Fichamento 8 - Priscila
Fichamento 8 - Priscila
Fichamento 8 - Priscila
Referência: QUINET, Antonio, Teoria e clínica da psicose, 5.ed., Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2011. P 16-31
“Não é louco quem quer”. Este enunciado, que pode ser lido como “Só é louco
quem pode”, prenuncia o que será a postura de Lacan – eminentemente freudiana
– diante da loucura: abordar a psicose como algo específico e determinado, que
tem sua lógica e seu rigor, e não como um estado de espírito que qualquer um
pode apresentar. Trata-se de considerar a psicose como uma estrutura clínica
diferente da neurose. É justamente a referência ao Édipo o divisor de águas entre
o campo das neuroses e o campo das psicoses.
Falar da psicose ao invés das psicoses é acentuar a psicose como uma estrutura
clínica, uma estrutura que se revela no dizer do sujeito e que corresponde a um
modo particular de articulação dos registros do real, simbólico e imaginário. É
também acentuar que na psicose, assim como na neurose, trata-se da estrutura da
linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.
Segundo Freud, a diferença entre paranoia e obsessão encontra-se no fato de que
na paranoia as recriminações são projetadas no mundo exterior, e na obsessão elas
se mantêm no mundo interior.
Numa carta a Fliess, ele introduz a noção de um ponto de fixação no
desenvolvimento libidinal que, no caso da paranoia, é o autoerotismo. Esta é então
considerada como uma impulsão da corrente autoerótica, um retorno à situação
antiga.
Neste processo, a paranoia desfaz as identificações, restabelecendo as pessoas que
se amou na infância, e cinde o eu em diversas pessoas estrangeiras. Esse
despedaçamento do plano imaginário põe a nu as identificações em jogo na
composição do eu e poderia explicar os misteriosos casos de personalidades
múltiplas em que diversas identificações procuram apoderar-se sucessivamente da
consciência.
Em relação à paranoia, a frustração é a não satisfação de uma pulsão homossexual,
a fixação libidinal está no estado do narcisismo e a regressão se dá a esse ponto
de fixação do narcisismo.
O mecanismo de projeção não é específico da paranoia e pode ser encontrado na
neurose e na vida cotidiana. Mas se insiste no mecanismo de projeção na paranoia
é justamente porque é um mecanismo que depende essencialmente do narcisismo
e, portanto, do registro imaginário.
O narcisismo e os fenômenos imaginários decorrentes dão forma à alienação
psicótica mas não a sua dinâmica. Trata-se de uma descrição fenomenológica,
podendo ser encontrada em outras estruturas.
O sentimento de perseguição não é privilégio dos psicóticos. Os fenômenos
imaginários desencadeados pelas drogas, projetando todo um mundo fantasioso,
mostram que qualquer pessoa pode ter fenômenos imaginários equivalentes aos
que ocorrem nos psicóticos.
Freud, ao descrever a formação do delírio a partir do mecanismo de projeção,
conclui afirmando que não estava certo dizer que o sentimento recalcado dentro
tinha sido projetado para fora e sim que o que foi abolido dentro volta do lado de
fora.
Lacan vai retomar esta frase mostrando que o que é foracluído no simbólico
retorna no real. É baseado nessa abolição de algo que Lacan propõe a foraclusão
como mecanismo específico da psicose, mas não a foraclusão de qualquer coisa.
Trata-se de um mecanismo que, assim como o recalque (Verdrängung) para o
neurótico e o desmentido (Verleugnung) para o perverso, diz respeito ao Édipo.
O que vai fazer toda a diferença entre a neurose e a psicose é o fato de que na
psicose um fragmento da realidade rejeitada retorna sem parar, para forçar a
abertura na vida psíquica.
A proposta conceitual de Lacan é a de considerar a foraclusão do Nome-do-Pai
como o mecanismo específico da psicose levando-nos de imediato a duas
considerações: a primeira é que o retorno do foracluído (e mesmo do desmentido)
não é a mesma coisa que o retorno do recalcado. Lacan segue Freud mantendo
distintos e não intercambiáveis os dois campos, o da neurose e o da psicose. Em
segundo lugar, recoloca-se no cerne da teoria psicanalítica das psicoses a
referência ao Édipo até então restrita aos mecanismos de defesa do eu, cuja mola
são o narcisismo e os fenômenos imaginários decorrentes.
A referência ao Édipo reinstaura a clínica da estrutura do sujeito equivalente à
estrutura da linguagem, na medida em que o Édipo é a armadura significante
mínima que condiciona a entrada do sujeito no mundo simbólico. E é a partir da
ordem simbólica que se deve pensar a questão da psicose. Lacan nos indica que é
justamente porque o homem deve atravessar a floresta dos significantes para
retomar aí os seus objetos instintivamente primitivos e válidos que temos de lidar
com a dialética do complexo de Édipo.
O que é significante para Lacan e qual a sua relação com o sujeito? Para Saussure,
o signo linguístico decompõe-se em significado (o conceito) e em significante (a
imagem acústica de uma palavra): s/S. Lacan inverte essa relação
significado/significante, passando o significante a anteceder o significado, como
a própria experiência analítica o demostra. Sendo a análise uma experiência de
significação, trata-se para o sujeito de atribuir significados aos significantes que
o marcaram em sua história.
Do ponto de vista psicanalítico, o significante não está colado a um significado,
como aparece no dicionário. Ao contrário, há uma separação radical entre
significante e significado, que é assinalada pela barra que os separa (S/s), barreira
resistente à significação que pode ser identificada ao próprio recalque.
A análise de Freud sobre as formações do inconsciente (lapsos, sonhos e jogos de
palavras) levou Lacan a formular que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem. Mas para que o homem possa atribuir significação aos seus
significantes e, portanto, à sua existência, é preciso que ele faça sua entrada no
simbólico, já que a função simbólica constitui um universo no interior do qual
tudo o que é humano pode ordenar-se.
O Édipo é a nossa forma épica de nos referirmos ao inconsciente, é a ficção do
nosso comprometimento simbólico. Freud desvela que a função imaginária do
falo é o pivô do processo simbólico, que arremata nos dois sexos a questão própria
do sexo: o complexo de castração.
No primeiro tempo lógico do Édipo, a criança é identificada ao objeto de desejo
da mãe.
Nesse mesmo tempo do Édipo, encontra-se o que Lacan formulou como o estádio
do espelho: Trata-se da constituição do eu como imagem antecipada onde se
encontram unificadas as pulsões autoeróticas que cortam o corpo em figuras que
encontramos na clínica como imagens do corpo despedaçado. A unidade do corpo
é prefigurada pela imagem do outro ou pela imagem do espelho.
A formação do eu através da imagem do outro, do seu duplo especular, dá à
subjetividade sua característica bipolar, atribuindo ao eu a particularidade de ser
essencialmente paranoico, pois um eu nunca está só, estando sempre
acompanhado de seu duplo especular, o eu-ideal. O investimento próprio desse
estádio do espelho foi chamado por Freud de narcisismo primário.
O segundo tempo lógico do Édipo corresponde à inauguração da simbolização.
O Nome-do-Pai é o pai enquanto função simbólica, é o pai simbólico, que vem
metaforizar o lugar de ausência da mãe; é o significante que faz a mãe ser
simbolizada. Se, no primeiro tempo lógico do Édipo o Outro é a mãe, o Nome-
do-Pai é o que vem barrar o Outro onipotente e absoluto, inaugurando a entrada
da criança na ordem simbólica.
Trata-se nesse tempo do Édipo da castração simbólica. A intervenção do Nome-
do-Pai no Outro faz com que a identificação da criança com o falo da mãe seja
destruída, ou, pelo menos, recalcada. O falo como objeto imaginário do Desejo da
Mãe passa para o nível significante do desejo do Outro. Inscreve-se aí a castração
no Outro, constituindo-se o inconsciente como barrado ao sujeito.
A inclusão do significante do Nome-do-Pai no Outro marca, portanto, a entrada
do sujeito na ordem simbólica e permite a inauguração da cadeia do significante
no inconsciente, implicando as questões do sexo e da existência, questões
fechadas ao sujeito neurótico.
Têm-se, portanto, duas definições do Outro: o Outro como lugar do significante,
do código, e o Outro como lugar da lei, implicando a inclusão do significante
privilegiado que é o Nome-do-Pai.
O Édipo é o preço que se paga para advir como sujeito da linguagem que é,
portanto, condenado a lidar com a falta, com a castração simbólica e com o
recalque, impedindo que a verdade do sujeito jamais possa ser dita por inteiro.
Não pagar esse preço do comprometimento simbólico equivale à báscula para o
campo das psicoses. O homem como ser falante não pode deixar de lidar com o
universo simbólico, e é na relação com o significante que se situa o drama da
loucura. É nesse registro que se coloca para Lacan a condição essencial da psicose:
a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna.
Foraclusão é um neologismo que se utiliza em português para designar que não
há inclusão, que o significante da lei está fora do circuito, sem deixar, no entanto,
de existir, pois o que está foracluído do simbólico retorna no real.
Dado que o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, a
foraclusão do Nomedo-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei
simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante.
Sendo o Nome-do-Pai o significante que permite ao sujeito entrar na linguagem e
aí articular sua cadeia de significantes, a não inscrição desse significante no Outro
acarreta aquilo que é para Lacan a marca essencial da psicose: os distúrbios da
linguagem e, em particular, a alucinação.
Podemos deduzir a partir do ensino de Lacan que aquilo que especifica a
alucinação psicótica é o fato de ela ser verbal. Trata-se, pois, da alucinação do
verbo e não de um distúrbio ligado aos órgãos do sentido como sua classificação
parece sugerir: alucinações auditivas, visuais, táteis etc. A alucinação verbal não
é redutível a um órgão do sentido.
Lacan propõe em “De uma questão preliminar...” examinar a questão da
alucinação na psicose a partir da distinção entre os fenômenos de código e os
fenômenos da mensagem.
Dentre os fenômenos de código encontram-se: 1) Os neologismos – não apenas
de forma, palavras novas, mas também de emprego, isto é, palavras do código
empregadas de forma particular; 2) Fenômenos em que o vazio da significação
predomina, ou seja, em que o significante aparece monotonamente sem sentido
algum; 3) A intuição – que é um efeito de significante em que o vazio linguístico
da significação é substituído por uma certeza.
Os fenômenos de código testemunham a separação radical entre o significante e
o significado por falta do ponto-de-basta, o Nome-do-Pai.
Dentre os fenômenos de mensagem, Lacan destaca as mensagens interrompidas
que revelam a quebra de cadeias significantes.
O Outro no neurótico é “mudo”, seu discurso não atravessa o muro da linguagem,
a não ser pelas formações do inconsciente. Na psicose, o Outro fala, aparece às
claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror, pânico, exaltação. Isso
faz com que o psicótico, diferente do neurótico que habita a linguagem, seja
habitado, possuído pela linguagem.
A inclusão do significante da castração no Outro fá-lo calar-se. Mas faz também
com que este Outro seja inconsciente. O Outro para o neurótico é inconsciente,
pois é barrado pelo significante da castração, contendo, portanto, uma falta. O
Outro falta para o neurótico, falta por ele ser inconsistente. Já para os psicóticos,
o Outro não é barrado, é consistente.
O Outro do psicótico, por carecer do significante da lei, é um Outro absoluto ao
qual o sujeito está submetido. Se o Outro, tanto para o neurótico como para o
psicótico, é o tesouro de significantes, o que faz a diferença entre eles é que para
o psicótico não há no Outro a inscrição da lei.
A posição estrutural do sujeito na psicose é a de ser o objeto do gozo do Outro,
objeto de uso do Outro, este Outro absoluto que reproduz o primeiro tempo lógico
do Édipo. O Outro do psicótico, por não conter a lei, apresenta-se justamente
como essa figura que dele goza como de um objeto que lhe pertence.
Por falta de referência simbólica o sujeito psicótico funciona no registro
imaginário, onde o outro é tomado como espelho e modelo de identificação
imediata. Disto decorrem os fenômenos de transitivismo, projeção, rivalidade,
onde identificação e erotização se confundem.
O psicótico encontra-se muitas vezes, antes de um primeiro surto, numa relação
dual com o duplo imaginário, por vezes a própria mãe, formando o eixo eu-outro
do estádio do espelho.
Por falta do significante do Nome-do-Pai que condiciona a virilidade, o psicótico
do sexo masculino encontra a compensação desta carência numa série de
identificações com personagens que lhe dão a impressão do que deve fazer para
ser um homem.
O sujeito psicótico é, pois, levado a servir-se de “bengalas” imaginárias que não
lhe dão apoio quando ele tropeça no buraco da significação ausente. Pré-psicose
é o sentimento que deve ser tomado ao pé da letra, diz Lacan, de que o sujeito
chegou à beira do buraco.
Por não ter acesso ao significante que lhe permitiria situar-se como homem na
repartição dos sexos e por dever ser falo, o psicótico é levado a situar-se do lado
da mulher. Isto é o que Lacan caracterizou como o “efeito empuxo-à-mulher” da
psicose. 22 Schreber, enquanto objeto do gozo do Outro, reproduz de forma
analógica o bebê identificado com o falo, com o objeto de desejo da Mãe. Trata-
se de mera analogia, insisto, porque na psicose não há processo de Édipo. Na
situação de trazer para si a posição do falo, isto é, do significante que atribuiu a
significação, Schreber constrói o mundo por intermédio dessa teodiceia delirante
onde ele é o centro de toda significação. Isto nos permite apreender o caráter
megalomaníaco da psicose: o sujeito se identifica com o significante que atribui
todas as significações aos significantes.