biodiversidade e desenvolvimento sustentável
biodiversidade e desenvolvimento sustentável
biodiversidade e desenvolvimento sustentável
Resumo Abstract
Este artigo aborda a relação entre participação, de- This article discusses the relationship between
mocracia, representação e cidade. A partir do de- participation, democracy, representation, and city.
bate sobre a crise da representação, discuto sobre Based on a debate about the representation crisis,
qual é o papel de arquitetos e arquitetas em pro- I discuss the role of architects in participatory
cessos participativos. Refletindo sobre os conceitos processes. Reflecting on the concepts of quality
de qualidade da democracia, confiança e cultura of democracy, trust, and political culture, I argue
política, argumento em favor do uso de elementos in favor of using playful elements to shape urban
lúdicos como formadores de cultura urbana. Apre- culture. Then, I present two games developed in
sento, então, dois jogos desenvolvidos no Brasil que Brazil that aim to contribute to urban consciousness:
têm como objetivo a contribuição para a formação the game Estatuto da Cidade (City Statute)
da consciência urbana: o jogo Estatuto da Cidade (2001) and the game Agentes urbanos e a cidade
(2001) e o jogo Agentes urbanos e a cidade partici- participativa (Urban agents and the participatory
pativa (2015). Por fim, questiono como os jogos po- city) (2015). Finally, I address how games can
dem contribuir para a autonomia dos participantes contribute to the autonomy of participants and to
e até que ponto podem promover a imaginação de what extent they can promote the imagination of
outras formas de mobilização política. other forms of political mobilization.
Palavras-chave: cidade; participação; democracia; Keywords: city; participation; democracy; political
cultura política; jogos. culture; games.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 27, n. 62, e6250306, jan/abr 2025 Artigo publicado em Open Acess
http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2025-6250306-pt Creative Commons Atribution
Joana Martins
é tanto individual quanto coletiva, é a capaci- não é sinônimo de democracia. Eles identificam
dade de crítica em relação ao conjunto a que dois tipos de participação: democrática e auto-
pertencemos. A autonomia individual reforça o ritária. Para eles, instituições como o sufrágio
coletivo ao tornar mais claros os compromissos universal, os partidos políticos e o legislativo
e pactos. Nesse sentido, é possível pensar em não são suficientes para garantir um modelo de
formas de participação e representação que participação democrática, afinal, elas também
promovam a autonomia dos representados? estão presentes em regimes totalitários. Argu-
Qual é o papel do técnico, arquiteto ou espe- mentam, então, que uma forma democrática de
cialista na qualificação da participação como participação exige também uma cultura política.
mecanismo político? A partir desse argumento central, os au-
tores analisam o grau de conhecimento dos ci-
dadãos a respeito do sistema político e sua es-
O autor chega a afirmar que, às vezes, o engajamento crítico. É preciso assumir os ris-
democracias totalmente inclusivas devem ser cos e as responsabilidades de um processo do
evitadas, já que as pessoas nem sempre têm qual o fracasso e o conflito façam parte.
boas intenções, e a vontade da maioria nem Para isso, Miessen (ibid.) defende uma
sempre é positiva ou benéfica. Nesse sentido, prática autônoma e independente, em que ar-
sua visão se aproxima dos estudos de Almond quitetas e arquitetos possam agir como ativado-
e Verba (1989), além de Putnam (1997), ao res externos que levantem questionamentos e
assumir que participação não é necessaria- debates de maneira provocativa e produtiva. Pa-
mente sinônimo de democracia. Para esses ra ele, o conformismo das arquitetas e dos arqui-
autores, a vontade da maioria nem sempre é tetos em apenas interferir onde são chamados
democrática, assim como uma cultura cívica ou seguindo ordens de clientes se relaciona com
nem sempre é uma cultura cívica participati- a crise da profissão e contribui para a perda de
va. O exercício e a construção de uma partici- espaço e de valorização da prática arquitetônica.
pação democrática passam pela formação da Então, como saída para a crise – da par-
cultura.Miessen (2010) chega a afirmar que “a ticipação, da política e da arquitetura –, é ne-
dificuldade central com a noção romantizada cessário rever a práxis, repensar os modos de
do projeto participativo é que ela assume que ação. Assim, talvez, a participação possa ser en-
todos devem se sentar à mesa para tomar de- tendida não como “guerra”, mas como “jogo”,
cisões. Porém, esse talvez não seja o interesse no sentido da disputa, do reconhecimento das
geral” (ibid., p. 245). forças, da negociação, do conflito necessário e
O entendimento da participação como da vitória nem sempre alcançada.
algo atrelado às ideias de consenso e inclusão A associação estabelecida por Putnam
representa, para Miessen (2010), uma visão (1997) entre as estruturas do círculo vicioso
oportunista e manipuladora que não se propõe autoritário e do virtuoso democrático com a
a acrescentar algo ao debate arquitetônico, estrutura dos jogos parece algo instrumental
e, sim, realizar algo predeterminado: “Parti- para o seu pensamento, como uma ferramen-
cipação é guerra. [...] Qualquer forma de par- ta analógica para desenvolver de maneira mais
ticipação já é uma forma de conflito. [...] Para evidente suas ideias. Ainda assim, essa apro-
participar em qualquer ambiente ou situação, ximação também ressalta o caráter lúdico do
é preciso entender as forças em conflito que jogo democrático. Por ser uma estrutura de
agem nesse ambiente” (ibid., p. 53). Assim, os poder com diferentes personagens e regras, a
referendos e plebiscitos, por exemplo, são vis- democracia segue uma estrutura de certo mo-
tos como mecanismos utilizados por políticos do análoga à dos jogos. Putnam (ibid.) ressalta
para se eximirem de suas responsabilidades, como a repetição, a variação dos agentes e o
configurando uma diluição do modelo demo- número de jogadores influencia no jogo. É essa
crático. O autor, portanto, instiga uma prática analogia, somada à ideia de que os jogos são
do conflito que contribua para um pensamento formadores de cultura, que tem guiado iniciati-
crítico. A busca pelo consenso – além de im- vas ligadas ao desenvolvimento de jogos como
possível – é, para ele, paralisante, por impedir ferramentas de participação popular.
seus instrumentos por meio de um jogo de jogadorase os jogadores decidem com qual das
interpretação de papéis. O jogo apresenta cidades querem jogar e escutam do mediador
três cidades fictícias e situações urbanas simi- as características dessa cidade.
lares às encontradas em diversas cidades do As cartas do jogo são os instrumentos
País, como déficithabitacional, falta de mobi- do Estatuto da Cidade (consórcio imobiliário,
lidade urbana,especulação imobiliária, etc. As transferência do direito de construir, outorga
INFORMAÇÕES CONFIDENCIAIS
onerosa, operações urbanas consorciadas, jogo Estatuto da Cidade trazem uma descrição
usucapião, audiências públicas, etc.) e as car- longa de artifícios complexos do planejamento
tas com as personagens da cidade (prefeito, urbano. A necessidade de um mediador tam-
vereador, fazendeiro, presidente da associa- bém aponta para problemas na dinâmica do
ção de moradores, jornalista, secretário de jogo e enfatiza a necessidade de alguém com
habitação). Cada jogadora ou jogador escolhe certo grau de especialização para coordenar a
ou sorteia uma personagem, lê para todos a partida – o que parece contraditório com a pro-
sua descrição e guarda para si os segredos da posta do jogo.
personagem descritos na carta. A mediadora
ou o mediador lê a “situação problema” do
município e as jogadoras e os jogadores co- Jogo Agentes urbanos
meçam a discutir para sugerir soluções através
e a cidade participativa
das cartas dos instrumentos. Cada jogadora e
jogador deve usar pelo menos uma carta de Outra experiência similar vem sendo desen-
instrumento. A partida termina quando uma volvida no campo acadêmico. Desde 2015, o
proposta de solução for encontrada ou quando projeto de extensão universitária Cartilha da
o mediador determinar. Cidade também vem trabalhando o tema da
Nesse jogo, não há competição. As joga- conscientização urbana a partir de jogos na
doras e os jogadores devem trabalhar em con- Universidade de São Paulo, em São Carlos.
junto para a resolução dos problemas apresen- Com coordenação do professor Miguel Buzzar
tados. Também parece haver a necessidade de e equipe formada por Desirée Figueiredo Car-
um conhecimento prévio seja sobre o Estatuto neiro, Gabriele de Campos Trombeta, Matheus
da Cidade, seja sobre as funções de cada agen- Motta Vaz e Mayara Vivian dos Prazeres Cruz, o
te interpretado. As cartas de instrumentos do jogo Agentes urbanos e a cidade participativa
isolamentosocial. A urgência do tema e a his- defesa por uma democracia mais direta e radi-
tórica falta de respostas por parte dos gover- cal. Essas experiências também apontam para
nos fez com que, apesar da quarentena global, outra maneira de organização política: a arti-
pessoasocupassem seis quarteirões da cidade culação se deu via Internet e, em sua maioria,
de Seattle, criando uma zona livre de policia- desvinculada de partidos políticos e represen-
mento gerida comunitariamente, denominada tações políticas tradicionais.
Capitol Hill Autonomous Zone (Chaz) ou Capitol A rapidez e a eficiência da criação de
Hill OrganizedProtest (Chop). redes de mobilização e solidariedade a partir
O contexto de emergência sanitária glo- de questões urgentes demonstram a força da
bal está sendo, em alguns casos, um chama- autonomia de organização da população, bem
do à auto-organização. O impacto econômico como revelam o total abandono por parte do
gerado pela necessidade do isolamento social Estado. Porém, da mesma forma que essas
afetou muitas famílias, principalmente as que formas não tradicionais de mobilização apon-
já estavam em condições de vulnerabilidade so- tam para uma democracia radical, também
cial. Para as favelas, o isolamento social é quase podem indicar respostas liberais e tendências
inviável devido ao seu tecido urbano. Diante da populistas para a crise democrática. Desse
falta de políticas públicas, no Brasil, voltadas modo, é preciso atentar para a possibilidade
para essa população, muitas favelas se organi- de uma participação autoritária, como defi-
zaram para prover cestas básicas e outras doa nem Almond e Verba (1989). De que maneira
ções a partir da articulação de coletivos, sem é possível pensar em representações alterna-
apoio do governo ou de partidos políticos. O tivas que busquem a autonomia cidadã, e não
caso mais impressionante talvez seja o de Pa- o assistencialismo, sem deixar de considerar o
raisópolis, em São Paulo, no qual a favela, por papel estatal?
meio de doações e parcerias com empresas, Fica o questionamento sobre qual é o
conseguiu contratar três ambulâncias, capaci- papel dos arquitetos e arquitetas na forma-
tar 240 socorristas, montar 60 bases de aten- ção de uma cultura política democrática. A
dimento, transformar duas escolas em casas de linguagem lúdica parece ter grande contribui-
acolhimento e definir 652 “presidentes de rua” ção para a formulação de outros mecanismos
(moradores voluntários responsáveis por veri- de comunicação entre agentes nos processos
ficar as necessidades das famílias e acionar as participativos. Todavia, seria possível pensar,
ambulâncias). Já na primeira semana da chega- no âmbito do universo dos jogos cooperativos,
da da pandemia no Brasil, Paraisópolis ajudou em práticas que estimulassem a autonomia dos
a organizar o G10 Favelas, um grupo de ajuda jogadores e das jogadoras? Até que ponto os
mútua entre as dez maiores favelas do País. jogos aqui apresentados não estão apenas re-
Mesmo com pautas distintas, essas mo- produzindo as relações políticas tradicionais e
bilizações têm em comum a crítica ao sistema existentes? Jogos que valorizassem a formação
político-econômico hegemônico, a demanda de conflitos poderiam incentivar a invenção de
pelo reconhecimento de forças insurgentes e a outras possibilidades de organização política,
[I] https://orcid.org/0000-0002-5905-8181
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, Programa de Pós-
-Graduação em História Social da Cultura. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
martinspereirajoana@gmail.com
Notas
(1) Em 1953, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) IX, o tema da habitação no
pós-guerra foi motivo de preocupações. Nele, um grupo formado pelos membros mais jovens
começou a demonstrar divergências quanto ao posicionamento dos fundadores da organização.
O principal objetivo do encontro era formular um documento suplementar à Carta de Atenas, a
Carta do Habitat. Porém, os arquitetos mais jovens e a velha guarda da instituição discordavam dos
caminhos a serem tomados e o impasse ficou claro. O Ciam X, em 1956, seguiu com o mesmo tema,
mas, dessa vez, foi organizado pelos membros mais jovens, que deram origem ao Team X.
(2) Por input entende-se o que o sistema demanda e por output o que o sistema fornece para a sociedade.
(3) Esse termo é utilizado na Teoria dos Jogos, um campo do pensamento matemático que estuda
modelos de estratégia a partir da ação de jogadores com o fim de aplicar esses estudos de
comportamento em diversas áreas do conhecimento.
(4) Em junho de 2013, várias manifestações tomaram conta das principais capitais do País. Inicialmente
tendo como pauta a defesa do passe livre após um aumento no preço das passagens, outras pautas
foram somadas ao descontentamento, como a corrupção política, a realização da Copa do Mundo
no País e o pedido de impeachment da então presidente Dilma Roussef. Um dos lemas das ruas nas
Jornadas de Julho foi a frase “não me representa”, direcionada à classe política.
(5) Base de dados e grupo de pesquisa criada em 1981, reunindo profissionais de diversos países que
estudam sobre o impacto social e político das mudanças de valores culturais e crenças.
(6) Organização independente em defesa dos direitos políticos e das liberdades civis criada em 1941 para
ranquear a expansão da liberdade e da democracia no mundo.
(7) A pesquisa realizada pelo WVS avalia a confiança interpessoal a partir do questionamento ao
entrevistado se é possível ou não confiar na maioria das pessoas. A partir dessa pergunta bastante
geral e simples, os índices indicam que mais de 90% dos brasileiros optam por não confiar nas
pessoas.
Referências
ABRAMOVAY, R. (2001). Conselhos além dos limites. Estudos Avançados. São Paulo, v. 15, n. 43, pp. 121-140.
ALMOND, G.; VERBA, S. (1989). The civic culture: political attitudes and democracy in five nations.
Princeton, Princeton University Press. Edição original de 1963.
ARNSTEIN, S. (1969). The Ladder of Citizen Participation. Journal of the American Planning Association,
v. 35, n. 4, pp. 216-224.
ARQUITEC IAU-USP – Arquitetura, Inovação e Tecnologia (2024). Cartilha da cidade. Disponível em:
https://arquitec.iau.usp.br/projetos/cartilha-da-cidade. Acesso em: 15 ago 2024.
BRASIL (2001). Lei n. 10.257, de 10 de julho. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção
1, p. 1., 11 jul.
HUIZINGA, J. (1971). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo, Perspectiva.
INGLEHART, R. (1999). “Trust, well-being and democracy”. In: WARREN, M. Democracy and trust.
Cambridge, Cambridge University Press.
INGLEHART, R. et al. (ed.) (2014). World Values Survey: All Rounds – Country-Pooled Datafile Version:
https://www.worldvaluessurvey.org/WVSDocumentationWVL.jsp. Madrid, JD Systems Institute.
ISER, W. (1996). O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro, EdUERJ.
LEFEBVRE, H. (1969). O direito à cidade. São Paulo, Documentos.
MIESSEN, M. (2010). The nightmare of Participation: Crossbench Praxis as a mode of criticality. Londres,
Sternberg Press.
MIGUEL, L. F. (2014). Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo, Unesp.
MOISÉS, J. A. (2008) Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 23, n. 66, pp. 11-43.
PUTNAM, R. (1997). Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro, FGV.
Edição original de 1993.
STENGERS, I. (2015). No tempo das catástrofes. São Paulo, Cosac Naify.