Classificando as pessoas e as suas perturbações
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Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto
R E V I S T A
LATINOAMERICANA
DE P S I C O PATO LO G I A
F U N D A M E N T A L
ano IX, n. 3, set/20 06
Classificando as pessoas
e suas perturbações:
a “revolução terminológica” do DSM III*
Jane Russo
Ana Teresa A. Venâncio
460
A terceira versão do Diagnostic and Statistic Manual of Mental
Disorders (DSM III), publicado pela American Psychiatric Association
em 1980, implicou uma mudança de paradigma no conhecimento
psiquiátrico vigente, tanto nos Estados Unidos quanto no contexto
internacional em geral. Apresentamos um pequeno histórico dessa
transformação e procuramos expor e discutir a nova arquitetura do
manual e sua lógica classificatória. Construímos nossa argumentação
em torno do destino reservado às antigas “neuroses” e aos novos
“transtornos sexuais”.
Palavras-chave: DSM III, diagnóstico, história da psiquiatria
Um breve histórico
1. É importante assinalar que essa “biologização” das classificações psiquiátricas se articula a uma
tendência “biologizante” mais ampla – que leva a uma compreensão fisicalista do ser humano
(psicologia evolucionária, neurociências, genética) – e cuja discussão foge ao escopo deste artigo.
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2. Para uma história das descobertas psicofarmacológicas ver Shorter (1997) e Healy (1997).
3. Sobre os paradoxos dessa convivência ver Swain (1987).
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sexta versão, produzida pela Organização Mundial da Saúde.4 Desde então seu
objetivo tem sido normalizar e homogeneizar a classificação psiquiátrica, sempre
alvo de críticas por sua baixa confiabilidade, tendo conhecido até o momento seis
versões – I, II, III, IIIR, IV e IV-TR.5
Sua primeira versão – posteriormente conhecida como DSM I – era baseada
em uma compreensão “psicossocial” da doença mental, concebida como uma
reação a problemas da vida e situações de dificuldade impingidas individualmente.
A influência exercida pela psicanálise evidencia-se pelo uso freqüente de noções
como “mecanismos de defesa”, “neurose” e “conflito neurótico”. Na versão
subseqüente do manual, publicada em 1968 – o DSM II – o modo psicanalítico
de compreender a perturbação mental tornou-se ainda mais evidente. Nele foram
abandonados tanto o uso da noção de “reação” 6 quanto a concepção
“biopsicossocial” dos transtornos mentais, surgindo em seu lugar um modo
específico de conceber a doença mental, que corresponderia a níveis de
desorganização psicológica do indivíduo. A perturbação mental passa a ser vista
como a expressão visível de uma realidade psicológica oculta a ser interpretada
no curso do diagnóstico ou do tratamento.7
A substituição da primeira pela segunda versão do DSM , portanto, não
significou uma ruptura importante em termos das concepções dominantes no
464 campo, sendo antes expressão da hegemonia psicanalítica no que diz respeito à
compreensão (e possível tratamento) da doença mental. A história das versões
subseqüentes do DSM demonstra que essa hegemonia já dá claros sinais de
enfraquecimento no decorrer dos anos 1970.
Uma nova versão do manual (o futuro DSM III) foi preparada entre 1974 e
1979, e publicada em 1980. Sua publicação representou uma ruptura absoluta com
a classificação que até então era utilizada. Essa ruptura se deu em três níveis, que
se articulam entre si, como veremos a seguir: no nível da estrutura conceitual
rompeu com o ecletismo das classificações anteriores presentes nos livros-texto
clássicos majoritariamente utilizados na clínica psiquiátrica, propondo não apenas
4. Para uma breve contextualização da Classificação Internacional das Doenças nesse contexto e
comparação entre as versões do DSM e da CID ver Venancio (1998)
5. A introdução do DSM IV contém uma pequena história das classificações psiquiátricas anteriores
ao Manual, realizadas seja pelo governo americano, seja pelas forças armadas, cujo objetivo
principal era produzir dados estatísticos confiáveis.
6. No momento da feitura do DSM I a psiquiatria norte-americana era dominada pelo pensamento
de Adolf Meyer que fazia uma leitura particular da psicanálise e considerava a doença mental
uma “reação” a determinadas situações de vida. O termo é abundantemente empregado na
primeira versão do manual.
7. Seguimos aqui a interpretação de Gaines (1992).
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9. Sobre a disputa entre a força-tarefa encarregada de preparar o DSM III e os psicanalistas, ver
Bayer e Spitzer (1985) e Wilson (1993).
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10. Chama atenção o fato de a Associação Psiquiátrica Americana ter sido comandada por
diretorias francamente progressistas durante todo o período em que o DSM III foi preparado
(cf. Kutchins e Kirk, 1999).
11. Na verdade, à medida que o manual se transforma fica cada vez mais difícil reconhecer o que
antigamente se chamava “neurose”. Se, como estamos argumentando, a mudança terminológica
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Crescei e multiplicai-vos
é bem mais que terminológica, as “neuroses” de fato deixam de existir. O que fazemos nos
parágrafos que se seguem é, baseadas nos parênteses do DSM III, imaginar quais dentre os
novos transtornos poderiam, a partir da ótica antiga, ser classificados como uma “neurose”.
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470 though many find their practices distasteful, they remain unable to substitute
normal sexual behatior for them. This diagnosis is not appropriate for individuals
who perform deviant sexual acts because normal sexual objects are not available
to them. (APA, 1968, p. 44, grifos nossos)
e são listados os seguintes desvios: “homossexualidade”, “fetichismo”, “pedofilia”,
“travestismo”, “exibicionismo”, “voyeurismo”, “sadismo”, “masoquismo”, “outros
desvios sexuais”.
Qual o destino dos “desvios sexuais” no DSM III ? Em primeiro lugar o
número de transtornos cresceu bastante. Em vez dos nove transtornos do DSM
II encontramos 22 “Transtornos psicossexuais”, subdivididos em quatro
categorias (Gender Identity Disorders, Paraphilias, Psychosexual Dysfunctions e
Other Psychosexual Disorders). O desdobramento dos transtornos sexuais
prosseguiu no DSM IV – nesta última versão o tipo de transtorno passou a se
intitular “Sexual and Gender Identity Disorders”, dele fazendo parte 27 transtornos
(vários com mais de uma subdivisão), agrupados em Sexual Dysfunctions,
Paraphilias e Gender Identity Disorders (ver anexo 4).
No DSM III o grupo “parafilias” praticamente repetia a lista publicada no
DSM II , que por sua vez nada mais fazia do que listar as antigas “perversões”
delineadas por Krafft Ebing no final do século XIX. A novidade está no fato
da “Homossexualidade” deixar a rubrica “parafilia”, transformando-se em
“Homossexualidade ego-distônica” sob a rubrica “Outros transtornos
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15. Na feitura do DSM III entretanto, o diagnóstico volta, como vimos, sob a forma
“homossexualidade ego-distônica”, para desaparecer somente na revisão de 1987 (DSM IIIR).
Para uma história circunstanciada desse processo ver Bayer (1987) e também Kutchins e Kirk
(1999).
16. Ver por exemplo a atual constituição de uma espécie de “cultura BDSM” que agrupa os antigos
“sadomasoquistas” e afirma essa opção erótico-sexual como um estilo de vida, opondo-se
frontalmente à idéia de patologia.
17. É importante considerar que a “despatologização” não se opõe à “biologização” dessas
identidades – há estudos em genômica, genética e em neurociências que objetivam demonstrar
a “base biológica” das “parafilias”. Não será possível aprofundar aqui essa discussão, mas há
evidências de que a busca de uma base biológica de determinados comportamentos não se opõe
necessariamente à afirmação identitária, muitas vezes é o contrário que ocorre. Ver sobre isso
o artigo de Jennifer Terry (1997) sobre o poder de sedução da ciência na constituição da
subjetividade desviante.
18. A análise dessa observação implica uma leitura atenta dos artigos encontrados, bem como a
discussão das relações entre as transformações no campo cultural mais amplo e a psiquiatria.
Tal pesquisa está em curso e será objeto de artigo posterior.
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19. O termo “transexualismo” desaparece no DSM IV, que utiliza somente a forma mais genérica
“Transtornos de identidade de gênero” com as especificações: “em crianças” e “em adolescentes
ou adultos”. Cabe perguntar se já se observa aí uma conseqüência do movimento identitário
“trans” (sobre esse movimento, ver Bento, 2004).
20. É claro que o fato desse sujeito necessitar redefinir seu gênero também biologicamente (através
de diversos procedimentos médicos que transformem fisicamente seu corpo, adequando-o à
biologia do gênero desejado) complica bastante a discussão em torno de uma afirmação
identitária independente da medicina.
21. Em outro trabalho discutimos mais longamente essa normatividade, cf. Russo (2004).
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Referências
Resumos
La tercera versión del Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM
III), publicado por la American Psychiatric Association en 1980, implicó un cambio de
paradigma en el conocimiento psiquiátrico vigente, tanto en los Estados Unidos como
en el contexto internacional en general. Presentamos un pequeño histórico de esa
transformación y buscamos exponer y discutir la nueva arquitectura del manual y su
lógica clasificatoria. Construimos nuestra argumentación alrededor del destino
reservado a las antiguas “neurosis” y a los nuevos “trastornos sexuales”.
Palabras claves: Historia de la psiquiatría, diagnóstico, DSM III
477
La troisième version du Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM
III), publié par l’ American Psychiatric Association en 1980 a entraîné un changement
de canon dans le savoir psychiatrique, non seulement aux États Unis, mais aussi dans
les autres pays du monde. Nous présentons l’histoire résumeé de cette transformation,
en analisant le changement de l’architecture et de la logique sous-jacente du manuel.
Notre argumentation est centrée sur le nouveau statut des névroses et des “troubles
sexuels”.
Mots clés: Histoire de la psychiatrie, diagnostique, DSM III
The third edition of the Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM
III), published by the American Psychiatric Association in 1980, brought about a
paradigmatic change in psychiatric knowledge in the United States, as well as in other
countries around the world. In this article we present a short history of this change,
and discuss the new architecture of the manual and its logic of classification. Our
argument focuses around the way the concepts of “neurosis” and “sexual disorders”
were dealt with in the latest version of the manual.
Key words: History of psychiatry, diagnosis, DSM III
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ANEXO 1
AS NEUROSES NOS DSM I E II
DSM I
30 Psychoneurotic disorders
40 Psychoneurotic reactions
40.0 Anxiety reaction
30.1 Dissociative reaction
30.2 Conversion reaction
30.3 Phobic reaction
30.4 Obsessive compulsive reaction
30.5 Depressive reaction
30.6 Psychoneurotic reaction, other
DSM II
478 Neuroses
300.00 Ansiosa
300.10 Histérica
300.13 Histérica, tipo conversão
300.14 Histérica tipo dissociativo
300.21 Fóbica
300.30 Obsessiva-compulsiva
300.40 Depressiva
300.50 Neurastênica
300.60 De despersonalização
300.70 Hipocondríaca
300.80 Outras neuroses
ANEXO 2
Anxiety disorders
Phobic disorders (or Phobic neuroses)
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Somatoform disorders
300.81 Somatization disorder
300.11 Conversion disorder (or Hysterical neurosis, conversion type)
307.80 Psychogenic pain disorder
300.70 Hypochondriasis (or Hypochondriacal neurosis)
300.70 Atypical somatoform disorder (300.71)
479
Dissociative disorders (or hysterical neuroses, dissociative type)
300.12 Psychogenic amnesia
300.13 Psychogenic fugue
300.14 Multiple personality
300.60 Depersonalization disorder (or Depersonalization neurosis)
300.70 Atypical dissociative disorder
ANEXO 3
Anxiety disorders
300.01 Panic Disorder without Agoraphobia
300.21 Panic Disorder with Agoraphobia
300.22 Agoraphobia without History of Panic Disorder
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Somatoform disorders
300.81 Somatization Disorder
300.81 Undifferentiated Somatoform Disorder
300.11 Conversion Disorder
Specify Type: with Motor Symptom or Deficit/ with Sensory
Symptom or Deficit/with Seizures or Convulsions/with Mixed
Presentation
307.xx Pain Disorder
.80 Associated with Psychological Factors
.89 Associated with Both Psychological Factors and a General Medical
Condition
Specify if: Acute/Chronic
300.7 Hypochondriasis
Specify if: with Poor Insight
300.7 Body Dysmorphic Disorder
300.81 Somatoform Disorder NOS
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Dissociative disorders
300.12 Dissociative Amnesia
300.13 Dissociative Fugue
300.14 Dissociative Identity Disorder
300.6 Depersonalization Disorder
Dissociative Disorder NOS
ANEXO 4
Desvios Sexuais
Homossexualidade
Fetichismo
Pedofilia
Travestismo
Exibicionismo
481
Voyeurismo
Sadismo
Masoquismo
Outros desvios sexuais
Sexual dysfunctions
The following specifiers apply to all primary Sexual Dysfunctions:
Lifelong Type/Acquired Type/Generalized Type/Situational Type/Due to
Psychological Factors/Due to Combined Factors
• Sexual Desire Disorders
302.71 Hypoactive Sexual Desire Disorder
302.79 Sexual Aversion Disorder
• Sexual Arousal Disorders
302.72 Female Sexual Arousal Disorder
302.72 Male Erectile Disorder
• Orgasmic Disorders
482 302.73 Female Orgasmic Disorder
302.74 Male Orgasmic Disorder
302.75 Premature Ejaculation
• Sexual Pain Disorders
302.76 Dyspareunia (Not Due to a General Medical Condition)
306.51 Vaginismus (Not Due to a General Medical Condition)
• Sexual Dysfunction Due to a General Medical Condition
625.8 Female Hypoactive Sexual Desire Disorder Due to...
608.89 Male Hypoactive Sexual Desire Disorder Due to...
607.84 Male Erectile Disorder Due to...
625.0 Female Dyspareunia Due to...
626.0 Male DysparEunia Due to...
625.8 Other Female Sexual Dysfunction Due t o Other Male Sexual
Dysfunction Due to...
___._ Substance-Induced Sexual Dysfunction
Specify if: With Impaired Desire/ With Impaired Arousal/ With
Impaired Orgasm/With Sexual Pain
Specify if: With Onset During Intoxication
302.70 Sexual Dysfunction NOS (Not otherwise specified)
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Paraphilias
Exhibitionism
302.81 Fetishism
302.89 Frotteurism
302.2 Pedophilia
Specify if: Sexually Attracted to Males/Sexually Attracted to Females/
Sexually Attracted to Both
Specify if: Limited to Incest
Specify type: Exclusive Type/Nonexclusive Type
302.83 Sexual Masochism
302.84 Sexual Sadism
302.3 Transvestic Fetishism
Specify if: with Gender Dysphoria
302.82 Voyeurism
302.9 Paraphilia NOS