SOBREIRA - From & Servant (versão final)
SOBREIRA - From & Servant (versão final)
SOBREIRA - From & Servant (versão final)
SUMÁRIO
7 INTRODUÇÃO
Na Raiz de Todos os Males: Terror Doméstico no Século XXI
José Duarte e Sanio Santos da Silva
19 PARTE I
“The Things We Do [...] Are Ugly, Mad, Full of Sweat and Regret”
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Servant
Servant é uma série americana do canal Apple TV+, criada por Tony Basgal-
lop e produzida por M. Night Shyamalan. A atração, que conta atualmente
com três temporadas, foi lançada em 2019. A premissa da produção é com-
plexa: uma jornalista de Filadélfia, Dorothy Turner (Lauren Ambrose), sofre
um surto psicótico quando o seu filho recém-nascido, Jericho, morre de hi-
pertermia ao ser esquecido durante horas num automóvel. Na ocasião, o pai
da criança, Sean Turner (Toby Kebbell), está a trabalhar numa competição
culinária do outro lado do país. O irmão mais novo de Dorothy, Julian (Ru-
pert Grint), durante uma visita, encontra o bebé morto há alguns dias e a sua
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Salvo quando indicado nas referências, todas as traduções livres utilizadas neste capítulo são de
nossa autoria.
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and style are projections of our identities” (Miller e Van Riper 1-2). É por
meio das nossas casas, também, que nos revelamos ao mundo, à medida que
esses espaços não são apenas os nossos lares, mas são o que nos tornam quem
somos. Assim, a “localização, forma e estilo [da casa] são projeções das nossas
identidades” (Miller e Van Riper 3).
Casas são também associadas simbolicamente à interioridade do eu, e os
seus diversos espaços ‒ desde a cave até ao sótão ‒ correspondem a diferentes
estados emocionais. Estudos na área de psicanálise, por exemplo, associam a
cave ao inconsciente e o sótão à elevação espiritual. A cozinha como um sítio
onde os alimentos são preparados, “pode significar o lugar ou o momento de
transformação psíquica, em certo sentido alquímico” (Cirlot 141). Em Ser-
vant, este espaço pertence ao chefe Sean Turner. Ele é talvez a personagem
que mais se transforma ao longo da série. Inicialmente sarcástico e materia-
lista, o Sr. Turner torna-se aos poucos mais compassivo e espiritualizado.
Além disso, muitas vezes compreende-se também o espaço da moradia como
um símbolo feminino por este ser um santuário e por representar a mãe, a
proteção, ou o útero (Chevalier e Gheerbrant 531; Cirlot 141-2). Estes signi-
ficados ancestrais da casa como um símbolo feminino de maternidade são
intensificados em Servant.
Além de funcionar como esse ponto de convergência que “ancora” as per-
sonagens em torno da trama, a casa também é repleta de detalhes soturnos
que contribuem para a atmosfera mórbida da série. Com o passar dos episó-
dios, descobrimos novas divisões, passagens secretas, paredes falsas e até um
sótão sinistro. Em oposição à sua fachada neoclássica, a casa conta com uma
adega subterrânea que lembra uma espécie de cave gótica, onde a família de
Dorothy estoca há gerações uma impressionante coleção de vinhos raros.
Nas suas criações, M. Night Shyamalan tende a incorporar referências a
outras formas de arte, nomeadamente o estilo gótico, para intensificar o efeito
de terror (Mangan 1). Desde há séculos que “o tema do lar ameaçado (ou
ameaçador) perpassa o gótico e o cinema de terror até chegar aos nossos dias”
(Miller e Van Riper 3). Tradicionalmente originário dos movimentos protor-
românticos alemães e do romance inglês do final do século XVIII, o estilo
gótico notabilizou-se por expandir o território da mimese ficcional para uni-
versos imaginários que se encontram muito além do senso comum e do equi-
líbrio clássico. Dessa forma, o conceito do sobrenatural é radicado num
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Um estudo recente criticou a forma como a área da psiquiatria e doenças mentais sérias são re-
tratadas nos filmes realizados por M. Night Shyamalan como, por exemplo, os longas-metragens
Split (2016) e, em especial, Glass (2019) (Sheen, Chung e Ferrara 579-80). Vale a pena considerar
que são obras de ficção e que todos os pacientes e terapeutas representados são seres meramente
ficcionais.
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all the products of our own inner worlds, expressing either our anx-
ieties about what lies on the other side of our protective domestic
walls, or the turmoil of unacknowledged emotions, our personal
demons clawing their way out. (Miller e Van Riper 4)
Parece haver nas séries recentes uma tendência a incorporar esses fossos
como alegorias ou motivos narrativos. Em Stranger Things (2016), criada
pelos The Duffer Brothers e produzida pela Netflix, alguns miúdos dos anos
1980 exploram os mistérios do mundo invertido através de fendas interdi-
mensionais abertas em certos pontos de uma cidadezinha. Na produção alemã
Dark (2017-2020), de Baran bo Odar e Jantje Friese, emitida pela mesma pla-
taforma de streaming, um buraco escavado no fundo de uma caverna liga as
personagens às mais discrepantes temporalidades e dimensões. Na série La
Brea (2021), de David Appelbaum, emitida pela NBC, uma imensa cratera
surge em Los Angeles. Centenas de moradores tragados por esse estranho bu-
raco são imediatamente transportados no tempo para o ano 10.000 a.C. Na
produção americana Outer Range ‒ criada por Brian Watkins e estrelada por
Josh Brolin ‒ que estreou em 2022 na Amazon Prime Video, há também um
misterioso fosso. O fenómeno surge num rancho do Wyoming e reedita os
sentidos simbólicos tradicionais do buraco ao possibilitar viagens no tempo
e conexões interdimensionais, o que dá margem para que as personagens pon-
derem sobre os significados metafísicos dessa anomalia geológica.
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From
A série From, do canal de televisão a cabo Epix, foi criada por John Griffin.
Como mencionamos na introdução, esta atração é produzida por Jack Bender
e Jeff Pinkner, que estiveram envolvidos anteriormente em Lost. O elenco
também conta com o ator Harold Perrineau que, no passado, atuou na refe-
rida série.
Na sua primeira temporada, From acompanha as desventuras de Tabitha
(Catalina Sandino Moreno) e Jim Matthews (Eion Bailey), um casal que, ao
fazer o derradeiro passeio antes do divórcio, chega a uma pequena localidade
da qual não consegue mais sair. Por mais que tente partir, o veículo da família
sempre volta, inexplicavelmente, ao mesmo sítio como se se movesse sobre
uma inescapável estrada em forma de faixa de Möbius. O estranho título pre-
posicional da série indica justamente que, neste local bizarro, há apenas
“from” (“de”) e nunca “to” (“a”) (Jeffries 1). Em outras palavras, a família Matt-
hews sempre volta ao ponto inicial pois não há mais como se deslocar até à
sua destinação.
Além dessa situação estranha, a cidade ‒ apesar de ser quase um locus
amoenus horaciano rodeado de verde ‒ é visitada no fim da tarde por dezenas
de demónios metamórficos sedentos de sangue. Essas criaturas parecem exer-
cer um fascínio hipnótico sobre quem se deixa levar por suas ilusões. Con-
quistada a confiança de um morador, esses demónios atacam qualquer
residente que lhes faculte o acesso à casa ou não respeite o toque de recolher
instituído após o pôr do sol. Embora se passem por humanos quando estão
do lado de fora das casas, ao adentrarem, esses seres revelam-se monstros
com dentes enormes que devoram as pessoas.
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nada que Tabitha possa fazer para recuperar o controlo sobre a jovem. Mas,
logo de início, a menina Matthews arrepende-se de não ter escolhido morar
com a sua família. Os moradores da Casa Colonial não têm respeito pela pri-
vacidade, nem pelos pertences da nova moradora, passando a compartilhar
as suas roupas sem a sua permissão. Além disso, apesar de obedecerem aos
toques de recolher, costumam ter comportamentos que colocam em risco a
segurança da casa. Por exemplo, Kevin, um dos residentes, começa a desen-
volver, a partir do episódio 6, um relacionamento com um dos demónios que
assume a forma de uma jovem atraente. Julie também se dá conta de que a
casa é governada com firmeza por Donna (Elizabeth Saunders), uma senhora
mais controladora do que Tabitha.
A família Matthews ‒ vórtice emocional da série ‒ é acomodada numa
casa que, conforme mencionamos na introdução, foi recentemente desocu-
pada pelos antigos moradores após uma tragédia. Na noite anterior à chegada
dos Matthews, o pai passou a noite a beber no bar e não retornou ao seu do-
micílio. Um demónio, metamorfoseado numa pobre velhota solitária em
busca de refúgio, conseguiu convencer a filha do casal a abrir-lhe a janela.
Uma vez do lado de dentro da residência, o monstro eviscerou a criança e a
mãe. Quando os Matthews chegam à nova moradia, uma das acomodações
ainda está repleta de sangue e vísceras das vítimas. Isto causa calafrios nos
novos moradores, pois também perderam uma criança há pouco tempo e
veem essa cena bárbara como um presságio do que lhes pode passar caso
ajam com negligência. Neste sentido, a série subverte o significado tradicional
atribuído à casa como um sítio de proteção e de refúgio. Pelo contrário, a
nova casa amedronta a família em vez de a acolher.
A nova casa dos Matthews é uma construção antiga cuja fachada e as pa-
redes são revestidas com painéis de madeira desgastados pelo tempo. A pin-
tura descascada e com manchas de humidade é um sinal de que o sítio foi
muito maltratado pelas intempéries. O gramado não é aparado há muito
tempo e o pátio das traseiras é próximo a um bosque misterioso. Apesar de
se encontrar numa região cheia de florestas e de belezas naturais, todo o po-
voado traz marcas de degradação e de abandono. Os espaços internos da casa
dos Matthews são repletos de móveis envelhecidos e não há muito que fazer
durante os confinamentos forçados. Os Matthews tentam, da melhor maneira
possível, ambientar-se ao novo lar e, sobretudo, à nova situação. Tabitha e
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tante preocupação com a segurança dos filhos e com o seu próprio bem-estar
obriga-os a voltar a confiar um no outro. Antes de virem parar nesse sítio
sem saída, eles haviam perdido o filho mais novo. A perda fora tão devasta-
dora para a família que os pais não conseguiam mais manter o casamento. A
relação dos dois deteriorou-se de modo similar ao processo de desgaste pre-
sente nas estruturas do espaço domiciliar ao qual estão fatalmente presos.
A personagem de Jim foge um pouco aos chavões hollywoodianos dos úl-
timos anos que tendem a caracterizar a figura do pai branco heterossexual
como um indivíduo rude, imprestável e/ou violento. Ele não se enquadra
nesta fórmula reiterada em inúmeras produções recentes. Pelo contrário, Jim
tenta fornecer suporte material e emocional aos seus familiares enquanto uti-
liza os seus conhecimentos de engenharia para tentar descobrir uma saída
do local. A única tentativa em anos de escapar desse pesadelo surge justa-
mente pela sua iniciativa. Ele age como um detetive informal, mas obstinado
em compreender as mortes causadas pelos seres demoníacos. Como fica
claro, além das vinculações com diferentes estilos de ficção científica, há seg-
mentos da série que evocam um procedural drama como True Detective
(2014), de Nick Pizzolato, além de subgéneros romanescos bem mais tradi-
cionais como o romance policial (Reis 440-3; 464-7; 477-8).
Tabitha também não se pode dar ao luxo de abater-se por muito tempo e
começa a investigar a casa para tentar achar uma saída. De algum modo, ela
parece pressentir que sua nova residência esconde a solução para lidar com o
mal que todas as noites vem implorar entrada no seu lar. Quando Jim desco-
bre, ao desencapar o cabo elétrico de um candeeiro, que ele não contém os
filamentos metálicos condutores de eletricidade, Tabitha fica intrigada. Se não
há corrente a passar pelos fios, de onde vem a energia que alimenta as lâm-
padas e os equipamentos elétricos da casa? Dessa forma, ela decide dar início,
a partir do episódio 7, a uma escavação na cave para investigar a origem sub-
terrânea dessa fonte de eletricidade misteriosa. Após vários dias devotados a,
literalmente, aprofundar-se nos mistérios desse sítio tão fantástico, Tabitha e
Julie abrem um buraco imenso na cave para desenterrar os cabos elétricos da
residência. A atitude de cavar parece nascida de um desespero psicológico in-
tenso para buscar uma saída. Ao contrário do buraco húmido na cave dos
Turners de Servant, as personagens de From revolvem uma terra árida que
corresponde à situação desoladora à qual se acham presas. Em pouco tempo,
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este fosso desmorona e rompe o limite de uma dimensão muito mais miste-
riosa que condiz com a simbologia tradicionalmente atribuída ao buraco e
que tem sido explorada, ultimamente, por várias produções audiovisuais.
Como vimos anteriormente, essas cavidades possuem sentidos simbólicos
não apenas imanentes, mas também transcendentais, pois representam o li-
miar do interno para o externo e para o Além (Chevalier e Gheerbrant 509).
Enquanto as mulheres da família escavam as profundezas da cave da casa,
o pai toma a iniciativa de buscar respostas a partir do alto. Jim pede ajuda
aos residentes da aldeia para construir uma antena de rádio no topo da Casa
Colonial. Ele espera poder comunicar-se com o mundo exterior e solicitar
um resgate. Para levar a eletricidade ao cimo da torre, Jim utiliza os cabos
elétricos da casa que transmitem uma energia ilógica e de origem incerta.
Mas, como vemos no desenrolar do episódio seguinte, tanto o alto quanto o
baixo estão interligados nesse universo ficcional de pesadelo. Ao finalmente
conseguir captar uma sintonia de rádio, ouve-se uma voz que chama Jim pelo
seu nome e avisa-lhe de que Tabitha não deveria estar a cavar. No fim da tem-
porada, Jim corre ao encontro da sua família para alertar a sua esposa sobre
o terrível perigo que se esconde no fundo da residência dos Matthews.
No entanto, já é tarde demais. O buraco na cave vem abaixo e Tabitha pa-
rece atravessar para outra dimensão. Ela inesperadamente cai numa caverna
subterrânea cujas paredes estão repletas de gravuras emblemáticas: símbolos
como os que foram sugeridos em sonho a Jade, além de uma torre e de figuras
humanas num barco (Sagers 1). O buraco na cave da casa não apenas liga Ta-
bitha a outra dimensão, mas também proporciona a revelação repentina da
presença insólita de Victor. Ao longo da temporada, ele parece ter encontrado
portais de teletransporte interdimensional. Tabitha, desnorteada e incrédula,
tenta entender a sua nova condição espaciotemporal. Victor, que parece saber
muito mais dos mistérios dessa comunidade do que está disposto a revelar,
apenas lhe avisa que o subsolo é onde os monstros dormem.
Esta situação não faz muito sentido e o episódio abre novas possibilidades
indeterminadas que, como é típico dessas produções, somente serão explo-
radas nas próximas temporadas. Como vimos, tanto a nova casa da família
Matthews, como a antiga residência dos Turners de Servant, narrativamente
instauram zonas indeterminadas. Na próxima secção, dedicamo-nos a inves-
tigar algumas dessas questões.
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Indeterminação
Did Leanne conjure this human baby using some sort of witchcraft?
(In addition to praying regularly, she also seems to have placed that
aforementioned Blair Witch–esque object [cruz confecionada em
palha] over the crib.) Or did she steal this child? How will the Turn-
ers introduce this baby to others, having supposedly lost theirs? Is
it possible that everyone in this show has been dead the whole
time? Look, this is an M. Night Shyamalan [realizador de The Sixth
Sense (1999)] project, so it’s possible. (Chaney 1)
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The indeterminacy is what does not settle; what settles takes a place,
and indeterminacy never takes a place. The uncertainty of indeter-
minacy is linked with this pervasive evasiveness as it affects our
psychological dispositions. We cannot be assured about the inde-
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Who or what the monsters are, where they came from, why these
people, whether they might find a way back out again: These are
the mysteries driving From forward, and the series takes its time
looking for the answers. […] Every new answer seems to yield only
more questions, the eventual answers to which will surely yield
more questions still. (Han 1)
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Sem entrar em pormenores, um pocket universe ou universo-bolha é um conceito da teoria in-
flacionária, proposto pelo físico americano Alan Guth. Segundo o pesquisador, este fenómeno
pode surgir como resultado da inflação eterna do universo (cf. Cooper).
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(Shaun Majumder) cogita a possibilidade de que estão a ser testados por Deus
e que as suas experiências macabras servirão como material para a escrita de
um capítulo inteiramente novo da Bíblia.
Além de não ser possível determinar se os moradores de From estão presos
a um pesadelo, a um reality show, ao purgatório, a uma dobra do espaço-
tempo, a uma provação divina ou a um pocket universe, outros fenómenos
incomuns também afetam a história. Há vozes que controlam as ações e os
sonhos de alguns dos moradores da cidadezinha. Sara (Avery Konrad), a
jovem empregada do restaurante local, costuma ouvi-las e obedecer a seus
desígnios homicidas. Jade sonha com um símbolo específico numa árvore e,
ao acordar, a mãe do delegado Kenny, Tian-Chen (Elizabeth Moy), mostra-
-lhe um caderno velho com desenhos similares. Na aldeia há também reapa-
recimentos espantosos como os de uma pulseira específica feita por Tabitha
a Jim e dada como perdida anos antes de os Matthews chegarem a esse sítio,
bem como o ressurgimento do fantasma da finada esposa de Boyd, emara-
nhada em teias de aranhas descomunais. Outras ocorrências inexplicáveis
incluem: garrafas contendo cartas datadas de 1864, visitas do espectro de um
miúdo vestido de branco, árvores que se movem ou que contêm portais de
teletransporte, entre outros.
É possível também que o locus horrendus projetado por esta produção au-
diovisual seja formado pela sobreposição de diferentes universos. Em vez de
ser pocket universe, reality show ou purgatório, este sítio poderia conter, ao
mesmo tempo, elementos constitutivos de todos esses “mundos” dentro de
um só. Nesta “zona” ‒ como se dizia na antiga teoria pós-moderna ‒ teremos
um “terceiro espaço” ou um heterocosmo desconstruído onde se sobrepõem
fragmentos contraditórios de universos não contíguos (McHale 45). Dessa
forma, a noção ampla de zona ou heterocosmo poderia dar conta da extrema
fluidez espacial das residências e da diversidade da mitologia criada pela série.
E, ainda que muita coisa seja incerta, a casa da família Matthews é o portal
para acessar as diferentes camadas interdimensionais desses universos.
Conclusão
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ceber o papel desempenhado pela casa nessas narrativas de terror. Esta in-
vestigação aborda as séries televisivas como textos audiovisuais dominados
por temas recorrentes e ingredientes de origem romanesca que revelam não
apenas uma afinidade ficcional, mas também uma origem mítica comparti-
lhada entre televisão e literatura (Reis 275). Embora os dados apresentados
pelos dramas televisivos sejam necessariamente parciais, dado que ambos
não se encontram concluídos, certos aspetos representativos já se destacam.
Em Servant, a perda de um filho inocente (Jericho) ocasiona a formação
de um fosso na cave da casa dos Turners. Essa ocorrência simboliza o trauma
que se instala no inconsciente da mãe. A sucessão de monstruosidades rela-
cionadas a esse fosso que ameaça a estrutura de toda a casa (símbolo da fa-
mília), aproxima a história do estilo gótico, um género ficcional consabida-
mente pródigo na criação de alteridades ameaçadoras (Greenway 14).
A série From também parte da morte de Thomas, um bebé inocente, e
leva a família Matthews a vivenciar terrores numa nova casa localizada num
sítio dominado por traços ilógicos. A narrativa, ao promover um lento des-
vendamento das causas por trás das constantes mortes, traz para o primeiro
plano ficcional a dominante epistemológica comum a romances de detetive
e de ficção científica.
Ambas as séries mantêm os simbolismos tradicionais relacionados à figura
do buraco como representação da transcendência da realidade. Em From, o
buraco aberto pelos moradores na cave revela uma passagem para outra di-
mensão. Em Servant, o buraco representa o inconsciente e o limiar do des-
conhecido.
Por outro lado, como mostram os exemplos até agora aduzidos referentes
a pormenores dessas produções, os dois textos audiovisuais subvertem os
sentidos mítico-simbólicos convencionalmente associados à casa como um
doce lar, um ninho de amor, um porto seguro ou um berço familiar. Pelo con-
trário, as casas das famílias Turner (de Servant) e Matthews (de From) estão
cheias (ou cercadas) de terríveis ameaças. São sítios ficcionalmente subver-
tidos e eivados de perdas, tragédias e inseguranças. Essa representação, em-
bora marcada pelas indeterminações deliberadas das narrativas, colaboram
para desautomatizar a nossa percepção da casa, e contribuem para a geração
de efeitos de terror inesperados e imprevisíveis.
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The Sixth Sense. Realizado por M. Night Shya-
malan, com Bruce Willis, Toni Collette,
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