Clínica Ampliada e Fonoaudiologia

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ISSN 2317-1782 (Online version)

Escuta Clínica, Equipe de Saúde Mental e


Artigo Original
Original Article Fonoaudiologia: experiência em Centro de
Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij)
Caroline Lopes Barbosa1 
Cristiana Beatrice Lykouropoulos2  Clinical listening, Mental Health Professionals and
Vera Lúcia Ferreira Mendes1 
Luiz Augusto de Paula Souza1  Speech-Language Pathology: experience in the
Child and Adolescent Psychosocial Care Center
(CAPSij)

Descritores RESUMO
Serviços de Saúde Mental Objetivo: A prática fonoaudiológica na saúde mental é interrogada pelo desafio de produzir estratégias
Saúde Pública compartilhadas de cuidado para, sobretudo, ampliar as condições e o repertório comunicacional, a circulação
discursiva e social de sujeitos em sofrimento mental. O objetivo deste estudo foi identificar a percepção sobre
Humanização da Assistência escuta clínica de uma equipe de Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), especificando a função
Saúde Mental da fonoaudiologia no cuidado e na escuta dos casos. Método: Trata-se de pesquisa participativa e dialógica.
Fonoaudiologia Utilizou-se grupo de discussão para coleta de dados. Resultados: estão agrupados nas categorias: conceituação
de escuta; escuta e processo de trabalho; efeitos da escuta; fonoaudiologia e escuta. A equipe pensa a escuta
clínica como dispositivo central nos cuidados em saúde mental. A escuta clínica favorece a reflexão acerca de
dinamismos biopsíquicos do cuidado em saúde. Observou-se contribuições da fonoaudiologia em camadas intra
e interinstitucionais, assim como no trabalho clínico-terapêutico da equipe de saúde, dos usuários e familiares.
As competências e conhecimentos do fonoaudiólogo sobre aspectos orgânicos do desenvolvimento infantil, na
opinião dos profissionais, potencializam a escuta clínica. Conclusão: Conclui-se que, sem o trabalho em equipe, o
cuidado no CAPSij não aconteceria de forma qualificada sob os marcos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
e do Sistema Único de Saúde (SUS). A escuta clínica é condição de possibilidade do cuidado ofertado pela equipe.

Keywords ABSTRACT
Mental Health Services Purpose: The speech therapy practice in mental health is questioned by the challenge of producing shared care
Public Health strategies to, above all, expand the conditions and the communicational repertoire, the discursive and social
circulation of people with mental suffering. Objective of this study was to identify the perception of clinical
Humanization of Health Care
listening in professionals of Child and Adolescent Psychosocial Care Center (CAPSij), specifying the role of
Speech-Language-Hearing Sciences speech therapy in the care and listening of patientes. Methods: This is a participatory and dialogical research. A
discussion group was used to collect data. Results: were grouped in the following categories: listening conception;
listening and working process; listening effects; speech therapy and clinical listening. These professionals think
of clinical listening as a central device for mental health care. The clinical listening favors reflection on the bio
psychic dynamics of healthcare. It was observed contributions of speech therapy in intra and interinstitutional
scopes, in the clinical-therapeutic work of the health professionals, patients and relatives. The speech therapist’s
skills and knowledge about organic aspects of child development in the opinion of professionals enhance
clinical listening. Conclusion: It was concluded that without teamwork, care in CAPSij would not happen in a
qualified way under the public health policies: Psychosocial Care Network (PSCN) and Unified Health System
(SUS) frameworks. The clinical listening is a condition of possibility of the care offered by the professionals.

Endereço para correspondência: Instituição onde o trabalho foi realizado: Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia
Caroline Lopes Barbosa. End: Rua: (Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – São Paulo (SP), Brasil.
Bartolomeu Paes, 318. Vila Anastácio. São 1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – São Paulo (SP), Brasil.
Paulo – SP CEP: 05092-000. Brazil. 2
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo – São Paulo (SP), Brasil.
E-mail: [email protected]
Conflito de interesses: nothing to declare.
Recebido em: Agosto 15, 2019. Fontes de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil - CAPES
PROSUP 88887.151934/2017-00.
Aceito em: Janeiro 14, 2020.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite
uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

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INTRODUÇÃO [...] pressupõe a existência de espaços coletivos, nos
quais os profissionais, em equipe, possam exercitar
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) desafia a prática de sua capacidade de analisar e intervir em conjunto,
seus profissionais, desenha contornos institucionais e clínicos refletindo sobre os efeitos de suas práticas, sobre o que
próprios, nascidos do movimento antimanicomial e de seus se passa na relação entre a equipe e entre a equipe e
resultados em políticas e práticas de saúde. os usuários, e deliberando coletivamente sobre isso.
Tais contornos buscam superar a lógica hospitalocêntrica – (p. 991)
centrada na medicalização dos cuidados e no isolamento manicomial
– e construir cuidados capazes de acolher e de cuidar das pessoas O trabalho em equipe e a escuta clínica constituem pilares da
com transtornos mentais, não apenas em função das dimensões clínica na RAPS. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
psicopatológicas envolvidas, mas também relacionando-se com a nessa medida, operam o cuidado dos casos por meio de equipes
espessura das condições sociais e (inter)subjetivas que engendram, de referência, buscando pensá-los coletivamente e em interação
mantém e/ou intensificam o sofrimento psíquico dos sujeitos, em com o território de saúde.
seus contextos, modos e história de vida (pessoal, familiar, social). Para a fonoaudiologia, pensar as bases e os sentidos de
É nessa medida que a RAPS assume a Clínica Ampliada como sua pertença no campo da saúde mental implica, entre outras
uma das diretrizes do cuidado em saúde mental, convocando seus coisas, refletir sobre as concepções de linguagem (objeto da
trabalhadores a colocarem os saberes disciplinares a serviço de fonoaudiologia), de sujeito e de clínica que aí podem se assentar,
uma clínica cuja centralidade está no sujeito em sofrimento; está de modo a fundamentar e pactuar propostas práticas de atuação
na escuta do sujeito e das experiências e acontecimentos que o nos diferentes pontos de atenção da RAPS.
produzem, sustentando (ou não) sua subjetivação – processos A prática fonoaudiológica na saúde mental é interrogada pelo
pelos quais se faz ou tenta se fazer sujeito, para si e para o outro. desafio de produzir estratégias compartilhadas de cuidado para,
A escuta, na perspectiva da Clínica Ampliada, está definida sobretudo, ampliar as condições e o repertório comunicacional, a
pela investigação das razões pelas quais houve o adoecimento dos circulação discursiva e social de sujeitos em sofrimento mental.
usuários e como estes se sentem e agem em relação aos sintomas e Os profissionais da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial
ao sofrimento, para compreender a doença e se (co)responsabilizar Infantojuvenil (CAPSij) onde a presente pesquisa foi realizada
pela produção de sua saúde no processo de cuidado(1). percebem, nas dificuldades de linguagem dos pacientes, um dos
O conceito de escuta, aqui, aproxima-se do sentido que lhe principais entraves aos cuidados psicossociais e ao convívio social.
confere a psicanálise, em nossas palavras: atenção profissional A questão da fonoaudiologia é, então, aportar conhecimentos
de natureza, simultaneamente, sensível e técnica, que parte dos e expertises clínicas sobre aspectos e dimensões envolvidos com
conteúdos manifestos (queixas e sintomas) para conhecer e elaborar, a comunicação humana e com seus eventuais distúrbios, mas de
junto com o paciente, os conteúdos latentes ou demandas que modo a comporem, com outros saberes da equipe do Centro de
subjazem aos aspectos visíveis do sofrimento trazido ao clínico; Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), na pactuação,
são conteúdos somáticos e/ou psíquicos, experiências e modos fundamentação e construção de propostas práticas de cuidado
de lidar com a vida e a saúde, que engendram o adoecimento e às pessoas com transtorno mental, assim como na estruturação
mantêm ou intensificam sua sintomatologia. Não por acaso, Freud(2) da escuta dos casos para elaboração e consecução dos Projetos
afirmava que “não se deve esquecer que o que se escuta, na maioria, Terapêuticos Singulares (PTSs).
são coisas cujo significado só é identificado posteriormente.” Estamos realizando essa aproximação entre fonoaudiologia e
As perspectivas da Clínica Ampliada foram formuladas pela saúde mental sob o pano de fundo das noções de “núcleo” e “campo”
Política Nacional de Humanização – PNH (2009), enfrentando propostas por Campos(4). Segundo o autor, “o núcleo demarcaria
a fragmentação do processo de trabalho em saúde e a tendência, a identidade de uma área de saber e de prática profissional; e o
ainda dominante, de especialismos na formação profissional e campo, um espaço de limites imprecisos onde cada disciplina e
nas práticas de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). profissão buscariam, em outras, apoio para cumprir suas tarefas
O intento da PNH foi, entre outros, valorizar as abordagens teóricas e práticas” (op. cit., p. 220). A questão não é abdicar do
disciplinares integradas, atravessadas umas pelas outras, em busca fluxo criador de cada núcleo, mas produzir intersecção entre eles,
de um manejo mais eficaz da complexidade do trabalho em saúde. agenciar, interferir nos núcleos disciplinares, permitindo que os
Nesse sentido, a escuta clínica aparece como condição para alçar campos de saber e de práticas profissionais do SUS vicejem(5).
os usuários à posição de protagonistas, abrindo as posições mais Como já ficou claro, o campo de interesse aqui é o da saúde
estritamente disciplinares dos profissionais ao caráter heteróclito mental – área de conhecimento e de práticas clínicas –, e o núcleo
e multifacetado do processo saúde/doença. é o da fonoaudiologia, disciplina responsável pelos estudos e pela
Essas considerações sugerem que, além das dimensões técnicas clínica dos assim chamados distúrbios da comunicação humana.
e procedimentais, o trabalho em saúde é também, necessariamente, Comunicação humana entendida, nas palavras de Souza(6), como:
dialógico e transversal a vários conhecimentos profissionais, assim
como aos saberes dos usuários sobre suas vidas e processos de função e potência da linguagem, no sentido de um
saúde/doença. desejo inelutável, aquele de se comunicar com o outro
Campos et al.(3) esclarecem que o exercício da Clínica Ampliada e de por este ser acolhido, pois esta é uma condição

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incontornável para a emergência e estruturação do MÉTODO
humano. (p. 35-6)
Trata-se de um estudo de caso, de caráter descritivo, com
Almeida(7,8) aponta para o fato de que o fonoaudiólogo, abordagem participativa e dialógica, realizada por meio de
integrando equipes de CAPS, além de detectar e tratar alterações grupo de discussão com atores sociais de uma realidade local
fonoaudiológicas, também precisa “estimular a comunicação e a específica – equipe multiprofissional de um CAPSij.
circulação discursiva entre pacientes e destes com os familiares, O método participativo possibilita a investigação de
profissionais e sociedade, intensificando os usos da linguagem representações e orientações coletivas, estabelecendo
(verbal e não verbal) e lançando luz sobre a importância da relações de confiança e de reciprocidade entre pesquisadores
comunicação” na reabilitação de funcionalidades da linguagem e participantes da pesquisa no estudo de epifenômenos sociais
das pessoas com transtornos mentais. determinados.
O fonoaudiólogo é um dos profissionais da equipe mínima do Daí decorre a razão de nossa metodologia: possibilidade
CAPSij. No entanto, sabemos que ainda há poucos fonoaudiólogos de entrar em contato com uma realidade local e seus atores
atuando nesses serviços. efetivos para responder às questões da pesquisa.
Ampliar a presença da fonoaudiologia na saúde mental Na ocasião, a lotação da equipe era de 26 trabalhadores:
passará também por um trabalho interno no núcleo disciplinar: gestor da equipe, farmacêutico, técnico de farmácia, oficineiro
pensar o trabalho no plano das relações em equipe e no campo e educador físico; dois enfermeiros, dois assistentes sociais,
da saúde mental – além da reabilitação de transtornos e sintomas dois fonoaudiólogos, dois acompanhantes comunitários e dois
na fala, na audição, na voz e na motricidade orofacial –, o que psiquiatras; três terapeutas ocupacionais; quatro técnicos de
sugere maior trânsito por saberes e estratégias clínicas distintas enfermagem e quatro psicólogos. Voluntariamente, dispuseram-
daquelas usualmente realizadas pela fonoaudiologia. Significa se a participar 21 profissionais da equipe, assinando o Termo
construir abertura e flexibilidade para repensar a terapêutica de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Não houve
disciplinar a partir da escuta à singularidade e às condições do critério de exclusão.
sofrimento psíquico e social dos usuários da saúde mental, bem Em reunião geral, os profissionais foram orientados sobre
como em relação às condições e características dos serviços onde as etapas e procedimentos da pesquisa, que seguiu as normas
o fonoaudiólogo atua. aplicáveis às pesquisas com seres humanos, sendo aprovada
Desse ponto de vista, o fonoaudiólogo é convidado a romper pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de
uma suposta dicotomia entre reabilitação dos distúrbios da São Paulo (PUC-SP): parecer número 2.069.413, e registro
comunicação e atenção psicossocial, passando a considerar a na Plataforma Brasil CAAE: 55931716.4.0000.5482.
linguagem como terreno comum, objeto de todos os núcleos de Foram realizados quatro encontros de grupo de discussão
saber do campo da saúde mental, embora abordado de formas com a equipe do CAPSij no período de agosto a outubro de
distintas em cada disciplina. 2017.
Em outras palavras, há planos comuns que transversalizam as
especialidades (sociais, biopsíquicos e da linguagem), são zonas Grupo de discussão
de encontro e de construção em comum entre os profissionais
de saúde, por isso configuram suportes ao trabalho em equipe, à O grupo de discussão é um instrumento que estabelece
escuta clínica e ao processo interdisciplinar de cuidado. uma via de acesso e de reconstrução parcial de diferentes
Por isso mesmo, enfrentar os problemas de linguagem dos ambientes sociais e coletivos. A finalidade é entrar em contato
usuários em sofrimento mental fará sentido se entendermos a com epifenômenos para analisar suas questões e variáveis
linguagem em sua condição de processualidade humana, que durante a dinâmica(9).
opera como jogo diferencial de signos, engendrando “diferenças Esse procedimento de pesquisa concerne a processos
nos processos de singularização e de constituição subjetiva de discursivos interativos, nos quais “a opinião do grupo não é
pessoas e grupos, contornando as dimensões orgânica e simbólica a soma de opiniões individuais, mas o produto de interações
do funcionamento do corpo humano”(6). coletivas. A participação de cada membro dá-se de forma
A eloquência e os sentidos não estão, necessariamente, na fala distinta, mas as falas individuais são produto da interação
dos pacientes, estão também no não dito e em comportamentos cuja mútua”(9).
inteligibilidade encontra-se bloqueada pelo transtorno mental, seja A efetuação do grupo de discussão contou com quatro
ele acompanhado ou não por distúrbio de comunicação específico. encontros e utilizou técnicas facilitadoras da investigação
Na medida em que a fonoaudiologia participa ativamente desse em grupo, tal como descrito a seguir.
debate no CAPSij e dos encaminhamentos clínicos que ele gera,
o objetivo de nosso estudo foi identificar como a equipe de saúde, World Café
a partir da escuta clínica dos casos, percebe a fonoaudiologia, sua No primeiro encontro do grupo de discussão, realizamos
função no trabalho multiprofissional e na consecução do cuidado. um World Café – Café Colaborativo, técnica de fácil utilização,

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que cria um ambiente convidativo para o diálogo, permitindo um fora do aquário, delimitando uma ética ao debate: para
que os partici¬pantes colaborem e se expressem a partir de falar, o participante deve estar no aquário, escolhendo alguém
perguntas disparadoras. que lá está por meio de um toque no ombro, que é a senha
Estudos sobre metodologias participativas também para que aquele participante vá para o círculo maior, dando
destacam o World Café como uma técnica de diagnóstico seu lugar de palavra; situação que se repete ao longo da
e intervenção(10) filiada à pesquisa participativa baseada na dinâmica, fazendo com que um participante possa retornar
comunidade (Community-based participatory research - CBPR), ao debate várias vezes.
justamente pelo seu caráter colaborativo, no qual o pesquisador- O aquário é quase sempre parte de um processo maior
participante convida a comunidade a se engajar e resolver de diálogo e deliberação(12), em nosso caso, o grupo de
problemas de maneira compartilhada – os stakeholders(11). discussão. O aquário é uma técnica de encorajamento gerada
Como resultado, espera-se que haja a ampliação da conexão, por ambiente agradável de compartilhamento de ideias, um
da participação e do debate entre os envolvidos. O ambiente brainstorming em grupo em que os participantes respondem
de conversa “entre colegas no café” favorece, entre outras uns aos outros e não ao pesquisador ou moderador(13).
coisas, registros iconográficos e sínteses(10).
Neste estudo, o World Café foi conduzido por uma Análise dos dados
pesquisadora-participante com o suporte de um observador.
A sala foi adaptada com quatro pequenas mesas, preparadas A análise de conteúdo seguiu o proposto por Bardin(14):
para até seis integrantes em cada uma. Os participantes - pré-análise, com leitura flutuante dos vídeos e do diário
atuaram em todas as mesas nas rodadas de conversa, com de campo; - preparação do material; - construção dos dados
exceção do anfitrião, participante que permanece na mesa brutos (corpora) com dimensões e direções de análise; -
para receber os demais e sintetizar as ideias discutidas em tratamento do material e estabelecimento de regras de recorte
cada momento do rodízio pelas mesas. Foram realizadas para categorização e codificação do material.
duas rodadas de perguntas: As categorias e subcategorias delineadas foram:
• Categoria: conceito de escuta
• Subcategorias: quem escuta; e conteúdo da escuta
Primeira rodada de questões • Categoria: a escuta no processo de trabalho
• O que é escuta? • Subcategoria: facilitadores e dificultadores
• Há escuta de usuários e familiares no trabalho da • Categoria: efeitos da escuta
equipe? Quem escuta? O que se escuta? Como se • Subcategorias: efeitos da escuta nas famílias e usuários;
escuta? e efeitos da escuta na equipe
• A escuta produz efeitos concretos no cuidado aos • Categoria: contribuição da fonoaudiologia no processo
usuários e seus familiares? Quais? de trabalho
• A escuta produz efeitos nos profissionais e na equipe? • Subcategoria: como a fonoaudiologia contribui no
Quais? Por quê? modo de escutar.
• Há uma estruturação da escuta pela equipe? Como
isso se dá? O que facilita? O que dificulta?
RESULTADOS

Segunda rodada de questões Apresentaremos as vinhetas organizadas em categorias e


• O que a fonoaudiologia tem a ver com ativação da subcategorias, em função do caráter do enunciativo e dialógico
escuta da/na equipe? material. Alguns enunciados da equipe do CAPSij (vinhetas
• Você percebe alguma contribuição da fonoaudiologia selecionadas) aparecerão em mais de uma categoria e/ou
no processo de trabalho e no modo de escutar o subcategoria analítica, uma vez que, no âmbito do contexto
usuário e seus familiares no CAPSij? conversacional, certas perspectivas e argumentos são
transversais em relação aos temas tratados e serão analisadas
no item discussão.
Aquário
O Aquário foi realizado no segundo encontro do grupo Categoria: conceito de escuta
de discussão, aprofundando o World Café. O Aquário, ou Na concepção da equipe, a escuta clínica transita da
Fishbowl Method, é uma técnica usada para gerenciar a abertura e disponibilidade ao outro à significação daquilo
discussão em grupo de maneira metódica, mas plural e que se escuta como material de trabalho imprescindível ao
democrática. O termo aquário está ligado ao formato da campo da saúde mental:
atividade: cadeiras desenham um círculo maior para o grupo
e, no centro dele, um “aquário” (círculo menor), com número A escuta é o material de trabalho na Saúde Mental da
de lugares reduzidos(12). infância e da adolescência. Sem escuta, o CAPSij não
O formato possibilita uma estrutura crescente e de funciona, não tem trabalho, nem o acolhimento começa.
circulação de fala, na medida em que organiza um dentro e

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Se não escutarmos o usuário, não há como intervir. É Subcategoria: conteúdo da escuta
a partir da escuta que montamos o PTS.
Destaca-se, no trecho a seguir, o processo que transforma
a literalidade dos conteúdos trazidos pelos pacientes e/ou
É no campo da escuta que os conteúdos latentes são
familiares em apreensão de demandas, corroborando a ideia
tangenciados, fazendo circular afetos e produzindo efeitos
de que a escuta clínica é dada pela capacidade de interpretação
terapêuticos.
de enunciados, condutas e comportamentos, de modo que se
escute o não dito:
A escuta parte do interesse e da disponibilidade dos
profissionais, da possibilidade psíquica e de afecção
Em primeiro lugar, escutamos as queixas e depois as
[potência de afetar e ser afetado].
traduzimos em demandas. As demandas não chegam
direto, o que se apresenta são as queixas dos usuários
A escuta produz afetos positivos e negativos, que serão
e das famílias, justamente porque não conseguem ou
elaborados no processo.
não podem, de saída, formular suas demandas. Nós
interpretamos as queixas para acessar e entender as
Escutar é se afetar.
demandas.(...)
A escuta parte do interesse e da disponibilidade
Temos que escutar também as potencialidades, se não
profissional, mas também das possibilidades psíquicas
fica somente na doença e não na produção de saúde.
e de afecção da/na equipe.
Tem conteúdos que não queremos escutar, para não
A equipe do CAPSij aponta para o campo dos afetos na
aprofundar.
condição de dinâmica transferencial ativada pela escuta clínica:

Escutar é acolher o usuário e interpretar os seus Categoria: a escuta no processo de trabalho


conteúdos, suas demandas, para ajudá-lo a elaborar Aqui, novamente aparece a noção de que a escuta oferece
os acontecimentos de sua vida. material decisivo para que o trabalho aconteça, ao mesmo
tempo em que o qualifica.
A escuta dá oportunidade de fala ao outro, possibilitando
a autorreflexão, que seus conteúdos psíquicos o afetem. Sem escuta o CAPSij não funciona, não há material para
É usar a fala do usuário como instrumento para que trabalhar. Só há trabalho em equipe a partir da escuta.
ele também se escute.
A qualidade do tratamento ofertado se pauta na escuta.
A escuta se dá no encontro, por isso ela implica a
contratransferência. A escuta é uma potente intervenção no cuidado. A escuta
valida a fala, o sentimento e o pensamento. Quando
Subcategoria: quem escuta oferecemos escuta qualificada, estamos cuidando. Não
usamos outra tecnologia rebuscada. A escuta é nosso
Embora a centralidade da escuta seja consensual, os sentidos
instrumento precioso. Ao menos para o psicólogo, a
da escuta parecem variar e mesmo apontar necessidades de
escuta é tudo que a gente pode fazer para entrar em
reflexão para o uso mais pleno do dispositivo, tanto em nível
relação com os pacientes: ter escuta e qualificar essa
das práticas terapêuticas, quanto em seus possíveis sentidos
escuta.
e empregos institucionais.
Se pensarmos na saúde pública, no modo como está
Para ser terapeuta tem que saber escutar.
estruturada, a escuta deve acontecer do começo (...)
até a alta.
Se pensarmos no modo como a saúde pública está
programada para funcionar, todos deveriam escutar,
A escuta acontece em muitos momentos do trabalho:
desde a recepção, a faxina até os profissionais que
nas reuniões de equipe, na supervisão clínica (que
estão atendendo os casos.
não temos mais!), no acolhimento aos pacientes e às
famílias, nas diferentes modalidades de atendimento.
Toda a equipe escuta, mas tem diferença pela especificidade.
Escutar é acolher o usuário e interpretar os seus conteúdos,
Nos preocupamos com a nossa escuta e com a do
para que ele possa elaborar os acontecimentos de sua
outro, a escuta tem seu lado coletivo, porque a gente
vida. A escuta é um espaço também.
é o serviço [e o serviço está estruturado pelo trabalho
em equipe e por uma lógica institucional].

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O olhar amplia, e a escuta se potencializa nas trocas A escuta tem efeitos visíveis na dinâmica familiar, no
entre os saberes. O olhar vai se aprimorando, e a entendimento das dificuldades da criança e nas relações.
escuta se refinando. Nesse processo, ampliamos nossos
horizontes. O psicólogo não é somente um psicólogo,
Subcategoria: efeitos da escuta na equipe
porque tem outras práticas e saberes também.
Sem escuta qualificada, o trabalho em saúde tenderia a
perder qualidade:
Subcategoria: facilitadores e dificultadores
A equipe aposta na articulação de saberes como potência A qualidade do tratamento ofertado é afetado pela escuta.
resolutiva para as questões dos usuários e seus familiares.
Escutar é se afetar com o que o outro fala, não é em todo
Nenhum saber se sobrepõe a outro. A equipe multiprofissional caso que seremos afetados, mas o fato de legitimarmos
articula saberes para a resolução das questões que os o sofrimento e a fala dos usuários já é escuta.
familiares e pacientes trazem.
Por outro lado, quando a escuta é capaz de afetar o terapeuta
No entanto, reconhece-se tensões entre a escuta da equipe e a equipe, o vínculo terapêutico se efetua de maneira mais
e a angústia na definição de ações para certos processos de consistente, produzindo efeitos terapêuticos:
cuidado:
A escuta efetiva tem efeitos visíveis na dinâmica
O problema é quando não sabemos como responder familiar, no entendimento das dificuldades da criança
àquilo que escutamos. e na relação.

Os momentos de incerteza são os mais difíceis para A equipe afirma também que a escuta convoca os núcleos
nos escutarmos em equipe. disciplinares para o campo de jogo da saúde mental.

Dependendo de como se afeta e assume o caso, corre-se Eu acho que a escuta da fonoaudióloga tem um peso no
o risco de ficar sozinho como profissional-referência trabalho com os usuários. Isso tem! A expectativa dos
do usuário. pais para a fala é grande. Mas, entre os profissionais
e na equipe, não tem diferença.
Tem a dificuldade de se colocar, de falar, é um receio
de como serei escutado. A possibilidade de compor saberes para escutar e
cuidar do usuário é importante. É preciso entender
Eu já desisti de falar em nossa reunião de equipe. as diferenças da percepção do psicólogo, enfermeiro
Quando vou falar, interrompem ou me controlam e outros profissionais na composição do trabalho.
dizendo: “para!” Tudo bem, eu não sou letrada, mas
deveria ser uma coisa de equipe. Toda a equipe escuta, mas tem diferença pela especificidade.

O trecho acima é de uma acompanhante comunitária,


Categoria: contribuição da fonoaudiologia no processo
função de formação técnica (ensino médio), uma espécie de
de trabalho
acompanhante terapêutico sob a supervisão de profissional
com formação universitária. As vinhetas acima sinalizam A capacidade de mediar processos comunicativos diante
dificuldades na construção de alguns projetos terapêuticos de situações complexas também é atribuída à fonoaudiologia:
em equipe.
A nossa maior população atendida é a de Transtornos
do Espectro Autista (TEA), e as dificuldades de
Categoria: efeitos da escuta
comunicação são muito intensas. Como a criança não
consegue se comunicar e, às vezes, fica agressiva, é a
fonoaudióloga que pode ajudar.
Subcategoria: efeitos da escuta nas famílias
Aqui, a escuta é vista como dispositivo de fomento ao O fonoaudiólogo interpreta a fala com distúrbio.
protagonismo das famílias na luta pela garantia de direitos.
É fundamental o trabalho do fonoaudiólogo no CAPSij,
A escuta possibilita empoderamento aos pais, que porque a queixa principal com a qual as crianças
passam a conhecer e buscar os seus direitos. chegam ao CAPSij é o atraso na fala.

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A gente percebe a contribuição específica da fonoaudiologia Na avaliação de uma criança com alterações auditivas e
no processo de trabalho, principalmente quando a criança de linguagem, rapidamente convocamos a fonoaudióloga,
já foi avaliada por outros profissionais e a equipe fica pois ela tem escuta diferenciada para a linguagem.
com dúvidas sobre o diagnóstico. A fonoaudiologia
ajuda a especificar se a dificuldade é, prioritariamente, A minha escuta da criança mudou depois de trabalhar
orgânica, simbólica ou comportamental. com uma fonoaudióloga, porque ela olha a criança
de outro jeito, integrando ao psíquico os aspectos
A contribuição específica da fonoaudiologia é a avaliação orgânicos envolvidos na linguagem.
criteriosa para o diagnóstico diferencial em equipe.
A escuta da fonoaudiologia amplia o olhar da equipe
Em alguns enunciados, o saber do fonoaudiólogo sobre para os usuários e suas famílias, interferindo na
determinados aspectos orgânicos do desenvolvimento infantil intervenção multiprofissional.
sugere que a relação de núcleo (fonoaudiologia) com o
campo (saúde mental) é uma composição que permite pensar
Subcategoria: como a fonoaudiologia contribui no
dinamismos biopsíquicos, podendo gerar melhores decisões
modo de escutar
de cuidado aos usuários.
A escuta clínica é pensada pela equipe como espaço
A fonoaudióloga dá suporte técnico do caso à equipe, comum no campo da saúde mental. Os núcleos disciplinares
ajudando no cuidado com o usuário e nas discussões contribuiriam com refinamentos técnicos.
de caso com a rede [de serviços que o usuário utiliza].
A escuta não é só da nossa área (fonoaudiologia). A
A fonoaudiologia tem instrumental específico, que escuta a gente vai qualificando e trabalhando no espaço
contribui no olhar sobre o orgânico, para avaliar a (setting) em que estamos.
linguagem, questões orais, fala e audição.
Dentro de uma equipe que tem uma proposta transdisciplinar
A escuta mudava quando atendia e realizava acolhimentos como o CAPSij, a fonoaudióloga ativa a escuta e o
em parceria com a fonoaudióloga, porque ela tem um olhar especializado para a linguagem, para o motor
olhar refinado para o desenvolvimento neuropsicomotor. oral e para a audição.

O psicólogo vai até certo limite, depois é específico A fonoaudióloga dá suporte técnico do caso para a
do fonoaudiólogo. Somente ele saberá a fundo o que equipe, ajudando no cuidado com o usuário e nas
fazer com um atraso de linguagem, com a disfagia e discussões de caso com a rede.
com outras questões específicas.
É a partir dessa “concretude” que a fonoaudiologia parece
É possível observar que corpo e psiquismo parecem terreno operar na equipe e na construção da escuta aos usuários e à
fértil para pensar a escuta enquanto arena de questões do própria equipe.
campo da saúde mental.
A fonoaudiologia ativa a escuta na equipe ao compor
(...) Eu recordo de um menino que veio encaminhado com um olhar diferenciado e ampliado.
como se tivesse transtorno alimentar, só tomava
líquidos. No processo de avaliação, a fonoaudióloga Eu gostava muito quando a fonoaudióloga entrava
pediu para ele abrir a boca, e não tinha passagem no grupo e falava: “essa criança tem tal dificuldade,
para os alimentos sólidos. O menino tinha amígdalas você pode brincar e trabalhar assim!”
enormes! Não era transtorno alimentar por conta de
questões psicológicas, mas um impedimento orgânico. Eu aprendi muito com a fonoaudióloga, entendi algumas
Se não tivesse uma fonoaudióloga, como psicóloga, dificuldades primárias das crianças, referentes à
eu não pediria para abrir a boca, para mim era uma deglutição, à linguagem e à comunicação, porque ela
questão apenas emocional. compartilhava o conhecimento.

Algumas famílias reivindicam o atendimento


fonoaudiológico no CAPSij, porque entendem que o DISCUSSÃO
atraso na fala é a única dificuldade da criança, mas,
durante a avaliação, observamos também questões de O CAPSij, como dispositivo de inversão da lógica manicomial
ordem psicossocial, comportamental, entre outras. O hospitalocêntica, sustenta-se pelo trabalho interdisciplinar em
fonoaudiólogo, então, compõe o cuidado. equipe multiprofissional, sem institucionalização por internação dos
pacientes. Orienta-se pela lógica da ação em rede, reconhecendo os

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usuários como sujeitos de direitos, buscando torná-los protagonistas que não queremos escutar, para não aprofundar”. É evidente
de suas histórias pessoais e de seu cuidado em saúde. que esse é um campo relacional habitado por crises, assim como
O CAPSij investigado anuncia-se nessa lógica, e a escuta histórias de internações e de vidas atravessadas, permanentemente,
clínica aparece, na fala de seus profissionais, como inerente ao por sofrimento, angústia e, em casos mais graves, pela devastação
processo de trabalho em saúde mental. psíquica provocada pela agudeza dos sintomas, dos efeitos
A equipe do CAPSij valeu-se da escuta e deu centralidade relacionais e sociais que produzem.
à ela para falar de seu trabalho, situando a escuta no plano dos A equipe reconhece que a escuta atravessa todo o percurso
afetos. Aliás, o termo afeto comparece várias vezes nas falas feito pelo usuário desde a chegada ao serviço e está presente em
da equipe. Seu emprego ora designa sentimentos advindos da todos os dispositivos operados pela equipe.
relação com os casos, ora indica modificações na percepção e Na perspectiva da equipe, a escuta clínica também se configura
na compreensão sobre os pacientes. como “espaço” de acolhimento.
O filósofo Baruch Spinoza (1632/1677)(15) conceitua afeto A compreensão de que há modulação e refinamento da escuta pela
como condição de possibilidade dos corpos vivos, uma potência equipe, na intersecção de diferentes saberes profissionais e com os
bivalente: afetar e ser afetado por outros corpos. Os afetos usuários, reitera a ideia de que as interações interprofissionais podem
são forças capazes de alterar o estágio anterior de um corpo, configurar sentidos próprios e conhecimentos interdisciplinares,
provocando marcas diferenciais em sua trajetória: novos modos que requalificam a formação e a atuação de cada profissional.
de existência, outros modos de ser. Cada CAPSij desenha, de acordo com o projeto terapêutico
Sabemos que a potência afetiva remete a uma condição institucional, arranjos de trabalho para operacionalizar os PTSs com
primordial do fazer clínico: instigar processos de diferenciação os usuários. O profissional de referência do caso é o responsável
nos pacientes, como forma de enfrentamento e de elaboração por monitorar o cuidado ao usuário e à sua família. Entretanto
de suas demandas. Naturalmente, o processo afetivo supõe e apesar dos arranjos terapêuticos, o risco de sentir-se sozinho
efeitos no paciente e no terapeuta, no sentido mesmo que lhes às vezes permanece.
conferem os conceitos psicanalíticos de transferência e de Por outro lado, há também indícios de limites à escuta em
contratransferência, respectivamente: zona de atualização e de função de hierarquias indesejáveis.
elaboração de conteúdos psíquicos do paciente, provocada pelo A palavra a ser escutada deveria ser de todos, nas palavras da
terapeuta e com ele identificada; e atualização de conteúdos colega: “uma coisa de equipe”, mas os profissionais de nível não
psíquicos do próprio terapeuta quando é afetado pelos conteúdos universitário sentem-se submetidos a uma cultura institucional
do paciente. Na psicanálise, a contratransferência precisa ser hierárquica, na qual o profissional universitário se colocaria em
trabalhada e controlada pelo analista para que não provoque posição de superioridade, consciente ou inconscientemente.
efeitos indesejados no processo analítico do paciente. A equipe percebe que sua escuta produz efeitos nos pacientes,
A doença e o sofrimento mental dos pacientes podem ser vistos que respondem pelo olhar, no jogo simbólico e/ou pela fala. O
por eles e seus familiares como problema individual, que desarranja protagonismo que reparam nos pacientes é distinto daquele que
a vida. Seria possível admitir, com Benevides e Passos(16), que, ao notam nos familiares, como é possível observar no excerto:
desestabilizar essa realidade, a escuta clínica (associada a outros “a escuta possibilita empoderamento aos pais, que passam
dispositivos clínicos) promove processos de produção no plano a conhecer e buscar os seus direitos”. Empoderar os pais é
das práticas clínicas e no plano do cuidado de si por parte dos entendido como ação de proporcionar às famílias espaços de escuta,
pacientes e de seus familiares, abrindo o cuidado à elaboração condições e oportunidades para adquirirem novos repertórios, que
das determinações (inter)subjetivas, contextuais e sociais dos impactem positivamente a qualidade das relações na família, com
agravos à saúde. As falas da equipe parecem ir nessa direção. os filhos e com a comunidade. Nas palavras do grupo: “a escuta
Quando investigamos quem escuta observamos certa tem efeitos visíveis na dinâmica familiar, no entendimento das
ambiguidade. Algumas falas são inespecíficas e tendem ao senso dificuldades da criança e nas relações.”
comum, enquanto outras reconhecem a condição de saber escutar Sobre os efeitos da escuta na equipe é interessante notar o
como resultante de competências profissionais desenvolvidas para entendimento de que o encontro com o outro pode ou não afetar
que, efetivamente, a escuta possa ter dimensão clínico-terapêutica aquele que, clinicamente, escuta. Este é um fato que não pode
e institucional. ser totalmente controlado pelo profissional, mas precisaria ser
Além disso, há também a percepção de que, apesar da escuta objeto de reflexão do profissional e da equipe, na tentativa de
ter especificidades em cada especialidade, há efeitos coletivos, entender as dificuldades na estruturação do vínculo e de fazer os
uma espécie de escuta da equipe, nascida do trabalho conjunto encaminhamentos para superar a questão. No entanto, às vezes, isso
e das relações entre os conhecimentos e as práticas da equipe: não aparece como empecilho à escuta por parte dos profissionais.
Duas outras noções cruciais para o campo da escuta clínica A equipe compreende que há uma contribuição ativa da
comparecem na conversação da equipe: reconhecimento de que fonoaudiologia no modo de escutar o usuário, na composição
é preciso escutar potências de saúde no sofrimento; e limites da de saberes disciplinares, nas abordagens terapêuticas, no suporte
equipe em relação àquilo que não se sustenta/suporta escutar. técnico à rede para discussões e articulações intersetoriais.
Sobre os limites da escuta, observamos que a equipe atribui a A escuta diferenciada da linguagem, além da capacidade de
impossibilidade de entrar em contato com alguns conteúdos dos considerar seus aspectos orgânicos e funcionais, integra os sentidos
usuários à intensidade de demandas de cuidado que os usuários com os quais a equipe considera o saber fonoaudiológico e suas
suscitam, como explicitado em fala do grupo: “tem conteúdos contribuições uma estruturação da escuta coletiva dos casos.

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Pelo que se viu, pode-se dizer que existe certa insistência e na clínica ampliada. Interface - Comun Saúde, Educ [Internet]. 2014
na dicotomia entre orgânico e psíquico, o que tende a colocar o Dec;18(suppl 1):983–95. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0324
orgânico relativamente fora do alcance da escuta da equipe, sendo 4. Campos GWDS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes
a especificidade da fonoaudiologia uma espécie de articulador. e práticas. Ciênc saúde coletiva. 2000;5(2):219–30. https://doi.org/10.1590/
Mas nos colocarmos em atenção ao outro não convoca o corpo S1413-81232000000200002.
e, nele, a dimensão psíquica? Em outras palavras, o psiquismo 5. Passos E, Benevides RB. A Construção do Plano da Clínica e o Conceito de
não é um modo especificamente humano de funcionamento do Transdisciplinaridade. Psicol Teor e Pesqui [Internet]. 2000 Apr [cited 2018
corpo? Se for assim, certos dilemas que ainda estão na base Jul 16];16(1):71–9. https://doi.org/10.1590/S0102-37722000000100010.
disciplinar da formação dos profissionais da saúde permanecem 6. Souza LA de P. Voz, corpo, linguagem. Sala Preta - J USP. 2007;7:33–7.
nos desafiando. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v7i0p33-37.

7. de Almeida BPB, Cunha MC, de Paula Souza LA. Speech Therapy


and Mental Health: Service Group to Institutionalized Individuals with
CONCLUSÃO Mental Disorders. Rev Int Humanidades Médicas. 2015;4(2). https://doi.
org/10.37467/gka-revmedica.v4.852.
O estudo sugere que, não fosse o trabalho em equipe – na 8. de Almeida BPB, Cunha MC, de Paula Souza LA. Características e demandas
perspectiva da clínica ampliada – o trabalho no CAPSij não fonoaudiológicas de pacientes adultos portadores de transtornos mentais
aconteceria de forma qualificada sob os marcos da RAPS e e institucionalizados em um Centro de Atenção Integral à Saúde de São
do SUS. Paulo. Distúrbios da Comun. 2013;25(1).
A escuta clínica aparece como condição do cuidado para 9. Weller W. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens:
dar conta da multiplicidade de fatores implicados com os aportes teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método.
transtornos psíquicos. Naturalmente, é preciso disponibilidade e Educ e Pesqui [Internet]. 2006 Aug [cited 2017 Apr 7];32(2):241–60.
sensibilidade para se colocar à escuta, mas, se isso é necessário, https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000200003.
não é suficiente para que a escuta cumpra a função de transitar 10. Bacci D de LC, Santos VMN dos, Caruso CF de M, Santos IP de O.
dos conteúdos manifestos aos latentes, permitindo as mediações Metodologias participativas. In: Jacobi PR, Paz MGA da, Santos IP de O,
que conduzem à elaboração das demandas clínicas. Há um editors. Aprendizagem social no saneamento básico: metodologias para
o fortalecimento do controle social. São Paulo: IEE - USP; 2015. p. 64.
modus operandi e técnico da escuta, que gera interpretações
do que não é dito pela literalidade das palavras, numa relação 11. Bulsara C, Khong L, Hill K, Hill AM. Investigating community perspectives
intrínseca entre a estruturação da linguagem, do psiquismo e on falls prevention information seeking and delivery: older person perceptions
regarding preferences for falls prevention education using a world cafe
dos modos de relação com o outro. approach. J Community Psychol. 2016 Sep 1;44(7):937–44. https://doi.
A assunção dessa indissociabilidade ajuda a construir a org/10.1002/jcop.21816.
pertença da fonoaudiologia na saúde mental, colocando os
12. Knowledge Sharing Toolkit. Fish Bowl [Internet]. 2016 [cited 2018 Jul
saberes destinados a tratar das dificuldades de comunicação a
4]. Available from: http://www.kstoolkit.org/Fish+Bowl
serviço do campo da saúde mental, colaborando com a escuta e o
cuidado, pelos quais os pacientes (e seus familiares) significam, 13. Garrison K, Munday NK. Toward Authentic Dialogue: Origins of The
enfrentam e superam estigmas e sofrimentos trazidos pelos Fishbowl Method and Implications for Writing Center Work. Prax A Writ
Cent J. 2012;
transtornos mentais.
14. Bardin L. Análise de conteúdo. 3a edição. Edições 70, editor. Lisboa;
2004. 221 p.

REFERÊNCIAS 15. Spinoza B. Ética, demonstrada segundo a ordem geométrica. Tradução do


Latim: Tomas Tadeu. Belo Horizonte: Edit. Autêntica; 2009.

16. Benevides RB, Passos E. Clínica , política e as modulações do capitalismo.


1. Brasil. Ministério da Saúde. Clínica Ampliada e Compartilhada. Secretaria Lugar Comum. 2004;19–20:159–71.
de Atenção à Saúde Política Nacional Humanização da Atenção e Gestão
do SUS Brasília. 2009. Contribuição dos autores
2. Freud S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912a). CLB: concepção, delineamento, coleta de dados, análise e interpretação dos
Imago, editor. Rio de Janeiro: Edição standard brasileira das obras psicológicas dados, redação do artigo, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada;
completas de Sigmund Freud, v. XII; 1976. p. 149-163. CBL: supervisão dos dados e aprovação da versão a ser publicada. VLFM:
supervisão dos dados e aprovação da versão a ser publicada; LAPS: concepção,
3. Campos GW de S, Figueiredo MD, Pereira Júnior N, Castro CP de. A delineamento, análise e interpretação dos dados, orientação, redação do artigo,
aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada.

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