ANTONIO DO PASSO CABRAL - RECURSO PER SALTUM NEGOCIAL
ANTONIO DO PASSO CABRAL - RECURSO PER SALTUM NEGOCIAL
ANTONIO DO PASSO CABRAL - RECURSO PER SALTUM NEGOCIAL
RESUMO
O presente texto analisa, a partir da cláusula geral de negociação processual do art.190 do CPC/2015, se é possível às
partes estabelecer, por meio de uma convenção processual, que um recurso "salte" a segunda instância, permitindo-
se impugnar uma sentença diretamente no STJ ou no STF. Trata-se do exame dos chamados acordos processuais
de ultrapassagem de instância, também denominados recursos per saltum, e de sua compatibilidade com o sistema
processual brasileiro.
Palavras-chave: Negócio jurídico. Recurso especial. Recurso extraordinário. Recurso per saltum. Supressão de
instância.
ABSTRACT
The current text analyzes, from the general clause of procedural bargaining of art. 190 of Brazilian Code of Civil
Procedure (CPC/2015), if it is possible for the parties to establish that an appeal would "jump" the second instance,
allowing to contest a sentence directly in the Superior Court of Justice (STJ) or in the Supreme Court of Justice (STF).
This is an examination of the so-called instance overriding agreements, also known as per saltum appeals, and their
compatibility with the Brazilian procedural system.
Keywords: Legal deal. Special appeal. Extraordinary appeal. Per saltum appeals. Judicial instance overriding.
fixadas com base no critério funcional.9 Diz-se que as inderrogável se a lei fosse expressa a respeito ou porque
competências funcionais seriam sempre “absolutas”, tal conclusão pela impossibilidade de flexibilização
por estarem baseadas no interesse público de divisão inequivocamente decorresse do sistema normativo.15
de trabalho entre os diversos juízos e tribunais.10 Inflexibilidade e inderrogabilidade jamais poderiam
Essa pressuposição fez com que sempre se ser afirmadas como características inerentes a esse tipo
impedisse a reunião de causas conexas quando a de regra de competência independentemente de uma
conexão fosse determinar mudança da competência mirada sobre o direito positivo.16
funcional;11 e que se proibisse a cumulação de E a legislação do Brasil, no nosso entendimento,
demandas submetidas a procedimentos diversos tem evoluído no sentido de um menor rigor e mais
se um deles tivesse competência determinada adaptabilidade das competências funcionais. Após as
funcionalmente.12 últimas reformas do CPC/1973, em dispositivo repetido
Porém, essa visão da inflexibilidade da e ampliado no CPC/2015 (art. 516, parágrafo único),17 a
competência funcional começa a mudar. Algumas competência funcional da execução foi flexibilizada: o
vozes, no estrangeiro, já questionaram se a autor pode escolher se ajuíza a execução no foro onde
inderrogabilidade da competência funcional não tramitou o processo de conhecimento, ou se opta pelo
deveria ser repensada.13 juízo onde o executado resida ou onde se localize a
maior parte de seus bens.18
Ademais, se a norma de competência funcional
pode ser até mesmo implícita ou extraída do Mas, apesar dessa tendência normativa, grande
ordenamento por atividade interpretativa,14 só seria parte da doutrina continua a categorizar a competência
funcional, em qualquer caso, como absoluta e já são flexíveis e estão submetidas à vontade das
inderrogável.19 partes.23
Em nosso sentir, deve-se mais e mais conjugar Sendo assim, e seguindo a lógica de que, toda
as regras do direito positivo com a principiologia do vez que uma opção procedimental negocial seja
sistema de competências, unindo garantias e eficiência oferecida pelo sistema processual a uma das partes,
na moldura permitida pelo juiz natural.20 Nesta toada, que essa opção também possa ser implementada por
não cabe mais falar em “competências funcionais meio de convenção, defendemos ser possível que a
inderrogáveis”. competência da execução24 seja definida por acordo
Se o ordenamento distribui competências tendo processual (prévio ou incidental).25
em vista uma divisão ótima de trabalho, a busca pelo Portanto, não é de se excluir, a priori, a
juízo natural impõe a análise da competência adequada possibilidade de que as partes disponham sobre a
para cada processo e para cada ato processual.21 competência recursal (competência funcional vertical)
Nesse sentido, toda competência é funcional; e só a por convenção ao argumento de que se trata de norma
interpretação e o manejo mais flexível e adaptável de competência fixada por critério funcional.
das competências poderão funcionalizá-la para atingir
os escopos de proteção dos direitos individuais e 3 Os acordos de ultrapassagem de instância
consecução do acesso à justiça, com a prestação da (competência recursal per saltum)
tutela jurisdicional eficiente e adequada.
Ultrapassada essa questão, cabe indagar se seria
Coerente com essa premissa, o exemplo da
cabível, por exemplo, um acordo pelo qual as partes
competência para o cumprimento de sentença,
convencionassem suprimir uma instância na cadeia
antigamente atrelada ao juízo do conhecimento, hoje
flexível e modificável pela vontade do exequente (art.
516, parágrafo único, do CPC),22 é importante porque
23 Essa também é a conclusão de Wagner para o ordenamento alemão,
mostra que algumas regras de competência funcional
tentando desconstruir, também por lá, a impressão de que todas as
regras de competência funcional seriam inderrogáveis. WAGNER,
Gerhard. Prozeßverträge: Privatautonomie im Verfahrensrecht.
Tübingen: Mohr Siebeck, 1998, p. 556 ss. Na página 568, afirma
“Somit hat sich der Satz, die funktionelle Zuständigkeit sei der
19 Parteidisposition generell entzogen [...] als unbegründet erwiesen”.
Por todos, WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso
(Tradução: “Por isso, a afirmação de que a competência funcional
avançado de processo civil. São Paulo: RT, 16. ed., 2016, p. 156-157;
seja retirada da disposição das partes provou-se infundada”, grifo
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual
no original.) Note-se que o § 349, alínea 3, da ZPO permite que
civil. São Paulo: Saraiva, vol. 2, tomo I, 2007, p. 15-16; ABELHA,
as partes acordem que, ao invés do órgão colegiado em matéria
Marcelo. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 6.
comercial, o presidente da câmara julgue por decisão unipessoal.
ed., 2016, p. 177 ss.
Trata-se de uma convenção para atribuição de competência a um
20 Assim sustentamos em nossa tese. CABRAL, Antonio do Passo. órgão monocrático. Dispõe a ZPO: § 349 (3): “Im Einverständnis
Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e der Parteien kann der Vorsitzende auch im Übrigen an Stelle der
coordenação de competências no processo civil. Universidade do Kammer entscheiden”. (Tradução: “Se as partes concordarem,
Estado do Rio de Janeiro: Tese apresentada como requisito para pode o presidente decidir em lugar da câmara”.)
Concurso Público de Professor Titular de Direito Processual Civil, 24 Não só da execução de título extrajudicial, onde já há acordo típico
2017, passim.
(art. 781, I, do CPC), mas também do cumprimento de sentença, a
21 Sobre a competência adequada, as capacidades institucionais e partir da flexibilização permitida pelo art. 516, parágrafo único, do
a competência ad actum, CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural CPC.
e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação 25 Heitor Sica, endossando entendimento do STJ, afirma que ao
de competências no processo civil. Universidade do Estado do
litigante (no caso não se fala em convenção, mas da opção do
Rio de Janeiro: Tese apresentada como requisito para Concurso
exequente) não é dado dirigir-se diretamente ao juízo de sua
Público de Professor Titular de Direito Processual Civil, 2017,
preferência, dentre aquelas alternativas legais. Seria necessário
cap. 5. Dinamarco, em sentido similar, fala numa “interligação
que primeiro se solicitasse tal “desaforamento” ao “juiz natural”
funcional” das regras de competência para a harmonia do sistema.
(que aqui se presume ser o juízo do processo de conhecimento).
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil.
SICA, Heitor Vitor Mendonça. Comentário ao art. 516. In: CABRAL,
São Paulo: Malheiros, vol. I, 8. ed., 2016, p. 612 ss.
Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código
22 ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Novo contencioso cível no de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2. ed., 2016, p. 810. Não
CPC/2015. São Paulo: RT, 2016, p. 356-357. Alguns autores já podemos concordar. Em havendo alternatividade, parece-nos
atentaram para a flexibilização da competência executiva, mas que não há um único juízo natural; este será aquele que as partes
continuam referindo-a como sendo absoluta e improrrogável. convencionarem ou que o exequente optar (submetida essa
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula escolha, evidentemente, ao controle da competência adequada).
Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual Equivocado, no ponto, o STJ – REsp 1119548/PR, rel. Min. Castro
civil. Salvador: JusPodivm, vol. 5, 6. ed., 2014, p. 222. Meira, j. 01/09/2009.
recursal. São os chamados acordos de ultrapassagem de 3.2 Possibilidade de recurso extraordinário per saltum.
instância. Inadmissibilidade de recurso especial contra decisão de
3.1 Impossibilidade de supressão da primeira instância primeira instância
com criação convencional de competência originária Mas nossa conclusão se inclina para outro
resultado quando os convenentes pretenderem
Caso se trate do primeiro grau de jurisdição,
suprimir uma instância intermédia na cadeia recursal,
se o acordo determinar que o processo deverá
isto é, estabelecer um recurso per saltum.
começar diretamente nos tribunais, pensamos que tal
convenção seria inválida, por vários motivos. A possibilidade existe no estrangeiro. Na
Argentina, admite-se recurso da sentença de primeiro
Primeiramente, as partes não poderiam iniciar o
grau diretamente para a Suprema Corte, desde que
processo em uma instância recursal porque o primeiro
respeitados certos pressupostos.27
grau de jurisdição — seja a primeira, seja a segunda
instância (nas hipóteses de competência originária dos Na França, as partes podem por acordo
tribunais) — é destinado à investigação fática primária, processual renunciar à instância de apelação (art. 41 do
em contato direto com as partes, algo que nos parece Code de Procédure Civile).
imprescindível no quadro do princípio do devido Em Portugal, admite-se que as partes acordem
processo legal. que o recurso de revista per saltum será direcionado
Por outro lado, as partes não poderiam criar diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça (art. 678
convencionalmente uma competência originária. De do CPC de 2013).28
fato, existem razões de administração judiciária para Na Itália, depois das alterações de 1990 no Codice
que as causas sejam atribuídas, no Brasil, a juízos di Procedura Civile em matéria de competência, as
singulares (monocráticos) na primeira instância. regras funcionais recursais também passaram a poder
Ao contrário das instâncias recursais, a primeira ser objeto de acordo processual. A lei italiana (arts. 339
instância não possui órgãos colegiados. No limite, e 360, segundo comma, do CPC) autoriza que as partes
se todas as causas, por acordo das partes, fossem convencionem um recurso à Corte de Cassação omisso
levadas aos tribunais em primeiro grau de jurisdição, medio, isto é, “saltando” uma potencial apelação.29 Por
provavelmente o sistema judiciário não daria vazão à esse motivo, a doutrina lembra que não é mais correto
enorme quantidade de processos. A convenção das dizer que não cabem acordos processuais para mudar
partes poderia impor custos (materiais e humanos) a competência funcional.30
excessivos ao Judiciário.26 Na Alemanha, o § 566 da ZPO prevê um recurso
Ademais, no direito processual brasileiro, as de revisão per saltum (Sprungrevision), utilizada para
hipóteses de competência originária dos tribunais, impugnar nos tribunais superiores decisões de primeiro
aquelas em que o primeiro grau de jurisdição ocorre grau de jurisdição no lugar da apelação (Berufung), e
na segunda instância, são visivelmente excepcionais, cuja admissibilidade pode ser definida pelo acordo dos
e por vezes decorrem de previsões taxativas (numerus litigantes de pular um grau de jurisdição. A doutrina
clausus) estabelecidas pela Constituição. invoca essa possibilidade como um exemplo de que
Por todas essas razões, uma convenção que
suprimisse a primeira instância não seria admissível.
27 OLIVEIRA, Pedro Miranda de. A flexibilização do procedimento e a
viabilidade do recurso extraordinário per saltum no CPC projetado.
In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil.
Salvador: JusPodivm, vol. III, 2014, p. 504.
28 A disposição não é nova, e já existia no art. 725 do Código de
Processo Civil de 1961.
29 RASCIO, Nicola. In tema di competenza funzionale. Rivista di Diritto
26 A questão, portanto, não nos parece girar em torno da
Processuale, 1993, p. 169.
constitucionalidade ou não de um procedimento em instância
única; tampouco na “obrigatoriedade” de uma dupla revisão. 30 RASCIO, Nicola. In tema di competenza funzionale. Rivista di
Divergimos da abordagem de OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Diritto Processuale, 1993, p. 149-150, 161-163, chamando atenção
Negócios processuais e o duplo grau de jurisdição. In: CABRAL, para que não há, no atual código italiano, a associação que havia
Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios no código anterior de 1865 entre “competência inderrogável” e
processuais. Salvador: JusPodivm, 2. ed., 2016, p. 571-573. “competência cognoscível de ofício”.
a competência funcional pode ser flexibilizada por próprio Judiciário. As partes, titulares da garantia do
convenção.31 juiz natural, devem poder também ter protagonismo
No Brasil, temos cláusula constitucional bem nessa definição.
específica para o cabimento de recurso especial para Note-se que a convenção das partes sobre
o STJ, destinado a impugnar decisão judicial em única a competência funcional recursal intermédia
ou última instância proferida por “tribunais” (art. 105, interfere na organização judiciária, mas não transfere
III). Por esse motivo, não seria possível que as partes, externalidades (custos) para o Judiciário.35 Wagner
por convenção processual, disciplinassem um recurso salientou este ponto, estabelecendo como princípio
especial per saltum, porque o recurso especial estaria que os acordos das partes que impactam a organização
sendo direcionado à decisão do juiz da primeira judiciária devem ser compreendidos como válidos
instância, e não contra uma decisão de um “tribunal”. e eficazes quando reduzirem os recursos (materiais
Porém, a mesma restrição não se encontra no e humanos) investidos pelo Judiciário na solução da
texto constitucional para o recurso extraordinário (art. causa,36 como é o caso da convenção para o recurso
102, III, da CR).32 Assim, inexistente o óbice textual, é extraordinário per saltum.
possível que haja recurso extraordinário per saltum Sob outro ângulo, não nos parece haver, no
convencionado pelas partes. sistema, uma clara intenção de reduzir o acesso ao STF
Não obstante, a doutrina se divide acerca pelo recurso extraordinário. Ao contrário de muitos
da possibilidade do recurso extraordinário per outros países, o Brasil é pródigo em abrir os caminhos
saltum. Julia Lipiani e Marília Siqueira argumentam à Corte Suprema, no que é clara comprovação a
contrariamente, afirmando: que se trata de regra de desumana — e sem termo de comparação mundial
organização judiciária, fora da disposição das partes; — quantidade de processos julgados pelo Supremo
que o recurso extraordinário, no sistema processual Tribunal Federal anualmente. O sistema processual
brasileiro, deve ser interposto apenas “em último brasileiro (reforçado pelo CPC/2015 no ponto)37 parece
caso”, de modo que a existência de instâncias inferiores favorecer o acesso ao STF.
serve para filtrar a chegada dos recursos ao STF, sem Por fim, não nos parece correto o argumento
o que o tribunal ficaria muito assoberbado; e que da desigualdade. Há um desvio de perspectiva em
um tal recurso esbarraria no princípio da igualdade, considerar que alguns seriam “beneficiados” pelo
porque alguns litigantes teriam mais vantagem que acesso convencional direto ao STF. Primeiro porque é
outros por acessarem mais rapidamente o STF.33 Não difícil afirmar que o STF seja um tribunal tecnicamente
concordamos com os argumentos. melhor que outros. Tal generalização, além de
Em outro trabalho, expusemos nossa ideia arriscada, seria de improvável senão impossível
sobre a possibilidade de flexibilização das regras de comprovação científica. Talvez tenham Lipiani e
organização judiciária, na esteira do que pretendemos Siqueira considerado, no tortuoso sistema recursal
ser um sistema de competências mais funcional e
adaptável.34 Se assim é, não seria razoável permitir que
35 A transferência de externalidades negativas a terceiros é um critério
tal flexibilização se desse apenas unilateralmente pelo
que sugere a invalidade da convenção. CABRAL, Antonio do Passo.
Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 328 ss.
36 WAGNER, Gerhard. Prozeßverträge: Privatautonomie im
31 WAGNER, Gerhard. Prozeßverträge: Privatautonomie im Verfahrensrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998, p. 570: “Auf
Verfahrensrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998, p. 563 ss. dieser Grundlage kann als allgemeines Prinzip formuliert werden,
32 daβ Parteidispositionen über die funktionelle Zuständigkeit
O próprio STF admite recurso extraordinário de decisões proferidas
anzuerkennen sind, soweit die Parteien damit nicht mehr
por turma recursal dos juizados especiais, embora não sejam
Justizressourcen für sich in Anspruch nehmen, als ihnen nach der
efetivamente “tribunais” (verbete 640 da Súmula do STF).
Legalordnung zustünde”. (Tradução: “A partir dessas premissas,
33 LIPIANI, Julia; SIQUEIRA, Marília. Negócios jurídicos processuais pode ser formulado como princípio geral que a disposição das
sobre a fase recursal. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, partes sobre a competência funcional deve ser reconhecida, a
Pedro Henrique Pedrosa. Negócios processuais. Salvador: menos que as partes reivindiquem para si mais recursos do sistema
JusPodivm, 2015, p. 471-472. de Justiça do que lhes seria garantido pelo ordenamento jurídico”.
34 Grifo do autor.)
CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual:
flexibilização, delegação e coordenação de competências no 37 De fato, combatendo a chamada “jurisprudência defensiva”
processo civil. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Tese dos tribunais superiores, o CPC/2015 procura sempre viabilizar
apresentada como requisito para Concurso Público de Professor a admissibilidade dos recursos excepcionais, reduzindo ou
Titular de Direito Processual Civil, 2017, p. 414 ss, 431-438. eliminando os obstáculos formais.
brasileiro, a longa estrada que se deva percorrer até Discordamos dos colegas. De um lado, já
o trânsito em julgado, e, nessa lógica, quanto mais mostramos que essa associação entre competência
rápido se chega ao STF, mais se aproxima do fim dos funcional e inderrogabilidade não é correta, e que
recursos, e “melhor”, portanto, seria a situação das existem regras funcionais de fixação de competência
partes. No entanto, imaginar que isso seja sempre flexíveis negocialmente. Além disso, o recurso per
uma vantagem também soa equivocado porque não saltum não seria propriamente uma convenção cujo
se sabe como o STF decidirá a matéria, nem quanto objeto seja o cabimento do recurso extraordinário. Ao
tempo demorará para decidi-la: chegar rapidamente revés, o cabimento permanece intocado pela norma
não significa obter rapidamente uma decisão ou obter convencional, e continua regrado totalmente pela
uma decisão de maior qualidade. Além disso, como Constituição. Vejamos o enunciado normativo:
comparativamente não se pode precisar quão perto
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,
estariam outros litigantes, em outros processos, do
precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-
trânsito em julgado, não há como dizer que aqueles lhe: [...]
que acessam o STF pelo recurso per saltum teriam uma
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as
“vantagem” em relação a todos os demais. É possível causas decididas em única ou última instância,
que o trânsito em julgado tenha sido anteriormente quando a decisão recorrida:
observado em muitos processos. Por tudo isso, não é a) contrariar dispositivo desta Constituição;
correto o argumento da desigualdade porque não se b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei
pode ter certeza acerca de qualquer “vantagem”. federal;
Por fim, é de lembrar que uma das funções c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado
precípuas das convenções processuais é tornar em face desta Constituição;
o procedimento mais adequado às necessidades d) julgar válida lei local contestada em face de lei
federal.
dos convenentes. Ora, se isso faz do procedimento
convencional algo “melhor”, e se essa “vantagem” Ora, observando o dispositivo constitucional,
gerasse desigualdade se comparado aquele a pergunta é: qual ponto da convenção disciplina
procedimento com o decorrente da incidência das diferentemente o cabimento dos recursos
normas legais, então todos os acordos processuais extraordinários? Nenhum. As partes apenas renunciam
deveriam ser compreendidos como inválidos por à apelação,39 tornando a decisão de primeira instância
levarem a um benefício específico para aqueles aquela de “última instância”. Assim fazendo, preenchem
acordantes que não é estabelecido em favor de o suporte fático já existente na Constituição, o que
todos os jurisdicionados. À evidência, o argumento abre a via do recurso extraordinário.40 O cabimento
não se sustenta: as partes que celebram um negócio fica intocado. Portanto, a convenção, em nosso sentir,
jurídico processual têm esse direito; e se o resultado é válida.
lhes beneficia é sinal de que atuaram com eficiência, Não obstante a validade da convenção, o recurso
utilizando legitimamente os instrumentos processuais extraordinário per saltum não transforma o recurso
que lhes convêm. extraordinário em uma apelação, tampouco altera
Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha a função do STF como corte de vértice, responsável
também negam a convencionalidade da ultrapassagem primordialmente pela atividade de guarda da
de instância por dois fundamentos. Primeiramente,
por tratar-se de competência funcional, que seria,
em seu modo de ver, absoluta e inderrogável. Em
39 As partes podem renunciar aos recursos, isso ninguém discute
segundo lugar, afirmam os autores que as partes (art. 999 do CPC). E afinal de contas, a cognição do recurso (que
estariam deliberando sobre o cabimento do recurso é voluntário) está submetida, em grande medida, à disposição
extraordinário, que seria matéria submetida à reserva e iniciativa das partes, que são responsáveis a delimitar a
extensão do efeito devolutivo. Nesse sentido, WAGNER, Gerhard.
de lei.38 Prozeßverträge: Privatautonomie im Verfahrensrecht. Tübingen:
Mohr Siebeck, 1998, p. 567-568.
40 É também o posicionamento de OLIVEIRA, Pedro Miranda de.
A flexibilização do procedimento e a viabilidade do recurso
38 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito extraordinário per saltum no CPC projetado. In: FREIRE, Alexandre
processual civil. Salvador: JusPodivm, vol. 3, 13. ed., 2016, p. 354- et al. (org.). Novas tendências do processo civil. Salvador: JusPodivm,
355. vol. III, 2014, p. 508-509.
Constituição e uniformizador da interpretação do ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Novo contencioso cível
direito. no CPC/2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
Os requisitos e características do recurso
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A expressão
extraordinário se mantêm: por exemplo, só podem
“competência funcional” no art. 2º da Lei da Ação Civil
ser veiculadas questões de direito, não sendo possível
Pública. In: MILARÉ, Édis (coord.). A ação civil pública
atribuir às instâncias excepcionais a apreciação de
após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista
fatos;41 exige-se demonstração de repercussão geral,
dos Tribunais, 2005.
prequestionamento etc.42
Também não se pode suprimir o exame da BETTI, Emilio. Diritto processuale civile. 2. ed. Roma: Il
admissibilidade do recurso na origem. A diferença Foro Italiano, 1936.
é que o primeiro juízo de admissibilidade do recurso
BOCHENEK, Antônio César. Competência cível da Justiça
extraordinário convencionado será realizado pelo
Federal e dos juizados especiais cíveis. São Paulo: Revista
juízo de primeira instância, tal como se entende na
dos Tribunais, 2004.
jurisprudência para o recurso extraordinário contra
decisão do juiz de primeiro grau em embargos BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de
infringentes na execução fiscal de valor inferior a 50 direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, t. 1.
ORTNs.43 A hipótese foi sumulada pelo STF (verbete
640). CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais.
Salvador: JusPodivm, 2016.
4 Conclusão
CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência
As breves linhas aqui expostas têm como processual: flexibilização, delegação e coordenação
objetivo lançar mais uma reflexão ao já pujante de competências no processo civil. Tese apresentada
debate sobre as convenções processuais em matéria como requisito para Concurso Público de Professor
recursal, especificamente em relação aos acordos para Titular de Direito Processual Civil – Universidade do
ultrapassagem de instância. Estado do Rio de Janeiro, 2017.
O resultado da pesquisa demonstra que, embora
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 16.
exista óbice à supressão da primeira instância, o
ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
mesmo não se observa para as instâncias intermédias.
É preciso, porém, mirar o direito positivo. CARNELUTTI, Francesco. Competenza interna e
No sistema brasileiro, ao contrário de outros competenza per delegazione. Rivista di Diritto
países, não é possível interpor recursos especiais, para Processuale Civile, v. 11, pt. 1, 1934.
o STJ, saltando a instância de apelação. Todavia, como
não há óbice normativo, é possível a interposição de CHIOVENDA, Giuseppe. Cosa giudicata e competenza.
recurso extraordinário per saltum. In: CHIOVENDA, Giuseppe. Saggi di diritto processuale
civile. Milano: Giuffrè, 1993. v. 2.
5 Referências CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di diritto processuale.
ABELHA, Marcelo. Manual de direito processual civil. 6. Napoli: Jovene, 1969.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 18.
ed. Salvador: JusPodivm, 2016. v. 1.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios
processual civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. v. 1. processuais. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: OLIVEIRA, Pedro Miranda de. A flexibilização do
Forense, 2001. procedimento e a viabilidade do recurso extraordinário
per saltum no CPC projetado. In: FREIRE, Alexandre et
GAITO, Alfredo. Difetto di attribuzione e giudice al. (org.). Novas tendências do processo civil. Salvador:
naturale. Rivista di Diritto Processuale, v. 55, n. 3, p. 665- JusPodivm, 2014. v. 3.
694, iuglio/sett. 2000.
RASCIO, Nicola. In tema di competenza funzionale.
GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil. 5. ed. Rio Rivista di Diritto Processuale, ano 48, n. 1, p. 136-174,
de Janeiro: Forense, 2015. v. 1. 1993.
LATELLA, Maria Teresa. Conflitto virtuale di competenza SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito
(una rilettura delle norme tra passato, presente e processual civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1.
futuro). Rivista di Diritto Processuale, Padova, ano 51, n. 1,
744-769, 1996. SATTA, Salvatore; PUNZI, Carmine. Diritto processuale
civile. 13. ed. Padova: Cedam, 2000.
LIPIANI, Julia; SIQUEIRA, Marília. Negócios jurídicos
processuais sobre a fase recursal. In: CABRAL, Antonio SCHÖNKE, Adolf. Lehrbuch des Zivilprozessrechts. 7. ed.
do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Karlsruhe: C.F.Müller, 1951.
Negócios processuais. Salvador: JusPodivm, 2015.
SICA, Heitor Vitor Mendonça. Comentário ao art. 516.
MALACHINI, Edson Ribas. A “perpetuatio iurisdictionis” In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo.
e o desmembramento de comarca. Revista de Processo, Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. Rio
ano 12, n. 47, jul./set. 1987. de Janeiro: Forense, 2016.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; TARZIA, Giuseppe. Connessione di cause e processo
MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. São Paulo: simultaneo. In: Pregiudizialità e connessione nel processo
Revista dos Tribunais, 2015. v. 2. civile: Atti del XVIº Convegno Nazionale dell’Associazione
Italiana fra gli Studiosi del Processo Civile. Rimini:
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito Maggioli, 1989.
processual civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. v. 1.
WACH, Adolf. Handbuch des Deutschen
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual Civilprozessrechts. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885.
civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974. v. 1. v. 1.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência WAGNER, Gerhard. Prozeßverträge: Privatautonomie im
cível da Justiça Federal. São Paulo: Saraiva, 1998. Verfahrensrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998.
MERLIN, Elena. Connessione di cause e pluralità dei WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso
“riti” nel nuovo art. 40 c.p.c. Rivista di Diritto Processuale, avançado de processo civil. 16. ed. São Paulo: Revista
ano 48, n. 1, p. 1021-1029, 1993. dos Tribunais, 2016.
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Competência:
distribuição por dependência. Revista de Processo, ano
5, v. 19, jul./set. 1980.