma numa figura de linguagem." (PAZ, 2013, p. 79, grifos nossos). Em uma
vertigem poética, o crítico mexicano recorre a Baudelaire para sugerir que o mundo
criado pelos atos de fala de Deus, não seria um conjunto de coisas, mas, antes, um
conjunto de signos. (2013, p. 79). Se o universo, com efeito, compreende uma escrita
152
cifrada, o poeta, sugere o autor, é o seu decifrador: “Cada poema é uma leitura da
realidade; essa leitura é uma tradução; essa tradução é uma escrita: um voltar a cifrar
a realidade que se decifra. O poema é um duplo do universo: uma escrita secreta,
um espaço coberto de hieróglifos." (PAZ, 2013, p. 79, grifos nossos)
É da analogia que se vale Affonso Romano de Sant’Anna para ligar conceitos
díspares que vimos tentando aproximar – a linguagem, a arquitetônica, o enigma, a
analogia – quando supõe que “toda linguagem é elíptica, pois todas são alusivas,
analógicas, alegóricas.”69 (SANT’ANNA, 2000, p. 101). Para o autor, ainda, a elipse
retórica representa a voluta na arquitetônica do texto, uma estrutura que ocultaria os
sentidos que a crítica se esforça por revelar (2000, p. 101). Sant’Anna aproxima o
conceito de cultismo, característico do Barroco, da noção de ocultismo que, para o
autor, se entenderia como “uma manifestação mística e mágica das relações entre o
homem e o universo. Dois lados da dobra do micro e do macrocosmo, do material e
do espiritual” (2000, p. 105). Assim, o ocultismo se ocuparia da passagem entre duas
dimensões do homem e corresponderia a uma manipulação do poder mágico, na
mesma medida em que a arte representaria a elaboração do poder estético: o poeta
escreve, o iniciado ocultista afeta o mundo real por meio de palavras mágicas – uma
visão que certamente encontraria acolhida em Octavio Paz, que designa o artista da
palavra como um feiticeiro (2012). Atribuir uma matriz mágica à linguagem, não seria,
para Walter Benjamin, um desvario poético: para o autor, a linguagem verbal
compreende mesmo uma convergência das práticas mágicas e divinatórias que o
gênero humano desenvolveu ao longo dos séculos:
Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o
primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existiram elos
mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se supor
que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou
gradativamente, no seu desenvolvimento ao longo de milênios, para a
linguagem e para a escrita, nelas produzindo o mais completo arquivo de
semelhanças não-sensíveis. (2012, p. 121)
69 A ideia de Sant’Anna sobre a elipse como um ocultamento, que o autor mesmo associa à ideia de
um eclipse a partir do ocultamento de uma letra, ganha, a essa altura, um significado curioso em nosso
trabalho. O prefácio “Aletria e hermenêutica”, a que tanto nos dedicamos neste capítulo, justamente
por ocupar-se de questões de linguagem, também se destaca-se por um segundo tema: o humor –
expresso pelos chistes e pelas tantas anedotas que o autor relaciona. Destacamos, portanto, que se a
palavra presente no título, aletria, eclipsa uma letra “G”, oculta por detrás do “T”, temos então o tema
da alegria, tão caro a Guimarães Rosa, oculto no título do prefácio.
153
Assim, sugere o autor, “O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas
estrelas.” (2012, p. 121).
A noção de metáfora se faz naturalmente acompanhar da ideia de metonímia,
que, no ponto que atingimos em nosso desenvolvimento, reveste-se de significados
singulares, especialmente se considerarmos que as marcas de estilo, na arte,
compreendem uma essência metonímica: se o estilo designa por etimologia a haste
metálica com a qual se escrevia sobre as placas de barro ou tábuas enceradas
(CUNHA, 2010, p. 271), toma o ato de escrever por um objeto que, naturalmente, não
escreve. Talvez tenha sido o Lorde de Buffon quem nos tenha autorizado a uma
ousadia quando proclamou que o estilo é o homem (LECLERC, 2011): o que seria o
estilo, se não é exatamente a haste (a caneta, em uma atualização) que fere a tábua
(o papel)? Aonde nos leva essa indagação? Se não é a haste, seria a mão que a
sustenta? Ou o braço que move a mão? Ou o corpo que sustenta o braço? Ou o
espírito que anima o corpo? A metonímia, portanto, compreende a noção de uma
inscrição: concebe, assim, a imagem de uma escrita profunda: uma escrita que
inscreve o homem, ele, já imbuído de todas as inscrições com que se orienta no
mundo sensível.
A noção de inscrição, de marcas de escritura, que marcam, inclusive – e
sobretudo! – o homem, assume uma dimensão capital na obra de um autor como
Guimarães Rosa que, se por um lado sofreu com as insinuações de que não seria um
autor engajado70 - falamos de um engajamento político, é claro -, por outro lado,
sempre se revelou militante de uma escrita engajada com a vida, que desejou, por
meio da escrita, devolver ao homem:
a vida em sua forma original. Legítima literatura deve ser vida. Não há nada
mais terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura só
pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz daquilo que eu chamo
“compromisso do coração”. A literatura tem de ser vida! O escritor deve
ser o que ele escreve. (apud LORENZ, 1973, p. 341, grifos nossos).
A inscrição, ou, a escrita profunda, como a temos chamado, especialmente no que
respeita ao objeto de nosso ensaio, o enigma literário, remete-nos à singular ideia de
um palimpsesto. Aliás, tomada a ideia de um sujeito que escreve e se inscreve, e é
70 Em sua célebre entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz, Guimarães Rosa deu testemunho de
tensões relativas a esse tema, envolvendo renomados escritores, em encontros internacionais sobre
literatura, como, por exemplo o “Congresso de Escritores Latino-Americanos”, ocorrido em Gênova, em
janeiro de 1965.
154
ele próprio o produto de incontáveis inscrições, o palimpsesto se expande em sua
concepção para além de uma ocorrência delimitada – e rara! – na cultura, visto que
todo texto oculta outros tantos. Há, em Grande Sertão: Veredas um palimpsesto
singular que tantas vezes escapou aos olhos da crítica, apontado em um dos mais
belos trechos da obra. Acuado na fazenda dos Tucanos, o bando de Riobaldo
encontra-se em uma situação limite, mesmo desesperadora: estão cercados por todos
os lados, por um grupo muito mais numeroso; os cavalos do bando já foram fuzilados
em uma das cenas mais dramáticas de todo o livro e estão descartadas as já
improváveis possibilidades de uma fuga montada; o cerco traz ao bando a ameaça do
fim de suas parcas provisões; ameaça-os ainda o medo de que a água que lhes chega,
no meio da casa, por um estreito riachinho, seja envenenada pelos inimigos;
aterrorizam-nos ainda os seus mortos, trancados em um quartinho, no centro da casa,
cujo cheiro pestilento ameaça tornar o ar irrespirável -, ao grupo, parece não haver
saída e a morte pouco a pouco se materializa como uma certeza apenas adiada. A
saída possível, é, então, sugerida por Zé Bebelo, ainda líder do grupo, na ocasião:
escrever uma carta com um pedido de socorro, que seria conduzida por dois jagunços
que rastejariam no mais escuro da madrugada, para entregá-la às autoridades. A
solução, contudo, também compreende um alto preço e representa apenas o escape
da morte iminente: o bando, aos olhos das autoridades instituídas, dispunha-se à
margem da lei -, os jagunços, portanto, se fossem salvos pelos militares, seriam
presos, ato contínuo. Riobaldo, então, ressente-se, se deixa tomar de desconfiança:
tem a certeza de que o plano representa, na verdade, uma traição de Zé Bebelo que
quer entregar o bando aos militares, certo de safar-se por sua antiga relação com os
soldados. Não há, contudo, outra possibilidade de escape e Riobaldo, mesmo tomado
de ressentimento e desconfiança, terá que ceder: e será ele mesmo o responsável
pela redação da carta. Diante da morte, que se materializa na casa da fazenda e
mostra sua face mais horrenda, a única saída possível é a escrita de um documento;
em meio à guerra, Riobaldo, entre os gritos - dos inimigos e de seus companheiros -,
a explosão dos tiros e o rumor das balas, que entram pela janela em profusão e
ricocheteiam pelas paredes, deverá sentar-se, abaixar sua cabeça e... escrever! Em
meio ao estrondo dos tiros, Zé Bebelo insiste: ““Escreve, filho, escreve, ligeiro...”
(ROSA, 2001, p. 417). A comovente imagem sertaneja, contudo - e para nosso
espanto -, parece a superfície espelhada que nos devolve a nossa própria imagem, a
imagem dos educadores, a quem coube o papel de convencer jovens expostos à
155
violência e a toda sorte de privações que eles devem escrever, porque, mesmo diante
de uma realidade objetiva que se sugere mais urgente, a escrita é a única saída
possível: escreve, filho, escreve ligeiro... Não há, no entanto, papel disponível na casa
da fazenda dos Tucanos! A carta redentora, portanto, deverá ser escrita sobre antigos
documentos encontrados nas gavetas dos móveis que se encontram no lugar: antigas
cartas, notas de compra e venda, de escravos, inclusive... A nova mensagem
compreenderá, por entre os seus sinais, as marcas de escritura das antigas estórias:
é um palimpsesto -, compreende também as marcas que - por metáforas, metonímias
e analogias – inscrevem os próprios autores e aqueles que os precederam, é também
um intricado enigma que aproxima elementos que buscamos unificar. As novas
histórias, contudo, sempre se inscrevem por sobre as antigas e buscam uma saída
possível: querem dar um melhor final às antigas narrativas. Os sinais da escritura,
para Derrida, estão mesmo investidos da propriedade de ser o terreno onde tantos
contraditórios se encontram:
Produção e intuição, o conceito de signo será, pois, o lugar de cruzamento
de todos os traços contraditórios. Todas as oposições de conceitos aí se
reúnem, aí se resumem e se abismam. Todas as contradições parecem se
resolver aí, mas, simultaneamente, o que se anuncia sob o nome signo
parece irredutível ou inacessível a todas as oposições formais de conceitos:
sendo, ao mesmo tempo, o interior e o exterior, o espontâneo e o receptivo,
o inteligível e o sensível o mesmo e o outro etc, o signo não é nada disso
tudo, nem isto, nem aquilo, etc. (DERRIDA, 1991, p. 116)
Derrida aproxima a différance de um enigma, assinalado na escritura, que se
marca por uma falta, o que consonaria com a noção de elipse de Affonso Romano de
Sant'Anna e também contribuiria para reforçar o argumento central do nosso ensaio,
expresso pelo modelo de "A terceira margem do rio", que tomamos como paradigma
do enigma literário; aqui, também, e agora em seu plano semântico, o enigma se
assinala por uma ausência: o enigma da imensa falta do pai. A evidência dessa falta
convida-nos a uma indagação sobre o estatuto da metáfora, a que nos dedicamos
neste capítulo. Os enigmas de linguagem, naturalmente, se constroem a partir de uma
matriz linguística e, por isso mesmo, encontram nas adivinhas um modelo exemplar,
visto que a adivinha não busca uma resposta exata, para uma pergunta de finalidade
prática, antes, busca a continuidade do próprio jogo linguístico, uma vez que requer
apenas uma resposta perspicaz, suficiente ao jogo do texto. O processo de decifração
dos enigmas de linguagem, por sua vez, requer do decifrador uma habilidade
específica, que será, com efeito, uma habilidade linguística e não será outra coisa
156
senão agilidade e rapidez de pensamento, visto que o interrogado deverá refletir com
rapidez e desenvoltura, mesmo entre categorias diferentes, para encontrar as
associações adequadas, entre os diferentes códigos que o enigma reúne, e descobrir,
por fim, o elemento unificador que está oculto. Os movimentos que o espírito faz por
entre as categorias, no entanto, podem ser predicados como metáforas, metonímias
e analogias, posto que as metáforas já compreendem naturalmente um salto de
categorias. Octavio Paz, como já havíamos citado, sugere que "A analogia é o reino
da palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimi-las, reconcilia as diferenças e
as oposições." (2013, p. 74-75, grifos nossos). Surge, portanto, ao final de nosso
trabalho, o que, à primeira vista, pode aparentar ser apenas uma minúcia, uma
sutileza, mas, ao que nos parece, reveste-se de uma importância capital. Falamos
durante todo este capítulo sobre o movimento do pensamento entre categorias
distintas e agora nos perguntamos: como se dá esse movimento? Seremos mais
específicos: Octavio Paz faz referência a uma ponte – uma metáfora, certamente -,
por outro lado, cresce, ao fim de nosso desenvolvimento, a importância da simbologia
do vazio, a marca da ausência. No último capítulo de nosso ensaio, nos dedicaremos
à descontinuidade: trataremos do enigma do salto.
157
CAPÍTULO 6. O ENIGMA DO SALTO
Nesse teu Nada aspiro a achar o Todo.
(Goethe, Fausto, segunda parte)
Dedicamo-nos, em nosso capítulo anterior, a investigar o mecanismo próprio
do enigma literário de base linguística, a partir da forma da adivinha, manifestação
que tomamos como modelo exemplar do enigma de natureza verbal. Percebemos que
o enigma de base linguística constrange o indagado a mover-se com rapidez e
desenvoltura por entre categorias descontinuas, a fim de fazer as associações
necessárias e encontrar o elemento unificador do enigma. O movimento que se impõe,
compreende-se, é claro, pelos influxos do pensamento. Perguntamo-nos, contudo, ao
fim do capítulo, se o movimento de interpretação se dá de forma contínua - como pela
travessia de uma ponte -, ou de forma descontínua, como pelo salto de abismos.
Desculpamo-nos com nosso leitor: a pergunta é retórica e não poderemos mesmo
respondê-la, pois já nos encontramos nos domínios do espírito, onde as formas se
confundem e o tempo torna-se apenas a matéria da nossa percepção das coisas do
mundo e de nós mesmos. Destacamos, contudo, a natureza inapreensível da questão
que propusemos. Destacamos, muito especialmente, também, que a simbologia da
descontinuidade compreende um elemento estético estruturante na obra de
Guimarães Rosa, como pretendemos demonstrar neste capítulo. Tal estética da
descontinuidade, contudo, se constrói, é verdade, de maneira algo furtiva e em
diferentes planos da criação literária: ora como símbolo/imagem, ora como elemento
semântico -, de modo que podemos mesmo compreendê-la como mais uma
expressão do enigma na obra do autor.
Uma estética da descontinuidade, contudo, compreenderá, necessariamente,
o assinalamento de um vazio: o nada -, imagem que supomos tantas vezes
representada na obra de Guimarães Rosa, como, por exemplo, na emblemática
palavra que abre o romance, Grande Sertão: Veredas: “Nonada” (ROSA, 2001, p. 29).
Sugerimos que a palavra que abre o livro de Rosa é emblemática, contudo, por tudo
o que ela compreende em um contexto mais amplo, e não apenas por seu valor lexical.
A palavra nonada, que sugere a ideia de que algo não é nada, compreende, na obra
de Rosa, uma afirmação do nada, do vazio, embora, em Tutaméia, destaque-se uma
natureza infinitesimal que, no entanto, não prejudica o sentido que sugerimos para
158
Grande Sertão. O estranhamento propiciado pela palavra inicial do romance, contudo
se faz acompanhar de outros, mesmo maiores, como o destacado final do livro,
assinalado por um símbolo, como uma palavra final, a representação gráfica da
lemniscata, que não cumpre função de adorno, restrita ao âmbito gráfico ou editorial,
antes, é um elemento próprio da obra, que não foi omitido em nenhuma das edições
de Grande Sertão: Veredas. Os dois exemplos a que nos referimos – a primeira e a
última palavra do livro - compõem sentidos velados de forma conjunta. Willi Bolle
(1973) propôs-se a criar uma gramática narrativa que contivesse a descrição de todas
as narrativas curtas de Guimarães Rosa – entre as quais o autor relacionou as novelas
de Corpo de Baile -, expressas por meio de setenta e sete fórmulas de feitio quase
matemático. Atrevemo-nos a sugerir que também o romance de Rosa, senão na
dimensão da fábula, de que se ocupou Bolle, mas em um âmbito metafísico, também
admite uma fórmula, essa – talvez justamente por querer-se metafísica – ainda mais
sintética do que as sugeridas em Fórmula e fábula (BOLLE, 1973), que seria expressa
assim: o nada (nonada) + a travessia + o tudo (infinito). Destacamos ainda que a
palavra “travessia” (ROSA, 2001, p. 749), com todo o valor cultural – e mesmo afetivo
-, que representa para a recepção de Rosa, dispõe-se imediatamente antes do
símbolo da lemniscata que encerra o romance. Se tomarmos em conta a importância
das construções espelhadas para a poética de Guimarães Rosa, podemos mesmo
sugerir que a palavra “travessia” se equivalha em valor a todas as demais que se
disponham entre ela e a primeira palavra do livro, “nonada”, de forma que podemos
assim sugerir uma variação da fórmula metafísica que propusemos:
o nada + a travessia = a travessia + o tudo
Ou, ainda:
159
As representações do nada, especialmente como expressas pela palavra que
abre Grande Sertão: Veredas, nonada, não estão, é claro, restritas ao único romance
de Rosa: a palavra se relaciona no equívoco glossário que o autor dispôs ao fim do
último prefácio de Tutaméia, “Sobre a escova e a dúvida”, como um sinônimo do título
do próprio livro: “tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta,
quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia.”
(ROSA, 2009, p. 233, grifos nossos) -, o que estaria de acordo com o projeto de um
livro que, segundo o classifica o autor, pode valer pelo que não contém: “O livro pode
valer pelo muito que nele não deveu caber.” (ROSA, 2009, p. 40) -, ou equivaler ao
que não é, ou, ainda, ao nada.
Para além das imagens poéticas, as descontinuidades, – assinalamentos de
ausências – do ponto de vista semântico, podem ser compreendidas como faltas,
mesmo no âmbito psicológico (FREUD, 1996), o que nos devolveria ao paradigma do
enigma literário que adotamos para nosso trabalho, o conto “A terceira margem do
rio”, que inscreve o abismo da imensa falta do pai. Tal falta, contudo, não pode ser
reduzida a um aspecto puramente negativo, visto que compreende um enigma
pulsante, que assinala sua presença como a marca mais expressiva de toda a vida do
narrador, de forma que podemos entendê-la como o que poderíamos chamar uma
falta concreta, uma falta que reclama sua própria presença.
A poética do nada não é, é claro, uma exclusividade de Guimarães Rosa.
Octavio Paz que, por meio da sua noção de analogia, indica uma visão espelhada e
monadologica do mundo, sugere que o sentido emerge do nada (2013, p. 79). Para o
autor - e como já citamos anteriormente - o mundo é como um grande texto que resulta
das metamorfoses de tantos outros, que se correspondem como metáforas de
metáforas, porém: "No centro da analogia há um oco: a pluralidade de textos implica
que não há um texto original. Nesse oco se precipitam e desaparecem,
simultaneamente, a realidade do mundo e o sentido da linguagem." (PAZ, 2013, p. 79)
- Assim, realidade e linguagem amarram-se, reúnem-se nesse oco que as unifica: no
nada. A propósito, o poeta e crítico mexicano também define "A poesia como máscara
do nada." (PAZ, 2013, p. 83), o que, tomado a sério, sugeriria que as formas poéticas
compreenderiam a aparência sensível do nada. A ontologia de Heidegger, por sua
vez, sugere que o Ser da palavra original se recolhe no silêncio: no nada -, a propósito,
160
para o autor, a palavra originária e o seu silenciamento – a sua negação, o seu nada
– se equivalem:
A coleta que abriga e recolhe o ente como tal já é originariamente aquela
relação em que o homem per-cebe em silêncio e com silêncio o ser dos entes,
o ente em seu ser, o ente como tal. Esse silenciamento do ser é o dizer e o
nomear originários, é a palavra originária que vem ao encontro da contréa do
ser, é a primeira resposta (Wort-Antwort) em que paira toda palavra que se
desdobra no dizer e se pronuncia na pa-lavra da linguagem. (HEIDEGGER,
1998, p. 388)
De sua parte, Gilles Deleuze aponta a natureza espelhada dos paradoxos e sugere
que tais estruturas representam a mais alta potência da linguagem, na medida em
que se configuram como doadores de sentido (2015, p. 81). Tal doação de sentido se
daria a partir de um vórtice que seria, justamente, um ponto vazio, que, identificado
com a estética de Lewis Carroll, Deleuze chamou casa vazia71:
O sentido, não como aparência, mas como efeito de superfície e de posição,
produzido pela circulação da casa vazia nas séries da estrutura (lugar do
morto, lugar do rei, mancha cega, significante flutuante, valor zero, cantonada
ou causa ausente etc.) (2015, p. 73, grifos nossos).
A casa vazia, para Deleuze, identifica-se, com efeito, com o espelho, nas séries de
paradoxos, por sua função: é também ela um "princípio de emissão de singularidades"
(DELEUZE, 2015, p. 53), o elemento diferenciante. A propósito dos paradoxos,
Deleuze relaciona a produção de sentidos a partir da casa vazia a outros dois
elementos que se apresentam na constituição do prefácio “Aletria e Hermeneutica”: o
humor e os problemas-provas dos Koan do Zen (2015, p. 139); oportunamente,
depois de havermos apontado as temáticas da linguagem e do humor, podemos
relacionar um terceiro tema que também se apresenta de maneira furtiva, enigmática,
no primeiro prefácio de Tutaméia, que é, propriamente o problema do nada:
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de
operações subtrativas, nesta outra, que é uma definição “por extração” — “O
nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo...” (Só que, o que assim
se põe, é o argumento de Bergson contra a ideia do “nada absoluto”: “...
porque a ideia do objeto ‘não existindo’ é necessariamente a ideia do objeto
‘existindo’, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela
realidade atual tomada em bloco.” Trocado em miúdo: esse “nada” seria
apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.) (ROSA, 2009, p. 32, grifos
nossos)
A proposição de Rosa, em Tutaméia, é capital para a nossa análise: a falta afirma a
presença -, ideia que fortalece, inclusive, a fórmula que propusemos para Grande
71A casa corresponderia a cada um dos espaços do tabuleiro de xadrez, jogo que determina a estrutura
narrativa das aventuras de Alice através dos espelho (CARROLL, 2009).
161
Sertão: Veredas: o nada + a travessia = a travessia + o tudo. Para além da exposição
que citamos, o prefácio versa sobre a semântica da abstração, sobre os efeitos
produzidos por uma negação, como se pode perceber na anedota do sujeito que diz:
“Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não
tenho casa...” (ROSA, 2009, p. 30); ou na já referida estória do sujeito condenado a
ficar sob a goteira devido ao nada da existência de pelo menos um segundo
passageiro com quem ele pudesse trocar de lugar (ROSA, 2009, p. 30-31) – em
ambos os casos, o efeito produzido – em especial o efeito de humor – decorre
justamente do elemento semântico negado. Assim, para Deleuze, a casa vazia é o
lugar do acontecimento: espaço do devir -, é a região da produção de sentido; ao que
Rosa talvez respondesse que o sentido de um livro pode advir de suas casas vazias,
ou, melhor dizendo, de seus quase-nadas.
Uma semântica do nada, no entanto, pode compreender um desafio para a
lógica formal, ou mesmo um estorvo para um espírito excessivamente pragmático,
como o consagrado por nosso tempo. Octavio Paz, por outro lado, sugere que a ideia
de negação constitui mesmo o princípio da metaironia, própria da arte como um todo,
princípio esse que, no âmbito da arte poética, fundamenta o que o autor chama
remédio da literatura:
a literatura é a exaltação da linguagem até sua anulação, a pintura é crítica
do objeto pintado e do olho que olha. A metaironia liberta as coisas de sua
carga de tempo e os signos, de seus significados; é um pôr em circulação os
opostos, uma animação universal em que cada coisa volta a ser seu contrário.
(2013, p. 118)
A concepção de Paz, com efeito, inscreveria Tutaméia, uma obra marcada pela
negação e pelas ambiguidades, que leva a linguagem a uma condição limite, como
uma obra francamente metaironica. Se os sentidos do nada desafiam o espírito
moderno, a noção do vazio, contudo, compreende parte indissociável da experiência;
negá-lo, portanto, pode representar um perigo, como assinala Heidegger:
Porque os filósofos antinaturalistas não quiseram levar em conta o vazio, o
vazio se apoderou de tudo. Seu Ser, seu Uno, seu Todo são sempre artificiais
e não naturais, sempre corruptíveis, evaporados, porosos, inconsistentes e
quebradiços. Eles preferiram dizer: "o ser é nada", a reconhecer: há seres e
há o vazio, há seres simples no vazio e vazio nos seres compostos. (1998, p.
275)
Retomamos, ao final deste tópico, o problema com que o introduzimos, por
meio de uma pergunta que já confessamos retórica: o movimento do espírito –
162
expressão do pensamento - se dá de forma contínua - como pela travessia de uma
ponte -, ou de forma descontínua, como pelo salto de abismos? Octavio Paz recorre
à imagem de uma ponte – via de comunhão entre o eu e o mundo que, no entanto,
não suprime uma descontinuidade fatal:
O pensamento e a linguagem são pontes mas, precisamente por isso, não
suprimem a distância entre nós e a realidade exterior. Com esta ressalva,
podemos dizer que a poesia, a festa e o amor são formas de comunicação
concreta, quero dizer, de comunhão. Não é um intercâmbio de notícias, mas
sim uma fusão.” (PAZ, 1994, p. 182)
Heidegger, por seu lado, assume outra perspectiva: não assinala a passagem, mas o
vazio sob ela. A descontinuidade, assim, assume a designação de um abismo: "O
âmbito do pensamento e âmbito do pensamento essencial constituem, por assim
dizer, dois mundos separados por um abismo, um contra o outro, um sobre o outro."
(HEIDEGGER, 1998, p. 130). A poética de Guimarães Rosa, contudo, e sem prejuízo
de toda a complexidade que lhe é própria, também assume, por vezes, o
despojamento das formas simples, expressas mesmo na forma da via ascensional dos
personagens que aprendem: compreende uma poética da travessia. Quando os
abismos se entreabrem, contudo, no meio da travessia de seus heróis, não há,
naturalmente, outra saída: é necessário saltá-los72.
6.1 OS ABISMOS DA EXISTÊNCIA E A POÉTICA DO SALTO (PARA OS
CRESCERES DA ALMA)
“Sapo não pula por boniteza,
mas porém por percisão.”
(Provérbio capiau.)
Dizíamos, ao fim do tópico anterior, que a poética de Guimarães Rosa se marca
pela via ascensional ao longo da qual seus personagens aprendem e se depuram das
contradições do ego: é, portanto, uma poética da travessia, expressa pelas tantas
viagens que seus personagens empreendem pelos vastos espaços do sertão.
Dizíamos ainda que se as veredas sertanejas encontram descontinuidades, não
72A propósito do trabalho de Huizinga, que tantas vezes referenciamos em nosso ensaio, o autor
destaca a variedade de termos que se encontram quando se buscam as origens etimológicas da
palavra jogo, termos dentre os quais encontramos uma designação que toma o jogo como um salto
(2014, p. 42). O autor recorre ainda a Platão, para quem o jogo houvera se originado da necessidade
de saltar que se verifica em todas as criaturas jovens, tanto animais como humanas (Leis, II 653).
163
caberá ao herói outra tarefa senão saltá-las. E os personagens de Guimarães Rosa
saltam... O salto, portanto, é um elemento de sentido que Guimarães Rosa cifrou de
forma enigmática em sua obra, por meio de diferentes estratégias; estratégias essas
que podem se construir por meio de um plano semântico de base metafísica, ou, de
forma mais simples, por meio de uma imagem: a própria imagem de um salto,
representada no enredo das narrativas.
Um dos mais importantes saltos que Guimarães engendrou em sua obra está
situado, de maneira simétrica, ao centro de um dos textos mais representativos para
a constituição deste trabalho, o conto “O espelho”, ponto ordenador dos vinte e um
contos do livro Primeiras Estórias e, quiçá, das quarenta narrativas de Tutaméia:
Terceiras Estórias. Ao fim de sua densa reflexão filosófica, o narrador dirigirá ao seu
leitor a pergunta fatal; antes, contudo, mencionará uma controversa técnica de viver,
que compreenderá, como ponto máximo de seu refinamento, um salto mortal para o
crescer da alma:
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou
pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de
tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o
“salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o
aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns
expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com
a simples pergunta: — “Você chegou a existir?” (ROSA, 2005, p. 120).
A despeito de toda a beleza da construção poética, o salto mortale do narrador de “O
espelho” é um salto metafísico, não compreende a superação de obstáculo objetivo
que tenha se interposto a um personagem. Este emblemático pulo, no entanto, não
está isolado na obra de Guimarães Rosa; outra narrativa que integra o mesmo livro,
Primeiras Estórias, também está marcada por um salto de importância capital para a
constituição da narrativa, falamos, outra vez, do conto “Pirlimpsiquice”.
Ao fim da apoteótica peça de teatro que o marcaria para sempre – bem como
aos demais atores -, o narrador, que houvera de última hora assumido o papel
principal, perceberá algo que o inquietará demasiadamente: a fantástica peça que os
meninos encenavam era o resultado de uma vertiginosa mistura entre o roteiro da
peça original, a história falsa, inventada pelos meninos e a versão do Gamboa,
acrescidos ainda de outras narrativas que compunham os afetos de cada um dos
atores – como, portanto, concluir essa peça irrepetível, que conciliava tantos enredos?
164
Mas — de repente — eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro
estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim?
Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava.
E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. (ROSA, 2005, p.
91, grifos nossos)
Aflito, o narrador repetirá a pergunta: “E como terminar?” (ROSA, 2005, p. 91) -,
ocorre-lhe, então, que ele deveria retirar-se do palco. Sua saída, é claro, não deveria
ser uma saída comum... A única solução vislumbrada pelo narrador, portanto, será um
salto: a cambalhota por meio da qual ele se arrojará do palco:
Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que - só de um jeito.
Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair - do fio, do rio, da roda,
do representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira
da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito,
me despenquei. E caí. (ROSA, 2005, p. 91, grifos nossos)
A conclusão encontrada pelo narrador para aquela experiência que o projetara como
que a um plano superior da existência – “estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto:
que era o verdadeiro viver?” (ROSA, 2005, p. 91) – fora uma cambalhota; não nos
parece, com efeito, um salto qualquer: antes, muito se assemelha ao salto mortal
sugerido pelo narrador de “O espelho”.
Para a surpresa do leitor, e mesmo de um leitor dedicado, contudo, a
cambalhota que assinala o fim da magnífica peça de teatro dos meninos não será o
único salto importante para a narrativa de “Pirlimpsiquice”. A atuação do herói da peça,
o desprezado Zé Boné, será antecipada por pulos, aparentemente despretensiosos,
que a essa altura, já podem mesmo nos parecer os atos responsáveis por preparar,
ou mesmo suscitar, a esfuziante representação do menino: “Zé Boné pulou para
diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de
estrepolias. Zé Boné começou a representar!” (ROSA, 2005, p. 90). O momento
glorioso da vida dos meninos, portanto, principia por um salto – os pulos preparatórios
de Zé Boné - e conclui-se por outro: a cambalhota que põe fim à peça. O salto, com
efeito, marca a continuidade da vida, para além da representação: no dia posterior ao
teatro, o narrador será espicaçado por Gamboa, que reivindicará a autoria da peça -,
os dois se engalfinharão, então, em uma luta, marcada, é claro, também, pelo salto:
“Pulou-se, ferramos fera briga.” (ROSA, 2005, p. 91, grifos nossos).
Os exemplos que relacionamos, contudo, não esgotam os saltos representados
nas narrativas de Guimarães Rosa: seus personagens, é verdade, saltam sempre, de
maneira aparentemente despretensiosa, que, contudo, oculta o enigma compreendido
165
pelo próprio ato, o ato de saltar. Passaremos a enumerar, agora, diversos exemplos,
recolhidos das narrativas do autor, que atestam as nossas impressões. Principiaremos
nossa lista pelos exemplos dos dois textos já referenciados e, depois, relacionaremos
os saltos segundo a ordem de publicação das obras em que aparecem:
1. “O espelho”: o narrador sugere que o gesto mais depurado da técnica de viver
se assinale por um salto mortal, referido por ele em italiano, salto mortale, para
conferir à expressão a vivacidade própria do ato (ROSA, 2005, p. 120);
2. “Pirlimpsiquice”: A saída encontrada pelo narrador do conto, para concluir a
vertiginosa peça de teatro que resultava de uma improvisação contínua, é a
cambalhota com que se projeta para fora do palco. No mesmo conto, a
fantástica atuação de Zé Boné se antecede por pulos que a preparam e, ao fim,
o pulo também assinala o princípio da luta entre o narrador e o Gamboa;
3. “Minha Gente”: A súbita ideia de Emílio, tio do narrador do conto, se faz marcar
por um aparentemente despropositado pulo: “Meu tio esfregava nas palmas
das mãos o fumo picado. Enrolou o cigarro. De súbito, bateu na testa e pulou
[...].” (ROSA, 2001, p. 235);
4. “A hora e a vez de Augusto Matraga”: O começo da “segunda vida” de Nhô
Augusto Matraga está marcado por dois saltos, vizinhos no texto, o primeiro,
que indica a sua vivacidade, quando já o tinham como rendido pelo cruel
espancamento: “Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-
se, com um berro e um salto, medonhos.” (ROSA, 2001, p. 376); e o segundo,
que marca a sua passagem para a nova vida e o que poderia ser entendido
como o princípio da narrativa de sua história, representada no conto: “Mas já
ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço.” (ROSA, 2001, p. 376,
grifos nossos);
5. “Campo geral”: a proclamação da saúde de Miguilim, feita por seu Aristeu, está
seguida de uma recomendação para que ele salte: “Sucede como eu, que
também uma vez já morri: morri sim, mas acho que foi morte de ida-e-volta...
Te segura e pula, Miguilim, levanta já!” (ROSA, 2001, p. 77, grifos nossos);
6. “Recado do morro”: A mágica fuga de Pedro Orósio, ao final da novela, depois
de haver submetido cada um dos companheiros do grupo de Ivo Crônico, se
dá por saltos siderais, que o herói articula por entre as estrelas: “esquipou,
mesmo com a noite, abriu grandes pernas. Mediu o mundo. Por tantas serras,
166
pulando de estrela em estrela, até aos seus Gerais.” (ROSA, 2001, p. 105,
grifos nossos);
7. “Cara-de-Bronze”: o herói de cavalaria sertaneja, o Grivo, segundo a mitologia
dos vaqueiros, faz-se acompanhar de um avatar: um saltitante Saci. Os
próprios saltos do Grivo, inclusive, parecem apenas obedecer aos comandos
de seu “guia”: “Ele se balançou, como um coqueiro. Porque tinha o Sací
encarapitado por sobre de sua cabeça — como se com as duas mãos e com o
um pé se agarrando, e rabo para o alto: o Sacizinho, como um macaquinho,
como um gato.” (ROSA, 2001, p. 164);
8. Grande Sertão: Veredas: Riobaldo afirma que os companheiros, em momento
de folga, queriam pular: “Semelhava que por saberem que no outro dia
principiava o peso da vida, os companheiros agora queriam só pular, rir e gozar
seu exato” (ROSA, 2001, p. 75), menciona ainda, em momento decisivo, haver
dado um salto de espírito: “Todos me aprovaram – e, aí, extraordinariamente,
eu dei um salto de espírito.” (ROSA, 2001, p. 323) e menciona ainda um pulo
de larga extensão: “Safas – que eu podia dar também um pulo, enorme,
sustirado, repentemente.” (ROSA, 2001, p. 681);
9. “Sequência”: a vaquinha fujona que conduz o amor, no conto, quando impedida
por uma cerca, projeta um salto singular: “de um ímpeto então a saltou: num
salto que queria ser vôo. Vencia.” (ROSA, 2005, p. 109, grifos nossos);
10. “Partida do audaz navegante”: a despeito de seu vigor, tipicamente infantil,
ainda podemos dizer que Brejeirinha se destaca por seus saltos, que
compreendem referências naturalmente insólitas: “Brejeirinha pulou, por
pirueta.” (ROSA, 2005, p. 154), “Brejeirinha já pulando de novo.” (ROSA, 2005,
p. 157), “Brejeirinha saltava e agia, rápida no valer-se das ocasiões” (ROSA,
2005, p. 159) e, em curiosa referência, atribuirá a seu personagem, o aldaz
navegante, um salto poderoso: “Deu um pulo onipotente...” (ROSA, 2005, p.
159);
11. “A vela ao diabo”: o narrador do conto sugere, de forma inusitada e destacada
de qualquer outro contexto, que “Nada pula mais que a esperança.” (Rosa,
2009, p. 51).
Buscamos, com exemplos recolhidos de onze narrativas que se distribuem ao
longo de toda a obra de Guimarães Rosa, argumentar em favor de nossa hipótese, a
de que o salto compreende uma imagem recorrente na obra do autor. Foi-nos,
167
contudo, difícil selecionar os exemplos, dado que uma lista que se quisesse rigorosa
seria interminável. Orientamo-nos, contudo, por dois critérios: selecionamos
ocorrências em que o salto se descrevesse com maior ênfase na semântica do trecho
e, especialmente, ocorrências insólitas, destacadas do contexto, que poderiam
mesmo conduzir o leitor à pergunta: mas por que este personagem saltou neste
momento? – ocorrências essas que, naturalmente, revestem-se de apurado valor
enigmático.
Os exemplos que selecionamos, contudo, representam imagens literárias;
imagens que, imbuídas de um valor de leveza, próprio do salto, evocarão os ensaios
que Italo Calvino elaborou em seus dias finais. Em Seis propostas para o próximo
milênio, livro que reúne apenas cinco propostas e compreende o enigma de uma
sexta, nunca escrita, devido à morte prematura do autor, Calvino sugere que a
literatura está investida da propriedade de evocar imagens (2015); sugere também
que um dos mais importantes valores da literatura, com o qual ela marcaria a entrada
no novo milênio, seria a leveza, valor decorrente da habilidade dos poetas de subtrair
peso às figuras representadas no texto, à estrutura narrativa e mesmo à linguagem
(CALVINO, 2015, p. 17). O pensamento de Calvino, com efeito, encontra especial
acolhida em nosso ensaio, visto que, a despeito do que se poderia supor de um artista
marcado por uma escrita tão densa, como é o caso de Guimarães Rosa, o autor se
notabilizou pela criação de imagens literárias de rara leveza, como se pode constatar
no já citado desabafo de Riobaldo, que talvez descreva o mais rarefeito abraço da
história da literatura: “Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros” (ROSA,
2001, p. 69). Os personagens de Guimarães Rosa, de sua parte, parecem investidos
do impulso de saltar, de vencer a gravidade da matéria – as contradições do ego,
decorrentes da individuação – ainda que por um instante, visto que estão sujeitos à
carnalidade e devem retornar ao solo pela força da gravidade. A imagem do salto: a
vitória momentânea contra o peso da matéria, compreende, portanto, um sinal que
identifica a aprendizagem por meio da qual os personagens de Rosa percorrem a sua
via ascensional e empreendem a sua travessia. Calvino, em seu ensaio, evoca as
figuras de Perseu e da Medusa que condena o homem ao castigo de ser estátua de
si mesmo (2015, p. 19), castigo que se identifica com a própria morte. Para viver,
portanto, o homem deverá ser mais do que é apenas em si mesmo: triste está tua de
pedra – porque, conforme sugere o personagem de Rosa, o eu-em-si é uma
contradição (ROSA, 2009, p. 138); para viver, dizíamos, o homem deverá mover-se –
168
com leveza – deverá fazer a cambalhota (ROSA, 2005, p. 91), dar o salto mortal para
o crescer da alma (ROSA, 2015, p. 120). Para vencer a Medusa, contudo, Perseu não
poderá identificar-se com ela, o que ocorrerá se ele olhá-la nos olhos. O
enfrentamento, portanto, deve ser indireto e o herói se orienta pelo reflexo da górgona
no escudo de Atena. Para vencer a Medusa, assim, Perseu depende de um espelho,
símbolo essencial para nosso trabalho, que representa o enfrentamento da
objetividade do mundo, que condena o homem a ser menos – a ser apenas ele mesmo
– por meio da dimensão simbólica que compreende a linguagem e a poesia.
As imagens de leveza engendradas por Guimarães Rosa são de rara beleza e
não nos surpreenderia um leitor que nos perguntasse sobre as fontes que inspiraram
o autor a criar seus personagens saltitantes. A resposta, outra vez, nos levaria a
Goethe, que criou, na segunda parte do Fausto, o fabuloso personagem Eufórion, filho
de Aquiles e de Helena, que se notabiliza precisamente pela incrível habilidade de
saltar! Os saltos de Eufórion, a propósito, não são simples pulos: o herói chega mesmo
a desafiar a gravidade com saltos constantes, que atingem alturas impensáveis e, por
isso, enche de preocupação os seus pais, embora ele, tomado de ímpeto juvenil,
pareça não notar: “Ao ver saltos infantis / Vós também vos alegrais; / Quando eu rio,
pulsa feliz / Vosso coração de pais” (GOETHE, 2011, p. 430). Os saltos de Eufórion
cumprem, inclusive, um delicado papel na poética de Goethe, visto que o autor chega
mesmo a construir os versos que introduzem o personagem de modo a representar
ritmicamente os seus saltos, como aponta a sua tradutora, Jenny Klabin Segall, em
nota à página 430 (2011).
A imagem do rebelde Eufórion compreende uma ocorrência singular na
literatura ocidental que, com efeito, parece-nos mais um ideal literário do que
propriamente uma imagem poética, posto que Goethe promoveu o extraordinário
encontro entre o mais poderoso dos homens e a mais bela das mulheres e deu-lhes
um filho, que pode mesmo representar a poesia, fruto da união entre a rapidez do
homem e a beleza da musa. A rapidez – que também é, por sinal, um dos valores de
Calvino -, é claro, não corresponde, nos domínios da poesia, à celeridade dos pés de
Aquiles, posto que é, antes, uma velocidade de pensamento, que salta entre
categorias descontínuas para produzir sentidos e se identifica, por fim, muito mais
com os saltos de Eufórion.
Buscamos, neste tópico, discorrer sobre a simbólica do salto na obra de
Guimarães Rosa e tentamos, por ora, ater-nos aos exemplos que temos classificado
169
como imagens literárias do salto, âmbito que, naturalmente, e conforme já
antecipamos, não compreende todas as representações possíveis: há um tipo de
representação que se inscreve em uma esfera que definiríamos como esfera
semântica ou metafísica à qual queremos agora nos dedicar.
6.2 UM SALTO DO GROTESCO AO SUBLIME (SEM PASSAR PELO MEIO!)
Dedicamo-nos, no tópico anterior, às representações do salto, na obra de
Guimarães Rosa, inscritas no âmbito das imagens literárias de natureza poética.
Buscamos restringir-nos, portanto, às referências aos pulos dos personagens, pulos
esses representados - ou mesmo indiretamente sugeridos - no próprio enredo da
narrativa. Tal classificação, contudo, muitas vezes pode revelar-se equívoca, posto
que nem sempre conseguiremos identificar com suficiente clareza o limite que separa
os tipos de representações dos saltos, e, ainda, uma dimensão pode mesmo
compreender a outra. As representações semânticas ou metafísicas do salto, a que
queremos agora nos dedicar, poderão, inclusive, relacionar-se aos exemplos, por nós
já apontados, que compreendem imagens poéticas. Queremos dizer que o conto
“Pirlimpsiquice”, por exemplo, compreende outros saltos, para além da cambalhota do
narrador e dos pulos iniciáticos de Zé Boné. Convém lembrar, a essa altura, da
angústia que acometia o narrador, durante quase todo o conto, e que encontrava
correspondência em quase todos os atores, insatisfeitos com a relevância do papel
que coube a cada um representar: a condição do narrador, contudo, era peculiar: seria
o único estudante que não apareceria na peça, uma vez que estaria responsável pelo
ponto e deveria permanecer, durante toda a encenação, fechado em uma caixa,
conhecido, assim, apenas por sua voz. A inesperada doença do pai do ator principal,
no dia da apresentação do teatro, promove uma intensa reviravolta que mudará o
destino do narrador: conhecedor de todas as falas, ele seria o único indicado para
substituir o colega que tivera que se ausentar. O modelo representado por Rosa é
curioso: o narrador, insatisfeito com sua condição de ponto, não galgará posições que
o promovam na suposta hierarquia dos atores, antes, ele empreende um movimento
descontínuo: é um salto, que o leva da última posição à primeira, sem a necessidade
de passar pelo meio.
O modelo, como se apresenta no conto, compreende a categoria estética do
sublime; representa uma elevação descontínua de um nível, que compreenda a
passagem de uma categoria a outra, sem a necessidade de passar por um estágio
170
intermediário, que é saltado; vai-se, portanto, do sub ao limen, sem se passar pelo
meio. Para Schopenhauer, a experiência do sublime decorre, necessariamente, de
uma condição desfavorável à vontade que se torne objeto de contemplação pura, por
abstração da vontade (2001, p. 218). A condição do sublime, portanto, pressupõe a
superação de todas as etapas necessárias à gradual elaboração da condição
desfavorável que ameaça aquele que a contempla:
em presença do sublime, a primeira condição, para chegar ao estado de
conhecimento puro, é de nos arrancar consciente e violentamente às relações
do objeto que sabemos desfavoráveis à vontade; elevamo-nos, por um
impulso pleno de liberdade e de consciência, acima da vontade e do
conhecimento a ela relacionado. (2001, p. 212).
O sublime compreende, portanto, necessariamente a superação de uma
descontinuidade e pode, com efeito, representar-se por um salto. Ocorre-nos agora
que nosso capítulo talvez pudesse mesmo chamar-se O enigma do sublime, sem
prejuízo significativo de seus propósitos, embora o nome adotado, O enigma do salto,
nos pareça mais adequado.
A exemplo da imagem do salto, destacamos que a obra de Guimarães Rosa
também se faz marcar por recorrentes representações do sublime, representações
essas que cumprem papel estruturante na poética do autor. As próprias referências
do conto “Pirlimpsiquice”, inclusive, não estão esgotadas, posto que a sublimação do
narrador, que eleva-o da última à primeira posição, inscreve uma outra, mais radical,
que pode mesmo representar um seu aprofundamento: falamos do movimento que
eleva alguém que se encontrava ainda abaixo da última posição, o desprezado Zé
Boné - tido por idiota e entregue a um papel qualquer, para que se cumprisse uma
formalidade protocolar, própria das autoridades da escola, sem que o próprio menino
causasse danos à peça -, e eleva-o a uma posição que se dispõe mesmo acima da
mais alta: o personagem, irrepetível e inimitável, que ele inventaria e por meio do qual
consagraria a si mesmo e a todo o elenco com uma atuação formidável: “Zé Boné,
sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Boné!” (ROSA, 2005, p. 91).
As representações do sublime, na obra de Guimarães Rosa, são mesmo
inumeráveis e, sob pena do risco de cansarmos nosso leitor, queremos apresentar
apenas alguns exemplos singulares, recolhidos dos livros, Primeiras estórias e
Tutaméia que, conforme buscaremos demonstrar, podem mesmo compreender um
lugar especialmente apropriado para tais representações:
171
1. A alegria fugaz dos vagalumes: O Menino que protagoniza os contos “As
Margens da alegria” e “Os cimos”, quando de sua primeira viagem,
experimentará, pela primeira vez, os dissabores próprios da existência,
intensificados pela, também ainda desconhecida, insensatez do mundo dos
adultos, que ele receberá como “um miligrama de morte” (ROSA, 2005, p. 52).
O acontecimento que desencadeia essa percepção de um mundo cruel é,
precisamente, a morte do peru - pelo qual o Menino houvera se encantado -,
justamente para o banquete do aniversário de seu tio. A experiência das dores
próprias da existência e a descoberta da mortalidade atingirão seu ponto
máximo ao fim do conto, quando o Menino descobrir a cabeça degolada do
peru pelo qual se encantara descartada, no mato, sendo ainda bicada por um
outro peru, menor, que tomara o lugar do primeiro. O Menino, então, será
consolado por meio de uma experiência do sublime, encantado pelo brilho
descontínuo dos vagalumes: “Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da
mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino,
no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a
Alegria.” (ROSA, 2005, p. 53). O vagalume, com efeito, assume um especial
sentido em nossa análise, uma vez que o encantamento que proporciona se
deve ao brilho do conjunto, dado que as luzes individuais, que compõem o
espetáculo, são fugazes: perdem-se tão logo o observador queira se fixar em
uma delas – têm a mesma natureza do salto, que vence a gravidade apenas
por um instante, mas reservam ao saltador a possibilidade de repeti-lo tantas
vezes quantas quiser;
2. O esplendor que emerge das formas desprezíveis: a arteira Brejeirinha, de
“Partida do audaz navegante”, criará a fantasiosa narrativa de seu aldaz
navegante, que, ao final do conto, se encarnará na forma de um cogumelo que
os meninos adornarão com flores e reverenciarão com curiosíssimas
oferendas: uma moeda, um grampo de cabelo, um chiclete (mastigado?) e “um
cuspinho” (ROSA, 2005, p. 160) – gestos que podem mesmo compreender uma
insólita falofória. O adorado Audaz, contudo, houvera emergido justamente de
um monte de esterco: “a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-
ressequida, obra pastoril no chão de limugem” (ROSA, 2005, p. 158). Tem-se,
portanto, a figura mais gloriosa, emergida, justamente, da mais desprezível,
sem mediação;
172
3. A totalidade recuperada por um quase-nada: Em sua segunda viagem em
companhia dos tios, o Menino, que protagoniza os contos que abrem e fecham
Primeiras Estórias, estará marcado pela angústia decorrente da doença da
mãe, que, conforme se compreenderá, por meio da leitura, justifica a
necessidade do afastamento da criança. O Menino, contudo, já não confia mais
nos adultos; sujeito a um sofrimento silencioso, tenta depreender a verdade por
detrás dos gestos dos parentes, em busca de informações confiáveis sobre a
real condição da mãe e vivencia uma experiencia de transferência (FREUD,
1996) com seu brinquedo predileto, um “bonequinho macaquinho” (ROSA,
2005, p. 201). Acometido de confusos sentimentos, que desafiam a sua parca
maturidade de criança, o menino resistirá aos impulsos que lhe ocorrem de
jogar fora o seu boneco, impulsos que ele apaziguará por meio de uma
insondável negociação de sentimentos que resultará no descarte de apenas
uma parte: o chapeuzinho emplumado do boneco -, ainda no primeiro dia de
viagem, quando estava no avião. O destino reservará, contudo, uma pequena
tragédia que abalará o mundo do menino, ao final do conto: a despeito da
decisão de preservar o boneco querido e de todo cuidado dedicado a ele, o
menino descobrirá, quando de seu embarque no avião para retornar ao lar, que
houvera perdido o seu brinquedo. A perda do boneco, com efeito, viria somar-
se ainda a outras tantas que se acumulavam no espírito do menino,
decorrentes de sua partida: os passeios de jeep, o tucano que o consolara em
sua estada, o alpendre da casa etc. No momento mais desfavorável, portanto,
e já no limite do choro, o Menino recobrará o chapeuzinho que houvera
desprezado, encontrado pelo ajudante do piloto, e conseguirá fazer uma
experiência do sublime: seria preciso, contudo, explodir as margens da alegria
para elevar-se aos cimos, sem passar, é claro, pelo meio -, o menino, então, a
partir de um fragmento desprezível, recupera todas as coisas mais caras que
houvera perdido:
Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o
Macaquinho com uma bonita gravata verde — no alpendre do terreirinho das
altas árvores... e no jeep aos bons solavancos... e em toda-a-parte... no
mesmo instante só... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-
sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo, ainda muito mais vivo, entoante e
existente — parado que não se acabava — do tucano, que vem comer
frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa. Só
aquilo. Só tudo. (ROSA, 2005, p. 2008-2009, grifos nossos)
173
4. A mágica transformação que se opera em apenas uma madrugada: o
impetuoso idealizador da insólita casa, que agita a vida no arraial, do conto
“Curtamão”, a despeito de todo o seu desejo de ser mais, confessa-se apenas
um pedreiro comum: “Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem
superior; de chegar a mais, me impedia esse contra mim de todos, descrer,
desprezo.” (ROSA, 2009, p. 67). Impelido pelo projeto da casa, contudo, ele se
trancará em seu quarto e, após uma madrugada de trabalho insone, passará
de pedreiro a mestre-de-obras: “De alvenel a mestre-de-obras, apareci frente
ao Armininho.” (ROSA, 2009, p. 69) – sem a necessidade de superar as
posições que se interpõem entre uma ocupação e outra;
5. A vida ensinada (por vezes de forma descontínua): o penúltimo conto de
Tutaméia, “Vida ensinada”, compreende uma das três aparições do vaqueiro
Ladislau, alter ego do autor, Guimarães Rosa, mas está centrado na vida de
outro personagem, o boiadeiro Sarafim, marcado pela culpa de haver matado
um companheiro, por meio de um mal explicado disparo acidental. Da tragédia
com o amigo, decorre a angústia mais urgente que acomete o boiadeiro: o
desamor da mulher, viúva do companheiro, que Sarafim, por honra, assumira
após o acidente. Há ainda uma questão menor que aflige o boiadeiro que, a
despeito de ser superficial, poderá, sabe ele, interferir no prestígio de que ele
gozaria frente à mulher: Sarafim ocupa a última – a mais desprezada, portanto
– posição entre os guieiros - a culatra; imagina ele que uma posição superior
contribuiria para a conquista da admiração da mulher, viúva de um Guia-
Guieiro. Ao fim do conto, Sarafim, por seu cuidado na condução do gado, será
premiado por Ladislau com uma promoção. Não conquistará, contudo,
nenhuma das posições imediatamente superiores à sua, antes, será alçado da
última à mais alta posição de um guieiro: a de ponteiro-guieiro -, o portador do
berrante. É uma sublimação: Sarafim, por meio de um único movimento, passa
da posição de culatra direto para a posição de ponteiro.
Relacionamos cinco exemplos de saltos, recolhidos de contos de Guimarães
Rosa, que classificamos como representações semânticas, ou metafísicas, que,
especialmente por se inscreverem nessa categoria particular, também podem ser
tomados como representações do sublime: o narrador de “Pirlimpsiquice” se projeta,
por meio de um único movimento, do último ao primeiro papel dentre os que couberam
aos personagens de sua peça; igualmente, Zé Boné empreende um movimento ainda
174
mais arrojado, por saltar de uma posição que situamos abaixo da última, até uma
condição superior, disposta ainda acima da mais alta; o Aldaz Navegante, apontado
por Brejeirinha, elevará a sua glória acima dos dejetos, o mesmo repugnante esterco;
o Menino de “As margens da alegria” encontrará consolo no brilho fugaz dos
vagalumes, sem a necessidade de elaborar o trauma da perda do peru e, em sua
segunda viagem, recobrará todos os afetos perdidos em um fragmento que ele mesmo
desprezara como um traste, o chapéu emplumado de seu boneco; o pedreiro de
“Curtamão”, em uma madrugada de trabalho, eleva-se da posição de alvenel, direto
para a de mestre-de-obras; e o boiadeiro Sarafim, em um único ato, salta da última
posição entre os guieiros para a mais alta. A ocorrência de tão claros exemplos nos
livros Primeiras Estórias e Tutaméia: Terceiras Estórias, dissemos, é oportuna para o
desenvolvimento de nosso trabalho e talvez mesmo seja o momento de argumentar,
com muito mais propriedade em favor de uma hipótese que já introduzimos no início
deste ensaio e versa sobre as possíveis relações que se possam estabelecer entre os
dois livros, ambos marcados pela simbologia do salto e pela semântica do sublime.
Não nos pareceria um exagero sugerir que a ausência de um livro a que se
atribuíssem as segundas estórias seja um dos maiores enigmas da obra de
Guimarães Rosa, ou, pelo menos, um dos maiores enigmas explícitos. Algumas
hipóteses aventadas pela crítica, contudo, nos parecem mesmo despropositadas,
como, por exemplo, a sugestão de que as Segundas Estórias compreenderiam um
livro futuro, a ser lançado pelo autor. Sentimo-nos, já ao fim deste ensaio, preparados
para explicitar a nossa hipótese para este enigma: Guimarães Rosa nunca considerou
a escrita das segundas estórias, visto que elas representam, justamente, o salto – a
descontinuidade, o nada – que o autor, afeito ao sublime, inscreveu entre as Primeiras
e as Terceiras Estórias. As estórias escritas, no entanto, podem valer pelas segundas:
o muito que nelas não deveu caber (ROSA, 2009, p. 40). Primeiras Estórias e
Tutaméia: Terceiras Estórias, portanto, são dois livros, repletos de saltos – simbólicos,
semânticos, metafísicos -, que inscrevem entre si a arquitetura de um enigmático salto
estrutural.
Há ainda uma pequena variação assumida pela semântica do salto, que
identificamos na obra de Guimarães Rosa, e da qual queremos nos ocupar antes da
conclusão deste capítulo. A comicidade, tema do qual já nos ocupamos em capítulos
anteriores, também se explica por uma descontinuidade ou por um salto de sentido:
buscaremos ser breves.
175
6.2.1 Um pulo do cômico ao excelso: o chiste
Para além da própria comicidade, tematizada em “Aletria e hermenêutica”,
primeiro prefácio de Tutaméia, o ensaio também versa sobre uma manifestação muito
particular do cômico: o chiste -, sobre o qual Guimarães Rosa argumenta, ainda nas
primeiras linhas de Tutaméia: “Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque
escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para
mágicos novos sistemas de pensamento.” (2009, p. 29). A adequada caracterização
dos chistes, especialmente no que diferem dos fenômenos da comicidade em geral,
não deve, contudo, ser desprezada e mesmo ocupou Freud na extensa obra que
lançou em 1905: Os chistes e sua relação com o inconsciente.
A questão da comicidade, contudo, fora investigada antes, em uma obra de
referência para o pensamento moderno, à qual já nos referimos, O riso, divulgada por
Henri Bergson em 1899, seis anos antes, portanto, da publicação de Freud. A obra de
Freud, como seria de se esperar de uma obra posterior, é uma obra mais completa,
que se aprofunda muito mais no assunto; lamentamos constatar, contudo, que o
ensaio de Freud representa mais um dos estudos que ele desenvolveu sem dar o
devido crédito aos seus antecessores, como, no caso de que tratamos, Henri Bergson,
com seu ensaio O riso.
Freud, dizíamos, dedica-se com aplicado rigor, em seu livro, a definir com
precisão o chiste em tudo o que o distingue das anedotas e de outras manifestações
populares do cômico, rigor que, certamente, excede os propósitos de nosso ensaio. A
conclusão de Freud sobre o mecanismo desencadeador do riso – ou, melhor dizendo,
do prazer – no chiste, contudo, merece a nossa atenção pelo que encontra de
correspondência em nosso trabalho. O autor sugere que o chiste apresenta, ainda que
de forma velada, duas situações distintas, contudo relacionáveis. A relação entre as
duas, contudo, desenvolve-se nos planos do absurdo, absurdo esse que deverá ser
saltado pelo ouvinte para que o efeito cômico se produza. Em outras palavras, Freud
(1977) argumenta que a narrativa de um chiste, quando explicada, perderá todo o seu
efeito cômico, posto que tal efeito decorre do absurdo que deverá ser saltado.
Assim, Freud conclui que o efeito do chiste – a descarga do riso – se funda no
prazer decorrente da economia de energia psíquica necessária à explicação lógica
das condições que se apresentam, mediadas pelo absurdo (FREUD, 1977, p. 140). A
ideia de um prazer vinculado à economia nos pareceria cara a Tutaméia, uma obra
176
marcada pelas formas mínimas. O riso, decorrente do prazer de um salto de sentido,
como aponta Freud, também parece ganhar especial sentido em nosso trabalho, posto
que a razão do riso compreenderia um enigma, enigma esse que reside em um
enorme salto de sentido.
A mediação entre as instâncias apresentadas no chiste, com efeito, se faz pela
linguagem; e é a linguagem, em sua dimensão lógica, a responsável pela anulação
do chiste, o que, naturalmente – e em sentido inverso! – implicaria um dispêndio de
energia psíquica, como, por exemplo, diante da já mencionada anedota do homem
que se sujeita à goteira em um bonde vazio: as duas condições distintas que se
apresentam são a ideia de trocar de lugar, em contraste com a ideia – mediada pelo
mesmo verbo – de trocar alguma coisa com alguém. A decisão do homem é absurda:
explicá-la compreende um dispêndio de energia, a mesma energia que
economizamos quando tomamos as duas situações diferentes como iguais e, por isso,
gozamos pela economia de tudo que dispenderíamos para nos soltar da goma-arábica
da língua (ROSA, 2009, p. 30).
Se o salto propiciado pelo chiste, por sua natureza de não-senso, “reflete por
um triz a coerência do mistério geral que nos envolve e cria” (ROSA, 2009, p. 30),
queremos destacar, ao final deste tópico, que sua experiência também compreende
uma dimensão ética que certamente não escapou a Rosa, mas, por ora, eximimo-nos
de explicar, por exceder os propósitos de nosso trabalho: o prazer do riso pode se
opor à máxima de Grande Sertão: Veredas: “O que ela quer da gente é coragem”
(ROSA, 2001, p. 402) – na medida em que o riso pode mesmo compreender um gesto
de covardia, como podemos constatar em todas as ocasiões em que os Jagunços,
após a ascensão de Riobaldo à condição de líder do bando, riram de suas troças –
tantas delas de natureza perversa – por pura covardia. O riso diante das injustiças,
portanto, também compreende um salto e uma economia, a economia da energia que,
sabemos, deveríamos empenhar para corrigir o erro que se apresenta. Esse, contudo,
já é assunto para um outro trabalho.
6.3 O ENIGMA DA (DURAÇÃO DA) VIDA: O SALTO SOBRE O ABISMO
INEVITÁVEL
Destacamos, já duas vezes, a notável sugestão de Jacques Derrida, que
inscreve o enigma no próprio âmago da linguagem e da escritura, representado,
177
precisamente, pelo impronunciável “A” de sua différance. Já dissemos também que o
autor insiste em aproximar a marca da diferença verbal da forma de uma pirâmide -
um enigma -, que, a despeito de toda a sua solidez, representa o desmoronamento
do edifício do simbólico (DERRIDA, 1991). A sugestão do autor, contudo, ao final
deste capítulo em que nos dedicamos ao enigma compreendido na simbólica do salto,
assume um sentido especial – um sentido fatal! - do qual queremos tratar em nossa
conclusão.
Se Derrida assinala a pirâmide como enigma e marca da diferença, o autor não
ignora que as pirâmides se identificam por uma arquitetura dupla, que compreende
uma parte superior, visível, e uma parte subterrânea, invisível. Se a porção visível,
por seu lado, faz-se marcar por uma natureza sólida, positiva, a parte subterrânea se
identifica por uma natureza negativa que o autor aproxima da constituição de um
poço:
Seguimos um caminho, conduz deste poço da noite, silencioso como a morte
e ressoando com todas as potências da voz que mantém de reserva, à
pirâmide, trazida de novo do deserto egípcio, que se elevará imediatamente
sobre o tecido sóbrio e abstrato do texto hegeliano, compondo aí a estatura
e o estatuto do signo. A fonte natural e a construção histórica aí guardam o
silêncio, embora diferentemente. Que segundo o trajeto onto-teológico, esse
caminho permaneça ainda circular e que a pirâmide torne-se outra vez um
poço: tal é o enigma. Perguntar-se-á se ela se eleva como uma verdade
falante, sozinha, do fundo de um poço ou se decifra como uma inscrição
inverificável, abandonada no frontão de um monumento. (1991, p. 113-114)
A pirâmide esconde um poço – um abismo particular – e é, em si própria, uma
sepultura, dado que edifica-se para guardar em seu interior os corpos mumificados
dos faraós e daqueles que lhes fossem caros.
Mais do que constituir-se como um enigma, sugerimos que as pirâmides
compreendem o grande enigma da existência: a morte –, abismo fatal que todo
homem, inevitavelmente, tentará transpor. A ideia, inclusive, encontra acolhida na
poética de Rosa e agora podemos destacar um aspecto que procuramos manter
encoberto quando examinamos os exemplos dos saltos engendrados pelo autor em
sua obra: o salto mortal proposto pelo narrador do conto “O espelho” sugere,
naturalmente, a passagem da morte, seja ela a morte definitiva do corpo físico - que
confronta o homem, de maneira fatal e de uma vez por todas, com a pergunta
fundamental sobre a possibilidade da continuidade da vida após a falência do corpo -
, seja ela a metáfora de uma vida que não prescinde da renovação e de múltiplos
renascimentos simbólicos. Sugerimos que ainda mais relevante é o exemplo da
178
pirueta do narrador do conto “Pirlimpsiquice”, gesto que amarra, em um único ato -
visto que já não é possível dizer se é um ato que pertence à arte ou à vida prática -,
a dimensão da arte, com tudo o que encerra de sublime, e a dimensão da vida, com
tudo o que têm de ordinário. A cambalhota do narrador, portanto, compreende uma
delicada dimensão semântica que o leva à terceira margem: a vida e o enigma que
ela compreende – que ela é – em si mesma. A única forma de concluir uma obra
comprometida com o mistério da existência, que dela não se distinga, portanto, será
saindo do palco – saindo da vida -, fazendo a cambalhota: salto mortal para o crescer
da alma (ROSA, 2005, p. 120).
Se o signo compreende um abismo, impõe também o ímpeto de saltá-lo: "Lugar
de passagem, passarela entre dois momentos de presença plena, o signo só funciona,
desde então, como o retorno provisório de uma presença a outra." (DERRIDA, 1991,
p. 108); e se o enigma da linguagem, conforme dissemos, é um enigma do homem, o
enigma do salto propicia uma conciliação que devolve o homem ao homem: o signo,
passagem entre duas presenças, é a marca do retorno a si da ideia:
O signo será, pois, uma instância ou uma estrutura essencial desse retorno à
presença a si da ideia. Se o espírito é o estar-próximo-de-si da ideia, pode-
se já reconhecer ao signo esta primeira determinação mais geral: o signo é
uma forma ou um movimento da relação consigo da ideia, no elemento do
espírito, um modo de estar-próximo-a-si do absoluto. (DERRIDA, 1991, p.
110).
O signo, portanto, é a sepultura que resguarda a verdade (o querer dizer) que o anima:
"O túmulo é a vida do corpo como signo da morte, o corpo como o outro em relação
à alma, à psiquê animada, ao sopro vivo." (DERRIDA, 1991, p. 119). Compreende,
contudo, um nó de sentido que se prolonga pela insondável malha da experiência
sensível, na medida em que as pirâmides são um texto que compreende em si
incontáveis inscrições:
O signo, monumento-da-vida-na-morte, monumento-da-morte-na-vida, a
sepultura de um sopro ou o próprio corpo embalsamado, a altitude
conservando em sua profundeza a hegemonia da alma e a resistência à
duração, o duro texto de pedras cobertas de inscrições, é a pirâmide.
(DERRIDA, 1991, p. 120).
A dupla arquitetura das pirâmides, como proposta por Derrida, compreende
uma ambiguidade que a lógica formal, consagrada pelo pensamento ocidental, não
pode admitir. O modelo sugerido pelo autor, de sua parte, sugere uma arquitetura que
concilie vida e morte como partes indissociáveis de uma estrutura única: são como a
tensa corda do arco de Ártemis, Deusa protetora de Heráclito, portadora da luz que
179
conduz a vida e do arco que conduz à morte73. “Não há saída?” (1994, p. 129),
pergunta-nos Octavio Paz, ao que o próprio autor responde:
Sim, há: em alguns momentos o tempo se entreabre e nos deixa ver o outro
lado. Estes instantes são experiências da conjunção do sujeito e do objeto,
do eu sou e você é, do agora e sempre, do mais além e do aqui. Não são
reduzíveis a conceitos e só podemos a elas aludir com paradoxos e com as
imagens da poesia. Uma dessas experiências é a do amor, na qual a
sensação se une ao sentimento e ambas ao espírito. É a experiência do total
estranhamento: estamos fora de nós, lançados diante da pessoa amada; e é
a experiência da volta à origem, a esse lugar que não está no espaço e que
é a nossa pátria original. A pessoa amada é, ao mesmo tempo, terra incógnita
e casa natal; a desconhecida e a reconhecida.” (PAZ, 1994, p. 129)
O enigma do salto, portanto, preservada a sua porção misteriosa - visto que
admitimos a impossibilidade de descrever as formas que se desenham nos recônditos
do espírito -, pode compreender uma síntese de todos os pontos de que tratamos ao
longo de nosso ensaio: é o enigma responsável pela mediação entre mundos
incomunicáveis, como o é o espelho; promove, da mesma forma, a reconciliação do
eu estilhaçado em um mundo que também se dispersa em milhões de fragmentos,
visto que, como sugere Derrida, o salto dos abismos da linguagem compreende
sempre um voltar para si; reconciliado em si mesmo, o homem apazigua as tensões
do ego e o enigma da individuação, em vez de reduzi-lo à triste imagem das próprias
contradições, amplia sua potência à dimensão de sua outridade; as contraditórias
amarras do ego, de sua parte, constituem-se pela trama dos próprios fios da
linguagem – círculo de giz de prender peru? -, que confunde na mesma medida em
que convida o homem a mover-se – saltar! - para apreender os múltiplos sentidos
que lhe escapam em um mundo assinalado pelo enigma próprio das
descontinuidades; recolhido em si mesmo, o homem poderá experimentar o salto que
o conduz à experiência totalizante do amor, expressão de uma nova dimensão –
enigmática, sobre todas as coisas – de sua outridade. Em sua análise da simbologia
da fissura na obra de Zola, Deleuze propõe que a fissura é o próprio abismo do
instinto de morte (2015, p. 336). Abre-se, portanto, diante do homem, a grande fissura
– o grande enigma – fatal: o homem vai morrer. Se o despenhadeiro é inevitável,
contudo, a poesia, conforme a concebemos, é o salto sobre o abismo, salto que, dada
a extensão da fissura, não seria possível sem o atributo da leveza como apresentado
73A antiguidade grega dispunha de apenas uma expressão para designar a vida e o arco, usado como
arma, o que explicaria o fragmento de Heráclito, que sugere: “O nome do arco, vida; sua obra, morte”
(2012, p. 139). O arco, sinal da deusa, guardaria, portanto, em seu nome, a destinação da vida e a
destinação da morte.
180
por Calvino. Em um cosmo que se dispersa, assinalado pela descontinuidade, o
homem salta; salta continuamente, à espera do impulso inesperado que o projetará
para além do mistério da cambalhota final.
181
7. CONCLUSÃO: O ROSTO MONSTRUOSO DA ESFINGE DESVELADO
Sagrada poesia,
Ale-se à etérea via!
(Goethe, Fausto, segunda parte)
Empreendemos até aqui um exame do estatuto do enigma literário na obra de
João Guimarães Rosa que, por vezes, pode mesmo ter se aproximado da acepção
química do termo adotado para designar o gênero textual que escolhemos, dado que
tentamos, por disposições metodológicas nossas, induzir o próprio enigma a
manifestar a sua natureza particular, o que talvez justifique a adoção das diferentes
perspectivas que assumimos para examinar, ao fim e ao cabo, um mesmo conceito.
A mudança de perspectiva, com efeito, também pode caracterizar-se pela insistência
e mesmo pela repetição, o que, do ponto de vista do fim de nossa vereda investigativa,
nos faz lembrar Rebimba (o bom). Nossa referência à expectativa de que o enigma se
manifeste por si mesmo, também não é casual, posto que a palavra manifestação
compreende originalmente a ideia de algo que se coloca ao alcance da mão
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 589). A ideia conduz-nos de volta a outro
personagem capital para a nossa análise, o vaqueiro Ladislau, alter ego do autor,
Guimarães Rosa, que, perplexo diante do enigma insolúvel que se apresenta – e que,
à maneira da Esfinge, impõe-se de modo fatal à continuidade de toda a sua vida
prática –, põe-se a mover-se, ainda que de modo pouco racional: repete uma fórmula
irritante e cutuca, insistentemente, as mãos de seus companheiros, na tentativa de
descobrir entre eles um assassino (ROSA, 2009, p. 115). Ladislau, com efeito, não
tenta descobrir pela via lógica, de uma investigação padrão, o segredo: faltam-lhe os
recursos, posto que o enigma se projeta para além da razão e da intuição (ROSA,
2009, p. 115) -, por isso ele se move: usa a mão – cutuca, insistentemente, os seus
companheiros, até que a verdade oculta salte de dentro do mistério, coloque-se ao
alcance da mão. Como também se sugere em Rebimba: ambos – o vaqueiro Ladislau
e um ente idealizado em “Rebimba, o bom” - se valem da mão, agitam, cutucam –
repetidamente, insistentemente – até provocarem um clímax no qual a verdade
encoberta, no interior do enigma, salte para fora, deixe-se apreender pelos olhos. Os
personagens de Rosa, portanto, talvez nos tenham fornecido uma imagem do método
que adotamos para tratar de questões tão primárias e, mesmo por isso, tão fugidias:
ensaiar, repetir, insistir, na esperança de provocar um clímax no qual a verdade oculta
182
no interior das coisas salte para fora, deixe-se conhecer. Argumentamos em favor do
método com uma observação fundamental: a despeito da invenção do procedimento,
a verdade esperada não é um produto, antes, já estava dada -, coube ao método, em
tudo o que terá de equívoco, apenas induzi-la a desvelar-se.
O projeto de Rosa, contudo, parece mesmo sempre ambicionar a uma síntese
que não conseguimos conceber fora dos limites do absurdo: uma arte que, sem o
prejuízo de sua natureza própria, prolongue-se – por meio de um salto enigmático? –
além das fronteiras que levam à vida, em tudo o que ela tem de ordinário. Argumentam
em favor de seu projeto, conforme o entendemos, os seus contos classificados pela
crítica como metalinguísticos, que apresentam imagens do que o autor desejou para
a sua obra e que, acreditamos, passaram a representar para ele uma meta ou uma
espécie de profissão de fé: falamos, por exemplo, de contos que tanto nos ocuparam
em nosso ensaio, como “Pirlimpsiquice” e “Curtamão”. Os conflitos – as perguntas –
do narrador de “Pirlimpsiquice” são mesmo reveladores, posto que ele pode mesmo
haver nomeado, por meio de um neologismo, o projeto artístico ambicionado por
Rosa: um transviver -, que, pergunta-se o personagem: seria o verdadeiro viver?
(ROSA, 2005, p. 91). Os artistas, para Sant’Anna (2000, p. 25), estiveram investidos,
ao longo da história, do poder de materializar as formas abstratas que captavam em
seu espírito e de representar essas formas de modo dramático, por meio de uma
geometria anímica. No que respeita às relações da arte com o real, trata-se, portanto,
de um todo animado: a arte furta-se pelas dobras do real e floresce na vida ordinária.
O caminho que a arte descreve por entre as dobras do real, contudo, não se sujeita à
linearidade idealizada pelo pensamento racional consagrado pela cultura ocidental e,
talvez por isso mesmo, nas sociedades modernas, se conceba de forma tão
destacada de todas as demais práticas funcionais que ocupam a sociedade. Nessa
perspectiva, as anamorfoses verbais de Guimarães Rosa poderiam representar,
mesmo, uma dimensão realista, na medida em que se compreendesse o que se
concebe como mundo real como a verdadeira expressão das tortuosidades. Os
caminhos tortuosos de Rosa – suas veredas tortas -, contudo, podem indicar um
escape, dado que inscrevem dimensões mais amplas, planos de sentidos que se
comunicam de maneira complexa e mesmo colocam a percepção do árido mundo real
sob desconfiança. Na dimensão do enigma, contudo, suas anamorfoses não são
verdadeiras deformações, antes, apenas ocultam uma forma harmoniosa que o autor
promete ao seu leitor, caso ele encontre o caminho encoberto que conduz a ela. Por
183
meio de sua poética, Rosa cria sinuosos caminhos verbais que furtam o sentido ao
leitor: constrói espaços textuais que requerem do leitor a mobilização de suas próprias
dimensões subjetivas, no sentido mais amplo. Os textos do autor são labirintos: o leitor
deverá desbravá-los em presença (GUMBRECHT, 2010), desbravá-los com o corpo
–, na medida em que deverá corresponder ao autor empenhando os sentidos de sua
própria vida prática: deverá pôr em jogo suas dimensões mais recônditas para
encontrar a saída prometida.
Para um autor que almeje o salto que conduza da arte à vida e, em sentido
inverso, da vida à arte, o labirinto talvez compreenda mesmo um símbolo excelente
do enigma, ou, melhor dizendo, parece sintetizar a própria vida como enigma, de modo
que, diferente de outros jogos, o labirinto absorve o jogador por inteiro e não há
nenhum protocolo esperado para quem o percorra: o desafiado deverá apenas
caminhar – no sentido correto, é claro -, deverá apenas conduzir a si mesmo: conduzir
a própria vida. Assim, Guimarães Rosa cria labirintos, Guimarães Rosa fala de
labirintos: o liso do Sussuarão será uma expressão do invencível labirinto de areia
(BORGES, 2008) no qual jagunços e leitores se perderão em meio a uma travessia
que os obriga a mover-se, obriga-os a ser outros. Na obra de Rosa, contudo, o labirinto
pode assumir diversas formas: pode ser o labirinto policial de Ladislau, ou o labirinto
da seca de Doriano (“Sota e barla”, Tutaméia), ou o labirinto de fogo do vaqueiro
Mariano (“Entremeio - Com o Vaqueiro Mariano”, Estas Estórias), ou mesmo, ainda, o
labirinto ético de Riobaldo: em todos eles, o homem busca encontrar uma saída para
os problemas da sua própria vida.
A escrita tortuosa, mesmo de natureza labiríntica, como temos indicado, pode
de fato indicar a estética barroca com a qual Sant’Anna identifica Guimarães Rosa,
uma vez que tal estética estaria investida do poder de desafiar fronteiras e mesmo
fundir categorias, como podemos observar em um fenômeno que também poderia ser
tomado com um emblema do projeto artístico rosiano: o teatro da fé, que “sai de um
edifício, afasta-se da urbe e desloca-se para a natureza, para os altos montes.”
(SANT’ANNA, 2000, p. 62). O palco barroco, portanto, não será outro senão o universo
e o próprio mundo é um labirinto, símbolo da complexidade de um mundo que aspira
à unidade (SANT’ANNA, 2000, p. 63). Além disso, a estética barroca também era
capaz de perceber, de maneira contínua, o infinitamente pequeno e o infinitamente
grande, de forma que olhar para dentro poderia compreender uma maneira de
também se olhar para fora (SANT’ANNA, 2000, p. 125). Confundem-se, portanto, as
184
relações entre o conteúdo e o continente, entre as partes e o todo, em uma perspectiva
que abarca o pensamento hermético: o que está em cima é como o que está embaixo.
Cumpre lembrar que os avanços da ciência da época sugeriam o entrelaçamento de
mundos, com estudos dos embriões de diferentes animais - que guardavam entre si
semelhanças e diferenças -, e a descoberta, por exemplo, da flora bucal e do mundo
subterrâneo, mundos, portanto, que compunham outros mundos: não sem mistério –
descobriam-se mundos menores que se ocultavam em outros mundos (SANT’ANNA,
2000, p. 128). A ideia de mundos que se atravessam, que se entrelaçam, da
passagem de um mundo a outro, ou mesmo a ideia de mundos que se ocultem uns
nos outros parece-nos cara ao projeto artístico de Rosa: poderia mesmo
compreender-se pela ideia da continuidade, expressa pela lemniscata, tantas vezes
representada nas edições de suas obras, por encomenda do próprio autor.
Argumentamos, no entanto, em favor de Guimarães Rosa, ao sugerir que, se o autor
se identifica com a estética barroca, como propõe Sant’Anna, termina, por fim, por
sublimá-la. Se o espírito barroco não tinha clareza dos limites que separam o
espetáculo e os fatos da vida corrente, se confunde, portanto, o real e o seu reflexo
distorcido na arte, não podemos imputar a Guimarães Rosa a mesma inocência. Ao
autor, de sua parte, talvez apenas não interesse tal distinção, de modo que ele, em
um movimento convergente, põe em dúvida as fronteiras, mas de uma maneira
deliberada, por meio de uma escolha consciente. Assim, se, como propõe Sant’Anna,
para o barroco, tudo era teatro, se as cenas que compunham os fatos da vida e da
morte; as superficialidades das vidas de príncipes e princesas, e mesmo a defecação
do rei compunham um espetáculo (2000, p. 220), Rosa sabe que os fatos triviais e
prosaicos podem, sim, ser da maior importância na arte, desde que refratados pela
lente da poesia.
Talvez seja, contudo, o momento de tratar de uma particularidade que, tributada
à exatidão que se espera de um trabalho como este, buscamos evitar ao longo de
toda a nossa análise: ocupamo-nos dos enigmas que Guimarães Rosa projetou para
a sua obra e buscamos deixar de fora toda a dimensão inconsciente. Nossa decisão,
é claro, justifica-se apenas por um rigor metodológico, posto que a dimensão
inconsciente, que tentamos omitir, também nos é muito cara: nosso trabalho pode
valer por ela, o muito que não deveu caber? Revela-se, então, uma que, certamente,
será das maiores dificuldades de um trabalho como o nosso, ou, melhor dizendo, de
um trabalho que se dedique a um autor como Guimarães Rosa: a dimensão que
185
deixamos de fora, certamente, interessaria ao autor, que chegou mesmo a sugerir a
possibilidade de que os trabalhos de seus tradutores poderiam mesmo corrigir alguns
de seus erros (ROSA, 2003, p. 99). Rosa, como dissemos, caracterizou-se tantas
vezes pelas negações e mesmo identificou-se com elas para compor o que chamamos
a estética do nada: lançou-se com afinco à filosofia para, ao fim, negá-la, fez o mesmo
com a psicologia e com diversos outros ramos das ciências humanas; por fim, disse
haver encontrado lugar na religiosidade e no misticismo, terrenos hostis para o fazer
acadêmico. Como se não bastasse, resistiu – embora nem sempre de forma explicita
– a qualquer identidade confessional e repudiou, por meio do herói de “Curtamão”, a
ideia de que, após a sua morte, a obra (a casa) que desenvolvera (edificara) fosse
tomada como uma igreja. Assim, buscamos nos dedicar aos enigmas que Rosa
deliberadamente criou, mas sabemos que esses representam apenas uma pequena
porção dos enigmas compreendidos em sua obra. O pouco que entendemos sobre os
mistérios do espírito humano, contudo, permite-nos afirmar, mesmo com certa
segurança, que todo e qualquer esforço metodológico empenhado em separar o que
resulta de estratégias conscientes e o que se forma sob pressão inconsciente é
insuficiente e mesmo vão. Ocorre-nos agora que nosso trabalho talvez valha por haver
organizado e fortalecido as poucas bases seguras de que dispomos sobre os enigmas
para que os interessados se aventurem em outras regiões, mais arriscadas, mais
desafiadoras; talvez valha, dizíamos, por haver desbravado e limpado, tanto quanto
nos foi possível, as margens do rio para que o leitor arrisque o salto que o projetará à
terceira margem.
Fiados na ideia de que nosso trabalho buscou transitar – outra vez, admitimos,
com tanta precisão quanto nos foi possível – por tantas e diferentes fronteiras,
requisitamos, ao fim – pelo menos provisoriamente! -, o direito de suprimi-las, visto
que em nossa análise, todas elas se mostraram duvidosas: demonstramos que os
espelhos – os concretos e os metafóricos – nos quais nos miramos podem nos
devolver imagens ambíguas, ou mesmo que nos revelem a identidade de outro, ou,
ainda, uma identidade que se quer mais ampla; dialogamos com diversos pensadores
que nos mostraram, para além de qualquer impulso literário, que a individuação do eu
se mostra contraditória; revisitamos a noção de amor, com as suas múltiplas faces,
por vezes mesmo discordantes, e percebemos que o ser amado, mais do que um
ponto de chegada, projeta o espírito para além dos limites de tempo, espaço e
identidade; investigamos o estatuto enigmático da linguagem e percebemos como a
186
poesia convida ao movimento como única forma possível de achar-se, em estruturas
que parecem servir propriamente à desorientação, mas sugerimos que, a despeito de
toda precariedade, a linguagem – ou a escrita, a que mais propriamente nos referimos
– compreende a única forma possível de orientação no mundo sensível; por último,
diante da ruína da linguagem, conhecemos o salto – o salto de sentido – como saída
possível, que, conforme queremos entender, assinala a passagem misteriosa entre o
simbólico e o real, fronteira em que, precisamente agora, solicitamos o direito de
transitar.
A propósito da fluidez das fronteiras que separam o eu, o outro e o mundo –
que, na verdade, também se apresenta como outridade – destacamos um dos pontos
mais herméticos, dentre todos abordados em nosso ensaio, que, por isso mesmo,
tangenciamos de forma tão cuidadosa e mesmo humilde: o movimento do espírito, ou,
mais formalmente, o pensamento humano, com tudo o que guarda de inapreensível.
Acrescente-se ao nosso comedimento a nossa decisão de nos mantermos nas
margens seguras do pensamento – duais como o silogismo em que se fundam -,
compreendidas pelos limites da lógica, quando sabemos, que, ao nosso autor,
interessa a transcendência, ou, ainda, a dimensão do enigma, compreendido na
terceira margem. Heidegger, de sua parte, institui uma perspectiva curiosa e sugere
que pensar corretamente não seria pensar segundo uma lógica instituída – ou
segundo o que chamaremos a lógica formal -, mas deixar-se tocar pela lógica interna
da coisa pensada (1998, p. 200). A proposição de Heidegger, em alguma medida,
parece também validar o método que descrevemos para nosso trabalho, posto que,
para que a coisa pensada, por fim, nos toque, deveremos nos colocar em seu entorno
e, quem sabe, tocá-la antes, à espera de que ela nos responda:
De onde e como a provocação de pensar, e de pensar na medida própria das
coisas, convoca o homem? Será que o homem, será que nós ainda temos
ouvidos para essa convocação? Entendemos a língua dessa voz?
Estabelecemos alguma relação com a palavra que, nessa voz, chega à
linguagem? (HEIDEGGER, 1998, p. 201-202)
A provocação de Heidegger nos inquieta: terá o homem moderno ouvidos para a
convocação das coisas, para que se coloque em seu encalço e as pense a partir delas
próprias? Na dimensão dos estudos de Guimarães Rosa, a provocação de Heidegger
nos conduz ainda a uma outra, mais recente, feita por Eduardo Viveiros de Castro em
um texto em que denuncia a destruição da natureza pelo homem: ainda podemos
187
ouvir o recado do morro?74 (CASTRO, 2015) -, recado que, conforme sugere o
antropólogo, alerta a humanidade sobre os riscos de sua destruição iminente. Essa
parte pouco conhecida do pensamento de Heidegger, com efeito, talvez agradasse
mesmo a Viveiros de Castro, dado que o filósofo alemão admite suspeitar da
existência de uma afinidade do logos original com a natureza, ainda maior do que a
afinidade que se supõe entre o logos e a linguagem (1998, p. 261), o que explicaria a
proposição do filósofo sobre dar ouvidos às coisas. Aliás, "O que é a palavra sem a
relação com o que ela nomeia e o que nela vem à palavra?" (HEIDEGGER, 1998, p.
207). No que respeita ainda à arqueologia de Heidegger, rumo ao enigma fundamental
do pensamento humano, o autor comenta – conforme desconfiamos, com algum traço
de preocupação - a possibilidade de que Heráclito tenha operado uma
antropomorfização do mundo, que se configura quando tomamos o logos como ser
dos entes (1998, p. 301). Uma leitura atualizada da proposição de Heidegger nos
levaria, outra vez, a Viveiros de Castro e sua noção de perspectivismo (CASTRO,
2002), segundo a qual os índios originários da Amazônia projetam a sua humanidade
em toda a natureza. Os pensamentos de Heidegger e Castro, especialmente no que
têm de afinidade, devolvem-nos, como que pela imagem projetada em um espelho,
ao cerne de nosso trabalho. Se a vida, fatalmente assinalada pela sua efemeridade,
compreende o grande enigma fundamental, se nos movemos em um cosmo
antropomorfizado, o enigma da esfinge se coloca nas raias da obviedade, na medida
em que todos os enigmas apontam para o homem. Talvez não devêssemos mesmo
nos surpreender muito, posto que o estatuto do enigma literário, como pensamos
haver definido, com efeito, sugere que o mistério deve colocar-se a uma distância
média, deve permanecer ao alcance da mão: resguardar a possibilidade de
manifestar-se, portanto.
Nossa insolência de sugerir que a proposição de Heidegger - de que o logos
original talvez se identifique mais com a natureza do que com a própria linguagem -
talvez agradasse a Viveiros de Castro enseja uma segunda defesa da nossa escolha
pelo pensamento do filósofo alemão como um dos mais importantes fundamentos
teóricos do nosso trabalho. A necessidade – repetida – da defesa de Heidegger se
justifica, como já dissemos, por uma resistência ao seu pensamento, como se pode
74O autor, naturalmente, faz uma analogia entre o recado do morro da Garça - que, na novela “O recado
do morro”, denunciou a ameaça que se levantava contra a vida de Pedro Orósio (ROSA, 2001) - e a
mensagem velada da natureza, que ele chamou “O recado da mata” (CASTRO, 2015).
188
supor, por parte de Guimarães Rosa75. As razões do desgosto de Rosa, é verdade,
não são um mistério: o autor sempre foi muito claro – e até coerente, supomos – em
sua escolha por tudo aquilo que “escancha os planos da lógica” (ROSA, 2009, p. 29),
ou em sua rebeldia contra o prelado da razão, razão, essa, que o autor, de forma
burlesca, apelidou de “a megera cartesiana” (ROSA, 2003, p. 90). Em sua entrevista
a Günter Lorenz, Rosa referiu-se nominalmente a Heidegger, quando admitiu que o
filósofo dedicou-se à língua, mas melhor teria feito escolhendo-a em detrimento de
uma filosofia rigorosa (ROSA apud LORENZ, 1973). A referência de Rosa, contudo,
compreende uma contradição que, a despeito de sua sutileza, interessa-nos agora
pôr em destaque: embora reclame da escolha de Heidegger, o autor reconhece, na
própria voz, um eco do pensamento do filósofo alemão quando emenda um
comentário ao que ele próprio acabara de dizer: “Soa a Heidegger, não?” (ROSA apud
LORENZ, 1973). Referimo-nos em nosso ensaio, no entanto, a uma publicação tardia
de Heidegger, o livro Heráclito, que, embora houvesse sido escrito antes, só veio a
público após a morte de Guimarães Rosa, e está compreendido na fase da carreira
do filósofo dedicada à poesia. Depois de haver sugerido que a Viveiros de Castro
talvez agradasse esse Heidegger, permitimo-nos uma segunda – e talvez maior! –
insolência, a de propor que Guimarães Rosa não só aprovasse a nossa escolha como,
talvez, também se rendesse ao pensamento final de Heidegger, no qual encontraria
com mais frequência, assim pensamos, os reflexos do seu próprio pensamento, visto
que, conforme o citamos, em Heráclito, Heidegger coloca-se contra as limitações da
lógica segundo a forma pela qual ela se consagrou. A propósito, permitimo-nos ainda
apontar outra afinidade entre os autores quando sugerimos haver uma analogia
possível entre seus projetos pessoais: assim como Heidegger buscou resgatar do
esquecimento a palavra do ser, como fundamento do pensamento ocidental, Rosa
também buscou avivar as formas da oralidade sertaneja, também já ameaçadas pelo
esquecimento76. Ambos os projetos compreendem um movimento que começa na
linguagem, mas encaminha-se para a essência do ser, que retorna para língua e
empreende uma espiral sem fim.
75 Guimarães Rosa referiu-se diretamente a Heidegger em sua entrevista ao crítico alemão Günter
Lorenz: “Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por
ele, pelo que devo constantemente umsorgen. Soa a Heidegger, não? Ele construiu toda uma
filosofia muito estranha, baseado em sua sensibilidade para com a língua, mas teria feito melhor
contentando-se com a língua. Sim, com isto eu já disse todo o fundamental sobre minha relação com
a língua.” (apud LORENZ,1973, grifos nossos).
76 Devo essa observação à minha orientadora neste trabalho, professora Kathrin Rosenfield.
189
Ainda a propósito do direito que reivindicamos para, pelo menos ao fim deste
trabalho, suprimir os limites que tão obstinadamente tentamos respeitar em nossa
análise, talvez seja este o momento oportuno de confessar uma angústia que nos
acompanhou ao longo de todo o nosso desenvolvimento, decorrente da impressão de
que todos os pontos de vista que adotamos para examinar o enigma literário, a
despeito de partirem das formas mais refinadas do pensamento e da cultura,
pareceram nos conduzir ao âmbito mais comum da existência humana, de forma que,
todos os ensaios que empreendemos, a partir de cada perspectiva do enigma
assumida, parecia-nos sugerir a fórmula mais elementar: estar vivo, no tempo e no
espaço, compreender-se como um ente individual é um (é o) enigma -, o que, talvez
por fim, justifique o nosso apontamento sobre a necessidade de um reordenamento
da proposição de Huizinga sobre o jogo, de modo que, a essa altura, um enigma geral
da existência nos parece mais elementar do que a ludicidade. Revisitado o nosso
trabalho, a fórmula elementar que propusemos pode assumir variações, dentre as
quais propomos: estar vivo como ente incompleto – como corpo desejante - é o
enigma -, ou, ainda: estar vivo e saber-se mortal é o enigma. Lançamo-nos na
perplexidade de perceber que, a fórmula simples que propusemos, com efeito, parece-
nos investida da propriedade de ligar todos os pontos mais complexos de nossa
análise, como se fossem eles mera capilaridade do mais simples sistema de vasos
comunicantes. O enigma literário, ao fim, parece-nos uma resposta melancólica à
pergunta fundamental sobre a angústia da existência, o que poderia mesmo explicar
a condição média que propusemos para o velamento de um enigma que, para ser
enigma, precisa manter-se ao alcance da mão – ou pelo menos ao alcance de uma
mão suficientemente hábil: já sabemos, contudo, a resposta, pois a pergunta,
considerado o enigma da individuação, em certa medida, fomos nós mesmos que
fizemos.
O enigma, portanto, prescreveria o salto: ação possível que responde a um
mundo fragmentado e incoerente. A ideia do salto como ação possível em um mundo
marcado pela descontinuidade, contudo, pode desafiar um espírito habituado à
análise: se o enigma do salto se marca pela vitória momentânea contra uma gravidade
– uma carnalidade - que nos condena a voltar sempre à terra, o que poderia querer o
homem que salta? Ou, conforme mesmo nos sugeriria o método analítico: o que seria
a outra coisa? A resposta, com efeito, compreenderia um absurdo e poderíamos
mesmo imaginar um homem que se ergue do chão e dispara contra o firmamento, e
190
bem serviria para ilustrar a enigmática pergunta que o autor dispôs em Tutaméia, mais
precisamente no misterioso prefácio, “Sobre a escova e a dúvida”: “Para onde nos
atrai o azul?” (ROSA, 2009, p. 231) – ocorre-nos ainda que o próprio autor já houvesse
respondido a pergunta, por meio do narrador do conto “O espelho”: o azul nos atrai
para o salto mortale, impulso para o crescer da alma (ROSA, 2005, p. 120). A ideia,
contudo, a despeito de tudo o que tem de absurda, talvez se entenda pela extrema
simplicidade de uma noção que, sabemos, resiste ao conhecimento da natural
provisoriedade da vida, a certeza de que nossos prazeres são fugazes como o cintilar
dos vagalumes: pode ser entendida simplesmente como o desejo do gozo persistente
-, expressaria a aspiração à viagem de volta (ROSA, 2009, p. 41), ao regaço da grande
mãe; desejo de levar a vida a cabo, corrigindo, contudo, um erro original. A ideia do
gozo permanente proporciona, parece-nos, estranhamento; compreende, diríamos,
uma imagem mesmo absurda. Apesar de sua singularidade, encontramos duas
representações poéticas dessa imagem na literatura, as duas, curiosamente, muito
semelhantes. A primeira, encontra-se na obra de Heidegger em que nos
referenciamos e o autor atribui a Jean Paul:
Inúmeras vezes cheguei a pensar que se eu fosse um anjo e tivesse asas, e
nenhum peso específico, levantaria voo para tão distante que chegaria a ver
o sol do crepúsculo arder nos confins da Terra, já que voaria com a Terra ao
mesmo tempo em que contrariaria o movimento do seu eixo, permanecendo
numa direção tal que me permitiria mirar com olhos doces e amplos o sol do
crepúsculo durante um ano inteiro... Mas, por fim, afundaria embebido no
brilho, tal como abelha afogada no mel que desmaia na grama, de doce
embriaguez!77 (apud HEIDEGGER, 1998, p. 80).
A segunda ocorrência, por sinal - e curiosamente -, compreende uma fala de Fausto
e está em Goethe:
Vê, como à luz do sol que em breve finda,
Das choças fulge a verde-áurea moldura.
Recua e foge, está vencido o dia,
Para lá corre, e em vida nova tudo abrasa.
Para seguir-lhe sempre e sempre a via,
Do solo, ah! me pudesse alar alguma asa!
[...]
Mas parece ir-se enfim o flâmeo deus, o sol;
No impulso alado que me enleva
Corro a embeber-me no imortal farol,
À frente a luz e atrás de mim a treva,
Aos pés o oceano e o empíreo sobre mim. (2014, p. 101-102, grifos nossos)
A imagem de um ocaso persistente é mesmo surpreendente e só poderia mesmo ser
concebida pelo espírito dos poetas: é também a imagem do salto triunfante, o salto
77 (E. Bered), 1. Abt., vol. V, p. 265.
191
que vence, por fim, a gravidade – é o salto mortal? A cambalhota gloriosa? –
compreende ainda a ideia do clímax persistente, do gozo duradouro; remete-nos outra
vez à representação da peça dos meninos em “Pirlimpsiquice” e reclama o sentido de
apoteose, visto que ali também se tem a rara representação de um gozo duradouro,
“o milmaravilhoso — a gente voava” (ROSA, 2005, p. 91). Se a razão, contudo, insiste
em expulsar o homem de todos os seus paraísos possíveis, a poesia, persiste em
conduzi-lo de volta a esse Éden perdido do aqui e agora: caem as fronteiras que
separam o sujeito e o objeto -, por meio do ser amado, todo o universo nos abraça e
o instante do gozo abarca uma eternidade:
Felicidade solar: o mundo sorri. Por quanto tempo? O tempo de um suspiro:
uma eternidade. Sim, o erotismo se desprende da sexualidade,
transformando-a e desviando-a de seu fim, a reprodução; mas esse
desprendimento é também um regresso – o casal volta ao mar sexual e
mistura-se me seu menear infinito e aprazível. Ali recupera a inocência dos
animais. O erotismo é um ritmo: um de seus acordes é separação, o outro é
regresso, volta à natureza reconciliada. O além erótico está aqui e é agora
mesmo. Todas as mulheres e todos os homens viveram esses momentos: é
nossa ração de paraíso. (PAZ, 1994, p. 28)
O amor cósmico que Octavio Paz pinta em nosso espírito, pelo simples exercício da
palavra, convida-nos a rever a condição de Riobaldo, conforme a expusemos: se o
herói de Rosa padeceu o engano de haver ouvido errado o nome mágico de Diadorim,
se não foi capaz de perceber que o amor de um seu companheiro era a história correta
que Deus lhe apresentava por linhas/veredas tortas, por outro lado queremos afirmar
que, a despeito de qualquer erro possível, Riobaldo sempre amou Diadorim:
sobretudo, amou-o sabendo-o – pensando-o – homem. No que respeita aos mistérios
do amor, inclusive, a visão do enigma revelado: o corpo nu de Deodorina – não
agregou nenhuma resposta, antes, acrescentou apenas angústia: o amor, Riobaldo já
o tinha, contra todo o demo.
Reafirmamos, em nossas linhas finais, a angústia de havermos nos sentido, ao
longo do desenvolvimento de nosso trabalho, presos – sem saber! – em um labirinto
circular que nos devolvia sempre ao mesmo ponto: a ideia de que o enigma que
buscávamos apontava sempre para um mistério geral da existência. Assim, o enigma
do espelho levava-nos ao enigma da individuação, na medida em que a ideia de ser
– viver como - um ente isolado revela-se contraditória e o espelho, por isso, parece
nos mentir; o enigma do amor sugeriu-nos que a face do ser amado pode revelar-me
a minha própria e que, para além dela, todo o universo me desafia, na mesma medida
em que me seduz; o enigma da linguagem revelou-se como o espelho que, por meio
192
de metáforas, metonímias e analogias, nos mostra o mundo sensível e nos lembrou
que o conhecimento compreende uma dimensão de favorecimento, que leva-nos de
volta ao mistério das muitas faces do amor; por fim, percebemos que é por meio dos
saltos de sentido entre as formas espelhadas que nos orientamos no mundo sensível,
projetando-nos, de pulo em pulo, pelo ensejo de sermos mais do que éramos, sempre
à espera do impulso que talvez nos leve além dos mistérios. Enfraquecidas as
fronteiras que separam o sujeito e o objeto, o universo se apresenta como um todo
animado. Octavio Paz sugere, para espanto do leitor, que o homem moderno, ao haver
se colocado centro do universo, perdeu a imagem do mundo: “Deslocou-se o centro
do mundo, e Deus, as ideias e as essências se desvaneceram. Ficamos sozinhos.”
(2012, p. 266). Segundo a perspectiva do autor, queremos sugerir que a obra de
Guimarães Rosa, com suas múltiplas relações intratextuais, constitui reflexo coerente
de um universo que se dispersa em milhões de fragmentos. E se é a palavra poética
que devolve ao homem solitário a imagem do mundo habitável, os reflexos poéticos
de Rosa representam um alento. Tudo está no seu devido lugar: sugere o Tao, tão
caro a Rosa. A dispersão do mundo, contudo, pode bem representar apenas mais
uma ilusão do ego: da perspectiva do universo – do sertão – todas as fronteiras se
confundem e o cosmo inscreve o homem, como tão bem descreve Martin Buber:
A minúscula Terra emerge do turbilhão dos astros, e, do fervilhamento sobre
a terra, emerge o pequeno homem, e assim a história o transporta através
dos tempos, para que ele reconstrua com persistência os formigueiros das
civilizações, que ela aniquila. Abaixo desta série de imagens está escrito: "Um
e Todo". Do outro lado surge a alma. Uma fiandeira tece a órbita de todos os
astros, a vida de todas as criaturas e toda a história universal; tudo isso é um
fio da mesma tessitura e não se chama mais, doravante, astros, criaturas e
mundo, mas sensações, representações ou até vivências e estados da alma.
E logo abaixo desta série de imagens lê-se: "Um e Todo."
[...]
Então, ele vê que o Eu está contido no mundo e que, na verdade não há Eu,
e, por isso, o mundo não pode prejudicá-lo, e, então ele se tranquiliza; ou,
então, ele vê que o mundo está contido no Eu, e que, afinal não há mundo,
e, por isso, ele também não pode prejudicar o Eu, o que o tranquiliza também.
(2017, p. 96-97)
O ceticismo que se queira impor contra a imagem poética pintada por Buber também
se esvazia diante dos dados da experiência sensível e nos lembramos da
perturbadora afirmação de Schopenhauer ao sugerir que, se era uma loucura afirmar
que o gato que saltava e brincava à sua frente seria o mesmo que ali brincava
trezentos anos atrás, a sugestão de que o gato fosse absolutamente diferente de seu
antecedente também era igualmente insana (SCHOPENHAUER, 2015, p. 577). “Tudo
193
é mistério” (ROSA, 1999), sugere o nosso autor, e as fronteiras do tempo também se
põem sob desconfiança quando me indago sobre o enigma do assombro que sinto
quando releio o final de Grande Sertão: Veredas, e estremeço com imagens que me
chegam de signos arbitrários, representados por grafos abstratos; quando comungo,
por meio de imagens remotas, com um homem que morreu dez anos antes de minha
chegada ao mundo. Sinto-me impelido a acreditar que a minha existência se orienta
por saltos que me levam da experiência sensível às representações do simbólico e
que, de fato, o grande enigma é a vida e, a cada cambalhota, respondo a uma mesma
Esfinge monstruosa que se mostra com a minha própria face: sou eu.
194
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