ANDREOLLI_Uma análise histórico conceitual dos megaeventos esportivos e seus rebatimentos na cidade contemporânea

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vol 41 | no 123 | mayo 2015 | pp.

289-307 | artículos | ©EURE 289

Uma análise histórico conceitual


dos megaeventos esportivos e seus
desdobramentos na cidade contemporânea
Marcelo Andreoli. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
Tomas Moreira. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil.

resumo | A desregulamentação econômica em países mais desenvolvidos e a crescente


internacionalização do capital contribuíram para emergência dos processos globais,
definindo uma nova conjuntura para cidades. Neste contexto o planejamento estraté-
gico, os Grandes Projetos Urbanos e os Megaeventos esportivos tornam-se ferramen-
tas de um discurso hegemônico, com benefícios pautados sobre um cenário global
competitivo. O desenvolvimento do pensamento acerca dos Megaeventos esportivos
nos remete a questões para compreensão deste fenômeno enquanto política de rees-
truturação urbana. O presente artigo discute os conceitos de Grandes Projetos Ur-
banos e Megaeventos esportivos para a construção da imagem Olímpica. Dentre os
resultados destacam-se os Grandes Projetos Urbanos como estruturas diferenciadas
na malha urbana, pois não representam o suprimento das necessidades de uma popu-
lação real, mas desenvolvem demandas virtuais assumindo características de política
urbana. O trabalho conclui que a estruturação das cidades tem sido transferida para as
forças privadas que carecem de alternativas para construção da justiça urbana.

palavras-chave | competitividade urbana, gestão urbana, transformações sócio-


territoriais.

abstract | Economic deregulation in most developed countries and increasing inter-


nationalization of capital have contributed to the emergence of global processes, de-
fining a new environment for cities. In this context, strategic planning, Mega Urban
Projects, and Mega-Sports events have become tools of a hegemonic discourse, being
associated with benefits within a competitive global scenario. The development of
thinking on Mega-Sports events leads us to questions the understanding of this phe-
nomenon as a policy of urban restructuring. This article discusses the concepts of ur-
ban mega projects and mega-sports events regarding the construction of an Olympic
image. Among the results, it has been found that urban mega projects represent dif-
ferentiated structures within the urban context, as they do not support the fulfillment
of the needs of the real population, but rather develop virtual demands. The paper
concludes that the determination of the structure of cities has been transferred to the
private sector forces that lack alternatives for the urban construction of social justice.

keywords | urban competitiveness, urban management, socio-territorial transformations.


Recibido el 29 de agosto de 2013, aprobado el 3 de febrero de 2014

E-mail: Marcelo Andreoli, [email protected] | Tomás Moreira, [email protected]


Correspondencia: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFRJ, Av. Pedro Calmon, n° 550 - Prédio da Reitoria, Departamento de Projeto
de Arquitetura (DPA), 5° andar - Cidade Universitária, Rio de Janeiro, Brasil

issn impreso 0250-7161 | issn digital 0717-6236


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A introdução do conceito: um histórico de Grandes Projetos Urbanos


Após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos assumiram uma postura de
hegemonia econômica mundial, advinda principalmente de sua vitoriosa emprei-
tada bélica, assim como do sucesso de sua iniciativa na regulamentação monetária
internacional. Neste momento um novo cenário capitalista se fortalece pela de par-
ticipação do Estado enquanto regulador da economia e fomentador de um desen-
volvimento econômico promovido, majoritariamente por meio de políticas fiscais e
financiamentos públicos (Maia, 2011).
A ordem de crescimento da produção industrial, baseada no modelo Fordista-
-Keynesiano (Harvey, 1992,p. 119) estabeleceu-se até o início dos anos 70, quando
uma nova condição mundial passou a vigorar. Em decorrência da reconstrução
europeia, ascensão do Japão no cenário produtivo, aumento da competitividade,
declínio econômico norte-americano, quebra da base dólar e crise do petróleo, até
então principal insumo energético, estabeleceu-se um cenário de estagnação econô-
mica cuja consequência foi a reestruturação internacional que deu fim ao ciclo
produtivo vigente até então.
As transformações sofridas nos anos 70 tornaram-se fundamentais para a
compreensão dos acontecimentos mundiais das décadas subsequentes, de 80 e 90,
pois representaram uma ruptura no modelo produtivo, inserindo novos cenários
econômicos para a manutenção do capitalismo, e consequentemente uma nova
condição social passou a ser construída.
Alguns aspectos sócio-políticos tomam especial atenção na explicação e compre-
ensão de fenômenos posteriores, que garantiram o declínio das políticas de bem-estar
social do pós-guerra e a “reciclagem dos princípios liberais” (De Oliveira, 2009, p.
3). Dentre eles, destacam-se a decadência de antigos polos industriais e a adoção do
planejamento estratégico, em detrimento do planejamento tradicional. As transfor-
mações urbanas fizeram emergir a condição mercantil das cidades, principalmente nas
grandes metrópoles, que concentravam o capital produtivo. O cenário de precedência
da instância política sobre a econômica ganha agora novas configurações, concebidas
pelo alinhamento das lógicas das grandes empresas, internacionais ou nacionais, com
a política interna ou internacional de cada país (Santos, 2008, p. 255).
Neste processo de transformações, que se refletem também territorialmente, os
antigos polos industriais são afetados pelas novas dinâmicas sociais. Há um acréscimo
de pessoas envolvidas no setor terciário em países de capital desenvolvido, e um exce-
dente de mão de obra industrial em países com o capitalismo menos desenvolvido.
A despeito disto, ocorreu naturalmente a expansão das unidades produtivas para os
países periféricos, e a consequente derrocada da base industrial em países centrais.
Neste cenário de reestruturação político-social mundial, de desemprego na
Europa devido ao declínio de seu polo industrial, de déficit econômico e altas taxas
de inflação, e os Estados Unidos ainda se reestabelecendo da crise econômica de 73,
uma nova dinâmica de combate a crise foi imposta, principalmente nos governos de
Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Os impactos das novas configurações sociais se reproduzem fisicamente na
malha das cidades. Entre as diversas expressões urbanas deste período, a reutilização
de áreas industriais se intensifica a fim de alavancar novos usos para espaços que
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tornaram-se degradados ou subutilizados ao longo dos últimos 25 anos (Somekh


& Campos, 2005, p. 1).
Em face destas políticas neoliberais, o planejamento estratégico surge como
ferramenta de reformulação de cidades que buscavam soluções imediatas para suas
novas problemáticas urbanas, passando a privilegiar os ganhos em curto prazo em
detrimento das modificações em um longo período. A emergência de uma nova
condição, na qual o capital privado e a flexibilização urbana se associam ao inchaço
do setor terciário, promoveram a expansão imobiliária enquanto ferramenta de regu-
lação urbanística, assim como um instrumento rentável para grupos investidores,
favorecendo uma ideia de eficiência do novo modelo de planejamento urbano. Com
isso o planejamento estratégico se fortalece como discurso crítico em relação ao
planejamento urbano tradicional (Güell, 1997), compartilhando de elementos da
gestão administrativa empresarial dentro da escala urbana e estabelecendo-se sobre
políticas de marketing urbano.
A considerada limitação dos modelos tradicionais de planejamento de cidades
em oferecer suporte aos possíveis novos investimentos e as transformações urbanas
exigidas, contribui para a defesa de um planejamento estratégico como único meio
eficaz frente aos novos processos de globalização. A ênfase na competição urbana é,
portanto, uma das condicionantes neste processo, no qual o Estado torna-se ator
responsável pela promoção da cidade, considerado saudável na medida em que
municípios competem para atração de investimentos e fomentam o crescimento de
cidades globais numa totalidade (Güell, 1997). Ao mesmo tempo, os processos de
competição global pela busca de investimentos, instauram a “guerra entre os lugares,
expressão emblemática da subsunção do mundo e da vida contemporâneos à lógica
do capital nesses tempos de desmedia empresarial” (Sánchez et al, 2004, p. 42).
A condição exposta acima demonstra a crítica ao modo de apreensão do modelo
estratégico de planejamento, no qual a competição urbana evidencia um desen-
volvimento territorial desigual (Lungo, 2005), privilegiando as elites financeiras
da sociedade, que se tornam capazes de usufruir do novo espaço comercializado,
enquanto que o planejamento urbano encontra-se cada vez mais omisso aos
problemas estruturais da sociedade.
A compreensão da necessidade da inclusão em um mercado globalmente compe-
titivo exige das cidades medidas de atração de capitais, utilizando-se de parcerias
reconhecidas pela associação dos interesses do estado com os interesses da iniciativa
privada. A concepção destas parcerias público-privadas, e da condição de unificação
de interesses, estabelece a cooperação entre atores edificando a base do pensamento
de um “Projeto de Cidade” (Castells & Borja, 1996). Porém, a incorporação de
novos atores aos processos urbanos, buscando o resultado financeiro promovido
pela exposição da cidade através do “marketing urbano”, reduz a construção social-
-histórica a um elemento mercantilizado no qual a cidade torna-se mercadoria e
o direito à cidade passa a ser proporcional ao índice de solvência da população
(Vainer, 2000, p. 78).
A cidade considerada sobre bases comerciais torna-se um objeto lucrativo em que
procedimentos de city marketing são essenciais para a reprodução dos investimentos.
Esta postura, fruto de uma relação público privada, desenvolve um novo método
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de gestão urbana, chamado por Harvey (1996) de empresariamento urbano. Reco-


nhecido pela capacidade de dinamizar investimentos e promover desenvolvimento
econômico por meio da compreensão de problemas pontuais, o empresariamento
urbano propõem um olhar parcelar sobre a cidade orientado para práticas especula-
tivas de reestruturação de áreas, fortalecendo uma cidade com direcionamentos de
recursos assimétricos (Malengrau, 2013), transformando-as em palcos de compe-
tição na busca pela atração de investimentos.
Em um contexto competitivo a construção de ícones arquitetônicos eleva o
poder simbólico da cidade, desenvolvendo sentimentos ufanistas patrióticos, além
de criar imagens que contribuem com o apaziguamento de revoltas. Conforme
anunciado por Debord (1997), “as simples imagens tornam-se seres reais e motiva-
ções eficientes de um comportamento hipnótico” (p. 18).
Neste momento os Grandes Projetos Urbanos (gpu) constituem-se como ferra-
mentas redentoras de cidades em decadência. Governos locais se apropriaram
deste instrumento para reestruturação de espaços degradados encontrando no
mercado imobiliário fortalecido e no inchado setor terciário alternativas para
desenvolvimento.
Antigas áreas industriais obtiveram especial atenção com a promoção dos gpus
(Grandes Projetos Urbanos), representando uma nova centralidade urbana, como
nos casos clássicos de Baltimore (Inner Harbor), Londres (London Docklands),
Battery City (Nova Iorque) e Barcelona (Jogos Olímpicos). Também classificados
dentro de uma cultura de apropriação pós-moderna (Harvey, 1992), os gpus,
quase sempre, se apresentam procurando atrair novos investimentos e atividades
econômicas. Fortalecidos pela arquitetura monumental, constituem um impor-
tante veículo para a proclamação da cultura global, materializando-se por ícones
urbanos através da construção de novos centros de negócios, comerciais e de
turismo, shopping centers e hotéis sofisticados, centros de convenção, marinas,
restaurantes, parques temáticos, etc.
Os gpus tornaram-se, portanto, elementos importantes dentro de uma polí-
tica global de reconhecimento e inclusão de cidades em uma rede mundial. Neste
contexto a aclamada requalificação urbana almejada pelos governos, torna-se por
vezes tão somente elemento de uma espetacularização da cidade, por meio da arqui-
tetura carregada de superficialidade e de ilusória participação social (Arantes, 2000,
p. 22).
Arquitetonicamente muito representativos na malha urbana, os gpus são reconhe-
cidos pela articulação dos atores envolvidos em seus processos de aprovação e cons-
trução, como afirmam Castells e Borja (1996) quando enumeram sua “possibilidade
de criar holdings, consórcios ou empresas mistas; na execução conjunta, com outras
administrações e com agentes privados” (p. 162). O Estado tem o papel de harmo-
nizar discursos e mediar disputas entre a população local e agentes investidores.
Muito embora os gpusse constituam como elementos pontuais na paisagem
urbana, eles podem configurar externalidades para além dos limites geográficos
locais, quando pensados a partir da possível inserção em uma hierarquia mundial de
cidades. Neste sentido, globalmente são considerados elementos representativos, e
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por isso contribuem com a reprodução de um sistema estabelecido, aprofundando


o empresariamento urbano e criando um ambiente controverso.
Se por um lado a inserção em um mundo globalizado pode nos elevar à condição
de cidade detentora de poder gravitacional, concentrando, em sua grande maioria,
atividades informacionais (Castells & Borja, 1996, p. 51), por outro presenciamos
a subordinação das necessidades locais aos interesses globais, acirrando as tensões
sociais e a possibilidade de ser vítima de uma “reificação desnecessária” (Harvey,
1996, p. 51), no qual a cidade transforma-se em mercadoria a ser comercializada.
O desenvolvimento deste modelo de gestão urbana estimula inevitavelmente
mapas de exclusão a partir desta competição sintomática de uma sociedade do
espetáculo, cujos projetos se apresentam paulatinamente mais extravagantes em um
mundo desenvolvido, e ao mesmo tempo megalópoles globais tornam-se redutos da
pobreza e exclusão (Frampton, 2008, p. 420).

A produção tardia de Grandes Projetos Urbanos no Brasil

No Brasil, o conceito de gpus confunde-se em um primeiro momento com as


grandes obras de infraestrutura, no entanto, embora de forma tardia, os Grandes
Projetos Urbanos se estruturam sobre os novos processos econômicos e atualmente
constituem parte das políticas de planejamento de cidades brasileiras. Para se com-
preender este cenário tardio de implementação de gpus, é necessário reconhecer
os processos que estruturam a condição sócio-política brasileira a partir, princi-
palmente, da década de 1930, pois neste período existia um momento de avanço
e euforia, devido ao início da elevação da produtividade industrial brasileira, com
inúmeras políticas de fomento a indústria e a diversificação do aparelho produtivo
(Furtado, 1981, pp. 29-30).
Dadas tais condições, a década de 1940 representou um período da diminuição
das taxas de desemprego, bem como da expansão da indústria nacional, tendo na
década de 50 a fase decisiva da industrialização brasileira com a criação da Petrobrás,
monopólio estatal do petróleo, e com a criação do Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico (bnde), com função de ampliar os investimentos em infraes-
trutura de transportes e energia. Nesta mesma década a adoção do Plano de Metas,
no governo de Juscelino Kubistchek, foi marcante para o cenário industrial, afinal
se caracterizou por uma “intensa diferenciação industrial num espaço de tempo
relativamente curto” (Serra, 1982, p. 23). O crescimento proposto por Kubistchek
neste período, com o famoso lema de “cinquenta anos em cinco”, era buscado por
meio de uma postura de altos investimentos nas indústrias de base e na abertura
para investimentos internacionais através da produção de bens de consumo.
Em linhas gerais, até 1960 a base ampla do mercado nacional foi garantida a
partir das políticas assumidas na era Vargas. Através de elementos protecionistas
e de apoio à substituição de importações, foram gerados dinamismo econômico,
criadas estruturas capazes de dar suporte a produção nacional com altos investi-
mentos estatais na promoção de energia e transportes, assim como com fortes inves-
timentos fiscais e cambiais para a produção nacional.
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O planejamento urbano centralizador da década de 1960 alcança sua máxima


representação com a transferência da capital do Rio de Janeiro para a então inaugu-
rada Brasília. O golpe militar de Estado em 1964 instaurou uma nova percepção de
governo, a ditadura militar, no mesmo período em que se encerrava a experiência
do desenvolvimento industrial iniciada por Getúlio Vargas e pelo Estado Novo. A
estratégia dos militares para desenvolvimento do país era baseada, principalmente,
no incremento do setor de bens de consumo duráveis, o que gerou uma maior
concentração de renda e o consequente acréscimo da desigualdade social.
Entretanto, os anos seguintes foram reconhecidos como o “milagre econômico”
(Coriat & Saboia, 1988, p. 9), promovidos essencialmente pelas maciças campanhas
governamentais que proclamavam o acréscimo dos índices de produção nacional,
crescimento econômico, industrial e pelas grandes obras governamentais. Diferen-
temente do período anterior, em que se buscava um desenvolvimento industrial
estrutural, agora a busca pela industrialização concentrava-se no contingente de
grandes obras de infraestrutura.
Neste contexto, estas grandes obras revelam um caráter de contribuição para uma
integração do território nacional, pois os investimentos concentravam-se majorita-
riamente em projetos de transporte e conexões viárias. Os grandes projetos deste
período gozam de especial prestígio, afinal representam também a demonstração do
poder militar e contribuem com a produção e reprodução de capitais, assim como
determinados projetos possuem cunho de embelezamento da paisagem.
“Grandes Obras” tomam força nos anos 70, durante o período militar, ainda com
um objetivo de declaração de poder, mas com um caráter mais geopolítico, de
tomada ostensiva de territórios até então não ocupados e, máxima na época na-
cionalista (...). Aliadas ao imaginário nacionalista, essas grandes intervenções, ao
modo das atuais, transmitiam uma ideia importante para o período, que era a de
“progresso” e integração de regiões atrasadas economicamente no contexto nacio-
nal. Adotando a prática dos grandes projetos com magnitude de tamanho, escala e
complexidade, o poder central esperava: a) estimular novos processos urbanos que
transformariam as cidades e trariam o desenvolvimento a todo o país; e b) atender
a uma política de ordenação do território nacional que buscava diminuir as dispa-
ridades existentes. É nesse contexto que o regime militar brasileiro iria promover
grandes obras, algumas inclusive conhecidas pelo adjetivo de faraônicas por seu
tamanho e complexidade (Ultramari & Rezende, 2007, p. 10).
Após o regime militar, em meados da década de 80, o Brasil buscou a estabili-
dade econômica e só começou a obter êxito ao final dos anos 90 e início de 2000
com uma política articulada em três princípios: estímulo ao emprego formalizado,
valorização dos salários e do salário mínimo e programas de transferência de renda
(Mattei, 2012, p. 37). Com isso o Brasil alcançou prestígio internacional e se esta-
beleceu enquanto nova potência econômica mundial, reconhecido enquanto país
emergente incorporando o grupo dos países brics.
Esta breve construção histórica e econômica do Brasil demonstra como as
grandes obras se constituíram enquanto elementos da política local e se diferen-
ciaram das iniciativas internacionais de Grandes Projetos Urbanos. Pois enquanto o
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Brasil atravessava um período de protecionismo e repressão promovidos pelo regime


militar, de aparente desenvolvimento industrial e acentuação da desigualdade social,
gerando uma urbanização segregada e atípica, as grandes obras emergem como uma
ferramenta de controle social e demonstração da pujança do governo militar. Da
mesma forma, estes projetos atuaram como elementos eficazes na estruturação de
um Estado desarticulado, com ênfase, principalmente, em obras de circulação viária
e transporte (Ultramari & Rezende, 2007; Vainer, 2000).
Antagonicamente o cenário encontrado na Europa para implantação de gpus
consistia primordialmente em: situações pós-guerra, novas demandas por trans-
porte, crescimento da mancha urbana e novas demandas culturais (Powell, 2000).
Assim, percebe-se que a condição de existência dos gpus no Brasil em muito se
difere da gênesis conceitual desta prática na Europa, pois se aqui os gpus assumiam
a característica de elemento urbano pautado sobre [duvidosas] demandas territo-
riais inerentes ao espaço local, na Europa estes projetos foram concebidos enquanto
ferramentas construtoras do processo de edificação territorial em torno de estraté-
gias de uma organização espacial-capitalista.
Transformados em elementos importantes da história recente das cidades, os
Grandes Projetos Urbanos são concebidos enquanto estruturas complexas frutos de
uma nova condição do Estado, na qual se privilegia o diálogo global em detrimento
da escala local. Muito embora a compreensão dos gpus seja envolta por controvér-
sias, as bases fundamentais da discussão devem ser compreendidas por meio de um
conceito comum, para tanto é necessário o enfrentamento conceitual acerca do
tema avaliando as críticas da prática recente.

Reconstruindo conceitos

Os Grandes Projetos Urbanos são atualmente reconhecidos como ferramentas de


uma nova condição de planejamento urbano. Tornaram-se elementos da discussão
acadêmica, sobretudo, após os casos clássicos internacionais. Entretanto, mesmo
compondo uma importante vertente do pensamento atual acerca do planejamento
urbano, ainda gozam de divergências conceituais, gerando grupos oposicionistas
e defensores na concepção e implantação destas estruturas. Portanto, busca-
-se confrontar os discursos atuais acerca da prática dos gpus, para que por meio
desta avaliação se possa compreender as políticas recentes, sobretudo pelo uso dos
Megaeventos esportivos, de implementação destas estruturas.
A conceituação de um gpu ultrapassa os limites espaciais, físicos ou arquitetô-
nicos do projeto, sendo entendidos, no presente trabalho, dentro de um cenário
macroeconômico de acumulação de capital, edificado durante o período pós-guerra
de reestruturação global, compondo uma condição pós-moderna de leitura mundial
(De Oliveira & Lima Junior, 2009; Harvey, 1992; Nobre, 2000). Inevitavelmente
discurso e prática não possuem o mesmo escopo, pois, embora a defesa dos gpus
se estabeleça sobre uma retórica keynesiana de benefícios reproduzidos largamente
para toda a população, a sua prática é, em grande parte, a inserção de um pensa-
mento neoliberal na cidade contemporânea.
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Deste modo os gpus, muito mais do que grandes estruturas urbanas com impacto
imediato na malha das cidades, devem ser compreendidos enquanto condicionantes
do espaço tempo, refletindo efetivamente a situação urbana de acumulação capi-
talista. Figuram em um cenário cuja economia “contém tanto as capacidades para
uma enorme dispersão e mobilidade geográficas quanto as acentuadas concentrações
territoriais necessárias para administração e manutenção dessa dispersão” (Sassen,
2010, p. 27), ou seja, admitem a expansão e reprodução capitalista ao mesmo
tempo em que assumem posturas de concentração de investimentos, desenvolvendo
cidades com características globais.
As transformações recentes experimentadas pelo sistema capitalista, definindo
a nova reestruturação mundial em torno de questões produtivas e sociais, geraram
inevitáveis impactos nas cidades. Conforme afirmam Castells e Borja (2004, p. 49),
“o novo espaço industrial se organiza em torno de fluxos de informação, separando
e reunindo seus distintos componentes territoriais, segundo os ciclos e segundo as
empresas”. Desta forma, o espaço antes materializado por meio das plantas indus-
triais agora se encontra dissipado em meio ao fluxo informacional, conduzindo ao
abandono áreas da cidade nas quais a consequente reocupação torna-se alternativa
para readequação destas áreas degradadas.
A produção de um cenário determinado por redes de cidades (Santos, 2008)
introduziu novos desafios também na menor escala urbana. Frente a este novo
cenário econômico mundial se destaca a importância de um posicionamento estra-
tégico global por parte das cidades, em vista de possíveis investimentos, assim como
para alcançar patamares mais elevados no mercado competitivo internacional.
Para tanto, os Grandes Projetos Urbanos atuam como dinamizadores espaciais
transescalares, de acordo com Lungo (2011, p. 5), “redefinindo o papel das cidades e
colocando a questão da competitividade da mesma” Sánchez et al. (2004). Também
enumeram esta condição das cidades em incorporar tendências do fenômeno da
globalização por meio de elementos “produzidos com vistas à ampliação de sua
inserção no circuito mundial de valorização”.
Desta forma fica evidente a constituição imagética dos gpus enquanto elementos
necessários para a efetivação da competitividade local no cenário global. Todavia, a
própria condição de impacto imediato na malha urbana já constitui uma justifica-
tiva para o uso desta ferramenta como componente que apresenta “(...) a qualidade
espacial e urbanística (...) de renovação, redefinindo a hierarquia urbana em favor
da região antes degradada” (Somekh & Campos, 2005, p. 3).
São exaltados como ferramentas constituintes desta condição de renovação
urbana, devido ao processo de possível reestruturação de espaços degradados como
observado nos casos de Baltimore, Londres, Barcelona e Bilbao. A reestruturação
promovida por meio da implantação de gpus deve-se, também, à representação
simbólica intrínseca à própria estrutura. Construindo elementos significativos para
os cidadãos, os gpus têm em sua base conceitual, conforme Bonates (2009), a carac-
terística de “arquitetura monumentalista” (p. 62).
Esta condição monumental assumida pelos gpus é assinalada enquanto elemento
necessário para a representação simbólica, pois cria uma relação ufanista entre cida-
dãos e cidade (Vainer, 2000, p. 94), concedendo ao projeto demasiada importância
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face ao planejamento e consequentemente transformando-o numa mercadoria por


ele mesmo (Sánchez et al., 2004, p. 43). Desta forma, os gpus representam não
somente a construção da estrutura simbólica da cidade, mas passam também a
representar um elemento comercial com valor inerente.
Muito embora os gpus sejam ferramentas largamente utilizadas com objetivos
variados, eles ainda não gozam de pleno consenso acadêmico, principalmente por
conta das divergências acerca da suas reais consequências no tecido urbano. Se por um
lado somos compelidos a crer no papel modificador destas estruturas sócio espaciais
(Castells & Borja, 2004; Guell, 1997; Lerner, 2003), somos, ao mesmo tempo, desa-
creditados pelas teorias oposicionistas (Lungo, 2011; Harvey, 1996; Sánchez, 2004;
Vainer, 2000). Destaca-se nesses debates também leituras realizadas por uma ótica
histórica. Esta visão compõe o elemento comum dentro da dualidade entre oposicio-
nistas e defensores com avaliações puramente referentes aos processos de produção
dos Grandes Projetos Urbanos (Nobre, 2000; Ultramari & Rezende, 2007).
Como representação sistemática destas divergências conceituais, o Quadro 01
organiza pontualmente os argumentos de análise dos gpus, e apresenta formalmente
como a visão historicista embasa as duas leituras antagônicas acerca do tema.

quadro 1 | Análise teórica acerca dos gpus


defensores opositores
1. Contribuição com processos de requalificação 1. Possíveis efeitos de eletrização e consequente
de áreas degradadas; gentrificação de áreas;
2. Inserção da cidade num circuito global de 2. Subordinação das necessidades locais aos inte-
valorização; resses globais;
3. �������������������������������������������
Maior competitividade na busca por investi- 3. Geração da guerra dos lugares, na qual o merca-
mentos; do determina os investimentos;
4. Apropriação do planejamento urbano por parte
4. Coalizão de diversos interesses dentro de um
de grupos privados, abarcando, sobretudo, seus
único plano;
interesses;
5. Projetos pontuais, sem a compreensão da totali-
5. Possível integração como um plano de cidade.
dade da cidade.
historicistas
1. Projetos frutos de um processo de reestruturação do sistema capitalista;
2. Construções necessárias no período pós-guerra para a reconstrução das cidades;
3. Períodos de flexibilizaçao do capital contribuíram com o desenvolvimento destas políticas;
4. ������������������������������������������������������������������������������������������������
São identificados como elementos de uma política econômica global que surgiu nos anos 70 passan-
do por renovações contínuas até os dias atuais;
5. Uma das condições da concepção do estado pós-moderno.
fonte elaboração própria

A construção de um corpo conceitual sobre gpus orienta uma possível classificação


do objeto de estudo acerca da sua prática. No entanto a aplicabilidade destes con-
ceitos em uma realidade em movimento, somente torna-se possível a partir da intro-
dução de uma classificação precisa sobre o tema.
Portanto uma vez compreendido que a avaliação de gpus não se determina
somente pela sua extensão ou tipologia, mas deve-se considerar, sobretudo, o seu
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impacto direto sobre a estrutura e desenvolvimento da cidade (Lungo, 2004).


Propõe-se a ampliação deste conceito relacionando a concepção de gpus às práticas
de acumulação capitalista em um cenário global. Considera-se portanto que, por
meio da implantação destes projetos ocorre o desenvolvimento de demandas locais
e internacionais na cidade. Neste processo os atores e benefícios gerados por tais
estruturas extrapolam os limites da cidade, e possuem um alcance mundial, confi-
gurando um importante vetor de expansão imagética para a cidade.
A luz destes pressupostos acerca da emergência de gpus, os Megaeventos espor-
tivos se apresentam enquanto ferramentas ativas deste cenário contemporâneo de
gestão urbana. Pois se apresentam como estratégias deliberadas para fomento da
economia, calcado sobre um arcabouço teórico que sustenta a concentração de
investimentos na cidade (Oliveira, 2011, p. 20). Desta maneira os Megaeventos
esportivos tornam-se expressão emblemática da produção atual de uma gestão
urbana estratégica baseada na construção de Grandes Projetos Urbanos.

A nova gestão com os Megaeventos

Os Megaeventos esportivos são expressões materiais com características efêmeras,


“cada Megaevento permite a consolidação de uma determinada temporalidade gera-
cional” (Seixas, 2010, p. 6), tornando-se elemento de um momento específico na
história das cidades. Desta forma, são compreendidos dentro de um ponto preciso
na linha do tempo, muitas vezes importantes pelas inflexões urbanas que geram.
A compreensão da emergência dos Megaeventos apoia-se sobre as modifica-
ções sócio-políticas mundiais experimentadas pela sociedade nas últimas décadas.
Esta nova configuração acabou transformando-os em verdadeiros agentes polí-
ticos (Seixas, 2010, p. 5), representando uma ferramenta eficaz não somente pelos
impactos efetivos na malha urbana, mas também pela contribuição no reposiciona-
mento de cidades na hierarquia global.
Neste cenário que envolve, sobretudo, uma política de projetos pontuais com
impactos mais imediatos, os Megaeventos se destacam enquanto prática atual e
solução “imediata” para a construção de estruturas simbolicamente representativas,
atuando por meio de uma hegemonização dos discursos.
Historicamente as grandes intervenções urbanísticas e os eventos esportivos esti-
veram presentes no desenvolvimento de cidades. Como observado por Seixas (2010,
p. 7), “sempre existiram projetos de referência (desde as manifestações de opulência
da Roma antiga e passando pelos projetos urbanísticos racionalistas dos séculos xviii
e xix)”. Entretanto estas práticas no ambiente contemporâneo se reconstroem sobre
outros discursos, que outrora não se justificavam em um regime de acumulação,
novos processos industriais, modos de regulação e novos cenários geográficos globais.
Em face destes acontecimentos globais, os Megaeventos esportivos encontram sua
justificativa dentro do cenário atual competitivo, no qual os gpus se materializam
como estratégia de ação. Em um primeiro momento estes Megaeventos se consti-
tuem apenas como “engrenagem estabelecida no planejamento estratégico” (Oliveira,
2011, p. 19), mas com tempo se consolidam como prática de uma nova condição
urbana, estabelecida no núcleo conceitual do planejamento estratégico e dos gpus.
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Neste cenário a “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997) constituiu a represen-


tação material das transformações experimentadas, na qual “o espetáculo é o capital
em tal grau de acumulação que se torna imagem” (p. 25). A constituição de uma
sociedade do espetáculo se assemelha a gênese dos gpus quando assumem valor de
produto intrínseco à própria estrutura, ou seja, representando a valorização pela
simples existência. Esta condição fortalece as críticas relacionadas a implantação
dos Megaeventos enquanto estruturadores da cidade, uma vez que “a produção
do espaço é definida então pelo valor de troca, pelo posicionamento destes diante
do mercado” (Raeder, 2010, p. 8), ou seja o espaço transforma-se em mercadoria
valiosa e obtém a sua valorização a partir dos produtos inseridos na paisagem.
A valorização dos novos espaços urbanos, promovidos como elementos necessá-
rios para o city marketing eleva as cidades proponentes a sedes de Megaeventos ao
concorrido cenário global de competitividade urbana. Se por um lado este ingresso
é apresentado com uma ferramenta de “redenção” (Short, 2008, p. 324) de cidades
decadentes, promovendo verdadeiras renovações urbanas por meio da captação de
investimentos públicos e privados, por outro avaliamos a tendência a subordinação
local aos interesses globais, permitindo a mercantilização dos espaços urbanos e a
consequente “guerra dos lugares” (Sánchez et al., 2004, p. 42).
A ocorrência de um Megaevento se realiza dentro de um cenário abstrato de possi-
bilidades para determinada cidade, tendo a sua materialização efetuada somente por
meio de estruturas representativas no espaço urbano. Nesta condição, a “arquitetura
espetacular” (Broudehoux, 2011, p. 41) é percebida enquanto elemento corrente na
formatação dos Megaeventos, sendo ao mesmo tempo recoberto por uma gama de
benefícios e, de forma antagônica, sendo também duramente criticado.
A representação espacial necessária para atendimento da demanda de um Mega-
evento é apresentada como elemento eficaz na reconstrução do território, valori-
zando-o por meio dos investimentos realizados no local, assim como pela própria
característica de valorização do “produto” que ali se implanta. A consolidação de
projetos resultantes de Megaeventos podem se tornar propulsores de uma possível
requalificação urbana. Para tanto, é necessário a “inclusão destas estratégias (...) no
planejamento urbano integrado da cidade” (Seixas, 2010, p. 8).
A proposta de dinamização de áreas na cidade encontra-se como uma das justi-
ficativas para a adoção de Megaeventos na gestão urbana, pois representam, assim
como os gpus, estruturas simbolicamente fortificadas pelo próprio caráter monu-
mental que assumem, tendo em sua implantação a recriação dos laços e da relação
de lugar com o espaço. A recriação da paisagem na produção de Megaeventos por
meio da arquitetura monumentaldesenvolve um cenário de valorização idealizada
absoluta, conduzindo a um “patriotismo de cidade” (Vainer, 2000, p. 94), que tem
em sua retórica a intolerância por posições contrárias a implantação do evento.
Ao passo que a monumentalidade se faz presente na produção do Megaevento,
elevando o poder do impacto positivo, também a adoção de “Megaprojetos” (Seixas,
2010, p. 8) nos remete a críticas quanto a sua retórica de benefícios. Recobertos com
um discurso patriótico, os Megaeventos assumem uma postura benéfica na qual as
grandes estruturas tornam-se ícones legítimos de poder aumentando a visibilidade
do Estado na paisagem, “os espaços monumentais e a arquitetura espetacular atuam
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(...) a serviço de ideologias do Estado e moldam a experiência humana por meio da


manipulação de objetos e símbolos” (Broudehoux, 2011, p. 40).
Neste cenário a arquitetura espetacular representa, portanto, a hegemonia do
discurso em que, segundo Vainer (2000; p. 96), ocorre a “despolitização planejada”,
momento no qual as necessidades básicas do cidadão têm liberdade para serem olvi-
dadas em face das características megalomaníacas que os projetos assumem. Neste
sentido o espetáculo promove uma remoção da realidade (Broudehoux, 2011, p.
43) das perspectivas da vida cotidiana, ou seja, através destas imagens e signos o
Estado permite criar sentimentos de ordem e pacificação, desviando o foco dos
problemas sociais mais latentes.
A produção de ícones arquitetônicos encontra significado dentro do complexo
sistema internacional de acumulação de capital, bem como encontra aliados econô-
micos e políticos por causa das transformações sofridas pelas cidades. Neste cenário
as parcerias público-privadas emergem como elemento aglutinador de interesses
entre governos locais e a iniciativa privada. A conformação destes interesses sustenta-
-se sobre princípios liberais, reunindo elementos para a justificação da competição
urbana e da mercantilização da cidade promovida de forma relevante pelo “desen-
volvimento do city marketing, ou mesmo do branding urbano” (Seixas, 2010, p. 7).
Concebidos quase sempre pela iniciativa governamental e amparados pelos inves-
timentos públicos e privados, os Megaeventos tornaram-se símbolo de uma nova
condição da gestão urbana, principalmente pelos impactos causados pela implanta-
çãode suas estruturas, que partem de uma retórica de um planejamento integrado,
representando uma melhora verdadeira para a cidade. Entretanto, as críticas assu-
midas pela adoção de um Megaevento partem de uma postura cética quanto a sua
real capacidade de reforma urbana, visto que a valorização do projeto assume carac-
terísticas elevadas frente aos benefícios às cidades e este toma valor pela própria exis-
tência, tornando-se mais “valiosos” e representativos do que a cidade que o abriga.
Ainda que a celebração dos Megaeventos possa conduzir aos mais variados
impactos positivos, não se deve ignorar uma análise mais aprofundada acerca
das críticas da sua utilização. A adoção dos Megaeventos como ferramentas de
reconfiguração urbana pode, em determinados cenários, ser compreendida em
meio a novas lógicas de gestão que permitam o surgimento de elementos urbanos
benéficos para toda a população, a partir do debate social. Ao mesmo tempo, a
manutenção de uma gestão de Megaeventos pautados sobre aspectos neoliberais de
acumulação de capital tende a favorecer a execução de projetos sem reflexões acerca
de um planejamento composto de princípios de direito à cidade enquanto diretriz
estrutural. Compondo iniciativas pontuais descontextualizadas da malha urbana,
cujos benefícios encontram-se restritos a uma parcela restrita da população, que é
capaz de apropriar-se dos resultados imagéticos e imobiliários gerados pelas estru-
turas e pela realização do evento.
Neste cenário, os Jogos Olímpicos configuram um dos maiores exemplos atuais
de concepção de Megaeventos com escopo esportivo, afinal possuem sua dimensão
simbólica enquanto evento e marca revendida ao redor do mundo, e, portanto,
caracterizando-o como ferramenta de alcance mundial para o reconhecimento
de cidades dentro de uma hierarquia global. Assim como promovem verdadeiras
Andreoli e Moreira | Uma análise histórico conceitual dos megaeventos esportivos... | ©EURE 301

reformas urbanas, com impactos diversos, sobre as cidades sedes por conta das infra-
estruturas necessárias para o recebimento do Megaevento.

A construção da imagem Olímpica

Muito embora a tradição olímpica remonte aspectos da tradição esportiva remota,


buscando na Grécia antiga elementos para realização dos Jogos Olímpicos atuais,
o cenário contemporâneo de realização destes eventos ultrapassa aqueles con-
ceitos puramente esportivos, assumindo outras características devido ao dema-
siado impacto realizado em diversos áreas e setores da sociedade. Desta forma, as
Olimpíadas atuais destacam-se como catalisadores de projetos urbanos de desenvol-
vimento em cidades sedes, necessitando uma amplitude de equipamentos urbanos
para a sua efetiva realização.
As Olimpíadas da era moderna foram concebidas sobre os ideais do nobre francês
Pierre de Fredi, o Barão de Coubertain, que acreditava que os Jogos Olímpicos da
antiguidade grega poderiam ser reavivados com uma roupagem moderna (Freire
& Ribeiro, 2006, p. 34). Foi quando em 1894 a Conferência Internacional de
Paris estabeleceu, com base nos pensamentos de Coubertain, as diretrizes para a
realização do primeiro evento Olímpico da era moderna, realizado na cidade de
Atenas em 1896. Nesta mesma ocasião foi criado o Comitê Olímpico Internacional,
entidade máxima do esporte Olímpico.
Ao longo da história os Jogos Olímpicos vêm sendo reproduzidos sobre a retórica
do “Olimpismo”, cujo discurso baseia-se em valores de igualdade, paz, harmonia,
democracia e o equilíbrio entre o corpo e com a mente (Freire & Ribeiro, 2006,
p. 36). Este discurso tornou-se necessário para o sucesso da reprodução do evento,
uma vez que esta retórica de valores humanos e esportes estabeleceu parcela impor-
tante para consolidação da marca olímpica, cristalizando os Jogos como novo ideal
esportivo no mundo e desenvolvendo-se como prática cada vez mais cristalizada ao
longo dos anos.
A evolução dos Jogos Olímpicos desde sua primeira edição, em 1896, demonstra
a crescente universalidade do evento, que somou nas últimas edições mais de 200
países participantes, 30 modalidades esportivas e mais de 10.000 atletas. Destaca-se
também nesta leitura a concepção dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016,
que confirmarão a passagem deste Evento pelos cinco continentes.
Contudo, se por um lado observa-se o pleno crescimento dos Jogos Olímpicos
demonstrado pelas dimensões que alcançam recorrentemente, devido ao contin-
gente cada vez maior de países, atividades e atletas. Entretanto, por outro lado, o
impacto gerado em cidades sede por este crescimento, cuja materialização ocorre
por meio dos equipamentos esportivos e é absorvido como ferramenta de plane-
jamento urbano, ainda carece de reflexões principalmente quando avaliados face
aos períodos de pensamento vigente. Para o entendimento da reprodução desta
prática de gestão urbana utilizando a implantação dos Jogos Olímpicos é neces-
sário compreender o modo como se desenvolveu a retórica acerca desta concepção,
conforme destaca o Quadro 2.
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quadro 2 | Desenvolvimento histórico dos Jogos Olímpicos


1896
1a FASE Edições com baixos investimentos e poucas intervenções urbanas
1904
1908 Instalações esportivas mais imponentes do que no período anterior
2a FASE ganhando maior destaque na malha urbana. Em 1936 é construída a
1936 primeira Vila Olímpica para atletas.
1948 Fase de austeridade promovida pelo período pós-guerra, sofrendo
3a FASE com restrições orçamentárias os equipamentos esportivos mostram-se
1956 modestos
1960 Fase identificada pela campanha televisiva e recursos para reconstrução
4a FASE
1976 das cidades. Inicia-se um ideal de reestruturação

1980 Fase marcada pela divisão mundial em unidades bipolares gerando conse-
5a FASE
1984 qüências nos Jogos Olímpicos pela descontinuidade histórica

1988 Início da fase dos Grandes Projetos Olímpicos moldados por um ideal de
6a FASE
2016 transformação de cidade e financiamentos globais

fonte adaptado de raeder, 2010

Os Jogos Olímpicos até 1956 se constituíam majoritariamente de baixos investi-


mentos e pequenas alterações urbanas. Entretanto, após 1960 os benefícios midiá-
ticos de exploração do Evento converteram-se em estruturas urbanas, produzindo
efeitos nas fases subsequentes. Este fenômeno é explicado dentro de um contexto
global com capitais de investimento privado e com a associação de forças de locais
a fim de promover uma imagem de cidade a ser comercializada. Neste sentido a
Olimpíada de Barcelona, em 1992, tornou-se um exemplo emblemático de reno-
vação urbana por meio de uma gestão baseada na implementação de um Megaevento
esportivo, almejado se beneficiar de possíveis resultados positivos gerados a partir
da atração de investimentos, difusão da imagem da cidade, dinamização territorial
ocasionada pelos novos equipamentos urbanos e pela consolidação da cidade dentro
de uma hierarquia global.
Na fase atual, os Jogos Olímpicos constituem uma das marcas mais reconhecidas
do mundo. Os cinco anéis olímpicos são identificados por cerca de 90% da popu-
lação mundial (Andranovich, Burbank&Heying, 2001, p. 114), fato que, associado
à recorrência de seu acontecimento, repetindo-se em cada quatro anos, transformam
os Jogos em um símbolo social consolidado na sociedade contemporânea. De acordo
com Short (2008, p. 323), a participação popular torna-se elemento fundamental
para a confirmação do evento, pois legitima sua concepção e seus custos: “a venda
dos Jogos é baseada na necessidade das elites da cidade e/ou de governos nacionais,
persuadindo residentes e cidadão para apoiar os enormes custos dos Jogos”.
Em meio a um cenário de investimentos internacionais, os governos locais tornam-
-se parceiros comerciais de iniciativas privadas a fim de garantir possíveis inflexões
urbanas por meio da construção de gpus. Desta forma os Jogos Olímpicos são reconhe-
cidos como catalisadores de iniciativas, assim como se constituem enquanto elementos
construtores de uma “cidade de exceção” (Vainer, 2011), pois neste momento o Mega-
evento torna-se justificativa para uma manipulação legítima da soberania do Estado.
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Se por um lado a somatória das partes interessadas nos Jogos (tanto grupos da
iniciativa privada como a sociedade civil e governantes) pode contribuir com uma
gestão urbana integrada, unificando diversos grupos de interesses (Andranovich et
al., 2001, p. 127) através de um modelo cooperativo contendo políticas comparti-
lhadas que verdadeiramente orientem para objetivos de reforma urbana, por outro
lado são recorrentes as iniciativas falhas de programas Olímpicos com um cunho
puramente comercial.
Pelas palavras do próprio presidente do Comitê Olímpico Internacional (coi),
Jaques Rogge, quando anuncia que “somos apenas uma organização esportiva, não
a representação de todas as ongs do mundo” ou utilizando afirmação ainda mais
contundente, do Presidente do Comitê de Coordenação do coi, Hein Verbruggen,
“é detestável que as Olimpíadas de Pequim sejam usadas como plataforma para
grupos com agendas políticas ou sociais” (Raeder, 2008, p. 12), percebemos a desco-
nexão entre as necessidades locais, pautada sobre os pilares da justiça urbana e do
direito à cidade, com os interesses comerciais do evento, que busca somente o seu
sucesso e sua consequente reprodução.
A reprodução dos Jogos Olímpicos enquanto ferramentas de promoção da cidade
orientam a uma condição de marketing global, na qual emergem as conexões entre
realidades locais e o cenário global. A condição de evento mais televisionado no
mundo (Short, 2008, p. 324) concede uma característica peculiar as Olimpíadas
que tem, então, o mesmo cenário sendo transmitido simultaneamente nas diversas
partes do planeta. O imediatismo dos Jogos Olímpicos “reconfigura as identidades
nacionais e suas diferenças” (Roche, 2002, p. 3), pois ao mesmo tempo em que
globalizamos as individualidades, mostrando ao mundo as particularidades de cada
lugar, assumimos individualmente o global, inserindo de forma mais profunda as
características de uma cultura de consumo. São exaltados ícones construídos local-
mente, porém carregados de significados globais de venda, promovendo as grandes
empresas patrocinadoras.

Notas finais

Os Grandes Projetos Urbanos são estruturas diferenciadas na malha urbana, pois


buscam alcançar resultados a partir da criação de elementos urbanos inseridos
dentro de práticas de acumulação capitalista em um cenário global. Neste sentido
orientam-se para o desenvolvimento de demandas locais e internacionais na cidade,
cujos benefícios são reduzidos a uma parte pequena da população e que conduzem
a processos exógenos das demandas locais, por vezes, canalizando investimentos
sociais para outras infraestruturas.
Por esta razão, tornam-se ferramentas da gestão urbana contemporânea muito
mais preocupada com a comercialização de uma imagem de cidade, tendo neste
processo o Estado como mediador entre as forças de resistência contra a promoção
de um cenário urbano comercializado e a constituição de uma cidade orientada
pelas demandas da iniciativa privada.
Os Megaeventos esportivos, constituídos por suas infraestruturas e equipamentos
urbanos, inicialmente se estabeleceram como parte da retórica do planejamento
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estratégico, no entanto são agora elementos centrais de uma prática de gestão de


cidades, constituindo-se como um dos exemplos mais emblemáticos do conceito de
empresariamento urbano, cujo valor e simbolismo são intrínsecos à sua existência
(Oliveira, 2011, p. 20). Recorrentemente compreendidos por meio de um discurso
ufanista, tais eventos são orientados pela prática comercial e pela lógica de grupos
privados capazes de garantir benefícios pela simples reprodução de um ideal inventado.
Nesta leitura os Jogos Olímpicos assumem demasiado destaque como política
urbana, em virtude da magnitude de seus impactos, assim como pela extensão
imagética do evento. A compreensão dos impactos e oportunidades geradas pelas
Olimpíadas transformam-na em ferramenta oportuna para governos que buscam
uma gestão mais estratégica da cidade, pois atuam como elementos de consolidação
de ideais competitivos, sendo simbolicamente fortalecidos dentro de um modelo
hegemônico de produção do espaço urbano.
Efetivamente, os Jogos Olímpicos constituem-se como prática importante para
o ingresso de cidades no circuito global de valorização e ferramenta oportuna de
redenção de cidades decadentes (Short, 2008, p. 2). Esta reprodução de um cenário
de competição urbana é definida por Santos (2008, p. 333) como “a máquina de
guerra de uma mais-valia universal de impossível medida, e nem por isso menos
eficaz.” Diante deste contexto de disputa por lugares na hierarquia mundial de
cidades a consolidação da polarização mundo entre “a imagem da cidade global e a
metáfora do planeta favela” (brics, 2011, p. 4) torna-se central.
A promoção dos Jogos Olímpicos representa a consolidação de um discurso
hegemônico em escala global, cujo cenário era, anteriormente, restrito aos países
centrais. Entretanto a reconfiguração mundial dotou países periféricos, de força
política capazes de integrar circuitos de valorização global por meio de instrumentos
até então restritos aos “países do norte”.
Neste contexto os Megaeventos esportivos aparecem recorrentemente em agendas
governamentais de países emergentes com objetivo de renovação urbana, todavia
os estudos de impactos destes eventos historicamente se concentram em análises
restritas a países com malha urbana e estrutura social consolidada. Portanto,o estudo
dos impactos deste novo modelo de gestão urbana, que inclui a incorporação de
Megaeventos, ainda carece de aprofundamento, tendo em vista o território encoberto
por contradições e desconexões nos quais recentemente se observa a sua implantação.
Todavia o que se pretende é repensar as práticas atuais de políticas urbanas que
se estruturem sobre processos comerciais, nos quais a solvência da população seja
diretamente proporcional ao direito à cidade. Neste processo, a cidade esvazia-se do
sentido de produção do lugar, pois a o valor comercial homogeneíza as diferenças
em detrimento de uma condição global, reconstruindo e revitalizando fisicamente
novas cidades baseadas em uma ótica externa sobre a busca de um crescimento
exógeno, assim, muito mais do que reproduzirmos modelos de gestão urbana,
reproduzimos também modelos de exclusão e segregação espacial.
Andreoli e Moreira | Uma análise histórico conceitual dos megaeventos esportivos... | ©EURE 305

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Vainer, C. (2000). Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do
Planejamento Estratégico Urbano. Em Arantes, O.Vainer, C & Maricato, E. A cidade
do pensamento único: desmanchando consensos. (pp. 75-104). São Paulo: Vozes.
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