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Artigo original

Cidade, participação e cultura política: jogos


e outras formas de representação e engajamento
City, participation, and political culture: games
and other forms of representation and engagement

Joana Martins [I]

Resumo Abstract
Este artigo aborda a relação entre participação, de- This article discusses the relationship between
mocracia, representação e cidade. A partir do de- participation, democracy, representation, and city.
bate sobre a crise da representação, discuto sobre Based on a debate about the representation crisis,
qual é o papel de arquitetos e arquitetas em pro- I discuss the role of architects in participatory
cessos participativos. Refletindo sobre os conceitos processes. Reflecting on the concepts of quality
de qualidade da democracia, confiança e cultura of democracy, trust, and political culture, I argue
política, argumento em favor do uso de elementos in favor of using playful elements to shape urban
lúdicos como formadores de cultura urbana. Apre- culture. Then, I present two games developed in
sento, então, dois jogos desenvolvidos no Brasil que Brazil that aim to contribute to urban consciousness:
têm como objetivo a contribuição para a formação the game Estatuto da Cidade (City Statute)
da consciência urbana: o jogo Estatuto da Cidade (2001) and the game Agentes urbanos e a cidade
(2001) e o jogo Agentes urbanos e a cidade partici- participativa (Urban agents and the participatory
pativa (2015). Por fim, questiono como os jogos po- city) (2015). Finally, I address how games can
dem contribuir para a autonomia dos participantes contribute to the autonomy of participants and to
e até que ponto podem promover a imaginação de what extent they can promote the imagination of
outras formas de mobilização política. other forms of political mobilization.
Palavras-chave: cidade; participação; democracia; Keywords: city; participation; democracy; political
cultura política; jogos. culture; games.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 27, n. 62, e6250306, jan/abr 2025 Artigo publicado em Open Acess
http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2025-6250306-pt Creative Commons Atribution
Joana Martins

Participação, representação preestabelecidos­ por agentes externos – até

e o papel social da arquitetura o controle popular total, sem intermediários­


­entre a população e a fonte de recursos.
Ao formular uma “escada da participa-
O tema da participação ganhou força na arqui- ção cidadã”, a comunicadora argumenta que
tetura após a Segunda Guerra Mundial, em um diferentes graus de participação demandam
período marcado por grandes mudanças no diferentes tempos e relações entre os agentes
cenário político, econômico e social em vários (ibid.). Do ponto de vista do papel de arquitetos
paí­ses. Esse foi um momento de ebulição dos e arquitetas ao longo desses processos, as ex-
movimentos sociais em várias partes do mun- periências são díspares. Para alguns arquitetos,
do, com a Primavera de Praga na Tchecoslová- como o inglês John Turner e o brasileiro Carlos
quia, a Revolução de Maio de 1968 na França e Nelson Ferreira dos Santos, por exemplo, há
inúmeras conquistas dos movimentos negros e muito o que se aprender com a autoconstrução
feministas nos EUA. Nesse contexto, as provo- e a ajuda mútua em cenários onde faltam polí-
cações levantadas pelo grupo Team X1 durante ticas públicas. Já em projetos como o Bairro da
os Congressos Internacionais de Arquitetura Bouça (1973-1976 e 2001-2006, Portugal) de
Moderna (Ciams) iniciaram uma crise na arqui- Álvaro Siza, a Villaggio Matteotti (1970-1975,
tetura ao questionarem as premissas modernas Itália) de Giancarlo de Carlo e em muitos proje-
e criticarem o viés autoritário do papel social tos realizados pela assessoria técnica da Usina
dos arquitetos e das arquitetas no modernismo. CTAH – Centro de Trabalhos para o Ambiente
Desde a segunda metade do século XX, Habitado (desenvolvidos majoritariamente na
portanto, temos experimentado, no campo da década de 1990, no Brasil) é possível reconhe-
arquitetura e do urbanismo, processos que bus- cer a marca autoral dos arquitetos.
cam envolver seus usuários em diferentes eta- As divergências sobre a soberania da au-
pas do projeto – no levantamento de deman- toridade dos arquitetos ou dos usuários perma-
das, com cartografias e mapeamentos afetivos; necem em questão nos dias atuais: enquanto
no desenho de projeto, por meio de assessorias algumas experiências buscam atribuir o máxi-
técnicas e movimentos sociais; durante a cons- mo de poder de decisão aos usuários finais, ou-
trução, por meio de mutirões e técnicas ver- tras enfrentam os dilemas da representação via
naculares – ou na forma, ao permitirem trans- advocacy ou lideranças sociais. Sendo assim, a
formações e apropriações futuras. A variedade questão da autoria está diretamente relaciona-
de intensidade da participação nesse histórico da à questão da representação e pauta a comu-
de práticas impossibilita uma leitura única des- nicação e a dinâmica da relação entre os agen-
ses processos. Como aponta a comunicadora tes envolvidos nos processos participativos.
americana Arnstein (1969), um processo par- No fim dos anos 1960, a palavra “parti-
ticipativo pode compreender desde a mani- cipação” estava em foco no debate político
pulação dos participantes – na qual a popula- ocidental. Havia uma onda de reivindicações
ção é usada como justificativa para interesses­ por mais abertura à participação popular nas

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esferas governamentais, oriunda do pós-guerra uma desigualdade­ de oportunidades de espe-


e de processos de redemocratização para mui- cialização. O advocacy pode, então, acentuar
tos países. A massificação da palavra ampliou o a assimetria de poder entre representantes e
conceito, dando origem a vários entendimen- representados, além de comprometer o julga-
tos e interpretações. “Participação” passou a mento por parte dos representados devido à
denominar uma série de situações que pode- falta de capacitação política, e, por fim, a re-
riam até se contradizer. Após a Segunda Guer- presentação via advocacy pode retirar a auto-
ra Mundial, a democracia vem se apresentan- nomia dos representados para construir suas
do como o único regime possível a garantir a preferências políticas. Ou seja, para ele, esse
aceitação dos governados, segundo o cientista modelo, apesar de seu discurso pela eficácia,
social brasileiro Miguel (2014). As sociedades é sempre atravessado pelos problemas da de-
são, há bastante tempo, numerosas demais sigualdade social entre os dois grupos. Em po-
para que se proponha uma democracia direta, sição menos favorecida de diálogo, organização
sendo necessária a representação. Da mesma e julgamento, os representados tendem a abra-
forma, a política se tornou mais complexa, exi- çar as preferências de seus advocates. A repre-
gindo mais conhecimento especializado e uma sentação através do advocacy evoca a profusão
dedicação de tempo inviável para a maioria dos de intermediários entre o Estado e a socieda-
cidadãos. Antes, os governantes também eram de. Em processos participativos de qualquer
governados e havia uma rotatividade; hoje, es- natureza, podemos encontrar representantes
sa função se transformou numa classe. A dis- que não receberam autorização via eleições
tância entre representantes e representados é ou outros mecanismos, como lideranças co-
muito maior hoje em dia e esbarra na diferença munitárias, organizações não governamentais
dos interesses de cada um desses atores. A re- (ONGs) e empresas. Os arquitetos e as arquite-
presentação é, portanto, incontornável, como tas, quando atuando como representantes da
defende o autor, no entanto, ela não precisa população, podem usufruir dessas falhas para
ser a única solução para decisões coletivas em “advogar” por interesses pessoais por meio da
escalas menores. participação popular.
Ao analisar a conjuntura da representa- A representação via advocacy, portanto,
ção na política, podemos relacioná-la à repre- reproduz muitos dos problemas encontrados
sentação nos processos participativos da arqui- na representação política tradicional, além de
tetura e do urbanismo. Quando Miguel disserta criar novas questões relacionadas à autoriza-
sobre o conceito de advocacy (pessoas,­ insti- ção. O autor defende que esses novos modos
tuições ou organizações não governamentais de representação não venham para substituir
que atuam em favor de uma causa ou grupo, interesses dos grupos representados. As de-
seja por sua influência entre os agentes ou mandas devem surgir de forma autônoma e
expertise),­ esse paralelo fica ainda mais evi- deveria ser papel dos advocates estimular es-
dente. Segundo ele, a valorização da técnica sa autonomia. Ela é importante não apenas
como método mais efetivo de se garantir os na construção dos interesses, mas também na
interesses dos representados leva a uma pro- capacidade de renegociar as identidades do
vável elitização dos advocates, visto que há grupo. Miguel (2014) reforça que a autonomia

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é tanto individual quanto coletiva, é a capaci- não é sinônimo de democracia. Eles identificam
dade de crítica em relação ao conjunto a que dois tipos de participação: democrática e auto-
pertencemos. A autonomia individual reforça o ritária. Para eles, instituições como o sufrágio
coletivo ao tornar mais claros os compromissos universal, os partidos políticos e o legislativo
e pactos. Nesse sentido, é possível pensar em não são suficientes para garantir um modelo de
formas de participação e representação que participação democrática, afinal, elas também
promovam a autonomia dos representados? estão presentes em regimes totalitários. Argu-
Qual é o papel do técnico, arquiteto ou espe- mentam, então, que uma forma democrática de
cialista na qualificação da participação como participação exige também uma cultura política.
mecanismo político? A partir desse argumento central, os au-
tores analisam o grau de conhecimento dos ci-
dadãos a respeito do sistema político e sua es-

Qualidade da democracia, trutura, dos inputs e outputs2 do processo e do


seu papel individual como parte desse sistema,
confiança e cultura política definindo três categorias de cultura política:
paroquial, súdita e participante.
A consolidação de um grande número de de- A cultura política paroquial se caracteriza
mocracias no Ocidente após o fim da Segunda por ser aquela na qual os cidadãos não pos-
Guerra Mundial alterou a pauta das pesquisas suem nenhum desses conhecimentos. Nessas
em teoria política que hoje se concentram na sociedades não há qualquer tipo de especiali-
busca por novos parâmetros qualitativos de zação exigida dos líderes políticos, assim como
avaliação – além dos econômicos e institucio- não há perspectiva de mudanças por meio da
nais –, principalmente a influência da cultura na política. Na cultura súdita, os cidadãos reco-
política. Conceitos como cultura cívica, confian- nhecem a existência de uma estrutura política e
ça e capital social se tornaram fundamentais seus outputs, porém a relação é passiva: não há
para o debate político contemporâneo. Estu- o exercício político individual. Já na cultura po-
dando de que modo a confiança interpessoal e lítica participante, há o conhecimento de todos
a confiança nas instituições se relacionam com os fatores e os cidadãos têm um papel ativo.
a qualidade da democracia, muitas pesquisas Segundo Almond e Verba (ibid.), esses di-
atuais, no campo da teoria política, buscam ferentes tipos de cultura não são progressivos
mensurar os graus de confiança e suas conse- ou excludentes, eles podem se complementar
quências para as democracias contemporâneas. e coexistir em uma mesma sociedade. Os au-
Almond e Verba (1989) escreveram um tores também indicam que essa categorização
dos primeiros trabalhos a abordar o tema da não busca ser homogênea ou uniforme, pois
cultura política, em 1963, fazendo uma análi- sempre haverá orientações paroquiais e súdi-
se da democracia em cinco países. Os autores tas, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas
alertam para o fato de que há um grande cres- e estabilizadas como participativas e democrá-
cimento da participação popular após o Ilumi- ticas. Com isso, eles rebatem a ideia de que a
nismo, quando o cidadão comum passa a ser qualidade da democracia depende apenas de
politicamente relevante. Participação, contudo, fatores econômicos e ressaltam a importância

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da existência de uma cultura política. O concei- é um especialista, um representante autorizado­


to de “cultura cívica” é, então, para os autores, ou um líder comunitário) quer participar. O ci-
mais do que a história e o contexto social de dadão que participa não deixa de ser o cidadão
determinado grupo: é o que conecta a macro- que obedece às leis e que tem interesses pes-
política com a micropolítica, porque envolve soais. Esses dois papéis se sobrepõem e estão
orientações políticas e também psicológicas. em constante conflito. Almond e Verba (ibid.)
Eles buscam, em seu trabalho, analisar concluem que para haver um governo demo-
como as orientações individuais se relacionam crático em que os cidadãos comuns participem,
com a estrutura política e a impactam. Enten- é preciso haver uma cultura política que consis-
dendo que o papel do cidadão participativo se ta em uma série de valores, atitudes e normas.
soma ao do paroquial e do súdito, os autores Esses fatores são afetados pela estrutura da
indicam pesquisas que reiteram esse ponto comunidade local, mas apenas mudanças insti-
ao verificarem que os cidadãos se preocupam tucionais não bastam para garantir que a parti-
mais com assuntos familiares e pessoais do cipação seja efetiva.
que políticos: O descompasso entre as instituições e
[...] se o cidadão comum está interessado
a cultura política das sociedades apresentado
em assuntos políticos, é mais provável por Almond e Verba nos anos 1960 fez-se ainda
que ele esteja interessado nos outputs do mais evidente, em vários países, nas décadas
que nos inputs. Ele está preocupado com
que se seguiram. O cientista político america-
quem ganha a eleição, e não com como
ela aconteceu; ele se importa com quem no Putnam (1997) escreveu um dos primeiros
é beneficiado pela legislação, e não com estudos sobre a influência da cultura cívica na
como ela foi aprovada. (Ibid., p. 117; tra-
política. Expondo sua pesquisa sobre a Itália, o
dução nossa)
livro apresenta como a mesma configuração de
Segundo eles, o comportamento passivo, instituições públicas no país gerou experiências
típico do súdito, é mais comum do que o do ci- e resultados díspares de acordo com as diferen-
dadão ativo. Um comportamento ativo exigiria tes províncias italianas.
muito mais desse cidadão, demandando algum Para analisar os diferentes contextos das
grau de capacitação. Ao ignorar os instrumen- regiões Norte e Sul da Itália, o autor refere-se
tos de mudança política, o indivíduo se exime ao “círculo vicioso autoritário” e ao “círculo vir-
da responsabilidade de lutar por eles, apenas tuoso democrático”. A vertente autoritária faz
aceitando o que é decidido e sendo obedien- uso do medo e da repressão em detrimento da
te às leis. Idealmente, em uma democracia, o confiança. A democrática parte do princípio de
poder de decisões é dividido entre os cidadãos que existem regras que devem ser cumpridas
comuns, sendo esses participantes ativos e ca- por todos, apoiando-se no compromisso e na
pacitados; no entanto, o que se encontra na troca de parte da liberdade por compensações
prática é passividade e indiferença. futuras. No círculo democrático, há um enten-
Essa discussão em torno da especializa- dimento de que a sua quebra resultará em uma
ção e da capacitação levou os autores a pesqui- perda para todos, enquanto o círculo autoritá-
sarem como o cidadão comum (aquele que não rio é fruto de um poder vertical.

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Para exemplificar sua teoria, o autor faz de poder, de direitos e de liberdades – e,


uma analogia entre essas duas vertentes e o consequentemente,­ nas nossas cidades. Fre-
“dilema do prisioneiro” (ibid.).3 Quando os ci- quentemente, as cidades brasileiras são afeta-
dadãos estão inseridos em um ambiente de das por políticas públicas que não respeitam a
coo­peração e horizontalidade, entende-se que nossa história – apagando a memória dos povos
o comportamento individual pode ser replicado originários, dos negros e de grupos mais vulne-
pelos demais jogadores e jogadoras, inibindo-se ráveis – e que acentuam as desigualdades so-
a ação individual em busca de favorecimentos. ciais, visando ao lucro e ao interesse de poucos.
Da mesma maneira, um ambiente em que as Desde as reformas urbanas higienistas do início
regras do jogo parecem frágeis ou instáveis ge- do século XX até os megaeventos (como, por
ra um desejo nas jogadoras e nos jogadores de exemplo, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos
abandonar ou boicotar a partida antes de serem Olímpicos e Paralímpicos de 2016, realizados no
prejudicados pela mudança repentina das re- Brasil), as decisões parecem ser tomadas sem a
gras. Sendo assim, o círculo democrático é mais participação da população. Mas, se a implanta-
instável que o autoritário por depender de coo­ ção de instrumentos de participação não basta,
peração e, consequentemente, de confiança. como estimular os cidadãos e as cidadãs a exer-
Segundo Putnam (ibid.), o que explicaria cerem o papel político que lhes cabe?
o desempenho tão distinto para as mesmas ins- Nosso mais recente processo de demo-
tituições italianas seria o “capital social” ou a cratização, iniciado no final da década de 1980,
“comunidade cívica” medidos através de alguns após o longo período da Ditadura Civil-militar
índices (participação em referendos, leitura de de 1964, trouxe muitas esperanças ao criar
jornais, associações, etc.). uma constituição progressista que definiu ins-
O capital social influencia o desem- trumentos reais de participação para além das
penho institucional por meio da confiança eleições. Passados mais de 30 anos da Consti-
interpessoal:­“[...] o capital social diz respeito tuinte, é evidente, no entanto, a necessidade
a características da organização social, como de uma revisão crítica desses mecanismos a
confiança, normas e sistemas, que contribuam partir da análise de seus erros e acertos.
para aumentar a eficiência da sociedade, faci- A principal ferramenta de participação
litando as ações coordenadas” (ibid., p. 177). direta instaurada pela Constituição da Repúbli-
Segundo o autor, uma sociedade em que não ca Federativa do Brasil foi o conselho comunitá-
há confiança interpessoal está desperdiçando rio: um mecanismo de participação social insti-
seu potencial – o que provoca maior necessi- tuído na Constituição de 1988 para promover
dade de capital físico. o diálogo com a população a partir de canais
O Brasil é um bom exemplo de como apa- consultivos ou deliberativos entre o poder pú-
ratos institucionais participativos não garantem blico e membros da sociedade civil nas áreas
por si só a qualidade da democracia. O reflexo de segurança,­ saúde e assistência social. Vá-
da falta de engajamento político pode ser cons- rios pesquisadores têm se dedicado ao assunto
tatado na nossa frágil democracia – com um desde então, buscando avaliar seus potenciais
histórico de golpes, ditaduras e instabilidade­ e suas fragilidades.

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O economista brasileiro Abramovay compostos­ majoritariamente por especialis-


(2001), em um texto focado no estudo sobre tas, sendo especialmente­baixa a participação
os conselhos gestores de desenvolvimento ru- de jovens e mulheres.
ral, levanta importantes pontos sobre as falhas Ele assinala o custo da participação
dessa experiência. Ele reconhece o potencial aos indivíduos devido ao elevado número de
de transformação política que os conselhos reuniões­ e o acúmulo de funções sobre os
representam, mas argumenta que há, em ge- mesmos indivíduos. Mais uma vez, o tema da
ral, uma submissão a poderes locais dominan- especialização aparece como desafio principal
tes. Analisando especificamente os conselhos de processos participativos, visto que, como
de desenvolvimento rural (criados a partir de falta preparo técnico para participar de forma
1997 para aprovar planos de desenvolvimen- efetiva nos debates, o público se torna restrito
to rural e receber os recursos do Programa a um número pequeno de pessoas especializa-
Nacional­ de Fortalecimento da Agricultura das. De acordo com o autor, tais fatores levam
Familiar – Pronaf),­ele reconhece que há uma a uma fadiga da participação, fazendo com que
inovação no fato de os recursos passarem pela o capital social seja desperdiçado e, em muitos
mediação de membros da sociedade civil, mas casos, gerando, inclusive, resistência por parte
alerta: “[...] para que esta conquista marque da população.
um fortalecimento da sociedade civil, é neces- A descrença nas instituições participati-
sário que ela se traduza em real aumento da vas parece ser uma repetição da desconfian-
capacidade de geração de renda e da confian- ça nas instituições públicas, conforme afirma
ça da sociedade em suas possibilidades de de- Moisés (2008), cientista político brasileiro.
senvolvimento” (ibid., p. 122). Ele associa a descrença atual dos brasileiros
Abramovay (ibid.) demonstra que, na nas instituições públicas e no sistema político
prática, os conselhos nem sempre funcionam com heranças do período ditatorial. Segundo
como instrumentos de capacitação dos cida- o autor, carregamos, em nossas instituições
dãos. Isso se deve a dois fatores principais. O e no “presidencialismo de coalizão” – termo
primeiro problema é explicitado pelo autor ao cunhado por Abranches, em 1988, referindo-
apresentar dados que apontam que a maioria -se ao regime multipartidário proporcional
dos conselhos surgiu após a previsão legal de brasileiro, que exige ao presidente fazer alian-
sua existência para a obtenção de recursos ças com outros partidos para conseguir maio-
públicos. Sua criação foi, portanto, a partir ria no Congresso e aprovar suas medidas –,
de um interesse econômico, e não oriunda resquícios de autoritarismo que levam à des-
de uma cultura política de participação, e os confiança e à insatisfação com a democracia
valores, comportamentos e a confiança inter- por parte da população:
pessoal não foram gerados automaticamente A insatisfação com a democracia e a
com a criação dos conselhos. Segundo o au- desconfiança de suas instituições indi-
tor, esse cenário tem relação direta com o cam que eles não sentem que seus di-
reitos de participação e representação –
segundo fator, que é a falta de ampla partici-
de que dependem a igualdade política e
pação da sociedade nos conselhos, em geral seus corolários,­como a igualdade social­

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e econômica­ – sejam­ canais efetivos essas premissas. Comparando os indicadores­de


para enfrentar problemas como a cor- liberdade civil e direitos políticos da Freedom­
rupção ou as dificuldades econômicas.
(Ibid., p. 36) House6 com o nível de confiança interpessoal,
a WVS produziu gráficos analisando países com
De fato, os argumentos de Abramovay diferentes graus de estabilidade de democracia.
(2001) e Moisés (2008) corroboram com a ideia No período de 1972 a 1997, os gráficos confir-
de que o Brasil avançou em termos legais de mam a hipótese de que governos mais demo-
maneira mais rápida do que sua cultura política. cráticos também apresentam­ maiores índices
As consequências políticas desse cenário talvez de confiança: “[...] sua [da democracia] sobre-
só estejam se tornando evidentes décadas de- vivência a longo prazo está relacionada a índi-
pois da Constituição de 1988, diante da crise de ces relativamente altos de bem-estar subjetivo
representatividade que explodiu em manifesta- e confiança interpessoal.­Esses fatores, por sua
ções pelo País em 2013.4 Entretanto, pesquisas vez, parecem refletir tanto o desenvolvimento
como a World Values Survey – WVS (Inglehart et econômico quanto a herança cultural dessas so-
al., 2014)5 já indicavam que o Brasil apresenta, ciedades” (ibid., pp. 118-119; tradução nossa).
historicamente, uma taxa muito baixa de con- Nessa pesquisa, que engloba mais de 50
fiança interpessoal. países, o Brasil aparece com o menor índice de
O cientista político americano Inglehart confiança,7 assinalando a fragilidade da nossa
(1999), diretor do WVS, apresenta alguns in- democracia. Esse dado embasa os argumentos
dicadores do nível de confiança interpessoal de Abramovay e Moisés ao demonstrar que o
relacionados ao desenvolvimento econômico País carece de cultura política, apesar dos es-
de vários países. Sua tese é de que sociedades forços de constituir um Estado “participacio-
mais ricas apresentam um grau maior de con- nista”. A afirmação final de Inglehart ressalta a
fiança, uma vez que esta seria pré-requisito importância do cidadão comum na efetividade
para o desenvolvimento social. Ele também da democracia: “sua [da democracia] sobrevi-
afirma que é mais provável confiar nas outras vência também depende do que as pessoas co-
pessoas quando se tem um nível básico de de- muns pensam e sentem” (ibid., p. 119).
senvolvimento econômico. Em situações de ex- É precisamente para esse descompasso
trema pobreza, a quebra de confiança pode ter entre as instituições e a população que alerta
consequências fatais. o arquiteto inglês Miessen (2010). Convergindo
Por reconhecer que a relação entre con- com Abramovay (2001), entende que existem
fiança e desenvolvimento socioeconômico não cada vez mais mecanismos de participação e
é simples e direta, Inglehart (ibid.) acrescenta cada vez menos pessoas participando. Em seu
outros fatores que alimentam essa equação, trabalho, ele alerta para o perigo de uma pos-
como a educação, a religião e a história políti- sível “violência da participação”, quando esta
ca do país. Para ele, o desenvolvimento econô- acaba se tornando uma obrigação, e não um
mico encoraja uma cultura política que ajuda desejo. Para ele, o conceito de participação foi
a estabilizar as democracias. O autor identifica se generalizando, sendo quase sempre enten-
que esses fatores têm sido pouco estudados em dido, de maneira romântica e ingênua, como
análises empíricas – o que levou a WVS a testar algo necessariamente positivo.

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O autor chega a afirmar que, às vezes, o engajamento crítico. É preciso assumir os ris-
democracias totalmente inclusivas devem ser cos e as responsabilidades de um processo do
evitadas, já que as pessoas nem sempre têm qual o fracasso e o conflito façam parte.
boas intenções, e a vontade da maioria nem Para isso, Miessen (ibid.) defende uma
sempre é positiva ou benéfica. Nesse sentido, prática autônoma e independente, em que ar-
sua visão se aproxima dos estudos de Almond quitetas e arquitetos possam agir como ativado-
e Verba (1989), além de Putnam (1997), ao res externos que levantem questionamentos e
assumir que participação não é necessaria- debates de maneira provocativa e produtiva. Pa-
mente sinônimo de democracia. Para esses ra ele, o conformismo das arquitetas e dos arqui-
autores, a vontade da maioria nem sempre é tetos em apenas interferir onde são chamados
democrática, assim como uma cultura cívica ou seguindo ordens de clientes se relaciona com
nem sempre é uma cultura cívica participati- a crise da profissão e contribui para a perda de
va. O exercício e a construção de uma partici- espaço e de valorização da prática arquitetônica.
pação democrática passam pela formação da Então, como saída para a crise – da par-
cultura.­Miessen (2010) chega a afirmar que “a ticipação, da política e da arquitetura –, é ne-
dificulda­de central­ com a noção romantizada cessário rever a práxis, repensar os modos de
do projeto participativo é que ela assume que ação. Assim, talvez, a participação possa ser en-
todos devem se sentar à mesa para tomar de- tendida não como “guerra”, mas como “jogo”,
cisões. Porém, esse talvez não seja o interesse no sentido da disputa, do reconhecimento das
geral” (ibid., p. 245). forças, da negociação, do conflito necessário e
O entendimento da participação como da vitória nem sempre alcançada.
algo atrelado às ideias de consenso e inclusão A associação estabelecida por Putnam
representa, para Miessen (2010), uma visão (1997) entre as estruturas do círculo vicioso
oportunista e manipuladora que não se propõe autoritário e do virtuoso democrático com a
a acrescentar algo ao debate arquitetônico, estrutura dos jogos parece algo instrumental
e, sim, realizar algo predeterminado: “Parti- para o seu pensamento, como uma ferramen-
cipação é guerra. [...] Qualquer forma de par- ta analógica para desenvolver de maneira mais
ticipação já é uma forma de conflito. [...] Para evidente suas ideias. Ainda assim, essa apro-
participar em qualquer ambiente ou situação, ximação também ressalta o caráter lúdico do
é preciso entender as forças em conflito que jogo democrático. Por ser uma estrutura de
agem nesse ambiente” (ibid., p. 53). Assim, os poder com diferentes personagens e regras, a
referendos e plebiscitos, por exemplo, são vis- democracia segue uma estrutura de certo mo-
tos como mecanismos utilizados por políticos do análoga à dos jogos. Putnam (ibid.) ressalta
para se eximirem de suas responsabilidades, como a repetição, a variação dos agentes e o
configurando uma diluição do modelo demo- número de jogadores influencia no jogo. É essa
crático. O autor, portanto, instiga uma prática analogia, somada à ideia de que os jogos são
do conflito que contribua para um pensamento formadores de cultura, que tem guiado iniciati-
crítico. A busca pelo consenso – além de im- vas ligadas ao desenvolvimento de jogos como
possível – é, para ele, paralisante, por impedir ferramentas de participação popular.

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Enxergo, na possibilidade do jogo como o jogo­é apresentado como um componente da


ferramenta de participação, uma forte rela- cultura caracterizado como uma esfera de ex-
ção com o questionamento acerca da falta de ceção do cotidiano e uma atividade necessaria-
cultura­ política no Brasil. Embora haja avan- mente voluntária, capaz de simular a realidade e
ços do ponto de vista legal quanto aos instru- ir além do mundo real. Assim, segundo o autor,
mentos de participação, conforme ressalta os jogos conseguem acessar o imaginário coleti-
Abramovay­ (2001), parece faltar vontade de vo e revelar informações, sentimentos e desejos.
participar. O abismo da especialização, a falta Na sua concepção, o jogo é algo além da
de educação básica e os graves níveis de desi- atividade física ou biológica, pois possui ação
gualdade social afastam boa parte da popula- significante. Seu fator simbólico faz com que
ção dos instrumentos de participação, perpe- ultrapasse os limites da realidade, instituindo
tuando o que Almond e Verba (1989) definem uma realidade autônoma. Assim, o jogo não
como uma orientação política paroquial e súdi- faz parte do cotidiano, da vida ordinária, é uma
ta (aquelas em que os cidadãos desconhecem atividade com tempo e espaço próprios, uma
ou são passivos ao sistema político). Enquanto esfera de exceção.
o debate sobre democracia, em certos países, Com duração própria e limitada, o jogo
está sendo atualizado, superando a definição instaura um intervalo na vida comum – o que
do conceito inicial e partindo para o estudo da lhe agrega o sentido de divertimento e despre-
avaliação de sua qualidade, no Brasil, os anos tensão compartilhado por um grupo. Necessa-
de regimes autoritários, a nossa formação colo- riamente uma atividade voluntária, o jogo pres-
nial e as enormes desigualdades internas confi- supõe que se jogue até um fim determinado,
guram uma democracia frágil. Ainda assim, não podendo recomeçar quantas vezes se desejar.
devemos nos furtar ao debate sobre a qualida- A ligação estabelecida entre quem joga e o que
de da nossa democracia. Apesar da fragilidade foi compartilhado durante o jogo não termina
das nossas instituições e do cenário político quando o jogo acaba, segundo Huizinga (ibid.).
incerto, podemos pensar, com visão otimista, Há algo que nasce do jogo e aproxima as joga-
em desenvolver nossa democracia tendo co- doras e os jogadores:
mo pauta a participação efetiva por meio da As comunidades de jogadores geralmen-
formação política. Desse modo, teríamos como te tendem a tornar-se permanentes,
finalidade evitar o descompasso entre a evolu- mesmo depois de acabado o jogo. [...] a
sensação de estar “separadamente jun-
ção das instituições democráticas e a cultura
tos”, numa situação excepcional, de par-
política do País. tilhar algo importante, afastando-se do
resto do mundo e recusando as normas
habituais, conserva sua magia para além

O papel dos jogos da duração de cada jogo. (Ibid., p. 15)

na formação da cultura urbana Nesse sentido, a partir da formação de


“comunidades”, é possível pensar a impor-
A ideia de que os jogos são formadores de cultu­ tância dos jogos na formação das civilizações.
ra­ foi a tese central defendida em 1938 pelo Huizinga relaciona-os aos rituais, aos cultos,
historiador holandês Huizinga (1971). Para ele, ao mito, à linguagem, ao teatro e às demais

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“atividades arquetípicas” das sociedades. Ele ligadas­aos jogos: entretenimento, propaganda,


define duas funções para o jogo: a luta por al- isolamento, manipulação, crítica, etc. Todavia,
guma coisa e a representação de alguma coisa. tenho como foco a questão do papel dos ele-
O autor ressalta que: “[...] estas duas funções mentos lúdicos em processos participativos.
podem também por vezes confundir-se, de tal Busco entender como o imaginário e a ficção
modo que o jogo passe a ‘representar’ uma lu- fazem parte da construção das cidades, e como
ta, ou, então, se torne uma luta para melhor re- os jogos funcionam como uma ferramenta para
presentação de alguma coisa” (ibid., p. 16). Ou a participação nessa construção. Portanto, es-
seja, “[...] mais do que uma realidade falsa, sua tou me referindo, necessariamente, aos jogos
[do jogo] representação é a realização de uma coletivos e presenciais.
aparência: é ‘imaginação’, no sentido original Nesse sentido, é importante lembrar que
do termo” (ibid., p. 17). experiências lúdicas, no campo da arquitetura
Seguindo os passos de Huizinga, é pos- e da arte, vêm sendo desenvolvidas pelo me-
sível identificar no jogo, por conseguinte, uma nos desde a década de 1960, quando grupos
ferramenta de construção social através da exploraram a participação do espectador ou do
representação. O mundo lúdico permite tratar usuário em suas obras, questionando, assim, a
de assuntos do mundo real sem uma serie- autoria, a rigidez e a previsibilidade de obras e
dade que poderia ser comprometedora. Por projetos, além de buscarem uma visão mais lú-
meio do divertimento, atingem-se memórias, dica da vivência urbana (como, por exemplo, os
criam-se laços sociais e, através da imaginação surrealistas, a Internacional Situacionista, Hélio
e da cumplicidade, uma nova compreensão do Oiticica, Lygia Clark, Team X, dentre outros).
mundo real pode surgir. Dentro do universo dos jogos presenciais e co-
Como, então, os jogos podem ser usados letivos, destaco, a seguir, dois exemplos de ex-
hoje para engajar o público no debate sobre periências lúdicas contemporâneas escolhidas
as cidades de maneira mais atraente do que por tratarem de temas urbanos e buscarem, de
assembleias, reuniões, questionários e outros algum modo, fomentar uma conscientização
métodos normalmente utilizados em proces- urbana. Selecionei dois jogos brasileiros para
sos participativos? ilustrar as experiências que surgiram nesse sen-
Ao longo da história da humanidade, tido no País com o processo de redemocratiza-
jogos de vários tipos foram encontrados. Des- ção na década de 1990 e a partir do marco do
cobertas arqueológicas indicam a presença de Estatuto da Cidade (Brasil, 2001).
jogos em civilizações antigas, há mais de 5 mil
anos. A importância dos jogos na formação das
Jogo Estatuto da Cidade
sociedades é evidente, tendo como exemplo
máximo o protagonismo dos jogos de competi- O jogo Estatuto da Cidade foi criado em 2002,
ção como as Olimpíadas e a Copa do Mundo – pela ONG Instituto Pólis, e tem autoria de Re-
dentre outros eventos milenares e centenários nato Cymbalista, Raquel Rolnik, Paula Santoro
que mobilizam, sociopoliticamente e econo- e Uirá Kayano Nóbrega. Sua intenção é apre-
micamente, muitas nações. É possível, então, sentar o Estatuto da Cidade e tornar suas­ jo-
identificar diferentes abordagens e funções gadoras e seus jogadores familiarizados com

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seus instrumentos por meio de um jogo de jogadoras­e os jogadores decidem com qual das
interpretação de papéis. O jogo apresenta cidades querem jogar e escutam do mediador
três cidades fictícias e situações urbanas simi- as características dessa cidade.
lares às encontradas em diversas cidades do As cartas do jogo são os instrumentos
País, como déficit­habitacional, falta de mobi- do Estatuto da Cidade (consórcio imobiliário,
lidade urbana,­especulação imobiliária, etc. As transferência do direito de construir, outorga­

Figura 1 – Carta de personagem e cidade fictícia do jogo Estatuto da Cidade

Maria de Lourdes Bemvinda


Meu nome é Maria de Lourdes Bemvinda, tenho 40
anos, e sou vice-presidente do Conselho Municipal de
Desenvolvimento Urbano. Fui a grande articuladora pa-
ra a implantação do Conselho. Sou liderança comunitá-
ria desde muito jovem, e hoje, coordeno o Movimento
Moradia Já. Trabalho na fábrica de vassouras “Tudo
limpo” como supervisora de produção. Apesar da vida
difícil, conservo a beleza da juventude que me rendeu
anos atrás o prêmio de Princesa do Sindicato.

INFORMAÇÕES CONFIDENCIAIS

Acho meu patrão um homem charmoso, mas sei que, no


fundo, as intenções dele são políticas. Tenho um perfil
muito democrático, por conta da minha larga experiên-
cia em movimentos populares.

Fonte: Instituto Pólis. Disponível em: https://polis.org.br/publicacoes/jogo-do-estatuto-da-cidade-ruropolis/.


Acesso em: 15 ago 2024.

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onerosa, operações urbanas consorciadas, jogo Estatuto da Cidade trazem uma descrição
usucapião, audiências públicas, etc.) e as car- longa de artifícios complexos do planejamento
tas com as personagens da cidade (prefeito, urbano. A necessidade de um mediador tam-
verea­dor, fazendeiro, presidente da associa- bém aponta para problemas na dinâmica do
ção de moradores, jornalista, secretário de jogo e enfatiza a necessidade de alguém com
habitação). Cada jogadora ou jogador escolhe certo grau de especialização para coordenar a
ou sorteia uma personagem, lê para todos a partida – o que parece contraditório com a pro-
sua descrição e guarda para si os segredos da posta do jogo.
personagem descritos na carta. A mediadora
ou o mediador lê a “situação problema” do
município e as jogadoras e os jogadores co- Jogo Agentes urbanos
meçam a discutir para sugerir soluções através
e a cidade participativa
das cartas dos instrumentos. Cada jogadora e
jogador deve usar pelo menos uma carta de Outra experiência similar vem sendo desen-
instrumento. A partida termina quando uma volvida no campo acadêmico. Desde 2015, o
proposta de solução for encontrada ou quando projeto de extensão universitária Cartilha da
o mediador determinar. Cidade­ também vem trabalhando o tema da
Nesse jogo, não há competição. As joga- conscientização urbana a partir de jogos na
doras e os jogadores devem trabalhar em con- Universidade de São Paulo, em São Carlos.
junto para a resolução dos problemas apresen- Com coor­denação do professor Miguel Buzzar
tados. Também parece haver a necessidade de e equipe formada por Desirée Figueiredo Car-
um conhecimento prévio seja sobre o Estatuto neiro, Gabriele de Campos Trombeta, Matheus
da Cidade, seja sobre as funções de cada agen- Motta Vaz e Mayara Vivian dos Prazeres Cruz, o
te interpretado. As cartas de instrumentos do jogo Agentes urbanos e a cidade participativa­

Figura 2 –Tabuleiro-maquete do jogo Agentes urbanos e a cidade participativa

Fonte: Arquitec – IAU-USP (2024).

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envolve­estudantes de graduação e pós-gradua­ técnicos,­que demandam um avançado grau de


ção da universidade, além de estudantes­ de abstração.­Pensar outras formas de representa-
Ensino Fundamental e Médio da rede pública ção gráfica que possam democratizar o debate
de ensino. O objetivo do jogo é aproximar os é uma forma de contribuir para a construção
temas e debates urbanos do cotidiano dos jo- de uma cultura política participativa.
vens, bem como promover a formação cidadã e Porém, ambos os jogos se propõem a
o senso crítico em relação à cidade. apresentar os agentes políticos e os mecanis-
O jogo consiste em uma maquete de mos do sistema de representação política, sem
uma cidade fictícia e três cartas com problemas considerar outras formas de mobilização. Ao se
dessa cidade. As jogadoras e os jogadores se limitarem a tratar das ferramentas institucio-
dividem no papel dos agentes: prefeitura, Câ- nais e representativas, esses jogos deixam de
mara Municipal, secretarias, Ministério Público, aproveitar a imaginação acionada pelo simbo-
associação de moradores, movimentos sociais, lismo para discutir e pensar outros modos de
ONGs e empreendedor imobiliário. O objetivo organização política e de atuação na cidade. Ao
do jogo é resolver os problemas da cidade con- priorizar a solução de problemas e o consen-
sensualmente, não havendo uma vencedora ou so, eles também deixam de lado o potencial
um vencedor. O jogo termina quando o tempo dos conflitos como ativadores urbanos. Como,
determinado para a partida acaba, ou quando então, essas ferramentas encaram a crescente
as jogadoras e os jogadores conseguem chegar descrença nas representações políticas tradi-
a uma solução para os problemas. cionais? Por que pensar a participação apenas
Esse jogo segue a mesma estrutura pela chave do consenso se caminhamos para
do jogo Estatuto da Cidade. A interpretação uma crise da democracia representativa?
de papéis pelos jogadores busca familiarizá-
-los com os níveis de representação política e
apresentá-los aos instrumentos da democracia
representativa. Assim, essas experiências têm Conflito, dissenso e outras
grande mérito ao usar a linguagem lúdica pa- formas de organização política
ra promover o debate urbano de forma mais
acessível. O fato de os jogos serem cooperati- De fato, a década de 1960 ficou marcada como
vos – não terem um vencedor único – também um momento de efervescência do debate em
contribui para a ideia de cidade como uma torno do conceito de participação – seja em
construção coletiva. projetos de arquitetura, no campo das artes
Do ponto de vista da representação plásticas ou em políticas públicas. Não obstan-
gráfica, essas experiências buscam fugir da te, é evidente que esse período acendeu ques-
representação técnica comum à arquitetu- tões sobre outras formas de representação e de
ra. A representação lúdica tem a capacidade mobilização que permanecem ativas e tem sido
de comunicar a um público mais amplo e não atualizadas. A filósofa belga Stengers­ (2015)
especializado, diferentemente dos desenhos analisa como a crise econômica­de 2008 alertou

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para a necessidade de mudança em nossa rela- presidente.­ A fragmentação política brasileira­


ção com o sistema político-econômico e com o ficou evidente­quando parte dos manifestantes
planeta. Para ela, as questões postas naquele começou a negar a representação por partidos
momento se repetiriam por outros momentos e políticos­ em argumentos por vezes anárqui-
de crise, já que, dificilmente, o sistema muda- cos, por vezes reacionários. Apesar da dispersão
ria. A autora fala de um sentimento­ de parali- das reivindicações­e frentes, a pauta da mobili-
sia diante da impossibilidade de mudança pelas dade urbana e dos grandes eventos foi central,
vias usuais de representação política e da ne- principalmente no estado do Rio de Janeiro.
cessidade de “reinventar modos de produção No cenário político global, é possível des-
e de cooperação que escapem às evidências do tacar momentos como a Primavera Árabe, em
crescimento e da competição” (ibid., p. 15). A 2010, que inspirou o movimento Occupy, inicia-
filósofa caracteriza os mecanismos de participa- do em Wall Street-Nova York (2011) e dissemi-
ção atuais como “domesticados”, por restringi- nado por outras capitais do mundo. No Brasil,
-la a opiniões “construtivas” que, na verdade, as jornadas de junho de 2013 tiveram desdo-
apenas validam que tudo permaneça igual. bramentos até 2016, denunciando esquemas
Dessa maneira, ela defende que não é mais de corrupção nas obras voltadas para a Copa de
possível esperar alguma mudança por parte do 2014 e para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos
Estado, sendo urgente pensar em outros modos de 2016 e demandando investimentos da mes-
de resistência. Segundo a autora,­“[...] é preciso ma ordem de grandeza em saúde e educação.
ficar atento ao surgimento contemporâneo­de Ponto marcante dessa série de mobilizações foi
‘outras narrativas’” (ibid., p. 71). Ao fazer uma o movimento de ocupação das escolas por es-
crítica à especialização e ao distanciamento da tudantes secundaristas em algumas capitais do
ciência do cotidiano popular,­a filósofa enfatiza País, em 2015 e 2016, protestando contra me-
a importância da autonomia e a “saturação das didas de corte de gastos na educação por meio
narrativas consensuais”. de um sistema de autogestão das escolas com
Essa busca por outras formas de organiza- atividades culturais.
ção política pode ser observada, especialmente, Também a partir de 2013, tem se consti-
a partir da década de 2010, quando uma nova tuído uma nova insurgência do movimento ne-
onda de manifestações ao redor do mundo indi- gro nos EUA, motivada por uma série de assas-
cou a insatisfação dos representados com seus sinatos de pessoas negras durante abordagens
representantes e críticas à democracia atual. policiais violentas. O movimento Black Lives
No Brasil, as manifestações de junho Matter se espalhou por várias cidades e vá-
de 2013, em várias capitais, demonstraram rios países, de forma não centralizada, através
alto grau de indignação popular. Tendo co- de manifestações ao longo dos últimos anos.
mo pauta­ inicial a defesa do transporte de No entanto, durante a pandemia da covid-19
qualidade e gratuito, os protestos também em 2020, novos assassinatos provocaram a
foram contra a realização dos megaeventos e retomada da onda de protestos em diversas
culminaram em pedidos de impeachment da cidades americanas, apesar da imposição de

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isolamento­social. A urgência do tema e a his- defesa por uma democracia mais direta e radi-
tórica falta de respostas por parte dos gover- cal. Essas experiências também apontam para
nos fez com que, apesar da quarentena global, outra maneira de organização política: a arti-
pessoas­ocupassem seis quarteirões da cidade culação se deu via Internet e, em sua maioria,
de Seattle, criando uma zona livre de policia- desvinculada de partidos políticos e represen-
mento gerida comunitariamente, denominada tações políticas tradicionais.
Capitol Hill Autonomous Zone (Chaz) ou Capitol A rapidez e a eficiência da criação de
Hill Organized­Protest (Chop). redes de mobilização e solidariedade a partir
O contexto de emergência sanitária glo- de questões urgentes demonstram a força da
bal está sendo, em alguns casos, um chama- autonomia de organização da população, bem
do à auto-organização. O impacto econômico como revelam o total abandono por parte do
gerado pela necessidade do isolamento social Estado. Porém, da mesma forma que essas
afetou muitas famílias, principalmente as que formas não tradicionais de mobilização apon-
já estavam em condições de vulnerabilidade so- tam para uma democracia radical, também
cial. Para as favelas, o isolamento social é quase podem indicar respostas liberais e tendências
inviável devido ao seu tecido urbano. Diante da populistas para a crise democrática. Desse
falta de políticas públicas, no Brasil, voltadas modo, é preciso atentar para a possibilidade
para essa população, muitas favelas se organi- de uma participação autoritária, como defi-
zaram para prover cestas básicas e outras doa­ nem Almond e Verba (1989). De que maneira
ções a partir da articulação de coletivos, sem é possível pensar em representações alterna-
apoio do governo ou de partidos políticos. O tivas que busquem a autonomia cidadã, e não
caso mais impressionante talvez seja o de Pa- o assistencialismo, sem deixar de considerar o
raisópolis, em São Paulo, no qual a favela, por papel estatal?
meio de doações e parcerias com empresas, Fica o questionamento sobre qual é o
conseguiu contratar três ambulâncias, capaci- papel dos arquitetos e arquitetas na forma-
tar 240 socorristas, montar 60 bases de aten- ção de uma cultura política democrática. A
dimento, transformar duas escolas em casas de linguagem lúdica parece ter grande contribui-
acolhimento e definir 652 “presidentes de rua” ção para a formulação de outros mecanismos
(moradores voluntários responsáveis por veri- de comunicação entre agentes nos processos
ficar as necessidades das famílias e acionar as participativos. Todavia, seria possível pensar,
ambulâncias). Já na primeira semana da chega- no âmbito do universo dos jogos cooperativos,
da da pandemia no Brasil, Paraisópolis ajudou em práticas que estimulassem a autonomia dos
a organizar o G10 Favelas, um grupo de ajuda jogadores e das jogadoras? Até que ponto os
mútua entre as dez maiores favelas do País. jogos aqui apresentados não estão apenas re-
Mesmo com pautas distintas, essas mo- produzindo as relações políticas tradicionais e
bilizações têm em comum a crítica ao sistema existentes? Jogos que valorizassem a formação
político-econômico hegemônico, a demanda de conflitos poderiam incentivar a invenção de
pelo reconhecimento de forças insurgentes e a outras possibilidades de organização política,

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independentes do Estado e voltadas para as respostas autogestionadas aos conflitos dos


demandas particulares de cada contexto. Po- seus territórios, valorizando, assim, os saberes
deriam os jogos favorecerem a articulação de comuns e a micropolítica?

[I] https://orcid.org/0000-0002-5905-8181
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, Programa de Pós-
-Graduação em História Social da Cultura. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
martinspereirajoana@gmail.com

Notas
(1) Em 1953, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) IX, o tema da habitação no
pós-guerra foi motivo de preocupações. Nele, um grupo formado pelos membros mais jovens
começou a demonstrar divergências quanto ao posicionamento dos fundadores da organização.
O principal objetivo do encontro era formular um documento suplementar à Carta de Atenas, a
Carta do Habitat. Porém, os arquitetos mais jovens e a velha guarda da instituição discordavam dos
caminhos a serem tomados e o impasse ficou claro. O Ciam X, em 1956, seguiu com o mesmo tema,
mas, dessa vez, foi organizado pelos membros mais jovens, que deram origem ao Team X.
(2) Por input entende-se o que o sistema demanda e por output o que o sistema fornece para a sociedade.
(3) Esse termo é utilizado na Teoria dos Jogos, um campo do pensamento matemático que estuda
modelos de estratégia a partir da ação de jogadores com o fim de aplicar esses estudos de
comportamento em diversas áreas do conhecimento.
(4) Em junho de 2013, várias manifestações tomaram conta das principais capitais do País. Inicialmente
tendo como pauta a defesa do passe livre após um aumento no preço das passagens, outras pautas
foram somadas ao descontentamento, como a corrupção política, a realização da Copa do Mundo
no País e o pedido de impeachment da então presidente Dilma Roussef. Um dos lemas das ruas nas
Jornadas de Julho foi a frase “não me representa”, direcionada à classe política.
(5) Base de dados e grupo de pesquisa criada em 1981, reunindo profissionais de diversos países que
estudam sobre o impacto social e político das mudanças de valores culturais e crenças.
(6) Organização independente em defesa dos direitos políticos e das liberdades civis criada em 1941 para
ranquear a expansão da liberdade e da democracia no mundo.
(7) A pesquisa realizada pelo WVS avalia a confiança interpessoal a partir do questionamento ao
entrevistado se é possível ou não confiar na maioria das pessoas. A partir dessa pergunta bastante
geral e simples, os índices indicam que mais de 90% dos brasileiros optam por não confiar nas
pessoas.

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Referências
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Texto recebido em 30/ago/2020


Texto aprovado em 11/dez/2020

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