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Antropologias no Brasil:
uma breve introdução histórica
Stefania Capone
CNRS/EHESS, CéSor
Fernanda Arêas Peixoto
Universidade de São Paulo
2020

POUR CITER CET ARTICLE


Capone, Stefania & Fernanda Arêas Peixoto, 2020. “Antropologias no Brasil:
uma breve introdução histórica”, in Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l'anthropologie, Paris.
URL Bérose : article1958.html

article publisher ISSN 2648-2770


© UMR9022 Héritages (CY Cergy Paris Université, CNRS, Ministère de la culture)/DIRI, Direction générale des
patrimoines et de l'architecture du Ministère de la culture. article copyright.
usage article
consulte le 26 de maio de 2024 - 23h56min

Publié dans le cadre du thème de recherche «Histoire des anthropologies au Brésil», dirigé par Stefania
Capone (CNRS, CéSor) et Fernanda Arêas Peixoto (Universidade de São Paulo)

Há no Brasil uma grande diversidade de práticas antropológicas, que são plurais tanto pelos
temas e campos abordados, como pelas problemáticas e orientações teóricas. Se a
antropologia brasileira é conhecida sobretudo pelas pesquisas em torno das populações
ameríndias e das religiões afro-brasileiras, ela não se limita a essas grandes tradições de
estudo, incluindo também a antropologia urbana e rural, a antropologia política, entre
outras. Nesse sentido, parece difícil abarcar esse conjunto com um único olhar, ou associá-lo
a uma só trajetória histórica. De fato, para traçar a história da antropologia no país seria
possível remontar à ’descoberta’ do território mais tarde denominado Brasil e considerar a
’Carta’ de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal em 1500 como o primeiro documento
’etnográfico’ sobre as novas terras, ao qual se acrescentariam os relatos dos viajantes que as
percorreram nos séculos seguintes. Ou seria preferível identificar a formação das primeiras
instituições científicas no século XIX para aí situar as origens da pesquisa propriamente
’antropológica’? E porque não colocar o acento nas universidades criadas no final da década
de 1930, quando as disciplinas e suas áreas de especialidade se mostram mais claramente
definidas?

Longe de querer propor uma história da antropologia no Brasil una, baseada em referências
cronológicas sempre questionáveis, esta introdução histórica sugere antes a existência de
ramificações que levaram à consolidação de diferentes tradições de pesquisa, de matrizes de

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pensamento plurais e de linhas divergentes através do espaço e do tempo. Para dar conta
dessa trama múltipla, o primeiro desafio consiste em deixar transparecer tal
heterogeneidade e complexidade, fazendo dessas diferenças um fio de Ariadne. O objetivo
consiste em esboçar uma cartografia que respeite a diversidade regional de um país com
múltiplos centros de produção intelectual, levando em conta as distâncias geracionais, bem
como institucionais, relativas a museus, universidades, institutos e sociedades científicas,
sem negligenciar as características dos próprios atores: brasileiros ou estrangeiros, homens
ou mulheres, negros, brancos, mestiços ou ameríndios. Qualquer reflexão sobre a história
das antropologias realizadas no Brasil deve levar em conta também as zonas de fronteira, a
circulação de saberes “intelectuais” e “artísticos”, “eruditos” e “populares”, “profissionais” e
“amadores”, que infletem nas relações entre os pesquisadores e os durante largo período
denominados “informantes”, sem naturalizar tais categorias e a oposição entre elas. É
preciso atenção ainda às formas como ideias e práticas circulam de um território disciplinar
para outros (história, sociologia, arqueologia, estudos literários etc.), ou mesmo entre
campos definidos como ’científicos’ e ’políticos’.

De modo a reconstituir a espessura dos cenários, personagens e produções que configuram


as antropologias praticadas no Brasil, é importante identificar os projetos individuais e
coletivos, assim como os campos temáticos e subdisciplinares em torno dos quais eles
gravitam: etnologia ameríndia; antropologia urbana; antropologia rural; antropologia das
populações afro-brasileiras; antropologia das religiões, direito e política; ciência e
tecnologia; som e imagem; gênero e sexualidade, entre tantas outras designações que
evoluem de acordo com a expansão das pesquisas e de suas inspirações teóricas. Uma das
alterações mais significativas, especialmente a partir dos anos 1990, é o desenvolvimento de
investigações realizadas fora do território nacional, já que predominavam aquelas sobre
populações e grupos locais. Isso também foi possível graças à política científica de fundações
estrangeiras, como a Fundação Ford, implantada no Brasil em 1962, que financiou projetos
transnacionais, particularmente na África. Até então, as pesquisas antropológicas tendiam a
se concentrar nos ’outros” localizados em território nacional, fossem as populações
ameríndias ou os adeptos das religiões afro-brasileiras.

Mesmo antes da existência de espaços institucionais dedicados à formação de antropólogos


stricto sensu, diversas formas de conhecimento antropológico foram produzidas por
naturalistas, cronistas, missionários, pintores e outros, que viajaram pelo Brasil a partir do
século XVI e foram os primeiros a identificar e analisar algumas dimensões fundamentais da
paisagem natural, da vida social e das manifestações culturais brasileiras. É possível citar
obras emblemáticas como Viagem ao Brasil, de Hans Staden (1557); Viagem à terra do Brasil, de
Jean de Léry (1574); Viagem pelo Brasil, de Carl Friedrich Philipp von Spix e Johann Baptist
von Martius (1823); Viagem pitoresca através do Brasil, de Johan Moritz Rugendas (1834). É
preciso lembrar também os folcloristas e outras figuras ilustres de finais do século XIX e
inícios do século XX, incluindo advogados, engenheiros e médicos, como Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906) com a obra O Animismo fetichista dos negros baianos (1935 [1900]), e seu
herdeiro intelectual, Arthur Ramos (1903-1949).

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A geração de pensadores que, nas décadas de 1920 e 1930, produziu importantes ensaios
sobre o processo de formação da nação brasileira – em particular Euclides da Cunha
(1866-1909), Paulo da Silva Prado (1869-1943), Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951),
Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) – influenciou
profundamente os estudos antropológicos no Brasil, como também no exterior. Da mesma
forma, figuras saídas das universidades brasileiras, criadas na década de 1930, e formados
em outras disciplinas, estão na origem de textos antropológicos seminais, como são os casos
do crítico literário Antonio Candido (1918-2017) e do sociólogo Florestan Fernandes
(1920-1995). Acrescentemos ainda nomes consagrados do cânone literário nacional, como os
poetas do modernismo de 1922, Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade
(1893-1945), a quem se devem teorias originais sobre a cultura nacional, que continuam
inspiradoras para a antropologia contemporânea.

Além disso, o Brasil permaneceu um terreno privilegiado para várias gerações de etnógrafos
e antropólogos estrangeiros que, por vezes, influenciaram as práticas acadêmicas locais,
como os alemães Karl von den Steinen (1855-1929) e Curt Nimuendajù (1883-1945), ou os
franceses Roger Bastide (1898-1974) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Ao lado de autores e obras, trata-se de dar destaque aos diversos polos institucionais de
produção de conhecimento antropológico – como o Museu Nacional (MN-UFRI) do Rio de
Janeiro, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal da Bahia (UFBA) ou a
Universidade Federal de Brasília (UNB), entre outros –, bem como a outras instituições e
sociedades científicas que constituíram coleções etnográficas e organizaram cursos de
formação especializada. Da mesma forma, as missões de pesquisa, os colóquios e congressos
ou ainda as publicações periódicas permitem aos historiadores da disciplina redescobrir
personalidades e matrizes da antropologia hoje esquecidas. Esse trabalho de análise da
formação do campo antropológico não pode, naturalmente, dispensar o estudo de certas
conexões, por exemplo aquelas entre estudiosos e instituições ou entre pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, que precedem a institucionalização da antropologia no Brasil. Os
intercâmbios entre Arthur Ramos e Melville Herskovits (1895-1963), nos Estados Unidos da
América, e a criação de um domínio afro-americanista transnacional nas décadas de 1930 e
1940 são exemplos de uma história que é bem mais ’global’ do que se poderia imaginar.

O acento que esta introdução às antropologias praticadas no Brasil coloca sobre a cartografia
intelectual não desconsidera, nem poderia, os marcos históricos e os eventos políticos que
infletiram na produção de conhecimento em geral e na antropologia em particular, tanto em
termos dos seus atores como dos seus centros de atividade. A ditadura estabelecida pelo
Estado Novo, a partir de 1937, destruiu o vigoroso projeto da Universidade do Distrito
Federal, criada um ano antes no Rio de Janeiro; também dificultou o funcionamento de
instituições estabelecidas em outras regiões e perseguiu líderes comunitários e religiosos. Os
ventos democráticos que voltaram a soprar nos anos 1950, por sua vez, permitiram a criação
de agências de financiamento do ensino superior e da pesquisa (as duas principais são a
CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, e o CNPq, Conselho

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Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ambas fundadas em 1951) e


promoveram encontros organizados sob a égide da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC, 1948), bem como a primeira Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), na
origem da Associação Brasileira de Antropologia (ABA, 1955).

O golpe de Estado de 1964 e o regime ditatorial que se seguiu trouxeram de volta o clima de
censura, aumentando as perseguição dentro e fora da universidade. Essa repressão
intensificou-se a partir de 1968, quando várias personalidades, como o antropólogo Darcy
Ribeiro (1922-1997), foram destituídas e forçadas ao exílio. Se os efeitos deletérios da
violência política (e policial) se fizeram sentir também junto dos povos indígenas e às suas
agências de proteção, sua verdadeira amplitude só seria medida após o trabalho da Comissão
Nacional da Verdade, criada em 2011 para investigar as violações dos Direitos Humanos
cometidas pelo Estado brasileiro entre 1945 e 1988. O atual momento político vivido no Brasil,
com a drástica redução do financiamento para a educação superior e a pesquisa científica,
representa uma nova ameaça ao desenvolvimento das ciências sociais e humanas no país,
que são vistas como um terreno fértil para os opositores do governo de extrema direita de
Jair Bolsonaro (2019), cujas políticas contra as ’minorias’ (especialmente ameríndias e afro-
brasileiras) vão na contramão das políticas dos governos anteriores.

Há que ter em conta contudo a resiliência do campo disciplinar da Antropologia. Assim que
embora o ano de 1968 tenha sido marcado pela exacerbação da arbitrariedade ditatorial, ele
assistiu também ao crescimento dos estudos de pós-graduação. Novos mestrados e
doutoramentos em antropologia foram implantados no período e os já existentes,
completamente reconfigurados. Além disso, os grandes projetos de pesquisa coletivos
desenvolvidos na década de 1970 com o apoio de fundações internacionais, como a Fundação
Ford, contribuíram para a consolidação de um sistema de formação pós-graduada, e com a
criação, em 1976, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
( ANPOCS ). Esse conjunto de fatores estimulou a produção antropológica nacional,
ampliando-a e diversificando-a. Esse alargamento permitiu, sob impulso brasileiro, a
constituição de um movimento mundial que reuniu cerca de trinta associações de
antropologia nacionais em uma associação ’global’, o World Council for Anthropological
Associations (Conselho Mundial de Associações de Antropologia, WCAA), fundado em 2004,
no Recife.

Espaço e tempo são, em suma, os parâmetros da cartografia das antropologias praticadas no


Brasil, do passado aos dias de hoje, que só podem ser mapeadas por meio de suas conexões
internacionais. Sem ambicionar uma verdadeira síntese, esta introdução [1] pretende sugerir
caminhos e trajetórias, que os leitores seguirão na ordem e orientação que considerarem
mais apropriadas, sendo cada qual livre para criar novos laços e relações.

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[1] Assim como os dossiês documentários e artigos publicados pela Enciclopédia Bérose no âmbito do
tema de pesquisa ’Histórias da Antropologia no Brasil’.

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