Representação do Indígena na Literatura

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 33

O INDÍGENA NA LITERATURA

BRASILEIRA:
REPRESENTAÇÕES E PRESENÇA
LITERÁRIA
Emilia Emanuely Silva
Maria Clara Gomes Azevedo
Lethicia Hellen Silva
Thalyson Carvalho
PANORAMA DA REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NOS
MOVIMENTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS
PRIMEIRAS IMAGENS DOS INDÍGENAS
NA LITERATURA BRASILEIRA
Diário de navegação, de Pero Lopes e
Sousa, escrivão de Martim Afonso de
A representação do indígena na Sousa;
literatura brasileira se fez presente desde Tratado da Terra do Brasil e a História
as primeiras escritas acerca da nova da Província de Santa Cruz a que
colônia portuguesa, como é o caso da vulgarmente chamamos Brasil, de Pero
Carta, de Pero Vaz de Caminha e das Magalhães Gândavo;
Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel
crônicas de viagens, escritas por muitos
Soares de Sousa; Diálogos das
europeus que estiveram no Brasil,
grandezas do Brasil, de Ambrósio
interessados em estudar ou explorar
Fernandes Brandão;
comercialmente a nova terra. Viajantes e Cartas dos missionários jesuítas
cronistas europeus produziram um escritas nos dois primeiros séculos de
considerável volume de textos sobre o catequese;
Brasil. Diálogo sobre a Conversão dos gentios,
do Pe. Manuel da Nóbrega;
História do Brasil, de Frei Vicente do
Salvador, dentre outros.
A figura do indígena começa a aparecer
na literatura brasileira a partir do
Arcadismo, sendo “O Uraguai” (1769),
poema narrativo de caráter épico de
Basílio da Gama, a melhor realização do
período.

O poema narra o massacre dos índios


nas missões jesuítas dos Sete Povos das
Missões no Rio Grande do Sul. Retrata a
luta travada por espanhóis e
portugueses para fazer com que
indígenas e jesuítas obedecessem ao
Tratado de Madri.

Edição Fac-Similar de “O Uraguai”, 1941


TRECHO DE “O URAGUAI”
[...]
Começava a bordar nos horizontes
O céu de brancas nuvens povoado
Quando, abertas as portas se descobrem
Em trajes de caminho ambos os padres,
Que mansamente do lugar fugiam,
Desamparando os miseráveis índios
Depois de expostos ao furor das armas.
Lobo voraz que vai na sombra escura
Meditando traições ao manso gado
Perseguido dos cães, e descoberto
Não arde em tanta cólera, como ardem
Balda e Tedeu. A soldadesca alegre
Cerca em roda o fleumático Patusca,
Que próvido de longe acompanha
E mal se move no jumento tardo.”
Combate de Botocudos em Mogi das Cruzes (1920),
(Basílio da Gama. O Uraguai. Rio de Janeiro: de Oscar Pereira da Silva
Record, 2006, p.98)
Conhecido como “Caramuru”, (homem de
fogo), por ter usado uma espingarda para
abater um pássaro em pleno voo, Diogo
Ainda no período árcade, o frei Santa Rita Álvares Correia conquistou a amizade dos
Durão publica o poema épico Caramuru tupinambás e terminou casando com
(1781). Trata-se de obra convencional, Paraguaçu, filha do chefe da tribo.
mostrando certo artificialismo, que Enfocando o indígena, sua cultura, seus
denuncia a falta de conhecimento in loco costumes e, principalmente, a catequese,
da natureza brasileira. Nesta obra, o autor Santa Rita Durão explora um tema
narra as aventuras de Diogo Álvares universal, a morte por amor. O triângulo
Correia, náufrago português, que viveu amoroso formado por Diogo, Paraguaçu e
na Bahia, entre os índios tupinambás, no Moema tem solução na bela passagem
século XVI. em que esta última se atira ao mar numa
tentativa desesperada de alcançar o
navio que levava Diogo e Paraguaçu para
a Europa.
TRECHO DE “CARAMURU”
[...]
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda, entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus
responda.
Bárbaro, esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir) ah! Não te escondas
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo dizer o mais, cai num desmaio,
Perde o lume dos olhos, pasma e treme
Pálida cor, o aspecto moribundo;
Com a mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas a onda do mar, que, irada, freme,
Tornando a aparecer desde o profundo,
- Ah! Diogo cruel! – disse com mágoa –
E sem mais vista ser, sorveu-se na água.”
Moema (1866),
de Victor Meirelles
(Santa Rita Durão. Caramuru. In: TEIXEIRA,
Ivan.Multiclassicos: Épicos, 2008)
ROMANTISMO: O INDÍGENA COMO HERÓI NACIONAL
Mesmo que a figura do índio já estivesse Por outro lado, o Romantismo começou no
presente na literatura brasileira desde o Brasil nas primeiras décadas após a
Arcadismo, foi a partir do Romantismo Independência, coincidindo com o
que o indígena elevou-se à condição de movimento de construção da identidade
herói nacional. nacional através de uma cultura autêntica
que marcasse definitivamente a
A estética romântica, no Brasil, adotou o autonomia do Brasil em relação a
Indianismo como uma das suas Portugal. Assim, os poetas e romancistas,
características, pois, na falta de um como Gonçalves Dias e José de Alencar se
passado histórico para cultuar, como empenharam na construção de obras
fizeram os europeus com a Idade Média, representativas da nacionalidade da
os autores brasileiros voltaram-se para literatura brasileira, tendo o índio como
os primeiros habitantes do país, figura idealizada do herói medieval, ou
considerados os legítimos ainda, do ”bom selvagem” esboçado na
representantes do povo americano. teoria de Jean Jacques Rousseau.
Dentre os autores desse período, José de O Guarani é a primeira obra do ciclo
Alencar se destaca com a produção de indianista de Alencar, na qual o autor
sua trilogia indianista composta por O representa o herói nacional, com
Guarani (1857), Iracema (1865) e características físicas e morais
Ubirajara (1874). Em O Guarani, é o herói idealizadas, traçando o perfil de homem
indígena (Peri) quem vive junto aos jovem, saudável, belo e valente, conforme
brancos europeus, já em Iracema, é o se pode observar no seguinte fragmento:
branco europeu (Martim) quem vive no
meio dos índios. Somente em Ubirajara
todos os personagens são índios, vivendo
numa época anterior à chegada dos
portugueses.
TRECHO DE “O GUARANI”
“Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de
árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um
índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam
aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-
lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado
e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava
com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa,
os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a
pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e
guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza
inculta da graça, da força e da inteligência.
Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do
lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa
espiral, vinham rogar com as pontas negras o pescoço flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa,
ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um
I Camacani nel bosco (1821),
pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida.” de Giulio Ferrario

(ALENCAR, O Guarani. São Paulo: Ática, 2002 p.27-28)


MODERNISMO: A PARÓDIA DO NACIONALISMO E DO INDIANISMO
O Modernismo literário no Brasil se Um exemplo de paródia é a obra Macunaíma
caracterizou por uma série de rupturas: (1928), de Mário de Andrade, que tem a
ruptura com o passado, com a imitação dos literatura indianista romântica como objeto
modelos europeus e, sobretudo com a parodiado.
linguagem convencional da literatura
academicista, ou seja, aquela produzida por Vejamos a abertura de Macunaíma em que
escritores que pertenciam às academias de se pode observar que o texto parodiado é o
letras. A partir da famosa Semana de Arte início do romance Iracema, de José de
Moderna, realizada em São Paulo, no ano de Alencar. Eis um fragmento de cada obra:
1922, os modernistas promoveram uma
verdadeira revolução na literatura brasileira,
preocupando-se com a renovação da
linguagem através de recursos formais que
aproximassem a escrita literária da fala
cotidiana.
TRECHO DE “IRACEMA”
“Além, muito além daquela serra, que ainda
azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que
tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de
palmeira.
O favo da jati não era doce como seu
sorriso; nem a baunilha rescendia no
bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena
virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da
grande nação tabajara. O pé grácil e nu,
mal roçando, alisava apenas a verde
pelúcia que vestia a terra com as primeiras
águas.”
Iracema (1884), de José Maria de Medeiros
(ALENCAR, op.cit., p.31)
TRECHO DE “MACUNAÍMA”
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto
retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão
grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu
uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos
não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
— Ai! que preguiça!... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado
no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois
manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O
divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os
olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava
quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do
banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos
guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma
cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas
graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava O Batizado de Macunaíma (1956),
os velhos, e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a de Tarsila do Amaral
cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.”

(ANDRADE, Mário. Macunaíma. Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia/INL. 1984, p.9)


Assim como José de Alencar fez no seu romance O
Guarani, Mário de Andrade, em Macunaíma, tenta
construir um herói que represente o povo brasileiro,
embora Peri e Macunaíma sejam tão diferentes um
do outro: enquanto o primeiro tem a conduta ética
de um cavaleiro medieval, o segundo é preguiçoso,
oportunista, sensual.

Ao contrário do Romantismo, que apresenta um


herói idealizado, o Modernismo se mostra crítico em
relação à sociedade brasileira, daí representar o
brasileiro na figura de um “herói sem nenhum
caráter.” Alguns críticos entendem que a falta de
caráter de Macunaíma significa que o povo
brasileiro ainda não tem um caráter definido e o
Brasil ainda não possui uma identidade cultural.
O INDÍGENA NA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
No seu livro “O percurso da indianidade na Quarup, romance de Antonio Callado, narra a
literatura brasileira” (2009), Luzia Aparecida Oliva história de um jovem sacerdote chamado Nando,
dos Santos utiliza a expressão “indigenismo que tinha o sonho de viver na Amazônia, ajudando
literário” para classificar as obras literárias que os povos indígenas a construir uma sociedade
tratam, de maneira crítica, as questões do índio justa e harmoniosa. O contato com pessoas
brasileiro. Segundo a autora, a obra que inaugura ligadas ao Estado, ao SPI (Serviço de Proteção ao
essa fase é romance Quarup, de Antonio Callado, Índio) e partidos políticos termina por mudar os
publicado em 1967. Aponta, ainda, o conto Meu tio ideais de Nando, que abandona o sacerdócio e
o Iauaretê, de Guimarães Rosa, publicado em 1969, envolve-se com a política e passa a militar nas
e o romance Maíra, de Darcy Ribeiro, publicado em Ligas Camponesas. Com o golpe militar de 1964,
1976, como obras que compõem o indigenismo Nando é preso e torturado. Depois de libertado
literário no Brasil. As três obras têm em comum passa a viver uma vida de orgia sexual, deixando
uma narrativa em que mito e fatos da atualidade escandalizados os antigos companheiros de
da vida dos índios no Brasil se misturam. militância política.
[...]
TRECHO DE “QUARUP”
Anta sorriu de novo, o rosto largo iluminado, e foi seguindo Sônia que se diluía no
mato noturno. Foi ela quem estendeu a mão. E seguiu na frente, para a maloca do
Anta. Um índio descansava na rede, outro se enfeitava para o quarup. Os tipitis
pingavam mandioca esprimida, havia cuias com restos de caxiri. Uma índia se
recostava na rede, curumim dormindo a seu lado, peito da mãe na boca. Sônia tirou
o vestido pelos ombros, depois o resto da roupa e sentiu um gostoso arrepio pela
incuriosidade que sua nudez despertava. Será que os índios não iam falar naquilo?
Mulher branca em rede de índio devera valer pelo menos uma fofoca xinguana. Mas
ali estava ela nua em pelo no meio da maloca diante de homens e mulheres e todo
mundo continuava balouçando em rede de buriti, dormitando, esfregando tinta no
corpo. Sônia entrou na rede do Anta feito fêmea índia e deixou ele deitar em cima e
pensou que só queria estar ali na maloca com um homem desencrencado por
cima e que era só isso, mas então viu em cima da rede do Anta pendurado do
poste central da maloca um espelho redondo de barba que algum caraíba tinha
dado em troca do arco ou flauta e que aumentava a gente e pelo espelho viu as
costas castanho-vermelhas do Anta enterrado nela e viu a rede e o fogo no chão Foto: Marrayury Jair Kuikuro, sem data
tudo muito maior e cheio por dentro feito bola de soprar e coisa que vai estourar
virando outra sei lá e entendeu que tinha mesmo querido não apenas passar o
tempo mas vir trepar ali na maloca diante dos outros.

(CALLADO, Antonio. Quarup. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1967, p.244)


LITERATURA FEITA POR INDÍGENAS
Literatura indígena brasileira Literatura RS: Fale-nos sobre o panorama atual
contemporânea, literatura de autoria da literatura de autoria indígena brasileira.

indígena ou literatura nativa. As


“Antes de tudo, convém enfatizar que até a
distintas designações referendam o década de 1990, era raríssimo encontrar obras
mesmo tema: a produção escrita de publicadas que carregassem na capa ou na ficha
autores representantes dos povos catalográfica o nome de um sujeito indígena. E
originários do Brasil. Segundo Julie mais raro ainda ele ser conhecido no país como
Dorrico em entrevista ao site autor ou mesmo escritor. Em 1980, já existia esse
desejo de autoria pelos sujeitos indígenas; com
Literatura RS, “a literatura indígena
isso, vemos algumas obras serem publicadas,
brasileira contemporânea é um como Antes o mundo não existia, de Firmiano
movimento literário que nasce para Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, do povo Desana.
a sociedade envolvente na década Ainda em 1975, Eliane Potiguara escrevia o poema
de 1990” (2019). Identidade Indígena.
“A literatura indígena brasileira contemporânea Todavia, será na década de 1990 que a
é um movimento literário que nasce para a produção indígena torna-se mais pungente,
sociedade envolvente na década de 1990. Esse caracterizando um movimento literário desde
movimento caracteriza-se no cenário nacional os sujeitos indígenas: primeiro nas aldeias, com
por sua autoria: a autoria coletiva e a autoria a autoria coletiva, a partir da educação
individual. Antes de tudo, convém enfatizar escolar indígena, direito assegurado na
que até a década de 1990, era raríssimo Constituição Federal, de 1988, no artigo 210,
encontrar obras publicadas que carregassem graças à luta e organização de lideranças
na capa ou na ficha catalográfica o nome de indígenas brasileiras. A autoria coletiva é uma
um sujeito indígena. E mais raro ainda ele ser produção realizada pelos alunos e professores
conhecido no país como autor ou mesmo indígenas que produzem materiais didático-
escritor. Em 1980, já existia esse desejo de pedagógicos que destinam-se ao ensino da
autoria pelos sujeitos indígenas; com isso, sua comunidade, o ensino da sua língua
vemos algumas obras serem publicadas, materna em escrita alfabética e o ensino da
como Antes o mundo não existia, de Firmiano língua portuguesa, bem como narrativas e
Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, do povo outros saberes.
Desana. Ainda em 1975, Eliane Potiguara
escrevia o poema Identidade Indígena.
Segundo, com a autoria individual, com a publicação da
obra Todas as vezes que dissemos adeus, de Kaká Werá,
em 1994, e Histórias de índio, de Daniel Munduruku, em 1996,
que demarcava o território simbólico das artes no Brasil.
Kaká Werá e Daniel Munduruku são os pioneiros e, ouso
dizer, idealizadores desse projeto literário que busca
diminuir a distância e o desconhecimento da sociedade
envolvente para com os povos originários. Hoje, a partir de
um levantamento bibliográfico realizado por Daniel
Munduruku, Aline Franca e Thúlio Dias Gomes, intitulado
Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, é possível
conhecer autores indígenas de diferentes etnias e suas
publicações. Nesse trabalho, que está disponível online, é
possível encontrar, na categoria da autoria individual, 44
escritores no total, sendo desse total, 11 mulheres. [...] Nesse
levantamento, podemos conhecer ainda a lista de
antologias, teses e dissertações, todas de autores Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil (2019)
indígenas.”
Como você avalia a receptividade da Academia brasileira
à literatura indígena?

“Considerando sua emergência na década de 1990, a


procura maior das editoras na década de 2000, depois da
publicação da Lei 11.645 de 2008 que torna obrigatório o
ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras em todo o
currículo escolar, ainda acho tímida a recepção desse
segmento. O contraponto está na atuação dos próprios
escritores que promovem concursos literários, como o
Curumim, que premia professores da educação básica
que trabalha com literatura indígena na sala de aula, e o
Tamoio, que busca novos escritores indígenas para somar
ao movimento. Ambos, Curumim e Tamoio, são realizados
desde o ano de 2004 sob direção de Daniel Munduruku,
com apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ).” Daniel Munduruku
Você defende que para compreendermos a literatura
indígena é fundamental partirmos de uma perspectiva
correlacionada com expressões estéticas de natureza oral
ou visual. Por quê?

“Eu defendo que para compreendermos a literatura


indígena temos de reconhecer que a estrutura do
pensamento ameríndio é diferente do ocidental. Ou seja, é
preciso reconhecer que os povos indígenas se orientam a
partir do princípio de homem integrado à natureza, e o
sujeito do ocidente segue a lógica binária e dual de homem
versus a natureza. O primeiro caso ajuda-nos a perceber por
que na expressão literária o sujeito tem uma relação
sagrada com a natureza. É nesse espaço da floresta que os
seres humanos e não-humanos habitam e conduzem os
modos de vida tradicionais desses povos. [...] A própria
noção de que os povos indígenas são os “verdadeiros donos
da floresta” é totalmente equivocada justamente porque
eles não têm essa relação de posse com a natureza, mas de
filhos dela, portanto, seria mais correto dizer que eles são os
“guardiões da floresta”, e isso eles são.
A natureza oral das comunidades tradicionais traduz-se
em suas literaturas. Se a literatura brasileira tem por
tradição um cânone que inaugura-se nas Cartas do
período colonial, passando pelo Barroco, Romantismo,
Realismo, Modernismo, Concretismo até as expressões
mais contemporâneas, deve-se levar em conta que a
tradição da literatura indígena reside na ancestralidade
que vive na oralidade. Então, a literatura indígena nasce
para a sociedade nacional quando os sujeitos indígenas
adquirem a escrita alfabética e a publicação e passam a
contar as suas histórias, mas para as sociedades
tradicionais, como diz Kaká, a literatura sempre existiu,
sendo anterior à escrita e ao impresso. A edição e a
publicação significa, dessa forma, uma ferramenta para
expressar-se, dialogar sobre pertencimento étnico e
sobrevivência.”

Trudruá Dorrico (“Panorama da literatura indígena brasileira: entrevista


com Julie Dorrico”, 2019)
ANÁLISE DE “O NORDESTE É MEU PAÍS”, DE EVA
POTIGUARA
A AUTORA
Evanir de Oliveira Pinheiro, que prefere ser
chamada Eva Potiguara em honra aos seus
ancestrais Potiguaras do Brejo da Paraíba e da
região Agreste do Rio Grande do Norte, nasceu
em Natal-RN, que apesar de ter nascido na
capital potiguar, sua reconexão com as raízes
indígenas não foi imediata, uma vez que suas
avós raramente abordavam as opressões e
deslocamentos que sofreram. Eva honra suas
raízes indígenas Potiguaras, reconectando-se
com sua ancestralidade por meio de pesquisas
familiares e superando o silêncio sobre as
opressões vividas por suas avós.
Sua identidade indígena, assumida
publicamente como escritora, pesquisadora e Eva Potiguara
doutora em Educação, trouxe desafios, como
perseguições racistas e misóginas, mas também
a força espiritual de seus ancestrais.
A AUTORA
Atualmente, Eva atua no ensino superior, focada
em estudos indígenas, além de ser escritora,
poeta, artista e produtora cultural. Articuladora
do Mulherio das Letras Indígenas, dedica-se a
fortalecer a luta pelos direitos indígenas e
levando sua missão ancestral de resistência
como prioridade, contribuindo voluntariamente
para honrar e fortalecer outras mulheres
indígenas. Com 34 anos de docência e prêmios
nacionais e internacionais, segue como aprendiz
de seu caminho ancestral e na sua caminhada
ouvindo as vozes ancestrais e lutando pelas
causas indígenas e ambientais, afirmando-se
como uma aprendiz de seu próprio caminho e Eva Potiguara
filha da terra (Aby Ayala membyra).
O NORDESTE É TERRA INDÍGENA
Nós, indígenas do Nordeste, em retomada, temos vivido dias difíceis
há mais de 500 anos. Os parentes aldeados lutando pela
homologação de suas terras, os não aldeados, buscando o respeito
e o reconhecimento de sua identidade ancestral, muitas vezes,
humilhados, discriminados e perseguidos, juntamente com os
parentes do contexto rural e urbano.

Um dos entraves que temos enfrentado é o racismo dos


estereótipos. A diversidade fenótipa dos povos originários de mais de
304 etnias necessita ser compreendida numa perspectiva histórico-
social, como diferenças físicas relacionadas à crimes de estupros e
abusos seculares sofridos por nossas mulheres, especialmente, do
nordeste brasileiro.

Fomos a primeira região a ser explorada e massacrada, no início do


século XVI, pelos portugueses e holandeses e, se nossa gente tem
cabelos enrolados, peles mais retintas, outras peles muito claras e
olhos claros, é porque somos povos vítimas de usurpações
criminosas. Não deixamos de ser indígena por isso, pois a nossa
identidade vai além das aparências.
O NORDESTE É TERRA INDÍGENA
A nossa corporeidade confronta-se diariamente com o racismo
estrutural, com as desigualdades sociais e as injustiças seculares,
que nos sufocam e nos rotulam de pardos, negros e/ou mestiços.

Somos indígenas de corpo e espírito, filhas, netas, bisnetas, trinetas e


tetranetas, de mulheres silenciadas e abusadas, que enfrentaram
muitas aflições, para que as suas raízes ancestrais vingassem até
esse século XXI.
Respeitando a nossa diversidade, repararão mais de quatro séculos
de racismo e de apagamentos que somos vítimas, darão um basta
na opressão que sofremos até hoje.

Então, parem de nos matar! Chega de etnocídio! O Nordeste é Terra


Indígena!

Eva Potiguara
CONTEXTO SÓCIOPOLÍTICO
Eva Potiguara fala sobre a luta dos indígenas do Nordeste do Brasil para
recuperar suas terras e reconhecer sua identidade. Essa luta ocorre em um
contexto de mais de 500 anos de opressão, racismo e violência.

O texto aborda o racismo na sociedade brasileira e como estereótipos


negativos afetam especialmente as mulheres indígenas, que sofreram
abusos ao longo do tempo. A obra denuncia a perda contínua das terras
indígenas e pede que o Nordeste seja reconhecido como terra indígena.

Além disso, destaca a diversidade entre os povos indígenas e como


características físicas negativas são usadas para justificar a discriminação e
a violência. Manter a identidade e a cultura indígena é considerado essencial
diante da ameaça de assimilação cultural.

A obra de Eva Potiguara é um forte testemunho da luta por justiça social e


pelos direitos dos povos indígenas no Brasil. Ela critica a história de opressão
e pede reparação histórica, o fim da violência e do etnocídio.
NARRATIVA
O conto "O Nordeste é Terra Indígena" se enquadra em uma narrativa de
caráter argumentativo e denunciativo. Ele utiliza elementos de uma narrativa
coletiva com forte tom de denúncia, entrelaçando memórias históricas,
reflexões sociais, apelos políticos para transmitir sua mensagem e carrega
elementos de narrativa histórica, social e espiritual.

A voz do texto é representativa de uma comunidade inteira, os povos


indígenas do Nordeste e não de um indivíduo específico. O uso da primeira
pessoa do plural ("nós, indígenas do Nordeste") reforça a ideia de
coletividade e solidariedade entre os membros do grupo.

O conto tem um propósito claro: denunciar injustiças históricas e


contemporâneas, como o racismo estrutural, o apagamento identitário e o
etnocídio. É uma narrativa de resistência que busca sensibilizar o leitor e
provocar mudanças sociais.
NARRATIVA
O conto "O Nordeste é Terra Indígena" se enquadra A trama é construída com base em fatos
em uma narrativa de caráter argumentativo e históricos (como o genocídio indígena durante
denunciativo. Ele utiliza elementos de uma narrativa a colonização) e problemáticas sociais atuais
coletiva com forte tom de denúncia, entrelaçando (racismo, estereótipos, luta por terras). Ela
memórias históricas, reflexões sociais, apelos conecta passado e presente para mostrar a
políticos para transmitir sua mensagem e carrega continuidade das opressões.
elementos de narrativa histórica, social e espiritual.
Além de trazer denúncias, o conto inclui
A voz do texto é representativa de uma comunidade elementos reflexivos sobre a corporeidade,
inteira, os povos indígenas do Nordeste e não de um ancestralidade e espiritualidade indígena. Isso
indivíduo específico. O uso da primeira pessoa do confere profundidade emocional e filosófica à
plural ("nós, indígenas do Nordeste") reforça a ideia narrativa.
de coletividade e solidariedade entre os membros
do grupo.

O conto tem um propósito claro: denunciar injustiças


históricas e contemporâneas, como o racismo
estrutural, o apagamento identitário e o etnocídio. É
uma narrativa de resistência que busca sensibilizar
o leitor e provocar mudanças sociais.
TEMAS ABORDADOS

O texto expõe o racismo estrutural enfrentado O texto adota um tom de denúncia contra o
pelos indígenas, como os estereótipos etnocídio, a opressão e os apagamentos
fenotípicos que deslegitimam suas identidades. históricos. O apelo "Parem de nos matar!
Também aborda o impacto das invasões Chega de etnocídio!" sintetiza a urgência de
coloniais no século XVI, que marcaram o início reparação histórica e respeito à diversidade
do genocídio e das usurpações. indígena.

A diversidade fenotípica dos povos indígenas é O Nordeste é apresentado como território


utilizada como símbolo de resistência. A indígena, um espaço que transcende as
narrativa mostra como os corpos indígenas geografias políticas e carrega significados
carregam marcas de violência histórica (como históricos e culturais profundos. O texto enfatiza
estupros e miscigenação forçada) e como que o reconhecimento desse pertencimento é
essas características desafiam as noções fundamental para combater a opressão.
estereotipadas de identidade indígena.
REFERÊNCIAS
MENDES, Algemira de Macedo; SOUSA, Elio Ferreira de; MAGALHÃES, Maria do Socorro
Rios; SILVA, Raimunda Celestina Mendes da. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. Teresina: FUESPI, 2013.
Panorama da literatura indígena brasileira: entrevista com Julie Dorrico. Disponível
em: <https://literaturars.com.br/2019/07/01/panorama-da-literatura-indigena-
brasileira-entrevista-com-julie-dorrico/>.

POTIGUARA, Eva; RATTON, Vanessa (org.). Álbum biográfico: guerreiras da


ancestralidade – Mulherio das Letras Indígenas. Guarujá, SP: Amare, 2022.
AGRADECEMOS A
ATENÇÃO

Você também pode gostar