Baixados
Baixados
1590/1980-6248-2018-0032
e-ISSN 1980-6248
ARTIGOS
(i) Universidade
Metodista de Piracicaba – UNIMEP, Piracicaba, SP, Brasil. http://orcid.org/0000-
0001-5167-9664, [email protected]
Secretaria Municipal de Educação de Vinhedo, Vinhedo, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-
(ii)
3732-926X, [email protected]
Resumo:
Este texto trata da formação docente continuada e das práticas de ensino no
Atendimento Educacional Especializado (AEE). À luz da abordagem histórico-
cultural e da pedagogia histórico-crítica, objetivamos debater a atuação do docente
na promoção de uma educação escolar que favoreça a aprendizagem e o
desenvolvimento dos alunos com deficiência, repensando as práticas pedagógicas
desenvolvidas no AEE. A partir de registros de um projeto envolvendo 23
professoras e suas práticas, tomamos situações relatadas em diários de campo,
explicitando o trabalho pedagógico e as relações de ensino com alunos com
deficiência, dando ênfase às possibilidades de redimensionamento de práticas
pedagógicas nos processos de formação docente. Nosso estudo considera a
necessidade de uma melhor formação teórica e um maior engajamento político por
parte dos professores, de modo que tenham maior clareza daquilo que fundamenta
suas práticas, para que contribuam na luta pelo direito à educação de qualidade para
todos na escola pública.
Palavras-chave: educação especial, atendimento educacional especializado,
práticas de ensino, psicologia histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica
1 Uma versão inicial do estudo foi apresentada no Simpósio “Formação docente e inclusão escolar: desafios,
encontros e possibilidades”, no âmbito do Porto International Conference on Research in Education (ICRE’17),
que foi realizado entre os dias 19 e 21 de julho de 2017 na cidade do Porto, Portugal.
2 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisã[email protected].
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Abstract:
The present paper discusses ongoing teacher education and teaching practices in the Atendimento
Educacional Especializado (AEE, Specialized Education Services). Based on the historical-
cultural perspective and on the historical-critical pedagogy, the article debates teachers' practices
promoting a school education which favors the learning and the development of students with
disabilities, reconsidering the pedagogical practices of the AEE. The presented considerations derive
from a project developed with 23 teachers and their practices. The research collects field journal
reports and discusses the pedagogical activities and the teaching practices performed with students
with disabilities, reflecting about the possibilities of reconfiguration of the teaching practices in the
teacher education process. The study considers there is a need of better theoretical education for
teachers and of bigger political engagement by the teachers, making them more aware of what
underpins their practices so they can contribute to the fight for the right to a quality education for
everyone in public school.
Keywords: special education, Specialized Education Services, teaching practice, historical-
cultural psychology, historical-critical pedagogy
No Brasil, uma série de leis, decretos e orientações lançada nas últimas décadas
contribuiu para intensificar o acesso às escolas comuns por alunos com deficiência, transtornos
globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, reconhecidos no plano legal
como público-alvo da Educação Especial (PAEE) (“Política Nacional”, 2008). Determinado
movimento surge e ganha forças perante o histórico de exclusão e institucionalização que
marcaram décadas de experiências educacionais com essas pessoas.
Em princípio, os espaços do AEE não devem ser substitutivos da escolarização nas salas
de aula comuns, realidade que não anula a atual existência e o reconhecimento legal de classes e
escolas especiais.
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Apesar do aumento nos índices de matrícula de alunos PAEE nas escolas comuns e da
garantia de AEE prioritariamente em salas de recursos multifuncionais localizadas nestas
escolas, há enormes dificuldades relacionadas à permanência desse alunado em âmbito escolar,
o que é percebido pela progressiva queda no percentual de matrículas no decorrer dos diferentes
ciclos (fundamental I, fundamental II e ensino médio). Tais questões são verificadas e discutidas
em alguns estudos, como os de Laplane (2014, 2016), Meletti e Ribeiro (2014) e Moreira e
Carvalho (2014), que localizam a concentração de matrículas nas séries iniciais do ensino
fundamental, com ampla defasagem idade/série e elevados índices de evasão dos alunos PAEE
da escola comum. Dentre os principais motivos para que isso ocorra, destacam-se a falta de
preparo de toda a comunidade escolar e as necessidades formativas de profissionais que atuam
com os discentes nas escolas (Kassar, 2014; Pletsch, 2016a), bem como os problemas de
infraestrutura, que afetam as condições do trabalho docente (Pletsch, 2016b).
Nesse contexto, este estudo debate o trabalho docente e as relações de ensino com
alunos que têm deficiência em ambientes educacionais inclusivos, dando ênfase às possibilidades
de redimensionamento de práticas pedagógicas nos processos formativos de professores. Trata-
se de um estudo empírico, produzido no âmbito do projeto de pesquisa O trabalho pedagógico com
conceitos científicos, ensino promissor e a formação de professores na educação especial, projeto esse que foi
desenvolvido nos anos de 2016 e 2017, envolvendo 23 professoras que atuam no AEE de
escolas comuns da rede municipal de ensino de uma cidade localizada no interior do estado de
São Paulo.
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Como destaca Martins (2010), a importância dos processos formativos está justamente
no resgate da possibilidade do processo analítico dos sujeitos, que considere modos de superar
os mascaramentos ideológicos de uma sociedade de classes. Além disso, perante os pressupostos
que assumimos, os problemas enfrentados no cotidiano escolar requerem estudos aprofundados
a partir das necessidades e desafios do dia a dia da escola e da prática social de seus atores.
Conforme Saviani (1984), a prática social envolve o processo mais amplo de produção da vida
nas relações que os homens estabelecem entre si. Nesse sentido, a prática social do professor
não é a mesma do cotidiano nem a prática de cada indivíduo isolado, mas as experiências de
cada um em relação aos conhecimentos históricos e socialmente produzidos. Por isso, é
importante um trabalho formativo e conjunto que promova o pensar analítico/científico sobre
a realidade vivida.
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Toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois
planos: primeiro no plano social e depois no psicológico, no princípio entre os homens como
categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica. (Vigotski,
1995, p. 150)
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Desse modo, para o autor, o bom ensino – o “ensino fecundo” – “é o que se adianta ao
desenvolvimento” (Vigotskii, 2016, p. 114); é prospectivo, ancorado no desenvolvimento dos
saberes complexos e não elementares, nos conceitos científicos e de alta generalidade,
considerando suas relações com os conceitos cotidianos, que precisam ganhar a sistematicidade
dos conhecimentos complexos. Em última instância, é o trabalho pedagógico com os
conhecimentos científicos e a apropriação deles pelos alunos que impulsiona o desenvolvimento
mental e a aprendizagem escolar.
Sabemos, contudo, que nas escolas públicas brasileiras tal compromisso encontra
dificuldades para se efetivar. Essas dificuldades são motivadas, sobretudo, pelo oferecimento de
uma educação desigual para a classe trabalhadora (Rummert, Algebaile, & Ventura, 2013) e por
condições precárias de formação e trabalho docente (Martins, 2010; Nogueira, 2012; Paisan,
Mendes, & Cia, 2017), preterindo o compartilhamento de saberes historicamente produzidos
em favor de uma formação escolar utilitarista e que pouco favorece o compromisso da escola
com a superação dos modos de produção capitalista e das exclusões sociais3.
3Importa considerar que a escola não é a única incumbida dessa tarefa de superar a alienação e os modos de
produção capitalista. Para vislumbrar tal superação, são necessárias transformações em outros campos (níveis)
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Duarte (2013) toca nesta questão quando discorre acerca das dificuldades impostas à
educação oferecida nas escolas. Inicialmente, o autor destaca que os fenômenos psíquicos estão
inseridos e constituem parte de uma totalidade, que são as relações sociais existentes, e indica
que o critério de desenvolvimento do psiquismo na abordagem histórico-cultural é:
a de que um indivíduo será tão mais desenvolvido psicologicamente quanto mais ele seja capaz
de conduzir de forma racional e livre seus processos psicológicos por meio da incorporação, à
sua atividade mental, da experiência psíquica humana corporificada e sintetizada na cultura. (pp.
26-27).
O autor afirma que a burguesia intensifica o uso de recursos para não permitir o avanço
da luta pela efetiva socialização dos meios de produção. Neste cenário, a pedagogia histórico-
crítica, enquanto mediadora da psicologia histórico-cultural na educação escolar, volta-se para o
pleno desenvolvimento dos indivíduos, encarando a transformação revolucionária como
princípio orientador da atividade educativa. Estabelece-se, assim, um contraponto à concepção
burguesa e hegemônica de prática educativa, que visa apenas adaptar os indivíduos à vida em
sociedade (Duarte, 2013).
Para Silva (2014), uma escola pública de qualidade para todos “não poderá surgir
enquanto existirem mecanismos tão efetivos de exclusão e seletividade social, como os
praticados pela escola brasileira” (p. 82). Esse autor discute as contribuições da pedagogia
histórico-crítica para a educação especial brasileira, identificando que elas estão nos
fundamentos filosóficos, na proposta pedagógico-metodológica e no significado político de sua
realização, “porque, ao se fundamentar em bases marxianas e marxistas, leva à compreensão,
sob a valorização da história, da educação e do homem que educa” (p. 85).
sociais, tais como o político, o econômico etc. É preciso cuidado para não atribuir uma responsabilidade exclusiva
à escola, como se ela, por si só, pudesse transformar diretamente a realidade social.
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Desta forma, destacamos o trabalho com o conteúdo tipicamente escolar nas interações
com o outro em situações de ensino, junto com a formação continuada de professores nas
escolas públicas, considerando suas práticas pedagógicas cotidianas e a escola como espaço
formativo do humano pela mediação de saberes construídos socialmente, que precisam ser
compartilhados com os alunos (Martins, 2013).
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Quatro casos foram escolhidos pelo grupo para serem acompanhados semanalmente
por um dos pesquisadores nas escolas5: os alunos Kleber (6 anos) e Gilberto (8 anos), da
professora Cláudia; e os estudantes Júnior (8 anos) e Jonas (7 anos), da professora Ana6, todos
com atrasos no processo de aprendizagem. Dois deles apresentavam diagnóstico, Júnior com
autismo e Kleber com deficiência intelectual7. As professoras foram escolhidas por solicitarem
a presença da pesquisadora na sala do AEE e por relatarem poucos avanços com seus alunos,
considerados “casos difíceis”. O acompanhamento ocorreu no mesmo período das reuniões de
HTPC, isto é, entre agosto de 2016 e junho de 2017.
4 As reuniões com as professoras do AEE aconteceram por solicitação dos profissionais de um centro de formação
de professores do município, que entraram em contato com os pesquisadores. Os encontros das professoras em
reuniões de HTPC já aconteciam antes do início do trabalho de formação e pesquisa.
5 Uma das escolas participantes tinha infraestrutura bastante precária, principalmente em relação ao número de
salas de aula. A outra escola era mais estruturada e contava com uma sala exclusiva para AEE.
6 Todos os nomes de participantes mencionados no texto são fictícios.
7 Termo adotado pela American Association on Mental Retardation, 2011), embora as expressões “deficiência
mental” ou mesmo “deficiência intelectual” ainda marquem os discursos sociais. Caiado, Baptista e Jesus (2017)
trazem dados históricos sobre esses conceitos no Brasil, assim como indicam o quanto os brasileiros adotam
concepções acriticamente, sem compreender suas razões históricas. Os autores apontam que as diferenças entre os
dois conceitos precisam ser pensadas, para além da ideia de adequação ou atualização, como algo que obscurece os
sujeitos e suas demandas educativas.
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As ações desenvolvidas no grupo e nas salas de AEE provocaram mudanças nas práticas
pedagógicas das duas professoras acompanhadas semanalmente, bem como no comportamento
e envolvimento dos alunos nas atividades. Inicialmente, o trabalho nas salas de AEE focava
predominantemente o treino da coordenação motora, memória e atenção: eram realizadas
atividades com letras do alfabeto, junção de sílabas para formar palavras simples e conhecidas,
exercícios para formar números de 1 a 5 e jogos da memória e quebra-cabeça, por exemplo.
Contudo, no decorrer do projeto as professoras passaram a planejar aulas mais elaboradas,
considerando os conteúdos didáticos da sala comum frequentada pelos alunos, tais como: meios
de transporte, regras de trânsito, dengue, seres vivos e a independência do Brasil. Outras
atividades foram incluídas, como leitura e escrita a partir de histórias literárias ou dos próprios
conteúdos que estavam sendo trabalhados. Todas essas ações eram apresentadas e analisadas no
grupo maior, com discussões teóricas da abordagem histórico-cultural.
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Neste dia, a professora continuou o trabalho sobre “meios de transporte9” (em vídeo), momento
em que Kleber se mostrou participativo e interessado. Foram trabalhados transportes terrestres,
aquáticos e aéreos, e o aluno foi ajudado a separar os diferentes tipos, organizando-os no
caderno conforme suas características (agrupando e colando os que “andam na terra, no ar e na
água”). Com ajuda, conseguiu realizar a atividade.
Conforme explica Vigotski (2001), faz parte do processo de elaboração conceitual nomear
objetos, separá-los e ao mesmo tempo incluí-los em determinadas classes, ou seja, analisá-los
sobre bases cada vez mais abstratas. Desenvolver processos mentais é olhar para a realidade
material e poder pensá-la, organizá-la e explicá-la.
Possíveis ganhos:
1. Atenção
2. Memória (resgatando experiências para responder aos propósitos da atividade). Exemplo
pode ser dado pelo seguinte diálogo: pesquisadora e professora procuram fazer com que o
aluno compreenda o que são meios de transporte, explicitando que “são coisas que nos
levam de um lugar para o outro”. Kleber, com dificuldade de compreender o conceito, é
questionado pela professora sobre como vai ao médico com a mãe. Momento em que
responde: “vou de busão”.
3. Organização, planejamento, classificação de objetos: quando precisou que separar e colar
no caderno os diferentes meios de transporte entre terrestres, aquáticos e aéreos.
Provavelmente, o aluno pouco compreendeu dos conceitos, mesmo porque, quando a
criança ouve pela primeira vez uma palavra, o desenvolvimento do seu significado está
apenas começando (Vigotski, 2001). Entretanto, a atividade foi rica em termos dos
processos mentais que mobilizou, conforme destacado. Lembramos também que o
significado da palavra, no contexto da interlocução, dirige a atividade para determinados
fins, organizando a própria atividade, com reflexos para o funcionamento psíquico, que
passa a operar com o uso da palavra. Por isso, a palavra é considerada instrumento
psicológico na abordagem histórico-cultural. (Diário de campo, pesquisadora e professora
Ana – 1/9/2016)
É importante destacar que, no início do trabalho, o aluno não tinha interesse pelas
atividades propostas no AEE e se mostrava agressivo e agitado, saindo da sala a todo o
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momento. Kleber10 andava pela escola e era repreendido pelos profissionais que o encontravam.
Não havia uma estratégia da escola nem dos professores que o inserisse nas atividades; “vagar”
pela escola já fazia parte da rotina do aluno.
10 Escolheu-se esse aluno para acompanhamento por ser considerado desinteressado e indisciplinado. O relato
inicial da professora sobre ele era: “Não fica quieto e costuma andar pelos corredores. Não respeita a professora,
nem qualquer outro funcionário da escola. Também não gosta de cumprir regras. Não tem interesse pelo que a
escola lhe oferece, nem mesmo pelo tablete e o computador, que costumam chamar a atenção de todos os alunos.
Livros, pintura e desenho também não o interessam”.
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Nesse dia, o trabalho foi em grupo (Kleber, Junior e um aluno novo, Maurício11). No primeiro
momento, a professora conversou com os alunos sobre o que eram meios de transporte, para
relembrar o que tinha sido estudado no dia anterior. Kleber participou e deu exemplos de alguns
meios de transporte que conhecia. Os alunos escolheram 3 meios de transportes para a
professora escrever em uma cartolina (eles foram ajudando conforme lembravam de algumas
palavras). Kleber realizou alguns “chutes” de letras que poderiam ter nas palavras. Depois, cada
aluno foi chamado para escrever uma palavra e fazer o desenho relacionado ao que escreveu.
Kleber escreveu CAMINHÃO, copiando da professora e fez o desenho do mesmo. Junior
tentou escrever ônibus e fez um desenho (parecido com um corpo) em frente à palavra carro.
Maurício escreveu carro e fez o desenho em frente à palavra ônibus. Para finalizar a atividade,
os três brincaram em um banner com pista de carrinhos, onde conversaram sobre o que tinha
no cenário (falavam um com o outro indicando onde estava o posto, a escola, nomeando todos
os lugares que apareciam no banner e indicando pontos de paragem um para o outro, a
lanchonete, a garagem, tal como tinham brincado anteriormente com a professora). (Diário de
campo, professora Ana – 10/09/2016).
A professora não só passou a planejar as aulas de acordo com esses conteúdos, como
também constatou como os diários a ajudavam perceber mais minuciosamente as peculiaridades
e avanços dos alunos. Com isso, acabou modificando o discurso sobre as impossibilidades, uma
vez que o foco passou a ser a prática pedagógica. Assim, o trabalho no grupo e com a
pesquisadora possibilitou uma organização diferente da atividade pedagógica na sala de AEE,
com trocas de sugestões entre a professora Ana e a professora da sala comum. Essas trocas
fizeram avançar as possibilidades de participação entre as docentes e a aprendizagem dos alunos,
especialmente de Kleber, que antes se recusava a realizar qualquer atividade proposta.
11 Esse aluno não foi acompanhado pela pesquisadora, mas participava das atividades no AEE.
12 Em relação às primeiras atividades envolvendo leitura e escrita, a professora iniciou um trabalho com histórias
literárias e atividades de produção textual (narrativas orais, pequenas narrativas e reescrita de histórias) que
considerassem os personagens e acontecimentos.
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como recursos que estimulam uma série de processos internos do desenvolvimento do homem,
especialmente, as formas mais complexas de pensamento” (p. 355). Os movimentos foram de
aproximação do aluno com os conteúdos escolares, buscando transformar a base dos conteúdos
vivenciais por meio da introdução de conceitos mais complexos.
Em relação aos desafios suscitados pela proposta formativa, consideramos, a partir dos
encontros com os docentes e amparados pelos pressupostos teóricos aqui assumidos, que as
concepções e práticas pedagógicas centradas no déficit se configuram como uma grande
barreira. Apesar dos anúncios de mudança, notou-se durante o trabalho que o ensino destinado
aos alunos da “educação especial” permanece com estratégias concretizadas em atividades
fragmentadas e mecânicas, que não se orientam para as possibilidades do educando e o
desenvolvimento do pensamento complexo, intermediado pelos conteúdos escolares. Ao
contrário, a ênfase educativa está na impossibilidade, na busca de superação da deficiência com
o treino de habilidades e competências básicas. Neste sentido, ao deficiente intelectual são
ensinados conteúdos e formas de conduta simples, de caráter elementar, em detrimento de um
trabalho que lhe permita elaborar ideias e significados compartilhados na cultura, bem como
construir condições para o convívio em diferentes esferas da sociedade. O deficiente é ainda
interpretado como portador de um problema exclusivamente orgânico, biológico (Omote, 1994;
De Carlo, 1999; Amaral, 1998, 2002).
Considerações finais
se a Educação Especial passa a ser assumida como uma área de conhecimento e um conjunto
de práticas e saberes fazeres direcionados a atender a especificidades de aprendizagem de um
determinado grupo social de alunos, sempre em permanente diálogo com as bases da Educação
escolar, o trabalho com o atendimento educacional especializado, como uma ação ligada à
Educação Especial, jamais cumprirá sua função, se subjetivado a partir de um caráter restritivo
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A epígrafe destas considerações finais traduz a questão central que procuramos destacar
neste texto: a de que poderemos, de fato, concretizar a inclusão a partir do trabalho coletivo,
considerando que “educação é uma só, embora tenha de adaptar-se, de acordo com suas
necessidades especiais, para bem prestar seus serviços à comunidade” (Amaral, 1998, p. 22).
Nos dias atuais, em que se reconhecem os direitos da pessoa com deficiência à educação
e à cidadania, conceber a deficiência como doença, incapacidade, desvantagem, continua
representando um verdadeiro entrave a estas conquistas (Pletsch & Oliveira, 2014). A própria
ciência médica, pela forma como define esses conceitos (Amaral, 1998), colabora para essa visão
de déficit exclusivamente centrada no indivíduo. Somada a essa questão, a precarização do
ensino público brasileiro, refletida na falta de investimentos e recursos – tanto na formação do
professor quanto na infraestrutura das escolas –, não apresenta condições efetivas de
aprendizagem para a maioria dos alunos, que dirá daqueles com deficiência.
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Destacamos aqui, tendo como referência os dados do projeto, os modos como alguns
docentes puderam redimensionar a prática com os alunos com deficiência, buscando uma
atuação para viabilizar a participação de todos e um trabalho envolvendo o coletivo de
professores em seus próprios processos formativos.
Mello e Lugle (2014) confirmam a urgência de toda prática estar alicerçada em uma
teoria que dê base às seguintes questões: Para que serve a educação? Como as crianças
aprendem? À luz da teoria histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, entende-se que a
educação amplia os conhecimentos cotidianos para um nível mais elaborado, abstrato: o
científico. Em relação à segunda questão proposta, pontuamos uma centralidade maior dos
processos mais elaborados e complexos de desenvolvimento, pensando sobretudo na
elaboração conceitual por parte dos alunos, nas dinâmicas entre conceitos cotidianos e
científicos e em atividades que envolvam significados e sentidos (Góes & Cruz, 2006), atentando
ao caráter dialógico da linguagem.
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Submetido à avaliação em 03 de abril de 2018; revisado em 04 de julho de 2018; aceito para publicação em 16
de agosto de 2018.